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385Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 385-410, maio/ago. 2006 Histórias de vida e autobiografias na formação de professores e profissão docente (Brasil, 1985-2003)* Belmira Oliveira Bueno Helena Coharik Chamlian Cynthia Pereira de Sousa Denice Barbara Catani Universidade de São Paulo Resumo O texto apresenta uma revisão de trabalhos da área de Educação que fizeram uso das histórias de vida e dos estudos autobiográ- ficos como metodologia de investigação científica no Brasil. Dois recortes foram efetuados, um temporal e outro temático, para focalizar o período compreendido entre 1985 e 2003 e privilegiar dois temas: formação de professores e profissão docente. O ob- jetivo principal foi o de mapear a produção nacional, buscando identificar as temáticas que emergiram com maior força, apontan- do aspectos lacunares e indicando direções para futuros estudos na área. Várias fontes foram utilizadas: resumos de teses e dissertações (banco de teses da CAPES); textos completos de teses e dissertações defendidas nos programas de pós-graduação da Pontifícia Universi- dade Católica de São Paulo — PUC-SP — e da Faculdade de Educa- ção da Universidade de São Paulo — FEUSP —; livros; e periódicos científicos. As análises levaram a concluir que o uso dessas abor- dagens cresceu significativamente no Brasil a partir dos anos de 1990, porém, de modo muito disperso, foram utilizadas muito mais como fonte de dados para o desenvolvimento de um largo espectro de pesquisas e muito timidamente como dispositivos de formação. Todavia, evidenciou-se que a intensificação de tais metodologias contribuiu para renovar as pesquisas sobre os pro- fessores, ao mesmo tempo em que fez aflorar o interesse por questões e temáticas novas, tais como as que se configuram, por exemplo, nos estudos sobre profissão, profissionalização e iden- tidades docentes. Palavras-chave Autobiografias — Histórias de vida — Formação de professores — Profissão docente. Correspondência: Belmira O. Bueno Faculdade de Educação/USP Av. da Universidade, 308 e-mail: bbueno@usp.br * Este trabalho contou, em diferentes fases dos levantamentos, com a cola- boração de Daiane Vieira Piscinato, Elza Pino dos Santos, Flávia Medeiros Sarti, Flavinês Rebolo Lapo, Lia Mara dos Santos, Marcela Oliveira Soga, Renata Marcílio Cândido, Teresa Van Acker e Vera Lúcia dos Santos, a quem quere- mos registrar nossos agradecimentos. rayani Realce rayani Realce rayani Realce rayani Realce rayani Realce rayani Realce rayani Realce rayani Realce Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 385-410, maio/ago. 2006386 Life histories and autobiographies in teacher education and teaching profession (Brazil, 1985-2003)* Belmira Oliveira Bueno Helena Coharik Chamlian Cynthia Pereira de Sousa Denice Barbara Catani Universidade de São Paulo Abstract The text offers a review within the area of Education of the works that make use of life histories and autobiographic studies as a scientific research methodology in Brazil. The period between 1985 and 2003 is focused under two different slants, one tem- poral, and the other thematic: teacher education and teaching profession. The main purpose here was to map out the national production, seeking to identify the themes that have emerged with greater strength, pointing out deficient aspects, and suggesting directions for future studies in this field. Several sources were utilized: abstracts of theses and dissertations from the CAPES database; complete texts of theses and dissertations presented to the graduate programs of the Pontifical Catholic University of São Paulo – PUC-SP – and of the Faculty of Education of the University of São Paulo – FEUSP; books; and scientific journals. The analyses have shown that the use of these approaches has grown significantly in Brazil since the 1990s but, in a very disperse manner, they have been used more as a source of data for the development of a wide spectrum of studies, and only timidly as formation devices. Nevertheless, it has become apparent that the rise of these methodologies has contributed to a renewal in the studies about teachers, at the same time that it has fostered the interest in new issues and themes, such as those developed, for example, in the researches about profession, professionalization and teacher identity . Keywords Autobiographies — Life histories — Teacher education — Teaching profession. Contact: Belmira O. Bueno Faculdade de Educação/USP Av. da Universidade, 308 e-mail: bbueno@usp.br * This work had, in various stages of data gathering, the help of Daiane Vieira Piscinato, Elza Pino dos Santos, Flávia Medeiros Sarti, Flavinês Rebolo Lapo, Lia Mara dos Santos, Marcela Olivei- ra Soga, Renata Marcílio Cândido, Te- resa Van Acker, and Vera Lúcia dos Santos, to whom we would like to express our gratitude. 387Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 385-410, maio/ago. 2006 As histórias de vida e os estudos auto- biográficos como metodologias de investigação científica na área de Educação ganharam visí- vel impulso no Brasil nos últimos quinze anos. Em comparação com o período anterior, a dé- cada de 1990 traz grandes mudanças, apresen- tando um crescimento vertiginoso dos estudos que fazem uso dessas metodologias, generica- mente denominadas de autobiográficas. Sinais desse crescimento puderam logo ser percebidos. Em 1996, por exemplo, quan- do da organização do 1º Seminário Docência, Memória e Gênero na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – FEUSP –, fo- ram recebidas cerca de 40 propostas de traba- lhos, entre pesquisas concluídas e em desenvol- vimento, vindas de instituições de vários pon- tos do país1 . Alguns anos depois, ao realizar um trabalho para a Associação Nacional de Pós-Gra- duação e Pesquisa em Educação — ANPEd —, identificamos 40 trabalhos completos apresenta- dos em suas reuniões, entre 1991 e 20012 , e 35 nos congressos do Encontro Nacional de Didá- tica e Prática de Ensino — ENDIPE —, de 1998 a 2000, entre comunicações, mesas-redondas, painéis e pôsteres. O número expressivo de ins- tituições representadas nesses eventos (32 na ANPEd e 21 no ENDIPE) era indicativo de que um movimento de grande adesão aos estudos autobiográficos e com histórias de vida de pro- fessores estava ocorrendo em todo o país, cujas feições, no entanto, eram ainda pouco nítidas. Naquela ocasião, consideramos oportuno fazer referência a uma passagem de António Nóvoa (1995), a propósito do caminho que os estu- dos com as histórias de vida vinham tomando. Era o ano de 1995, e ele dizia: Em 1988, quando publiquei em colaboração com Mathias Finger O método autobiográfico e a formação, as abordagens biográficas eram pouco conhecidas em Portugal e a sua utiliza- ção na formação de professores não tinha qual- quer significado. Em 1992, quando da primeira edição de Vidas de professores, a situação já tinha mudado consideravelmente, o que me leva a alertar contra a existência de práticas pouco consistentes e de metodologias sem qualquer rigor. Hoje, em 1995, o aviso deve ser escrito com letras ainda mais cheias. (p. 9) Essa advertência e mais as constatações de que tais estudos vinham ganhando terreno no Brasil ensejaram a realização do presente trabalho, com o objetivo de mapear e caracte- rizar a produção nacional com base em um levantamento mais exaustivo. Ao analisar o emprego das metodologias autobiográficas e histórias de vida nas investigações sobre for- mação de professores e profissão docente, o texto busca caracterizar as tendências que emergiram com maior vigor, identificando as- pectos lacunares e buscando apontar direções que nos parecem férteis para futuros investi- mentos na área. Considerando o crescimento da produ- ção, a abrangência e a diversidade dos estudos encontrados, a revisão foi realizada com base em dois recortes, um temporal e outro temático, para focalizar um período de aproximadamente duas décadas (1985 a 2003) e privilegiar dois temas – formação de professores e profissão docente. Consideramos tambémas questões de gênero, em razão de sua presença marcante nas pesqui- sas em Educação no período em análise, além de ser este um dos focos de análise em nossas pes- quisas com autobiografias/histórias de vida. As buscas dos trabalhos foram efetuadas por meio dos seguintes descritores: histórias de vidas, autobiografias, memórias, lembranças, de- poimentos orais, narrativas, entrecruzados com os dois eixos temáticos da revisão. Esse tipo de busca envolve o risco de não se identificar to- dos os trabalhos desenvolvidos nas perspectivas adotadas nesta revisão, devido a dois fatores principais: o envio irregular das informações pe- 1. Ver Atas do 1º. Seminário Docência, Memória e Gênero da FEUSP (Catani et al., 1997). 