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PSICOLOGIA SOCIAL Daiane Duarte Lopes Os grupos como lugar de produção da ideologia Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Definir o conceito e a perspectiva histórica de ideologia. � Analisar os grupos e sua interação na produção de ideologia. � Reconhecer grupos, ideologia e relações de poder. Introdução Neste capítulo, você vai estudar os grupos como lugar de produção de ideologia, compreendendo como eles contribuem para a constituição e para o desenvolvimento da ideologia. Assim, primeiramente, você acompanhará como o conceito de ideologia se constituiu a partir de uma perspectiva histórica, com a qual diversos autores fizeram suas contribuições para a compreensão do conceito. Em seguida, você analisará como os grupos podem produzir ideologia a partir de sua interação e, por fim, relacionará o conceito de ideologia e de relações de poder nos grupos e com os grupos, analisando como essas relações se desenvolvem de maneira transversalmente mútua. Ideologia Os primeiros registros do termo ideologia foram realizados pelo filósofo e pensador sensista Antoine Destutt de Tracy (1754-1836) em 1796. Este filósofo usou a palavra ideologia para designar o que chamava de “ciência das ideias”, almejando conceber uma nova ciência com o objetivo de analisar sistematicamente as ideias e sensações. Destrutt de Tracy, prisioneiro por lutar na revolução francesa e atuante no movimento da burguesia revolucionária, utilizou o tempo na prisão para delinear a ideologia como uma ciência que pudesse organizar, com base na razão, na origem e no desenvolvimento das ideias, seus encontros e possíveis consequências (THOMPSON, 2011). Ao longo da história, o conceito de ideologia teve diversos significados, partindo de uma compreensão reducionista sobre o termo e significando ideal de ideias até ser ampliado a uma concepção de conjunto de ideias, pensamentos, valores, doutrinas que indicam uma perspectiva de mundo de um sujeito ou grupo orientado por questões sociais e políticas (MAZZARI, 2012). O filósofo francês August Comte (1798-1857) refere o conceito de ideologia a um conjunto de ideias construídas de acordo com cada fase do desenvolvimento humano, relacionando o sujeito ao seu contexto. Dessa maneira, ideologia pode ser compreendida como uma organização sistemática dos conhecimentos científicos e considerados legítimos, isentos de aspectos religiosos e metafísicos (CHAUÍ, 1980). Para o filósofo alemão Karl Marx, já no início do século XX, a ideologia foi o tema dominante que permeou quase toda sua trajetória de estudos. Marx conectava o conceito de ideologia aos sistemas teóricos sociais, políticos e morais concebidos pela burguesia, como classe social dominante, que tinha como objetivo principal manter os mais ricos no controle da sociedade e, para isso, fazia uso da ideologia para promover dominação sobre a classe operária (CHAUÍ, 1980). Assim, para Marx e Engels (1965), a ideologia deveria ser mais bem difundida e clarificada entre a classe operária e atuar como ferramenta que surgiria como espaço no qual fosse possível entender a realidade posta, problematizar e pensar territórios de transformação. As relações sociais são produzidas pelos sujeitos, atuando como guias para os pensamentos e ações, ainda que esses sujeitos não tenham uma ampla consciência sobre sua autoria. Nesse sentido, as relações produzem ideolo- gia, ao mesmo tempo em que constituem processos históricos por meio da amplificação de trocas e conhecimentos. A ideologia, a partir desse conceito, potencializa o poder de transformar a realidade social e produzir ideias que expliquem a vida social e individual (ZIZEK, 1996). No entanto, Paul Ricoeur (1977) concebe, a partir das teorias de Marx e Engels, um conceito mais ampliado de ideologia compreendida conforme uma análise das funções e intenções. Dessa maneira, Ricoeur (1977) propõe como função geral da ideologia a mediação na integração social e na coesão grupal. Além da função geral da ideologia, Ricoeur ainda refere sobre a função de dominação na produção de crenças legitimadoras da dominação e, também, sobre