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Bueno et al (2006)

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385Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 385-410, maio/ago. 2006
Histórias de vida e autobiografias na formação de
professores e profissão docente (Brasil, 1985-2003)*
Belmira Oliveira Bueno
Helena Coharik Chamlian
Cynthia Pereira de Sousa
Denice Barbara Catani
Universidade de São Paulo
Resumo
O texto apresenta uma revisão de trabalhos da área de Educação
que fizeram uso das histórias de vida e dos estudos autobiográ-
ficos como metodologia de investigação científica no Brasil. Dois
recortes foram efetuados, um temporal e outro temático, para
focalizar o período compreendido entre 1985 e 2003 e privilegiar
dois temas: formação de professores e profissão docente. O ob-
jetivo principal foi o de mapear a produção nacional, buscando
identificar as temáticas que emergiram com maior força, apontan-
do aspectos lacunares e indicando direções para futuros estudos na
área. Várias fontes foram utilizadas: resumos de teses e dissertações
(banco de teses da CAPES); textos completos de teses e dissertações
defendidas nos programas de pós-graduação da Pontifícia Universi-
dade Católica de São Paulo — PUC-SP — e da Faculdade de Educa-
ção da Universidade de São Paulo — FEUSP —; livros; e periódicos
científicos. As análises levaram a concluir que o uso dessas abor-
dagens cresceu significativamente no Brasil a partir dos anos de
1990, porém, de modo muito disperso, foram utilizadas muito
mais como fonte de dados para o desenvolvimento de um largo
espectro de pesquisas e muito timidamente como dispositivos de
formação. Todavia, evidenciou-se que a intensificação de tais
metodologias contribuiu para renovar as pesquisas sobre os pro-
fessores, ao mesmo tempo em que fez aflorar o interesse por
questões e temáticas novas, tais como as que se configuram, por
exemplo, nos estudos sobre profissão, profissionalização e iden-
tidades docentes.
Palavras-chave
Autobiografias — Histórias de vida — Formação de professores —
Profissão docente.
Correspondência:
Belmira O. Bueno
Faculdade de Educação/USP
Av. da Universidade, 308
e-mail: bbueno@usp.br
* Este trabalho contou, em diferentes
fases dos levantamentos, com a cola-
boração de Daiane Vieira Piscinato, Elza
Pino dos Santos, Flávia Medeiros Sarti,
Flavinês Rebolo Lapo, Lia Mara dos
Santos, Marcela Oliveira Soga, Renata
Marcílio Cândido, Teresa Van Acker e
Vera Lúcia dos Santos, a quem quere-
mos registrar nossos agradecimentos.
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Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 385-410, maio/ago. 2006386
Life histories and autobiographies in teacher education and
teaching profession (Brazil, 1985-2003)*
Belmira Oliveira Bueno
Helena Coharik Chamlian
Cynthia Pereira de Sousa
Denice Barbara Catani
Universidade de São Paulo
Abstract
The text offers a review within the area of Education of the works
that make use of life histories and autobiographic studies as a
scientific research methodology in Brazil. The period between
1985 and 2003 is focused under two different slants, one tem-
poral, and the other thematic: teacher education and teaching
profession. The main purpose here was to map out the national
production, seeking to identify the themes that have emerged
with greater strength, pointing out deficient aspects, and
suggesting directions for future studies in this field. Several
sources were utilized: abstracts of theses and dissertations from
the CAPES database; complete texts of theses and dissertations
presented to the graduate programs of the Pontifical Catholic
University of São Paulo – PUC-SP – and of the Faculty of
Education of the University of São Paulo – FEUSP; books; and
scientific journals. The analyses have shown that the use of these
approaches has grown significantly in Brazil since the 1990s but,
in a very disperse manner, they have been used more as a source
of data for the development of a wide spectrum of studies, and
only timidly as formation devices. Nevertheless, it has become
apparent that the rise of these methodologies has contributed to
a renewal in the studies about teachers, at the same time that it
has fostered the interest in new issues and themes, such as those
developed, for example, in the researches about profession,
professionalization and teacher identity .
Keywords
Autobiographies — Life histories — Teacher education — Teaching
profession.