2. Esse trabalho foi apresentado na 25a Reunião Anual, no GT Formação de Professores, como trabalho encomendado, sob o título “Os estudos com histórias de vida de professores, um campo emergente de pesquisas: questões metodológicas e perspectivas para as práticas de formação” (Bueno; Catani, 2002). O texto não foi publicado. rayani Realce rayani Realce rayani Realce rayani Realce rayani Realce rayani Realce 388 Belmira BUENO et al. Histórias de vida e autobiografias na formação de professores... los programas de pós-graduação à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior — CAPES —; e a não-coincidência entre as pala- vras-chave constantes dos trabalhos com os descritores por nós utilizados. Desse modo, a identificação de trabalhos com tais característi- cas só se faria possível mediante buscas diretas nas bibliotecas das universidades, o que torna- ria inviável a realização do levantamento de na- tureza abrangente que se pretendeu realizar. Em virtude de se ter lidado com fontes diversas, acredita-se que as análises não ficaram compro- metidas naquilo que apresentam como caracte- rísticas gerais da produção nacional. O corpus de análise, dessa forma, ficou assim constituído: 165 resumos de teses e dissertações, 155 dos quais obtidos no banco de teses da CAPES e os outros 10 no da PUC-SP e em catálogos da FEUSP3; 39 textos completos de teses e disser- tações defendidas nos programas de pós-gradu- ação da PUC-SP e da FEUSP (instituições den- tre as que apresentaram maior produção); 11 livros, selecionados mediante a utilização dos descritores acima mencionados quando da con- sulta a catálogos de algumas das principais editoras da área de Educação4; e 30 artigos publicados em 8 periódicos científicos, dentre os mais expressivos na área de Educação. O exame realizado tornou evidente que essa produção se caracteriza por uma enorme dispersão, tanto temática quanto metodológica, decorrente, entre outros fatores, da multi- plicidade de referenciais teóricos utilizados nas pesquisas. Os teóricos que dão sustentação aos trabalhos têm sido buscados em vários campos disciplinares, fazendo-se empréstimos concei- tuais e combinações as mais variadas, nem sempre isentas de ambigüidades quanto às de- nominações metodológicas utilizadas. Sem pre- tender esgotar, menciona-se aqui uma lista de denominações usadas pelos autores: memória(s), lembranças, relatos de vida (récit de vie), depo- imentos, biografias, biografias educativas, memó- ria educativa, histórias de vida, história oral de vida, história oral temática, narrativas, narrativas memorialísticas, método biográfico, método au- tobiográfico, método psicobiográfico, perspec- tiva autobiográfica. Vale ressaltar que muitos trabalhos usam mais de uma denominação, dei- xando implícita a idéia de que são tomadas como sinônimos. Outras vezes, busca-se com- plementar um sentido com outro, ou uma abor- dagem com outra, dificultando com isso o tra- balho de categorização. Em vista das dificulda- des que isso trouxe para se proceder à classi- ficação dos trabalhos, optou-se por uma expo- sição que se orienta pela cronologia de apare- cimento dos trabalhos, em cuja seqüência bus- camos identificar e destacar as tendências e temáticas que mais caracterizaram cada déca- da/período. Ao nos propormos a esse trabalho, não houve a pretensão de esgotar as muitas análises que esse conjunto de trabalhos com- porta, ao contrário, a perspectiva foi a de ofe- recer um primeiro mapeamento, na tentativa de dar uma primeira ordenação a essa produção com vistas a suscitar novos exames. Alguns antecedentes Os dados coligidos para esta revisão le- varam à constatação de que a década de 1980 não foi prolífica em pesquisas com autobiogra- fias e histórias de vida. A produção dos progra- mas de pós-graduação expressa em resumos (período de 1985-90) registra a presença de apenas quatro trabalhos que utilizaram tais metodologias e, ainda assim, não voltadas aos temas focalizados nesta revisão5 . Um único li- vro foi localizado – Experimentos com históri- as de vida (Itália-Brasil) – uma coletânea de textos organizada por Olga von Simson (1988) 3. Essa complementação foi feita em virtude de uma não correspondên- cia entre os resumos do Banco de Teses da CAPES e os trabalhos da PUC- SP e da FEUSP, quando buscados para a leitura completa. 4. Foram pesquisadas as seguintes editoras, por ordem alfabética: Arte & Ciência, Artmed, Ática, Autores Associados, Cortez, DP&A, Escrituras, Mercado de Letras, Papirus, Pioneira, Unesp, Unijui e Vozes. Alguns des- ses livros foram produzidos inicialmente como teses. As referências es- pecíficas a cada caso são feitas mais adiante. 5. Três desses estudos foram defendidos na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG – e um na Universidade Federal de Pernambuco – UFP. Os temas tratados versaram sobre fracasso escolar, relação profes- sor-aluno, alfabetização e leitura. rayani Realce rayani Realce rayani Realce 389Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 385-410, maio/ago. 2006 na perspectiva da sociohistória da educação6 . A análise dos periódicos confirma esse cenário de rarefação de estudos. Nas revistas analisa- das, chega a surpreender a tênue presença de artigos sobre história da profissão docente ou formação de professores por meio do método autobiográfico/histórias de vida e memórias de vida escolar, tanto nesse período como na dé- cada seguinte. Em um conjunto de 363 exem- plares consultados, foram encontrados apenas 30 trabalhos – menos do que 10% de todo o material pesquisado – conforme pode ser vis- to no Quadro 1. Entretanto, deve-se assinalar o fato de que os textos examinados aproximam-se desi- gualmente dos eixos escolhidos para análise – a maioria deles fazendo recurso a histórias de vida, memórias, lembranças, docência, profissão docente para produzir contribuições na área de História da Educação. Entre os trabalhos publi- cados na década de 1980, em cinco deles (dos seis periódicos que já existiam na época) pre- dominam contribuições baseadas em relatos orais e escritos, com vistas a complementar e/ ou articular-se a informações obtidas em ou- tras fontes. Ressaltam-se investigações que buscam reconstruir trajetórias de formação e trajetórias profissionais de professores. Tal constatação anteciparia a marca de interesse que determinados grupos de pesquisadores viriam a mostrar no decorrer da década de 1990 e que podem ser conhecidos por registros de congressos e eventos, por exemplo, no que tange tanto ao grupo de Minas Gerais como o do Rio Grande do Sul7 . O lugar antecipado pelo texto “Os alu- nos e o ensino na República Velha através das memórias de velhos professores” (Demartini; Tenca; Tenca, 1985), publicado nos Cadernos de Pesquisa, fortalece-se, definitivamente, com a atuação de Zeila Demartini no território da pesquisa histórico-sociológica ligada aos estu- dos educacionais que, nesse caso, revelava o cotidiano de escolas rurais no estado de São Paulo por meio das memórias de antigos pro- fessores e alunos. Em 1989, essa autora publica texto sobre o coronelismo e a expansão do sis- tema educacional em São Paulo, com transcri- ções de trechos de relatos orais de professores (Demartini, 1989). Mais à frente, em 1993, pu- blica, novamente nos Cadernos de Pesquisa, outro artigoque é mais um desdobramento de sua pesquisa dos anos de 1980, com as memó- rias de velhos professores (e professoras), cuja atuação no magistério primário se deu até o final da Primeira República (Demartini, 1993). Nesse texto, de modo especial, a questão do gênero é considerada, mas com auxílio de referenciais teóricos que tratam do trabalho fe- minino (Michael Apple, Cristina Bruschini etc.). Nesse sentido, para a história da profissão docente, com recurso dos relatos/depoimentos orais, fornece informações preciosas sobre a condição de trabalho das professoras (magisté- rio como profissão) em comparação aos bene- fícios e privilégios de que gozavam os homens professores (magistério como carreira)8 . Nesse período, Educação em Revista (Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG) também traz contribuições relevantes para a 6. Entre os capítulos desse livro, figuram dois textos dentre os que vie- ram a ser referência para muitas pesquisas, tanto nessa época como de- pois: o de M. Isaura Pereira de Queiroz (1988) – “Relatos orais: do indi- zível ao dizível” – e o de Zeila Demartini (1988) – “Histórias de vida na abordagem de problemas educacionais”. Nos próximos parágrafos, serão feitas mais observações a respeito dessa orientação teórico-metodológica. 7. Uma análise preliminar sobre a produção veiculada nos periódicos foi apresentada no Simpósio Internacional Escrever a Vida. Novas aborda- gens de uma teoria da autobiografia. São Paulo, Universidade de São Pau- lo, FFLCH,,,,, setembro de 2005 (Sousa; Catani, 2005). rayani Realce rayani Realce rayani Realce rayani Realce 390 Belmira BUENO et al. Histórias de vida e autobiografias na formação de professores... história da profissão docente, porém diferenci- adas entre si. Um dos textos adota uma pers- pectiva que se configura como uma história das disciplinas (nesse caso, acadêmica) ao exa- minar a Psicologia da Educação como matéria de cursos de formação de professores. Frag- mentos de histórias de vida de 18 docentes são utilizados para analisar o trabalho com essa disciplina entre 1925 e 1984, na capital mineira (Goulart, 1986). Em 1989, um texto que apa- rece na seção de Comunicações chama a aten- ção para a trajetória de uma professora da zona rural – Mestra Iraci – que ao ser entrevistada por duas alunas do curso de Pedagogia resol- veu escrever, ela própria, seu relato. Esse ma- terial utilizado na publicação era exigência de uma disciplina e parte de pesquisa de Lea Pi- nheiro Paixão, da UFMG, que nos inícios dos anos de 1990 publica artigo, nessa mesma re- vista, sobre professoras primárias mineiras que tinham iniciado suas carreiras entre 1924 e 1938 (Paixão, 1991). No caso desse texto, Pai- xão recorreu a entrevistas de 35 professoras, investigando seu pertencimento social, sua for- mação e sua condição profissional. Não há dúvida de que o estudo tem muito a dever, nesse tema, ao pioneirismo de Zeila Demartini. Ainda nos anos de 1980, a revista Edu- cação e Realidade (Universidade Federal do Ro Grande do Sul – UFRS) publica texto que remete diretamente à pesquisa sobre educação femini- na nesse estado, por meio do estudo de práti- cas escolares e pedagógicas de uma instituição pública centenária na cidade de Porto Alegre (Louro, 1986). Entre outros recursos, sua auto- ra utilizou-se de depoimentos/relatos orais de mulheres que, no passado, tinham sido persona- gens daquele universo escolar como alunas e professoras. A autora Guacira Lopes Louro, que viria a produzir outros tantos trabalhos sob a perspectiva das relações sociais de gênero, co- locou bastante ênfase na questão da dominação masculina, bem como nas estratégias de resistên- cia das mulheres, uma abordagem bastante nova em estudos sociohistórico educacionais. Na Revista Brasileira de Estudos Peda- gógicos, foi localizado apenas um artigo, nes- sa perspectiva na década de 1980, bem distinto dos demais. Trata-se de um texto escrito em primeira pessoa, em que a autora (Soares, 1984) aproveita seu memorial de concurso de profes- sora titular para apresentar sua trajetória acadê- mica. Trata-se, portanto, de artigo baseado em trajetória de vida profissional, no qual não se considera a infância nem as primeiras experiên- cias escolares, mas apenas a militância acadê- mica e a ideologia que influenciou seu traba- lho intelectual. Em congressos, reuniões científicas, seminários, dissertações e teses, essas temáticas apareceram com maior freqüência. Se no gru- po dos trabalhos publicados na década de 1980 é possível observar o quase generalizado esforço de defesa do recurso às fontes ligadas à memória e às histórias de vida, pela nature- za das informações às quais tais fontes/proce- dimentos podem dar acesso, a questão do gê- nero – uma abordagem ainda incipiente nos estudos educacionais – não foi considerada nas análises, muito embora vários desses textos tenham tratado das relações entre trabalho e condição feminina. Dessas constatações deriva uma outra: a de que os anos de 1990 foram o cenário do incremento da produção de trabalhos em tor- no dos grandes eixos aqui apresentados. Anos de 1990: o contexto brasileiro e as influências européias Uma compreensão sobre os percursos da pesquisa educacional, no que tange ao movimento que ocorre em direção às aborda- gens autobiográficas, não poderia prescindir de algumas considerações sobre o contexto brasi- leiro nos anos de 1990, bem como sobre as influências vindas de outros países e que aqui se repercutem a partir desse período. 