uma função ancorada nas concepções marxistas, a função deformadora, a partir da qual Ricoeur faz referência a certa deturpação da realidade com objetivo de manipulação (RICOEUR, 1977). Os grupos como lugar de produção da ideologia2 Assim, no decorrer de todo o seu desenvolvimento, o conceito de ideo- logia passou por diversas alterações, aprofundamentos e transformações. Desde sua concepção, a ideologia se caracterizou como plural de acordo com características do âmbito histórico e social vivenciado por diferentes sociedades devido à sua multiplicidade cultural por meio de distintos períodos (MAZZARI, 2012). No entanto, em todo o seu percurso constitutivo, o conceito de ideologia esbarra em dicotomias na sua concepção prática. Primeiro, porque, com base em interpretações, o conceito de ideologia fica à mercê da sensibilidade dos sujeitos, arriscando seu significado integral, já que é relacionada com o processo pelo qual as ideias da classe dominante se tornam universais, legitimando, assim, a dominação e a exploração de uma classe sobre a outra. Além disso, por ser caracterizada sob um saber científico-tecnológico, mais uma vez acaba sendo relacionada como instrumento de dominação entre os mais favorecidos e os menos favorecidos e dependentes (MAZZARI, 2012). Contudo, ainda que o conceito de ideologia apresente uma multiplicidade de “usos”, nos quais nem sempre esteja a serviço da verdade sobre a reali- dade, a ideologia, quando fortalecida e impulsionada pelos grupos, tende a atribuir poder aos sujeitos, estimulando a capacidade de mudar a ordem social e econômica vigentes. Conforme Zizek (1996), é a partir do reconhecimento da força da união estabelecida pelos sujeitos nos grupos que a ideologia pode promover histórias de mudanças e transformações. Ao longo de toda a história, a ideologia assumiu muitas formas: � Ideologia fascista apresentada como uma visão unilateral de bem-estar social, imposta por um ideal que não concebia diferenças ou singularidades de raça, cor ou credo; � Ideologia comunista, com a proposta de um sistema no qual vigorasse a igualdade social; � Ideologia democrática, que propõe um ideal de participação da sociedade na organização política; � Ideologia capitalista, visando ao lucro e ao acúmulo de riquezas; � Ideologia conservadora, que promove a criação e a manutenção de valores morais e sociais como normas a serem cumpridas e respeitadas pela sociedade; � Ideologia anarquista, promotora da liberdade de ser e existir enquanto sociedade e cidadão; e � Ideologia nacionalista, valorizando a cultura do próprio país (EAGLETON, 1997). 3Os grupos como lugar de produção da ideologia Os grupos e sua interação na produção de ideologia Considerando que os grupos são constituídos a partir das representações sociais, costurados por meio de símbolos e conduzidos conforme suas fer- ramentas comunicacionais, e que é na interação entre seus membros que se define axiologicamente, é possível compreender que, em meio aos processos grupais, seja possível conhecer os signos e as linguagens na produção de ideologia. Assim, o grupo existe na possibilidade de estabelecer significados a partir da interação e na leitura da realidade e de seus desejos (LANE, 1985). Bakhtin (2009) discute a ideologia sob o ponto de vista da linguagem e de sua simbologia evocada como um fenômeno para além da superfície da consciência. Ou seja, utilizando essa perspectiva, podemos compreender que, para que seja possível a interação dos sujeitos no grupo, os signos e seus significados são incorporados. O processo grupal, dessa maneira, aproxima signos conhecidos previamente pelos componentes grupais e, como resultado de uma soma, desenvolve-se a ideologia (MOSCOVICI, 1978). Para Morin (2002), um signo é compreendidoa partir de outro, viabilizando que a consciência se forme com base nesse sistema semiótico e absorvido de ideologia. A partir disso, a ideologia emerge por meio do processo de interação social, no qual adquire um sentido de unidade para o grupo, que, socialmente estruturado, em meio a um sistema de signos compreendidos entre os com- ponentes grupais, possa alcançar um valor socioideológico. O