Contact:
Belmira O. Bueno
Faculdade de Educação/USP
Av. da Universidade, 308
e-mail: bbueno@usp.br
* This work had, in various stages of
data gathering, the help of Daiane Vieira
Piscinato, Elza Pino dos Santos, Flávia
Medeiros Sarti, Flavinês Rebolo Lapo,
Lia Mara dos Santos, Marcela Olivei-
ra Soga, Renata Marcílio Cândido, Te-
resa Van Acker, and Vera Lúcia dos
Santos, to whom we would like to
express our gratitude.
387Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 385-410, maio/ago. 2006
As histórias de vida e os estudos auto-
biográficos como metodologias de investigação
científica na área de Educação ganharam visí-
vel impulso no Brasil nos últimos quinze anos.
Em comparação com o período anterior, a dé-
cada de 1990 traz grandes mudanças, apresen-
tando um crescimento vertiginoso dos estudos
que fazem uso dessas metodologias, generica-
mente denominadas de autobiográficas.
Sinais desse crescimento puderam logo
ser percebidos. Em 1996, por exemplo, quan-
do da organização do 1º Seminário Docência,
Memória e Gênero na Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo – FEUSP –, fo-
ram recebidas cerca de 40 propostas de traba-
lhos, entre pesquisas concluídas e em desenvol-
vimento, vindas de instituições de vários pon-
tos do país1 . Alguns anos depois, ao realizar um
trabalho para a Associação Nacional de Pós-Gra-
duação e Pesquisa em Educação — ANPEd —,
identificamos 40 trabalhos completos apresenta-
dos em suas reuniões, entre 1991 e 20012 , e 35
nos congressos do Encontro Nacional de Didá-
tica e Prática de Ensino — ENDIPE —, de 1998
a 2000, entre comunicações, mesas-redondas,
painéis e pôsteres. O número expressivo de ins-
tituições representadas nesses eventos (32 na
ANPEd e 21 no ENDIPE) era indicativo de que
um movimento de grande adesão aos estudos
autobiográficos e com histórias de vida de pro-
fessores estava ocorrendo em todo o país, cujas
feições, no entanto, eram ainda pouco nítidas.
Naquela ocasião, consideramos oportuno fazer
referência a uma passagem de António Nóvoa
(1995), a propósito do caminho que os estu-
dos com as histórias de vida vinham tomando.
Era o ano de 1995, e ele dizia:
Em 1988, quando publiquei em colaboração
com Mathias Finger O método autobiográfico e
a formação, as abordagens biográficas eram
pouco conhecidas em Portugal e a sua utiliza-
ção na formação de professores não tinha qual-
quer significado. Em 1992, quando da primeira
edição de Vidas de professores, a situação já
tinha mudado consideravelmente, o que me leva
a alertar contra a existência de práticas pouco
consistentes e de metodologias sem qualquer
rigor. Hoje, em 1995, o aviso deve ser escrito
com letras ainda mais cheias. (p. 9)
Essa advertência e mais as constatações
de que tais estudos vinham ganhando terreno
no Brasil ensejaram a realização do presente
trabalho, com o objetivo de mapear e caracte-
rizar a produção nacional com base em um
levantamento mais exaustivo. Ao analisar o
emprego das metodologias autobiográficas e
histórias de vida nas investigações sobre for-
mação de professores e profissão docente, o
texto busca caracterizar as tendências que
emergiram com maior vigor, identificando as-
pectos lacunares e buscando apontar direções
que nos parecem férteis para futuros investi-
mentos na área.
Considerando o crescimento da produ-
ção, a abrangência e a diversidade dos estudos
encontrados, a revisão foi realizada com base em
dois recortes, um temporal e outro temático, para
focalizar um período de aproximadamente duas
décadas (1985 a 2003) e privilegiar dois temas –
formação de professores e profissão docente.
Consideramos tambémas questões de gênero,
em razão de sua presença marcante nas pesqui-
sas em Educação no período em análise, além de
ser este um dos focos de análise em nossas pes-
quisas com autobiografias/histórias de vida.
As buscas dos trabalhos foram efetuadas
por meio dos seguintes descritores: histórias de
vidas, autobiografias, memórias, lembranças, de-
poimentos orais, narrativas, entrecruzados com
os dois eixos temáticos da revisão. Esse tipo de
busca envolve o risco de não se identificar to-
dos os trabalhos desenvolvidos nas perspectivas
adotadas nesta revisão, devido a dois fatores
principais: o envio irregular das informações pe-
1. Ver Atas do 1º. Seminário Docência, Memória e Gênero da FEUSP
(Catani et al., 1997).