8. Uma análise preliminar sobre a produção veiculada nos periódicos foi apresentada no Simpósio Internacional Escrever a Vida. Novas aborda- gens de uma teoria da autobiografia. São Paulo, Universidade de São Pau- lo, FFLCH,,,,, setembro de 2005 (Sousa; Catani, 2005). rayani Realce rayani Realce rayani Realce rayani Realce rayani Realce rayani Realce rayani Realce rayani Realce 391Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 385-410, maio/ago. 2006 Um primeiro ponto a ser registrado é que no Brasil as discussões em torno da forma- ção do professor e de sua profissionalização intensificaram-se no período que antecedeu a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Edu- cação Nacional (LDBEN 9394/96), a partir da qual os professores e os pedagogos passaram a se denominados de profissionais da Educação (art. 61 a 67). Essa ênfase, no entanto, não era isolada. Na verdade, fazia coro com um movi- mento mais geral, que emergia e se alastrava por toda parte, tanto nos países desenvolvidos como naqueles em desenvolvimento. A Améri- ca Latina foi palco de muitas reformas nos anos de 1990, todas, sem exceção, dando destaque para o papel central dos professores na cons- trução da nova escola que então se passou a vislumbrar. Embora no Brasil o movimento so- bre os profissionais da educação tenha se ini- ciado na década de 1970, dá-se ênfase aqui aos debates dos anos de 1990, em razão de se supor que eles contribuíram para acentuar o in- teresse pelas abordagens autobiográficas e com história de vida de professores que, justamen- te nesse período, se multiplicam com enorme rapidez, como demonstrado nesta revisão. Olinda Evangelista e Eneida Shiroma (2003) mostram que órgãos como o Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF – e a Organização das Nações Unidas para a Educa- ção, a Ciência e a Cultura – UNESCO – chama- vam a atenção para a problemática da profis- sionalização docente desde o início dos anos de 1990, e que as propostas a esse respeito já estavam contidas em documentos da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe – CEPAL – e do Proyecto Principal de Educación en América Latina y el Caribe – PROMEDLAC – também desde o início daquela década. Elas observam que, em 1993, profissionalização foi conceito central da reforma educativa discutida naquele Projeto, ao lado das discussões sobre as redefinições do perfil e da formação do professor. Ao realizarem uma análise sobre os tra- balhos do GT Formação de Professores da ANPEd, referente ao período de 1995-2002, essas autorasconstatam que o emprego do termo profissionalização cresceu significativa- mente, nesse período, reportando-se [...] à pessoa do professor, à prática docente, à qualificação da categoria do magistério, à qua- lidades inerentes à função, à requalificação profissional, à formação inicial, à formação continuada, ao modelo profissional, à mudança radical do perfil docente. (p. 27-28) Entre outras considerações, elas cha- mam a atenção para o fato de que os trabalhos analisados baseavam-se “em uma literatura in- ternacional majoritariamente de origem européia e norte-americana” (p. 31), sem fazer uma interlocução com a própria América Latina. O contexto descrito por Evangelista e Shiroma e os dados por elas apresentados ex- plicam, em grande parte, a emergência dos estudos autobiográficos no Brasil, bem como várias das marcas de sua produção. Com efei- to, o acesso a textos publicados em Portugal e distribuídos aqui, reunindo colaborações de autores portugueses, franceses, suíços, italia- nos, com teorias e investigações sobre o méto- do autobiográfico como recurso metodológico e como fonte de pesquisa, foi um dos aspec- tos definidores do cenário que se desenha nos anos de 1990. A publicação em Portugal, em 1992, de Vida de professores e Profissão pro- fessor, duas coletâneas organizadas por Anto- nio Nóvoa (1995a; 1995b), teve enorme reper- cussão no Brasil. Essas coletâneas contaram com a participação de autores de diferentes países – Ivor Goodson e Peter Woods, da Ingla- terra; Miriam Ben-Peretz, de Israel; José Gimeno Sacristán e José Manuel Esteve, da Espanha; Daniel Hameline, da Suíça; Michäel Huberman, do Canadá; dentre outros autores – que depois vieram a se tornar referências para muitos tra- balhos no Brasil. Antes disso, em 1988, Nóvoa havia organizado com Mathias Finger uma outra obra, O método (auto)biográfico e a for- mação (1988), que já havia despertado grande interesse no contexto lusófono e acabou tam- rayani Realce rayani Realce rayani Realce rayani Realce rayani Realce rayani Realce rayani Realce rayani Realce 392 Belmira BUENO et al. Histórias de vida e autobiografias na formação de professores... bém chegando às mãos de muitos pesquisado- res brasileiros9 . Data também desse período a criação do Grupo de Estudos Docência, Memória e Gênero da FEUSP (GEDOMGE-FEUSP), no ano de 1994, cujas concepções foram, em grande parte, tribu- tárias dos trabalhos liderados por Gaston Pineau, Pierre Dominicé e Marie-Christine Josso, desen- volvidos na Universidade de Genebra10 , e que àquela altura já se constituía em uma rede ampla de pesquisadores de vários países – França, Itá- lia, Canadá, Portugal, entre outros. Seguindo as concepções desses pesquisadores, como coorde- nadoras do GEDOMGE, colocamos o método au- tobiográfico em prática numa dupla perspectiva: para operar como dispositivo de formação e, ao mesmo tempo, como instrumento de pesquisa11 . As concepções do grupo de Genebra, por sua vez, encontravam suas raízes em proble- máticas que emergiram no âmbito das ciências humanas, sobretudo, nos finais do século XX (Josso, 1999). O que se verifica nos últimos 30 anos é que as transformações do modelo social desse período são acompanhadas de formas de socialização em que os processos de indivi- dualização e subjetivação encontram um lugar cada vez maior. A acentuação dessas formas de socialização está ligada às transformações soci- ais que contêm a passagem das sociedades na- cionais, industrializadas e centralizadas, para formas de sociedade cujos organismos políticos, sociais e econômicos perdem sua centralidade, em que as instituições não têm mais a mesma capacidade de integração e nas quais os ‘indi- víduos’ são compelidos a provar mais e mais iniciativa e autonomia e encontrar neles pró- prios os recursos e forças para sua conduta. É nesse contexto que ‘a questão do sujeito’ retorna por via das ciências sociais após ter sido esvaziada nos anos de 1960 e 1970. Ao retornar, reaparece na cena sociológica como um sujeito despojado da dimensão essencialista e atemporal, que lhe conferia a filosofia clássi- ca, mas fortemente inscrito em uma realidade sociohistórica, ela própria cambiante e instável. A disciplina sociológica pode desenvolver agora uma teoria do ‘ator social’, construindo o sen- tido de sua experiência e se fazendo o ‘sujei- to’ de sua ação (Delory-Momberger, 2003). De acordo com Christine Delory-Momberger, os relatos de vida vão conhecer um interesse re- novado na Europa por volta da metade dos anos de 1970. Orientada para os campos pro- fissionais, a abordagem biográfica suscita tra- balhos de sociologia crítica, a partir da compi- lação de relatos de vida que servem para esta- belecer trajetórias e percursos profissionais. Nos anos de 1980, o objeto de pesquisa se deslo- ca da coleta de informações, que permitem reconstituir as práticas de uma mesma catego- ria socioprofissional, para considerar a singula- ridade dos relatos obtidos e tratados em si mesmos (Catani; Mazé, 1982). Essa evolução é acompanhada de uma dupla reflexão: a que se refere ao estatuto da história de vida e seu valor, como documento científico, e a que se preocu- pa com o relato, como objeto de linguagem e sobre sua dimensão de autocriação como prá- tica autopoiética (Le Grand; Pineau, 1993). Como parte desse processo, as histórias de vida também aparecem no campo da forma- ção que as utilizam como arte formadora da existência (Pineau, 1996). O relato não é mais somente considerado em uma perspectiva de pesquisa etnosociológica, mas como um cam- po de experiência e um instrumento de explo- ração formadora. Delory-Momberger acentua que é preciso distinguir os procedimentos de pesquisa, pois deles resultarão materiais de in- vestigação bastante diferentes. Segundo ela, A autobiografia e o relato oral de vida não funcionam no mesmo registro: a primeira é uma atividade solitária de introspecção, enquanto que a segunda, conduzida em interação, é uma 9. Evangelista e Shiroma (2003), ao comentarem os trabalhos da ANPEd, observam que entre os autores mais citados desponta António Nóvoa, com 23%. 