grupo tem, em si, determinações próprias orientadas por fenômenos ideológicos designados pelo fluxo comunicacional e os significados atribuídos às palavras. A natureza significante da palavra é mediada por forças sociais presentes nos grupos e na sociedade da mesma forma que as relações sociais são orientadas pela ideologia (BAKHTIN, 2009). Os grupos utilizam a linguagem como ferramenta para criar signos comuns que possam atuar como potencializadores para uma inserção social. Os gru- pos se desenvolvem por meio do aprendizado e do compartilhamento de um conjunto de significados, as normas e os sistemas de valores e representações que regem a sociedade (LANE, 1985). Esse processo de desenvolvimento e aprendizado convoca a reprodução de ideologias que poderão ser reproduzidas, refratadas ou ressignificadas em conformidade com o contexto no qual o grupo está sendo desenvolvido (BAKHTIN, 2009). Nesse sentido, pensar a ideologia pressupõe uma noção de estrutura social, na qual os grupos atuam a partir das representações sociais (LANE, Os grupos como lugar de produção da ideologia4 1985). Nessa relação, os grupos estabelecem, na interação com o contexto, a heterogeneidade, a multiplicidade e um espaço potencializador da diferença como resistência para que a ideologia possa ser construída na transversali- dade e na impermanência a fim de que escape de processos que tendem ao engessamento. Os modos como um sujeito pensa, deseja, sonha e crê são fundidas por sua condição material de produção e existência, ou seja, pelo seu contexto e por sua realidade, por meio da experiência material, simbólica e cultural na qual está inserido. Tais percepções marcam um modo de olhar e pertencer no mundo. Assim, uma pessoa nascida e crescida em um contexto grupal pertencente a uma comunidade na periferia ou com poucas condições econômicas, sociais e culturais terá uma visão da realidade consideravelmente diferente de outra pessoa pertencente a uma classe social mais avantajada ou residente de uma região com maiores recursos econômicos, sociais e culturais. A interação dos grupos na produção de ideologia passa por esse olhar sensível ao contexto e pelas demandas específicas de cada realidade. Grupos, ideologia e relações de poder Ideologia implica deixar-se adentrar pelo pensamento do outro, vislumbrar o ponto de vista de ideias individuais e coletivas por meio da soma das si- milaridades e diferenças (EAGLETON, 1997). A ideologia em si, como um conjunto de ideias não assume um sentido definido, mas em conformidade com as relações de poder atua como a vela de um barco, direcionando o sentido de navegação dos grupos. Os grupos são movidos pelas relações estabelecidas entre seus componentes e objetos sociais e, dessa forma, constituem as relações de poder, compreendidas a partir de demandas criadas entre um grupo e outro e ainda entre os próprios componentes de cada grupo (ZIMERMAN, 2000). Ou seja, as relações de poder circulam entre os grupos e também nos grupos, pois se configuram a partir das demandas instituídas pelas ideologias. Lukács (1968 apud ZIZEK, 1996) alerta para a possibilidade de divergên- cias bipolares sobre a noção de ideologia nas relações de poder que circulam nos grupos. A ideologia corre o risco, conforme a condução do grupo e os 5Os grupos como lugar de produção da ideologia interesses das relações de poder, de ser utilizada para apontar para uma de versão unilateral da realidade apologética de interesses que, embora apareçam por meio dos grupos, possam clamar por prioridades individuais (ZIZEK, 1996). Assim, diante da complexidade apresentada por variações de sentidos, noções, conceitos e definições pertinentes à ideologia e elaboradas no decorrer da história, é necessário reconhecer que essas diversas concepções, muitas vezes contraditórias, resultam de contextos econômicos, políticos e sociocul- turais historicamente divergentes. As ações dos grupos são coordenadas numa perspectiva coletiva, como proposta de superação de ideologias instituídas, buscando implicar em constantes alterações na estrutura produtiva e na com- pleta transformação das relações sociais (DURKHEIM, 1970). A