2. Esse trabalho foi apresentado na 25a Reunião Anual, no GT Formação
de Professores, como trabalho encomendado, sob o título “Os estudos
com histórias de vida de professores, um campo emergente de pesquisas:
questões metodológicas e perspectivas para as práticas de formação”
(Bueno; Catani, 2002). O texto não foi publicado.
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388 Belmira BUENO et al. Histórias de vida e autobiografias na formação de professores...
los programas de pós-graduação à Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
— CAPES —; e a não-coincidência entre as pala-
vras-chave constantes dos trabalhos com os
descritores por nós utilizados. Desse modo, a
identificação de trabalhos com tais característi-
cas só se faria possível mediante buscas diretas
nas bibliotecas das universidades, o que torna-
ria inviável a realização do levantamento de na-
tureza abrangente que se pretendeu realizar. Em
virtude de se ter lidado com fontes diversas,
acredita-se que as análises não ficaram compro-
metidas naquilo que apresentam como caracte-
rísticas gerais da produção nacional. O corpus de
análise, dessa forma, ficou assim constituído:
165 resumos de teses e dissertações, 155 dos
quais obtidos no banco de teses da CAPES e os
outros 10 no da PUC-SP e em catálogos da
FEUSP3; 39 textos completos de teses e disser-
tações defendidas nos programas de pós-gradu-
ação da PUC-SP e da FEUSP (instituições den-
tre as que apresentaram maior produção); 11
livros, selecionados mediante a utilização dos
descritores acima mencionados quando da con-
sulta a catálogos de algumas das principais
editoras da área de Educação4; e 30 artigos
publicados em 8 periódicos científicos, dentre os
mais expressivos na área de Educação.
O exame realizado tornou evidente que
essa produção se caracteriza por uma enorme
dispersão, tanto temática quanto metodológica,
decorrente, entre outros fatores, da multi-
plicidade de referenciais teóricos utilizados nas
pesquisas. Os teóricos que dão sustentação aos
trabalhos têm sido buscados em vários campos
disciplinares, fazendo-se empréstimos concei-
tuais e combinações as mais variadas, nem
sempre isentas de ambigüidades quanto às de-
nominações metodológicas utilizadas. Sem pre-
tender esgotar, menciona-se aqui uma lista de
denominações usadas pelos autores: memória(s),
lembranças, relatos de vida (récit de vie), depo-
imentos, biografias, biografias educativas, memó-
ria educativa, histórias de vida, história oral de
vida, história oral temática, narrativas, narrativas
memorialísticas, método biográfico, método au-
tobiográfico, método psicobiográfico, perspec-
tiva autobiográfica. Vale ressaltar que muitos
trabalhos usam mais de uma denominação, dei-
xando implícita a idéia de que são tomadas
como sinônimos. Outras vezes, busca-se com-
plementar um sentido com outro, ou uma abor-
dagem com outra, dificultando com isso o tra-
balho de categorização. Em vista das dificulda-
des que isso trouxe para se proceder à classi-
ficação dos trabalhos, optou-se por uma expo-
sição que se orienta pela cronologia de apare-
cimento dos trabalhos, em cuja seqüência bus-
camos identificar e destacar as tendências e
temáticas que mais caracterizaram cada déca-
da/período. Ao nos propormos a esse trabalho,
não houve a pretensão de esgotar as muitas
análises que esse conjunto de trabalhos com-
porta, ao contrário, a perspectiva foi a de ofe-
recer um primeiro mapeamento, na tentativa de
dar uma primeira ordenação a essa produção
com vistas a suscitar novos exames.
Alguns antecedentes
Os dados coligidos para esta revisão le-
varam à constatação de que a década de 1980
não foi prolífica em pesquisas com autobiogra-
fias e histórias de vida. A produção dos progra-
mas de pós-graduação expressa em resumos
(período de 1985-90) registra a presença de
apenas quatro trabalhos que utilizaram tais
metodologias e, ainda assim, não voltadas aos
temas focalizados nesta revisão5 . Um único li-
vro foi localizado – Experimentos com históri-
as de vida (Itália-Brasil) – uma coletânea de
textos organizada por Olga von Simson (1988)
3. Essa complementação foi feita em virtude de uma não correspondên-
cia entre os resumos do Banco de Teses da CAPES e os trabalhos da PUC-
SP e da FEUSP, quando buscados para a leitura completa.