10. A esse respeito, consultar: Dominicé, 1988; 1990; Josso, 1988; Pineau, 1988. 11. Informações sobre a história da criação do grupo podem ser encon- tradas em Catani et al. (1997) e Bueno (1998). Sobre a linha de trabalho do grupo, consultar os artigos: Bueno et al. (1993); Sousa et al. (1996); Catani; Bueno; Sousa, 2000; entre outros. rayani Realce rayani Realce rayani Realce rayani Realce rayani Realce 393Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 385-410, maio/ago. 2006 palavra endereçada, atenta aos efeitos que ela produz sobre seu destinatário. (2003, p. 5) Da mesma forma, Josso (1999) distin- gue as histórias de vida como ‘projeto de co- nhecimento’ e as histórias de vida ‘a serviço de projetos’. No primeiro caso, o relato oral, ou escrito, tenta abranger a totalidade da vida em seus diferentes registros, bem como em sua duração, mas na maior parte das vezes dá-se o segundo caso, em que a história produzida pelo relato é limitada a uma entrada que visa fornecer o material útil a um projeto específi- co. Em outras palavras, se a intenção é produzir conhecimento sobre algum tema ou situação utilizando relatos (orais ou escritos), teremos como resultado trabalhos que, colocando-se em novo paradigma (do sujeito e do ator rea- bilitado), são bastante distintos daqueles em que o método autobiográfico opera como ins- trumento de formação e funciona como projeto de conhecimento global do sujeito. Esses aspectos e essas diferenciações quanto às concepções e aos modos de pôr o método autobiográfico em ação, ao ganharem adesão crescente e se espraiarem por todo o Brasil, acabaram por adquirir feições próprias aqui. Foi surpreendente, no entanto, observar que, a despeito de vários desses autores euro- peus estarem na origem das motivações que levou tantos pesquisadores a desenvolverem trabalhos com autobiografias e histórias de vida, a perspectiva da pesquisa/formação defendida poreles teve pouca ressonância no Brasil, como será visto a seguir. Anos de 1990: crescimento, diversidade, tendências A análise do material reunido, referen- te ao período que se estende entre 1990 e 2003, foi reveladora não apenas de um visível crescimento das pesquisas nesse período, mas também de uma significativa diversificação das modalidades e dos usos das autobiografias e histórias de vida. Esses estudos espraiaram-se para além do domínio da sociohistória da edu- cação, marca predominante na década anteri- or, para explorar novos temas e construir novos objetos. Essa diversidade e as tendências que se mostraram mais marcantes nessa produção se- rão examinadas a seguir. Antes, porém, consi- derou-se importante apresentar alguns indica- dores quantitativos para oferecer uma visão geral sobre o crescimento dos estudos, com eles também indicando o papel que os progra- mas de pós-graduação jogaram nesse processo. Teses e dissertações: o papel dos programas de pós-graduação Os dados obtidos no Banco de teses da CAPES mostram que o ano de 1995 foi um mar- co nesse movimento de crescente adesão aos estudos com histórias de vida. De uma produ- ção que oscilou entre 2 e 4 trabalhos por ano, entre 1990 e 1994, há um salto em 1995, com a marca de 14 trabalhos: 10 mestrados e 4 doutorados. Esse número correspondeu a quase o dobro dos trabalhos produzidos nos cinco anos precedentes, tal como pode ser visto no Gráfico 1 (próxima página). Daí para frente, com pequenas oscila- ções, as pesquisas de pós-graduação que fazem uso dessas abordagens aumentam continua- mente, chegando a atingir a cifra de 30 traba- lhos só no ano de 2003. No período compre- endido entre 1990 e 2003, foram localizados 165 trabalhos, sendo 128 de mestrado e 37 de doutorado, defendidos em instituições de todas as regiões do país, com a participação de 21 universidades federais, além de outras – esta- duais, PUCs e universidades privadas. É prová- vel que esse número seria ainda maior se fos- sem feitas buscas diretas em todas as bibliote- cas dessas universidades. A USP foi a detentora da maior produção, com 24 trabalhos; seguida, em ordem decrescen- te, pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM –, no Rio Grande do Sul, com 16 trabalhos, e pela PUC-SP, com 15. Entre as universidades privadas, sobressaíram-se a Universidade da Cida- rayani Realce rayani Realce rayani Realce rayani Realce rayani Realce rayani Realce 394 Belmira BUENO et al. Histórias de vida e autobiografias na formação de professores... de de São Paulo – UNICID – e a Universidade Metodista de Piracicaba (estado de São Paulo) – UNIMEP –, cada uma com 6 trabalhos12 . Na FEUSP, Elza Nadai foi, na década de 1990, uma das pioneiras em desenvolver estu- dos sobre os professores e suas memórias, tra- balhando em uma perspectiva que, derivando da história oral, aproximava-se dos estudos com histórias de vida de professores, tal como viriam a se multiplicar nesse período. Em 1990, Ricardo Ribeiro defendeu, sob sua orientação, a dissertação Inspeção e escola primária em São Paulo: trabalho e memória (1990). E, no ano seguinte, ela própria, sua tese de livre-docência – A educação como apostolado: história e re- miniscências (São Paulo 1930-1970), utilizan- do o que ela denominava de récit de vie (Nadai, 1991). Nessa pesquisa, em que a autora com- bina vários procedimentos e fontes, foi estuda- do um grupo de professores do antigo ensino secundário, por meio de um amplo leque de questões – representações, memória, discurso, formação, escola, sociedade, profissionalização. Apoiado em uma diversidade de autores – Paul Veyne, Le Goff, Bosi, Halbwachs, Thompson, M. Isaura P. Queiroz –, esse trabalho filia-se à his- tória da profissão docente, tal como Denice Catani (2000) já o havia incluído. Também pioneiro, porém em linha bem diversa, foi o trabalho realizado por M. Ignez Joffre Tanus, em sua tese defendida em 1992 na FEUSP, sob o título Mundividências – histó- ria de vida de migrantes professores. Publicada depois como livro (Tanus, 2002), o trabalho explora as visões de mundo, os processos de subjetivação e de identificação presentes na pro- fissão, buscando compreender o imaginário e a realidade de grupos de migrantes-professores, a partir de duas questões básicas: a da identida- de e a da construção da noção de realidade. A autora aproveita a situação de um trabalho empírico para colher depoimentos dos infor- mantes acerca de suas histórias de vida, reali- zando o que ela denomina de uma ‘escuta sensível’ (Tanus, 2002). Esses trabalhos são indicativos não ape- nas do movimento que estava se iniciando em direção às autobiografias e histórias de vida, na década de 1990, mas também de sua diversifi- cação. Nessa década, vamos com efeito encon- trar essa característica no recurso das histórias de vida e das memórias, cujos usos vão muito além do domínio da sociohistória da educação, como já observado. Assim é que se buscam com- preender especificidades da atuação de grupos de 12. Uma análise sobre os dados obtidos junto ao Banco CAPES foi apresen- tada no Simpósio Internacional Escrever a Vida. Novas abordagens de uma teoria da autobiografia. São Paulo, Universidade de São Paulo, FFLCH,,,,, setem- bro de 2005. Nesse trabalho, constam outras tabelas que permitem visualizar melhor a distribuição dos trabalhos entre as instituições do país (Bueno, 2005). 395Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 385-410, maio/ago. 2006 profissionais docentes, de áreas e disciplinas diver- sas, pela alternativa das histórias de vida como pro- cedimentos de pesquisa. Ampliam-se igualmente as referências às autobiografias e o gênero (literário) passa a ser valorizado pela sua contribuição ao entendimento de especificidades da vida escolar, do exercício da profissão docente, da construção de representações e relações com a escola e o co- nhecimento, entre outras13 . E são justamente as- pectos como esses que serão sublinhados pelos textos que, no período, introduzem, por meio de ar- tigos publicados em periódicos e livros, a hipótese do recurso a memória/histórias de vida/autobiogra- fias como procedimentos de formação. Inserindo-se em expressivo movimento internacional, observável pelas produções educacionais oriundas da França, Canadá, Portugal e Suíça, os textos que propugnam pelo caráter formador das histórias de vida apresen- tam-se também como fontes para a compreensão das peculiaridades da formação e especificidades das situações educativas formais e informais14 . Se se pode identificar um traço comum aos textos pu- blicados na década de 1990, talvez este seja o do esforço pela multiplicação do potencial expli- cativo/formador das memórias/histórias de vida/ autobiografias. Nesse sentido, o recurso a elas é invocado para permitir a compreensão do proces- so de mudança e desenvolvimento dos professo- res, observando-se uma proliferação de interesses suscitados pela vaga das histórias de vida e sua extensão a universos educativos variados. Com efeito, o conjunto dos trabalhos analisados evidenciou um grande espraiamen- to dos estudos autobiográficos, caracterizado por um leque amplo de temas e perspectivas de análise, mas com algumas convergências. Assim é que foram recorrentes os trabalhos que bus- cam, por exemplo, compreender especificidades da atuação de grupos de profissionais docen- tes de áreas e períodos diversos, tal como pôde ser observado tanto nos trabalhos de pós-gra- duação como em livros e artigos. Ainda que também dispersos no con- junto, foi possível identificar nesse âmbito tra- balhos que guardam maior proximidade entre si, como no caso dos estudos que derivam da história oral e se situam em uma intersecção com a perspectiva das histórias de vida de pro- fessores. Vários desses trabalhos foram defen- didos na FEUSP, dentre os quais: o mestrado e o doutorado de Ricardo Ribeiro (1990 e 1996) – um sobre a atuação de antigos inspetores es- colares nos anos de 1930-45 e o outro, de antigas professoras primárias nos anos de 1925- 1945; a pesquisade