ideologia como conceito construtivo pretende adquirir formas transver- sais à existência de signos criados nos grupos no percurso de suas relações sociais em meio às relações de poder. O poder exercido nas relações, tal como Lane (1985) referencia, é difuso, tecido como uma teia de forças pe- netrantes e invisíveis, encontrado em todo e qualquer tipo de relação entre os sujeitos. Dessa maneira, os grupos instrumentalizam suas relações de poder no delineamento da ideologia. Portanto, conforme Bion (1970), a soma da cons- ciência sobre a realidade deriva da junção de pensamentos e percepções diferentes que caracterizam o processo grupal na constante composição das relações de poder. Acesse o link abaixo e acompanhe as reflexões do professor e pesquisador José Paulo Netto, que explica o conceito de ideologia desde Marx e Engels até Lukács, apresen- tando suas limitações e determinações ao longo da trajetória histórica. https://goo.gl/iJ8st8 Os movimentos dos grupos, imbuídos da ideologia, abandonam um plano individual para assumir um caráter coletivo que abarcaria mudanças mais amplas nas esferas políticas, culturais e da sociabilidade – em proveito de um projeto centrado em conquistas que sirvam a coletividade, afetando de Os grupos como lugar de produção da ideologia6 https://goo.gl/iJ8st8 maneira decisiva a estrutura social (DURKHEIM, 1978). Reivindicações como respeito e justiça social, de gênero, raça, credo, entre outras, ocupam o cerne das problemáticas grupais, caminhando, assim, para o direito à diversidade como finalidade em si. Ao longo da história da sociedade atual, muitas foram as conquistas que se compuseram a partir dos movimentos dos grupos, que, munidos de suas concepções ideológicas específicas, inseriram direitos individuais e coletivos na constituição da sociedade (BOURDIEU, 2006). Por exemplo, a união das mulheres se caracterizou na criação de um grupo feminino e originou o movimento feminista, que tem como ideologia o respeito à diversidade de gênero e a equidade. Esse grupo só pode fortalecer-se no estabelecimento de uma relação de poder na luta contra hegemonias e práticas alienantes dos direitos. BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 16. ed. São Paulo: Hucitec, 2009. BION, W. R. Experiências com grupos: os fundamentos da psicoterapia de grupo. Rio de Janeiro: Imago, 1970. CHAUÍ, M. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1980. DURKHEIM. É. Educação e sociologia. 11. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1978. DURKHEIM, E. Sociologia e filosofia. Rio de Janeiro: Forense. 1970EAGLETON, T. Ideologia. São Paulo: Boitempo, 1997. LANE, S. T. M. O processo grupal. In: LANE, S. T. M.; CODO, W. (Org.). Psicologia social: o homem em movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 78-98. MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. Rio de Janeiro: Zahar, 1965. MAZZARI, M. V. Ideologia: uma breve história do conceito. Estudos avançados, v. 26, n. 75, p. 359-362, maio/ago. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142012000200025&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 3 jun. 2018. MORIN, E. Ciência com consciência. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. MOSCOVICI, S. A representação social da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. 7Os grupos como lugar de produção da ideologia http://www.scielo.br/scielo. RICOUER, P. Interpretação e Ideologias. Rio de Janeiro: FranciscoAlves, 1977. THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. ZIMERMAN, D. E. Fundamentos básicos das grupoterapias. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2000. ZIZEK, S. O espectro da ideologia. In: ZIZEK, S. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. Leituras recomendadas BOURDIEU, P. O poder simbólico. 14. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. LUKÁCS, G. Marxismo e teoria da literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. Os grupos como lugar de produção da ideologia8 Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual da Instituição, você encontra a obra na íntegra.
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