4. Foram pesquisadas as seguintes editoras, por ordem alfabética: Arte
& Ciência, Artmed, Ática, Autores Associados, Cortez, DP&A, Escrituras,
Mercado de Letras, Papirus, Pioneira, Unesp, Unijui e Vozes. Alguns des-
ses livros foram produzidos inicialmente como teses. As referências es-
pecíficas a cada caso são feitas mais adiante.
5. Três desses estudos foram defendidos na Universidade Federal de
Minas Gerais – UFMG – e um na Universidade Federal de Pernambuco –
UFP. Os temas tratados versaram sobre fracasso escolar, relação profes-
sor-aluno, alfabetização e leitura.
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389Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 385-410, maio/ago. 2006
na perspectiva da sociohistória da educação6 .
A análise dos periódicos confirma esse cenário
de rarefação de estudos. Nas revistas analisa-
das, chega a surpreender a tênue presença de
artigos sobre história da profissão docente ou
formação de professores por meio do método
autobiográfico/histórias de vida e memórias de
vida escolar, tanto nesse período como na dé-
cada seguinte. Em um conjunto de 363 exem-
plares consultados, foram encontrados apenas
30 trabalhos – menos do que 10% de todo o
material pesquisado – conforme pode ser vis-
to no Quadro 1.
Entretanto, deve-se assinalar o fato de
que os textos examinados aproximam-se desi-
gualmente dos eixos escolhidos para análise –
a maioria deles fazendo recurso a histórias de
vida, memórias, lembranças, docência, profissão
docente para produzir contribuições na área de
História da Educação. Entre os trabalhos publi-
cados na década de 1980, em cinco deles (dos
seis periódicos que já existiam na época) pre-
dominam contribuições baseadas em relatos
orais e escritos, com vistas a complementar e/
ou articular-se a informações obtidas em ou-
tras fontes. Ressaltam-se investigações que
buscam reconstruir trajetórias de formação e
trajetórias profissionais de professores. Tal
constatação anteciparia a marca de interesse
que determinados grupos de pesquisadores
viriam a mostrar no decorrer da década de 1990
e que podem ser conhecidos por registros de
congressos e eventos, por exemplo, no que
tange tanto ao grupo de Minas Gerais como o
do Rio Grande do Sul7 .
O lugar antecipado pelo texto “Os alu-
nos e o ensino na República Velha através das
memórias de velhos professores” (Demartini;
Tenca; Tenca, 1985), publicado nos Cadernos
de Pesquisa, fortalece-se, definitivamente, com
a atuação de Zeila Demartini no território da
pesquisa histórico-sociológica ligada aos estu-
dos educacionais que, nesse caso, revelava o
cotidiano de escolas rurais no estado de São
Paulo por meio das memórias de antigos pro-
fessores e alunos. Em 1989, essa autora publica
texto sobre o coronelismo e a expansão do sis-
tema educacional em São Paulo, com transcri-
ções de trechos de relatos orais de professores
(Demartini, 1989). Mais à frente, em 1993, pu-
blica, novamente nos Cadernos de Pesquisa,
outro artigoque é mais um desdobramento de
sua pesquisa dos anos de 1980, com as memó-
rias de velhos professores (e professoras), cuja
atuação no magistério primário se deu até o
final da Primeira República (Demartini, 1993).
Nesse texto, de modo especial, a questão do
gênero é considerada, mas com auxílio de
referenciais teóricos que tratam do trabalho fe-
minino (Michael Apple, Cristina Bruschini etc.).
Nesse sentido, para a história da profissão
docente, com recurso dos relatos/depoimentos
orais, fornece informações preciosas sobre a
condição de trabalho das professoras (magisté-
rio como profissão) em comparação aos bene-
fícios e privilégios de que gozavam os homens
professores (magistério como carreira)8 .
Nesse período, Educação em Revista
(Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG)
também traz contribuições relevantes para a
6. Entre os capítulos desse livro, figuram dois textos dentre os que vie-
ram a ser referência para muitas pesquisas, tanto nessa época como de-
pois: o de M. Isaura Pereira de Queiroz (1988) – “Relatos orais: do indi-
zível ao dizível” – e o de Zeila Demartini (1988) – “Histórias de vida na
abordagem de problemas educacionais”. Nos próximos parágrafos, serão
feitas mais observações a respeito dessa orientação teórico-metodológica.