Eleny Mitrulis (1993) tam- bém sobre os inspetores, mas abrangendo o início da atuação dos supervisores de ensino; e sobre período mais recente, as dissertações de Daiane Vieira (2002) e Elza Pino dos Santos (2003) – a primeira versando sobre a atuação de antigos diretores, homens que fizeram car- reira no magistério entre 1950-1980; e a se- gunda, o trabalho de professoras primárias que atuaram entre as décadas de 1960-1980. Fora do âmbito da pós-graduação, também houve estudos nessa linha, como pode ser visto no livro de Sanches (1999) – Orientação educacio- nal e o adolescente. Nele, a autora trabalha com dez histórias de vida (orais) para compre- ender a atuação do orientador educacional, valendo-se também de um relato de sua própria experiência durante os anos de graduação. Em outros estudos, a atuação de grupos de profissionais foi estudada a partir de outras categorizações como, por exemplo, de professo- res negros ou afrodescendentes (Rofino, 1996; Ribeiro, 2001), de professores que tiveram militância política (Dobbeck, 2000), de professo- res leigos (Rodrigues, 2001), entre outras. Ao lado dessa temática, outras também se mostraram recorrentes, sobretudo nos traba- lhos de pós-graduação. A análise dos resumos permitiu verificar, por exemplo, que os docentes do ensino fundamental e as áreas de Alfabetiza- 13. A esse respeito, ver o texto de Denice Catani (1991), “Pedagogia e museificação”, no qual ela explora as potencialidades da obra memo- rialística de Elias Canetti – A língua absolvida – para a compreensão da educação, da formação e da vida escolar. Ver também os trabalhos indica- dos na nota seguinte, nos quais se explicita o uso que foi feito dessa obra em cursos e projetos de formação docente. 14. Essas características são típicas dos trabalhos desenvolvidos pelas pesquisadoras do GEDOMGE-FEUSP. Entre outras pesquisas, suas teses de livre-docência também versaram sobre autobiografias e histórias de vida. Ver: Catani (1994), Bueno (1996), Sousa (2000) e Chamlian (2004). 396 Belmira BUENO et al. Histórias de vida e autobiografias na formação de professores... ção e Matemática se constituíram nos focos de maior atenção, enquanto que no ensino superi- or foi a de História de Educação, com uma pro- dução de 25 trabalhos. Embora um bom número desses trabalhos tenha se voltado ao estudo das antigas escolas normais, foi curioso observar que o tema das relações de gênero não ganhou a ênfase que haveria de se esperar. Isso ocorreu não apenas em relação a esse tema, mas também no conjunto dos trabalhos, de vez que apenas cinco indicaram ter utilizado a categoria gêne- ro, dois destes em parceria com a categoria etnicidade para focalizar a questão do professor negro. Importante registrar que essa temática vem se acentuando nos últimos anos, como será referido mais adiante, neste texto. O tema da identidade profissional sur- preendeu pela alta recorrência, seguido de perto por outros dois: saberes docentes e educação continuada. Essa recorrência foi observada notadamente nos resumos. Entre os trabalhos completos selecionados, menciona-se o de Carmen Lúcia Pérez (2002), defendido na FEUSP, que usou narrativas orais e escritas. A questão da construção da identidade (tal como o tema é enunciado na maior parte das vezes) apareceu com maior freqüência nos trabalhos defendidos na PUC-SP, dentre os trabalhos se- lecionados para leitura completa; mas ao se considerar os resumos, esse foi um tema estu- dado em todas instituições. Profissionais de áreas as mais diversas foram estudados sob esse foco, notadamente os professores. Alguns títu- los que aparecem nos resumos a partir de 1995 servem para ilustrar a tônica desse conjunto de trabalhos: Memória e identidade: a travessia de velhos professores através de suas narrativas; A professora alfabetizadora: caminhos e descaminhos na construção de uma identidade; A representação identitária no professor de história: um estudo com depoimentos orais; Identidade, culturas e memórias de ex-professores; Autoformação, his- tórias de vida e construção de identidades do/a educador/a; Identidades musicais de alunas de pedagogia: música, memória e mídia; Identidade do diretor da escola pública: compromisso com a transformação do cotidiano escolar. Além dos professores, observou-se um interesse pelo estudo da identidade dos professo- res negros (Rofino, 1996) e afrodescendentes (Oliveira, 2001)15 , assim como por aqueles que já se aposentaram e se encontram em fase de enve- lhecimento (Stano, 2001a)16 . Esse tema esteve presente em uma série de estudos que contem- plam a questão identitária a partir de outros ân- gulos. É o caso das pesquisas que analisam pro- cessos de escolha profissional (Enge, 2004) ou as que contemplam os percursos de formação. Al- guns desses trabalhos se interessam por examinar o modo pelo qual os profissionais se tornaram professores (Hage, 1997); outros, como o deixa- ram de ser, como no caso do estudo de Flavinês Lapo (1999) que analisou as histórias de vida profissional de docentes que abandonaram o magistério e/ou a escola pública. Um outro con- junto de estudos, ainda nessa perspectiva, inves- tiga a construção da identidade a partir dos sig- nificados atribuídos, pelos professores, à profissão e ao trabalho docente. Uma modalidade recente de estudos que se alinham ao tema da identida- de, a grande maioria de mestrado, diz respeito àqueles em que os autores se propõem à análise de sua própria trajetória profissional. Buscam eles, em geral, compreender como vieram a se tornar os professores que são – de arte, de história, biologia, educação especial, alfabetizadores/as17 , entre outros. Sobre a questão da identidade e desse tipo de estudos, serão feitas algumas con- siderações na seção final deste texto. Os livros A leitura dos livros reiterou alguns desses 15. Esse trabalho foi defendido no Instituto de Psicologia da USP. Na ANPEd, trabalhos versando sobre temática da identidade dos professores negros aumentou com a criação do GT Estudos Afro-Brasileiros e Educa- ção. Entre 2002 e 2003, foram localizados quatro estudos com esse foco. 16. Esse trabalho de doutorado, orientado por Mere Abramowicz, foi publicado como livro logo a seguir, no mesmo ano (Stano, 2001b). 17. Estudos desse tipo, em nível de doutorado, foram identificados dois: o de Pereira (1997), defendido na PUC-SP, e o de Warschauer (2000), defendido na FEUSP. 18. A expressão foi utilizada por Ivor F. Goodson (1992), na coletânea Vidas de professores (Nóvoa, 1992). 397Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 385-410, maio/ago. 2006 temas, mas fez ressaltar outros, sobretudo pelo fato de nem todos terem sido produzidos como teses ou dissertações. Vários resultaram de proje- tos desenvolvidos por grupos de pesquisa e, em muitos deles, os autores valem-se das narrativas como matéria prima para a análise, focalizando a profissão sob os mais diversos ângulos. Selva Fonseca (1997) assina o livro Ser professor no Brasil, utilizando-se da história oral de vida mediante o registro da história individu- al dos sujeitos que fazem e ensinam história. Isso permitiu produzir documentos e interpreta- ções nos quais os personagens explicitam e atri- buem diferentes sentidos às suas experiências, mostrando como suas produções e suas ações profissionais estão intimamente ligadas ao modo pessoal de ser e viver. Por sua vez, o livro de Geni Vasconcelos (2000) – Como me fiz profes- sora – é uma coletânea de artigos sobre histó- rias de vida de professores, alguns tratando de temáticas relativas à construção da identidade profissional; outros, a partir de narrativas dos próprios professores, sobre suas histórias de formação. Segundo a organizadora, o objetivo foi o de buscar, por meio desse trabalho, resgatar o respeito à categoria do magistério, dando voz18 aos professores; e o de também mostrar que a identidade do professor se tece com múltiplos fios. Próximo dessa linha de trabalho, situa-se um capítulo de autoria de Cynthia de Souza (1998) “Fragmentos de histórias devida e de formação de professoras paulistas”, no qual ela apresenta resultados de uma pesquisa base- ada em entrevistas com uma centena de mulhe- res pertencentes a estratos médios urbanos, cujo objetivo foi o analisar a escolha do magistério como profissão, por meio do resgate de aspec- tos de sua memória familiar e profissional. O livro Identidade do professor no enve- lhecimento (Stano, 2001b) também elege a ques- tão da identidade, com o objetivo de investigar como o exercício profissional determina, colabora e marca a qualidade do envelhecimento dos pro- fessores. Nesse sentido, ouvindo as histórias de vida de docentes aposentados, procura captar o que restou, o que tem determinado sua forma de viver a velhice, como produto de singularidades históricas e culturais. Pelas narrativas, foi possível observar a correspondência assegurada pelo habitus entre o antes e o depois, já que, uma vez afastado da escola e de todo o grupo de profis- sionais correspondentes, mantém-se o conjunto de práticas e modos incorporados durante o exer- cício profissional. Os professores elaboraram o seu envelhecer mantendo o tempo de seu ‘ser-pro- fessor’ por meio de contatos com os alunos ex- alunos/novos alunos. Quando perguntados sobre qual a sua profissão, respondem: sou professor aposentado, evitando, segundo a autora, a ‘dis- sociação do Eu’ na aposentadoria e assegurando um envelhecer professoral. Sob esse ângulo, o livro de Isabel M. Bello (2002), Formação, profissionalidade e prática do- cente19 , pode complementar-se com o de Rita Stano ao investigar a profissão tomando por base os ciclos de vida profissional (Huberman, 1992). Nele, ela analisa, a partir do ponto de vista das professoras, comportamentos, destrezas, atitudes e valores necessários à formação profissional por meio das histórias de vida de três professoras por ela entrevistadas. Visa, com isso, à compreensão de aspectos da formação e da profissionalização do- cente. Do ponto de vista dos ciclos de vida, Bello se detém em fases que antecipam aquela contem- plada por Stano (2001a e 2001b), quando os pro- fessores já não estão mais na profissão, mas ain- da se sentem e se vêem como professores. As questões da profissionalização e da formação foram contempladas, sob outros pris- mas, em outros livros publicados no período em análise, alguns focalizando a prática peda- gógica dos professores com vistas à sua trans- formação, outros, o autoconhecimento e o co- nhecimento sobre o professor, a constituição de sua subjetividade e a formação. Em uma perspectiva backtiniana, as ques- tões da formação e da profissionalização foram 19. Originalmente o trabalho foi apresentado como dissertação de mestrado na Universidade Paulista – UNIP. 20. A propósito dessa temática, cumpre registrar a tese de M. Catarina Curi (2001), Memórias de leitura de professoras primárias no estado de São Paulo: uma história leitura contada por professoras, defendida na PUC-SP. 398 Belmira BUENO et al. Histórias de vida e autobiografias na formação de professores... tratadas em duas coletâneas que resultaram de uma pesquisa conjunta sobre leitura e escrita de professoras. Um deles é Histórias de professores – leitura, escrita e pesquisa em educação, de Sonia Kramer e Solange Jobim e Souza (1996), e o outro, Narrativas de professoras: pesquisando leitura e escrita numa perspectiva sócio-histórica, de M. Teresa de Freitas (1998). Kramer e Souza utilizam as histórias de vida como alternativa para os estudos sobre a prática pedagógica, enfa- tizando o papel do sujeito ativo e criativo e a produção, por meio das narrativas, de um conhe- cimento que se situe na encruzilhada de vários saberes. A entrevista é como uma construção de intertextos, e as falas, mais do que respostas, são uma ação dialógica por meio da qual o sujeito constrói e reconstrói sentidos. Freitas (1998), por sua vez, busca saber como os professores lêem, escrevem e como construíram essa relação ao lon- go de suas vidas. O grupo considerou que os efeitos do método autobiográfico se fizeram sen- tir, tanto para aquele que narra, organizando suas experiências vividas e lhes atribuindo significado, quanto para o pesquisador que, ao colher as en- trevistas, com o pesquisado se identifica20 . Próximo dessa temática é o livro de Ana Chrystina Mignot e M. Teresa Santos Cu- nha (2003), Práticas de memória docente, cujos textos focalizam a escrita de professores e pro- fessoras, visando enriquecer as discussões so- bre as práticas de memória docente construídas na e sobre a escola. A obra é organizada por conjuntos de textos que contemplam, no pri- meiro, a ‘escrita ordinária’ de professores, pro- duzida sob os mais diferentes pretextos, que permite perceber a escola como um espaço de valorização da escrita e de busca de liberdade de expressão21 . O segundo conjunto dedica-se a textos que trabalham com a escrita autobio- gráfica de docentes que “lançaram a mão da escrita para registrar, reivindicar propor, resistir, eternizar, enfim, a própria vida” (p. 13)22 . Por outro lado, o trabalho organizado por M. Helena Barreto Abrahão (2001) – Histó- ria e histórias de vida. Destacados educadores fa- zem a história da educação rio-grandense –, além de trazer as histórias de vida de doze edu- cadores, apresenta “elementos histórico-sociais do contexto de inserção dessas histórias em seu conjunto [...]” (p. 29). De acordo com António Nóvoa, que escreveu o prefácio, esse livro não se fecha apenas nos registros biográficos, na medida em que os autores procuraram confron- tos que iluminassem suas interpretações, assu- mindo que a história de vida é sempre uma ‘construção’, na qual também participa o inves- tigador. As três categorias que serviram de ma- triz analítica para a análise e interpretação des- sas histórias de vida — formação, vida pessoal/ profissional e construção de identidade — cons- tituem, segundo ele, “os limites justos de uma interpretação sensata” (p. 9). Na categoria de trabalhos que relatam, sobretudo, experiências de pesquisa/formação fazendo uso do método autobiográfico e que diferem, nesse sentido, dos trabalhos até aqui descritos, foram localizados apenas três: as duas coletâneas organizadas pelas coordenado- ras do GEDOMGE-FEUSP: Docência, memória e gênero: estudos sobre formação (Catani et al., 1997) e A vida e o ofício dos professores: for- mação contínua, autobiografia e pesquisa em colaboração (Bueno et al., 1998); e o livro Como nos tornamos professoras?, de Roseli Cação Fontana (2000), cuja pesquisa aproxima- se dessa perspectiva de trabalho. As duas primeiras publicações resulta- ram de um projeto de educação continuada de- senvolvido pelo GEDOMGE, entre 1993 e 1997. Dele participaram professoras (e alguns poucos professores) da rede pública, por meio de um trabalho que, ao fazer uso da escrita autobiográ- fica, teve por objetivo levar os professores a compreenderem e a se apropriarem de sua pró- pria história. Docência, memória e gênero, como indica o nome do grupo, constituíram-se no 21. De certo modo, essa tese contraria as conclusões de Kramer; Souza (1996), que afirmam, a partir das entrevistas, que a escola parece atuar mais na formação do não-leitor do que na do leitor. 22. O livro organizado por Celso Martinazzo (2000) – Histórias de vida de professores: formação, experiências e práticas – é outra coletânea com a história de lembranças, experiências e momentos marcantes da vida de um grupo de professores, porém, pouco analítico, quase meros relatos. 399Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 385-410, maio/ago. 2006 tríplice foco de trabalho, que se vale da leitura da obra memorialística de Elias Canetti, A língua absolvida, como pretexto para a produção auto- biográfica das professoras. No capítulo “História, memória e autobiografia na pesquisa educacio- nal e na formação”, as autoras dão ênfase, de um lado, à vertente de investigação que o mé- todo autobiográfico suscitou na experiência de formação; de outro, o potencial trazido pelo trabalho da memória e da contramemóriano campo da profissão docente. A outra coletânea, A vida e o ofício dos professores, traz novos resultados da pesquisa, tanto do ponto de vista teórico como das práticas de formação desen- volvidas pelo grupo. A segunda parte do livro inclui os textos dos onze professores, que che- garam até o final da experiência, como forma de explicitar mais autenticamente os resultados desse projeto de pesquisa/formação e de produ- ção de (auto)conhecimento por parte do grupo. O trabalho de Roseli Cação Fontana (2000), Como nos tornamos professoras?, é fruto da transcrição das discussões de um gru- po de estudos e de pesquisa que durante dois anos se reuniu na qualidade de professoras- pesquisadoras, com o propósito de investigar a própria condição profissional. O grande inves- timento do estudo concentrou-se na análise das características do trabalho docente em seu fazer cotidiano. As histórias de vida aparecem de forma complementar para esclarecer um dos aspectos – a escolha da profissão – presentes na análise da constituição do ser profissional. O relato de seis professoras entre 20 e 45 anos de idade é oportunidade para trazer à tona alguns dos principais temas presentes na ques- tão da escolha da profissão docente, tais como: dom, vocação, adesão/identificação, aprendiza- do, aprendizado com o outro. Os periódicos Se nos anos de 1990 assistimos a um período de expansão e incremento dos estudos sobre educação que recorrem às histórias de vida/autobiografias, tal como ficou patente na produção de pesquisas de pós-graduação e nos livros (considerando-se que a maior parte são coletâneas e como tal contou com a participa- ção de vários autores), isso não significa que o número de artigos em periódicos científicos te- nha acompanhado esse crescimento. A rarefação de estudos com autobiografias/histórias de vida veiculados pelas revistas, tal como já registrada a propósito da década anterior, permanece pra- ticamente a mesma, embora em números abso- lutos tenha havido um crescimento. Entre os anos de 1990-1993, seguindo a mesma tendência dos trabalhos de pós-gradu- ação e livros, as produções veiculadas nos pe- riódicos se espraiam em temas que contemplam questões referentes a diferentes parcelas de pro- fissionais do magistério, mas a tônica principal dos investimentos parece ser a explicitação de especificidades do trabalho e da profissão do- cente. Coincidindo com a perspectiva evidenci- ada nos anos de 1990, do interesse pelos estu- dos sociohistóricos da profissão docente, a ten- dência ao recurso às memórias/histórias de vida parece afirmar-se nesse domínio pelo seu poten- cial de conhecimento/pesquisa. Em quatro artigos publicados, apare- cem trabalhos representativos dos estudos sociohistóricos da educação. Dois deles, já re- feridos anteriormente, foram publicados no início dos anos de 1990: o de Lea Paixão (1991), sobre antigas professoras primárias mineiras que trabalharam entre 1924 e 1938, em Educação em Revista; e o de Zeila Demartini e Fátima Antunes (1993), sobre o magistério primário como profissão para as mulheres e carreira para os homens, nos Cadernos de Pes- quisa. Além desses, figuram outros dois artigos publicados por Educação e Realidade e Educa- ção em Revista, ambos em 1994. O primeiro, de Rosa M. Silveira (1994), traz uma análise da obra de Helena Morley, Minha vida de menina, no qual ela examina a representação da figura do professor no final do século XIX e enfatiza aspectos tais como a ambivalência profissio- nalismo/proletarização, feminização do magis- tério, saberes docentes, entre outros, ainda que rayani Realce rayani Realce rayani Realce 400 Belmira BUENO et al. Histórias de vida e autobiografias na formação de professores... o interesse maior recaia sobre as condições sociohistóricas nas quais a obra literária é pro- duzida. O outro artigo, de M. de Fátima Fortes (1994), examina características da escola rural mineira do início do século XX (1918-1939), a partir do depoimento de 12 professoras de ori- gens sociais diferenciadas, que nasceram em diversos