7. Uma análise preliminar sobre a produção veiculada nos periódicos foi
apresentada no Simpósio Internacional Escrever a Vida. Novas aborda-
gens de uma teoria da autobiografia. São Paulo, Universidade de São Pau-
lo, FFLCH,,,,, setembro de 2005 (Sousa; Catani, 2005).
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390 Belmira BUENO et al. Histórias de vida e autobiografias na formação de professores...
história da profissão docente, porém diferenci-
adas entre si. Um dos textos adota uma pers-
pectiva que se configura como uma história
das disciplinas (nesse caso, acadêmica) ao exa-
minar a Psicologia da Educação como matéria
de cursos de formação de professores. Frag-
mentos de histórias de vida de 18 docentes são
utilizados para analisar o trabalho com essa
disciplina entre 1925 e 1984, na capital mineira
(Goulart, 1986). Em 1989, um texto que apa-
rece na seção de Comunicações chama a aten-
ção para a trajetória de uma professora da zona
rural – Mestra Iraci – que ao ser entrevistada
por duas alunas do curso de Pedagogia resol-
veu escrever, ela própria, seu relato. Esse ma-
terial utilizado na publicação era exigência de
uma disciplina e parte de pesquisa de Lea Pi-
nheiro Paixão, da UFMG, que nos inícios dos
anos de 1990 publica artigo, nessa mesma re-
vista, sobre professoras primárias mineiras que
tinham iniciado suas carreiras entre 1924 e
1938 (Paixão, 1991). No caso desse texto, Pai-
xão recorreu a entrevistas de 35 professoras,
investigando seu pertencimento social, sua for-
mação e sua condição profissional. Não há
dúvida de que o estudo tem muito a dever,
nesse tema, ao pioneirismo de Zeila Demartini.
Ainda nos anos de 1980, a revista Edu-
cação e Realidade (Universidade Federal do Ro
Grande do Sul – UFRS) publica texto que remete
diretamente à pesquisa sobre educação femini-
na nesse estado, por meio do estudo de práti-
cas escolares e pedagógicas de uma instituição
pública centenária na cidade de Porto Alegre
(Louro, 1986). Entre outros recursos, sua auto-
ra utilizou-se de depoimentos/relatos orais de
mulheres que, no passado, tinham sido persona-
gens daquele universo escolar como alunas e
professoras. A autora Guacira Lopes Louro, que
viria a produzir outros tantos trabalhos sob a
perspectiva das relações sociais de gênero, co-
locou bastante ênfase na questão da dominação
masculina, bem como nas estratégias de resistên-
cia das mulheres, uma abordagem bastante nova
em estudos sociohistórico educacionais.
Na Revista Brasileira de Estudos Peda-
gógicos, foi localizado apenas um artigo, nes-
sa perspectiva na década de 1980, bem distinto
dos demais. Trata-se de um texto escrito em
primeira pessoa, em que a autora (Soares, 1984)
aproveita seu memorial de concurso de profes-
sora titular para apresentar sua trajetória acadê-
mica. Trata-se, portanto, de artigo baseado em
trajetória de vida profissional, no qual não se
considera a infância nem as primeiras experiên-
cias escolares, mas apenas a militância acadê-
mica e a ideologia que influenciou seu traba-
lho intelectual.
Em congressos, reuniões científicas,
seminários, dissertações e teses, essas temáticas
apareceram com maior freqüência. Se no gru-
po dos trabalhos publicados na década de
1980 é possível observar o quase generalizado
esforço de defesa do recurso às fontes ligadas
à memória e às histórias de vida, pela nature-
za das informações às quais tais fontes/proce-
dimentos podem dar acesso, a questão do gê-
nero – uma abordagem ainda incipiente nos
estudos educacionais – não foi considerada
nas análises, muito embora vários desses textos
tenham tratado das relações entre trabalho e
condição feminina.
Dessas constatações deriva uma outra:
a de que os anos de 1990 foram o cenário do
incremento da produção de trabalhos em tor-
no dos grandes eixos aqui apresentados.
Anos de 1990: o contexto
brasileiro e as influências européias
Uma compreensão sobre os percursos
da pesquisa educacional, no que tange ao
movimento que ocorre em direção às aborda-
gens autobiográficas, não poderia prescindir de
algumas considerações sobre o contexto brasi-
leiro nos anos de 1990, bem como sobre as
influências vindas de outros países e que aqui
se repercutem a partir desse período.