pontos do estado entre 1898 e 1920. Esses depoimentos foram selecionados entre os 35 utilizados na pesquisa “Trajetórias escolares e profissionais de professoras primárias minei- ras que iniciaram carreira antes de 1940”, co- ordenada por Lea Paixão. Ao lado dessa tendência, aparece nos periódicos analisados uma outra vertente de es- tudos autobiográficos, representada notada- mente pelos trabalhos do GEDOMGE. Esses textos explicitam as concepções do grupo na perspectiva da pesquisa/formação, tratadas sob diferentes focos em cada um dos três textos publicados. O primeiro deles, que leva o título homônimo do grupo, foi publicado na revista Psicologia USP, em um número temático sobre memória (Bueno et al., 1993). Nele, as autoras buscam analisar os fundamentos teóricos e as potencialidades práticas de formação de pro- fessores, baseados em interpretações autobio- gráficas e relatos de formação intelectual. Abor- dam também questões teóricas relativas à me- mória individual e coletiva, aos processos tra- dicionais de educação docente e aos estudos sobre gênero, em especial sobre a condição feminina e o trabalho do magistério, destacan- do a fecundidade da proposta de criação de uma contramemória profissional, mediante a produção de autobiografias e relatos no proces- so de formação continuada de professores. No segundo texto — “Memória e autobiografia: formação de mulheres e formação de professo- ras” (Sousa et al., 1996) — publicado na Revista Brasileira de Educação, as análises incidem sobre especificidades, constituição e recupera- ção da memória individual e da memória femi- nina, buscando examinar os vestígios e as con- figurações dessas especificidades em relatos de mulheres professoras a respeito de suas expe- riências de vida. A partir daí, enunciam-se algu- mas possibilidades novas acerca das relações pe- dagógicas e dos processos de formação escolar. Em “O amor dos começos: por uma história das relações com a escola” (Catani; Bueno; Sousa, 2000), publicado nos Cadernos de Pesquisa, as autoras buscam explicitar e discutir, também com base em relatos autobiográficos escritos, as peculiaridades das relações que os indivíduos (homens e mulheres, alunos e professores) man- têm com a escola e com as diferentes discipli- nas, assim como os significados dessas relações em histórias de escolarização e na formação da identidade dos professores. O objetivo, como nos textos anteriores, é o de propor novas modalidades de formação que estimulem dispo- sições favoráveis ao conhecimento. Outra temática, baseada em estudos com histórias de vida que também se fez repre- sentar nos periódicos, tem como foco a leitu- ra e escrita de professores. Dois desses artigos foram publicados por Sônia Kramer, pesquisa- dora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro — PUC-RJ —, na linha de trabalho que desenvolve desde 1993, com base nas te- orias de Walter Benjamin e Bakhtin, tal como já referido a propósito do livro Histórias de pro- fessores: leitura, escrita e pesquisa em educa- ção (Kramer; Souza, 1996). O artigo veiculado em Cadernos de Pesquisa procura analisar ex- periências de leitura e escrita de professores, tecidas ao longo de suas histórias de vida e trabalho, abordando o processo de construção de conhecimento, para compreender como foi construída sua relação com a escrita e de que forma essa relação influencia a prática escolar (Kramer, 1999). No texto seguinte, que apare- ce em Educação em Revista, a autora apresen- ta uma síntese da produção de seu grupo de pesquisa, retomando a temática em torno da qual o grupo se articulou ao longo da década de 1990 (Kramer, 2000). Um pouco antes, em 1998, esse mesmo periódico publicou um arti- go de Antonio Augusto Batista (1998), pesqui- sador da UFMG. O texto trata das relações de professores de Português com a leitura, base- rayani Realce rayani Realce rayani Realce 401Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 385-410, maio/ago. 2006 ada em estudos de sociologiada educação, da família e das práticas culturais. Nele, o autor analisa práticas de leitura docente, baseando-se em dados coletados por meio de vários instru- mentos, entre os quais: as lembranças redigidas por docentes a respeito de seu processo de formação como leitores. A questão da identidade, tão recorren- te nos trabalhos de pós-graduação e nos livros, apareceu de modo reduzido nas revistas. Ape- nas três artigos foram localizados: um deles na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos; o outro em Educação em Revista; e o terceiro na Revista Brasileira de Educação. Lea Paixão (1995), em seu artigo “Cátedra e hegemonia da prática docente na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais”, examina a identidade social dos biólogos a partir de depo- imentos de professores, ex-professores e ex-alu- nos, mostrando os conflitos e as tensões que se articularam à emergência e institucionalização da biologia como disciplina acadêmica no currículo daquela escola de medicina. No segundo texto, Anna Maria Caldeira (2000) utiliza fragmentos da história de vida de uma professora de ori- gem rural, que lecionava em uma escola pública de Barcelona, como recurso para compreender o processo de constituição de sua identidade. A história é recolhida no âmbito de um estudo etnográfico, no qual a pesquisadora focaliza a prática pedagógica da professora. Consideran- do os contextos em que essa identidade é for- jada, ela mostra que seus traços constitutivos foram construídos e reconstruídos ao longo de sua profissionalização, desde o momento da es- colha da profissão e da formação inicial até a inserção e prática profissionais. Com base nesse estudo, Caldeira afirma que a construção da identidade não pode ser vista como um proces- so atemporal, permanente e estável. O terceiro texto, publicado na Revista Brasileira de Educa- ção, é de autoria de Isabel Lelis (2001). O tema é a identidade social do magistério, para cuja análise a autora se vale de histórias de vida de professoras do Rio de Janeiro que atuam em escolas públicas e privadas do ensino funda- mental. Com base nas narrativas, Lelis analisou a trajetória social e instrucional das professo- ras, considerando vários aspectos, dentre os quais: suas famílias de origem e identidade social, a retórica da missão do sacerdócio e da vocação, as questões de gênero como uma categoria importante para compreender a en- trada na profissão (que deve ser articulada a classe social, etnia e geração). De caráter exclusivamente teórico-me- todológico, versando sobre histórias de vida e autobiografias, são dois os artigos publicados por Educação e Pesquisa, um em 1999 e o outro em 2002. O primeiro é de autoria de Marie-Chistine Josso (1999), pesquisadora da Universidade de Genebra, que oferece um am- plo panorama europeu e internacional de auto- res que desenvolveram pesquisas nesse campo, cuja exposição se faz a partir de seu próprio percurso em direção às histórias de vida. Nele, Josso busca distinguir as “histórias de vida como projeto de conhecimento das perspecti- vas biográficas temáticas a serviço de projetos específicos”. O outro texto examina as relações entre o método autobiográfico e os estudos com histórias de vida de professores, com des- taque para a questão da subjetividade (Bueno, 2002). O texto também apresenta uma visão geral sobre os vários usos que, na década de 1990, vinham se fazendo dos estudos com au- tobiografias e histórias de vida, baseada em co- letâneas organizadas por Nóvoa (1992a; 1992b) e Goodson (1992). O tema da profissão e profissionalização dos professores apareceu em apenas dois artigos. Derivados de uma pesquisa que investigou a evasão de professores da escola pública em São Paulo, no período de 1990-1995, ambos to- mam por base as histórias de vida profissional de 16 professores, para examinar a questão do abandono da profissão e o desencanto dos professores com a escola pública, sob dois focos. O primeiro texto, publicado na revista Psicologia USP, examina os vínculos e as rup- turas com o trabalho docente, a partir de con- siderações sobre o sentido do trabalho, do 402 Belmira BUENO et al. Histórias de vida e autobiografias na formação de professores... ponto de vista social, psicológico, pessoal (Lapo; Bueno, 2002). No outro, publicado nos Cadernos de Pesquisa, o foco recai sobre as trajetórias e circunstâncias que levaram o gru- po de docentes em estudo a deixar a escola pública e/ou a própria profissão. Ao analisarem as etapas que caracterizam o processo de aban- dono, as análises chamam a atenção para o estresse e o burnout que acometem os profes- sores em tais processos (Lapo; Bueno, 2003). Um único texto examinou o desenvolvi- mento profissional do professor, um tema até então não identificado em outros estudos. Publi- cado na Revista Brasileira de Educação, o autor recorre à história de vida de uma professora de matemática, como metodologia de pesquisa, para identificar as percepções dos professores sobre as mudanças que ocorreram em seu pensamento e/ ou prática ao longo dos anos, focalizando tam- bém suas percepções a respeito de experiências e/ou desafios que poderiam tê-los influenciado nessas mudanças (Polettini, 1998). Finalmente, cabe mencionar três textos que tratam de temas esparsos e nos quais as histórias de vida ou narrativas biográficas foram utilizadas de modo tangencial. Um deles apa- receu na Revista Brasileira de Estudos Pedagó- gicos; outro, nos Cadernos de Pesquisa; e o terceiro, em Educação e Realidade, tratando sua autoras respectivamente dos seguintes temas: Yolanda Lôbo (1996), da trajetória de vida e de formação de Cecília Meireles, com destaque para sua tese “O espírito vitorioso”, apresenta- da ao concurso que prestou na Escola Normal do Distrito Federal; M. Isabel Cunha (1996), de experiências inovadoras de ensino de professo- res universitários, com base em depoimentos e com ênfase sobre seus sistemas de valores, representações e símbolos culturais, inclusive os de caráter afetivo; e Nádia Souza (2000), sobre representações de corpo-identidade, em uma perspectiva foucaultiana. Na pesquisa, essa autora se vale, entre outras estratégias, de fo- tos e narrativas de professores e professoras de biologia para levá-los a falar sobre as práticas vivenciadas em suas famílias e as implicações destas na produção dos seus corpos-identida- des. É relevante observar os pontos de conta- to entre esse estudo e a dissertação de Gercina Santana Novaes (1995), O corpo da aprendiza- gem: um estudo sobre representações de cor- po de professoras da pré-escola, na qual a autora investiga, no âmbito de um estudo etnográfico combinado com memórias, as re- presentações de corpo de professoras da pré- escola, cujo propósito foi o de analisar os sig- nificados dessas representações para as ações pedagógicas desenvolvidas nas aulas, bem como buscar os movimentos de constituição e (re)produção dessas representações. Considerações finais O exame realizado nesta revisão, con- templando o uso das autobiografias e históri- as de vida em investigações sobre formação de professores e profissão docente, permitiu che- gar a algumas conclusões. A primeira, e certa- mente a mais importante, é que a intensificação de tais metodologias aqui no Brasil, sobretudo a partir dos anos de 1990, contribuiu para reno- var a pesquisa educacional sob vários aspectos, notadamente no que diz respeito à pesquisa e à formação de professores, fazendo aflorar o inte- resse por questões e temáticas novas, tais como as que se configuram nos estudos sobre profis- são, profissionalização e identidades docentes. Embora as principais características da produção analisada tenham sido apontadas ao longo do texto, algumas serão retomadas aqui com vistas a comentar alguns aspectos lacunares, a partir das quais gostaríamos de oferecer algumas indi- cações para futuros estudos da área. O fato de termos trabalhado com várias fontes impediu que as análises descessem a muitos detalhes, mas por outro lado veio a favo- recer uma série de aspectos.Primeiramente, o fato de permitir uma visão simultaneamente quantita- tiva e qualitativa dos trabalhos, possibilitando identificar o espraiamento dos estudos pelas re- 23. Dados do levantamento feito em 2002 (Bueno; Catani, 2002). rayani Realce 403Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 385-410, maio/ago. 2006 giões e universidades do país, o crescimento ao longo dos anos, as características e diversidade dos trabalhos, a partir das quais se constatou o traço principal: a enorme dispersão dessa produ- ção. Foi também possível verificar que houve um desequilíbrio nas formas de divulgação e circula- ção das pesquisas. Considerando-se o número de trabalhos defendidos nas pós-graduações e os trabalhos apresentados em congressos23 no perí- odo, verifica-se que apenas uma parte dessa pro- dução foi publicada em livros, a maioria coletâ- neas e, de forma mais rarefeita, como artigos em periódicos científicos. Ao se considerar que mui- tos dos livros, capítulos de livros e artigos resul- taram de trabalhos de grupos de pesquisas e não de teses e dissertações, tem-se ainda mais claro que os trabalhos gerados pelos programas de pós- graduação ficaram circunscritos a um nível limi- tado de divulgação. Disso talvez resulte uma outra caracte- rística dos trabalhos analisados: a quase abso- luta ausência de diálogo das pesquisas com as produções da área, em muitos casos, sem se considerar os resultados dos trabalhos produ- zidos na própria instituição do pesquisador. Em vista disso, não causou tanta estranheza que boa parcela deles não faça referência a proje- tos sobre formação e profissionalização docente que, em plano nacional e internacional, vêm sendo desenvolvidos em países vizinhos. Colo- car os professores no centro dos debates não foi uma idéia que surgiu aqui por acaso, pois está contida há mais de uma década nas refor- mas que propugnam pela redefinição de seu perfil e pela construção de ‘um novo professor’. Alguns autores de países diversos chegam até mesmo a sugerir uma ‘reinvenção da profissão docente’24 . Tudo isso, certamente, faz com que as expectativas que pesam sobre esse profissi- onal se tornem ainda maiores. Por isso, não se pode tomar as autobiografias sem maiores cui- dados, como se fossem panacéias que por si só podem transformar os professores e as escolas. O quer se quer dizer com isso é que não basta dialogar apenas com trabalhos que tenham utilizado as mesmas abordagens metodológicas. Faz-se também necessária uma interlocução com as produções de outros contextos, indo além dos teóricos da Europa e América do Norte. Pela similaridade das problemáticas educacionais e das reformas que se acham em curso nos países da América Latina/Caribe, é desejável que as questões propostas aqui estejam também a elas referenciadas. Mais ainda quando se trabalha com memórias e narrativas e se advoga que as autobiografias favorecem ao sujeito uma apro- priação de sua própria história, que é não ape- nas individual, mas também coletiva. Poderíamos nos perguntar, que história coletiva é essa, hoje? Talvez seja esse um dos caminhos férteis para se discutir e problematizar a questão das identida- des/auteridades. Outra marca que se ressalta no exame dos trabalhos analisados é a imprecisão conceitual. A despeito de muitos pesquisadores esclarecerem o sentido dos termos empregados, as imprecisões terminológicas persistem no conjunto da produção, por duas razões interligadas: primeiro, devido à enorme diversidade de expressões empregadas, muitas das quais utilizadas como sinônimos, como se houvesse um consenso a esse respeito25 ; de- pois, pelo fato de haver uma tácita desconsideração pela própria história das histórias de vida, suas ori- gens, seus avanços, seus recuos, bem como sobre as concepções e os usos que delas se fazem hoje em diferentes campos – na história, sociologia, an- tropologia, psicologia, literatura, além de outras26 . Disso resulta que os pressupostos das perspectivas 24. Mello; Rego (2004), ao se referirem a esse discurso, mencionam autores de vários países – Portugal, Brasil, Argentina, Espanha, França – dentre os que reiteram e endossam tais idéias. 25. Gostaríamos de remeter o leitor para o texto de Gaston Pineau, no qual ele faz um mapeamento de expressões utilizadas por diferentes auto- res, tomando como entrada a palavra vida (biografia, autobiografia etc.). Sua lista não contempla, portanto, muitas das expressões e denominações que encontramos nos trabalhos analisados nesta revisão. 26. Ver, por exemplo, a relação de obras e autores que constam no final de duas coletâneas: a de Olga von Simson (1988), Experimentos com histórias de vida, e a organizada por Nóvoa e Finger (1988), O método autobiográfico e a formação. É também oportuno mencionar dois trabalhos em que as autoras oferecem contribuições valiosas, sobre o trabalho conceitual aqui indicado, ao descreverem seus percursos teóricos no tra- balho com histórias de vida. São eles: “História de vida e projeto: a história de vida como projeto e as ‘histórias de vida’ a serviço de projetos”, de Christine Josso (1999); e “Autobiografias, pesquisa histórico-sociológica e educação”, de Zeila Demartini (2005). rayani Realce rayani Realce rayani Realce rayani Realce rayani Realce rayani Realce rayani Realce rayani Realce 404 Belmira BUENO et al. Histórias de vida e autobiografias na formação de professores... adotadas nos trabalhos nem sempre se fazem ex- plícitos, ao contrário, aparecem muitas vezes am- bíguos e até contraditórios. Contribui com isso a liberalidade com que são feitas as apropriações te- óricas, nem sempre com os cuidados que o trans- porte de conceitos de uma área para a outra requer. Desse modo, se por um lado pode-se admitir que essa liberalidade é indicativa de uma revitalização da área da Educação, que não pode sobreviver nem crescer sem empréstimos conceituais, de outro lado, deve ser vista como um alerta contra abusos e descuidos que, contrariamente, acabam por fragilizar a área e tornar os resultados das pesqui- sas pouco confiáveis ou valiosos. Nessa mesma direção, deve-se acrescen- tar uma questão complementar às formas de apropriação dos procedimentos autobiográficos, que diz respeito às narrativas em primeira pessoa – muito presentes em dissertações e livros –, em geral utilizadas para ilustrar, exemplificar, contar, oferecer depoimentos sobre a formação e a tra- jetória profissional de professores. Esses trabalhos, que possuem o mérito de fazer ecoar as vozes dos sujeitos, atores do campo educacional, terminam por se constituir em um rol de casos isolados, abertos a interpretações sem fim, à espera de que os leitores cheguem, por si mesmos, à já clássica afirmação de Ferrarotti, a de que [...] o nosso sistema social encontra-se integral- mente em cada um dos nossos atos, em cada um dos nossos sonhos, delírios, obras, comportamentos. E a história deste sistema está contida por inteiro na história da nossa vida individual. (1988, p. 26) Talvez, o aprofundamento sobre esses aspectos, notadamente sobre as apropriações conceituais e uma definição mais precisa dos referenciais teóricos e procedimentos de pes- quisa e de formação pertinentes ao campo das autobiografias e histórias de vida, possa auxi- liar na indicação dos percursos a seguir, para proceder a apropriações sem que com isso se esteja a reinventar os autores a cada momen- to, transformando as potencialidades em limi- tações. Essa não é uma questão simples, mais ainda quando se pretende sustentar que as narrativas em primeira pessoa são modalidades férteis para a educação e a formação. Uma outra constatação a que se chegou é que a despeito da enorme diversidade de usos que os trabalhos exibem, paradoxalmente, o que se observa é a prevalência de um modelo único, de vez que caracterizado quase que exclusivamente pelo modelo das histórias de vida ‘a serviço de projetos’, para usar a expressão de Christine Josso (1999). Na modalidade pesquisa/formação, além dos trabalhos de nossa autoria, realizados na ver- tente do ‘processo
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