8. Uma análise preliminar sobre a produção veiculada nos periódicos foi
apresentada no Simpósio Internacional Escrever a Vida. Novas aborda-
gens de uma teoria da autobiografia. São Paulo, Universidade de São Pau-
lo, FFLCH,,,,, setembro de 2005 (Sousa; Catani, 2005).
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391Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 385-410, maio/ago. 2006
Um primeiro ponto a ser registrado é
que no Brasil as discussões em torno da forma-
ção do professor e de sua profissionalização
intensificaram-se no período que antecedeu a
aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Edu-
cação Nacional (LDBEN 9394/96), a partir da
qual os professores e os pedagogos passaram
a se denominados de profissionais da Educação
(art. 61 a 67). Essa ênfase, no entanto, não era
isolada. Na verdade, fazia coro com um movi-
mento mais geral, que emergia e se alastrava
por toda parte, tanto nos países desenvolvidos
como naqueles em desenvolvimento. A Améri-
ca Latina foi palco de muitas reformas nos anos
de 1990, todas, sem exceção, dando destaque
para o papel central dos professores na cons-
trução da nova escola que então se passou a
vislumbrar. Embora no Brasil o movimento so-
bre os profissionais da educação tenha se ini-
ciado na década de 1970, dá-se ênfase aqui
aos debates dos anos de 1990, em razão de se
supor que eles contribuíram para acentuar o in-
teresse pelas abordagens autobiográficas e com
história de vida de professores que, justamen-
te nesse período, se multiplicam com enorme
rapidez, como demonstrado nesta revisão.
Olinda Evangelista e Eneida Shiroma
(2003) mostram que órgãos como o Fundo das
Nações Unidas para a Infância – UNICEF – e a
Organização das Nações Unidas para a Educa-
ção, a Ciência e a Cultura – UNESCO – chama-
vam a atenção para a problemática da profis-
sionalização docente desde o início dos anos
de 1990, e que as propostas a esse respeito já
estavam contidas em documentos da Comissão
Econômica para a América Latina e o Caribe –
CEPAL – e do Proyecto Principal de Educación
en América Latina y el Caribe – PROMEDLAC –
também desde o início daquela década. Elas
observam que, em 1993, profissionalização foi
conceito central da reforma educativa discutida
naquele Projeto, ao lado das discussões sobre as
redefinições do perfil e da formação do professor.
Ao realizarem uma análise sobre os tra-
balhos do GT Formação de Professores da
ANPEd, referente ao período de 1995-2002,
essas autorasconstatam que o emprego do
termo profissionalização cresceu significativa-
mente, nesse período, reportando-se
[...] à pessoa do professor, à prática docente, à
qualificação da categoria do magistério, à qua-
lidades inerentes à função, à requalificação
profissional, à formação inicial, à formação
continuada, ao modelo profissional, à mudança
radical do perfil docente. (p. 27-28)
Entre outras considerações, elas cha-
mam a atenção para o fato de que os trabalhos
analisados baseavam-se “em uma literatura in-
ternacional majoritariamente de origem européia
e norte-americana” (p. 31), sem fazer uma
interlocução com a própria América Latina.
O contexto descrito por Evangelista e
Shiroma e os dados por elas apresentados ex-
plicam, em grande parte, a emergência dos
estudos autobiográficos no Brasil, bem como
várias das marcas de sua produção. Com efei-
to, o acesso a textos publicados em Portugal e
distribuídos aqui, reunindo colaborações de
autores portugueses, franceses, suíços, italia-
nos, com teorias e investigações sobre o méto-
do autobiográfico como recurso metodológico
e como fonte de pesquisa, foi um dos aspec-
tos definidores do cenário que se desenha nos
anos de 1990. A publicação em Portugal, em
1992, de Vida de professores e Profissão pro-
fessor, duas coletâneas organizadas por Anto-
nio Nóvoa (1995a; 1995b), teve enorme reper-
cussão no Brasil. Essas coletâneas contaram
com a participação de autores de diferentes
países – Ivor Goodson e Peter Woods, da Ingla-
terra; Miriam Ben-Peretz, de Israel; José Gimeno
Sacristán e José Manuel Esteve, da Espanha;
Daniel Hameline, da Suíça; Michäel Huberman,
do Canadá; dentre outros autores – que depois
vieram a se tornar referências para muitos tra-
balhos no Brasil. Antes disso, em 1988, Nóvoa
havia organizado com Mathias Finger uma
outra obra, O método (auto)biográfico e a for-
mação (1988), que já havia despertado grande
interesse no contexto lusófono e acabou tam-
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392 Belmira BUENO et al. Histórias de vida e autobiografias na formação de professores...
bém chegando às mãos de muitos pesquisado-
res brasileiros9 .
Data também desse período a criação do
Grupo de Estudos Docência, Memória e Gênero da
FEUSP (GEDOMGE-FEUSP), no ano de 1994,
cujas concepções foram, em grande parte, tribu-
tárias dos trabalhos liderados por Gaston Pineau,
Pierre Dominicé e Marie-Christine Josso, desen-
volvidos na Universidade de Genebra10 , e que
àquela altura já se constituía em uma rede ampla
de pesquisadores de vários países – França, Itá-
lia, Canadá, Portugal, entre outros. Seguindo as
concepções desses pesquisadores, como coorde-
nadoras do GEDOMGE, colocamos o método au-
tobiográfico em prática numa dupla perspectiva:
para operar como dispositivo de formação e, ao
mesmo tempo, como instrumento de pesquisa11 .
As concepções do grupo de Genebra,
por sua vez, encontravam suas raízes em proble-
máticas que emergiram no âmbito das ciências
humanas, sobretudo, nos finais do século XX
(Josso, 1999). O que se verifica nos últimos 30
anos é que as transformações do modelo social
desse período são acompanhadas de formas de
socialização em que os processos de indivi-
dualização e subjetivação encontram um lugar
cada vez maior. A acentuação dessas formas de
socialização está ligada às transformações soci-
ais que contêm a passagem das sociedades na-
cionais, industrializadas e centralizadas, para
formas de sociedade cujos organismos políticos,
sociais e econômicos perdem sua centralidade,
em que as instituições não têm mais a mesma
capacidade de integração e nas quais os ‘indi-
víduos’ são compelidos a provar mais e mais
iniciativa e autonomia e encontrar neles pró-
prios os recursos e forças para sua conduta.
É nesse contexto que ‘a questão do
sujeito’ retorna por via das ciências sociais após
ter sido esvaziada nos anos de 1960 e 1970. Ao
retornar, reaparece na cena sociológica como
um sujeito despojado da dimensão essencialista
e atemporal, que lhe conferia a filosofia clássi-
ca, mas fortemente inscrito em uma realidade
sociohistórica, ela própria cambiante e instável.
A disciplina sociológica pode desenvolver agora
uma teoria do ‘ator social’, construindo o sen-
tido de sua experiência e se fazendo o ‘sujei-
to’ de sua ação (Delory-Momberger, 2003). De
acordo com Christine Delory-Momberger, os
relatos de vida vão conhecer um interesse re-
novado na Europa por volta da metade dos
anos de 1970. Orientada para os campos pro-
fissionais, a abordagem biográfica suscita tra-
balhos de sociologia crítica, a partir da compi-
lação de relatos de vida que servem para esta-
belecer trajetórias e percursos profissionais. Nos
anos de 1980, o objeto de pesquisa se deslo-
ca da coleta de informações, que permitem
reconstituir as práticas de uma mesma catego-
ria socioprofissional, para considerar a singula-
ridade dos relatos obtidos e tratados em si
mesmos (Catani; Mazé, 1982). Essa evolução é
acompanhada de uma dupla reflexão: a que se
refere ao estatuto da história de vida e seu valor,
como documento científico, e a que se preocu-
pa com o relato, como objeto de linguagem e
sobre sua dimensão de autocriação como prá-
tica autopoiética (Le Grand; Pineau, 1993).
Como parte desse processo, as histórias
de vida também aparecem no campo da forma-
ção que as utilizam como arte formadora da
existência (Pineau, 1996). O relato não é mais
somente considerado em uma perspectiva de
pesquisa etnosociológica, mas como um cam-
po de experiência e um instrumento de explo-
ração formadora. Delory-Momberger acentua
que é preciso distinguir os procedimentos de
pesquisa, pois deles resultarão materiais de in-
vestigação bastante diferentes. Segundo ela,
A autobiografia e o relato oral de vida não
funcionam no mesmo registro: a primeira é uma
atividade solitária de introspecção, enquanto
que a segunda, conduzida em interação, é uma
9. Evangelista e Shiroma (2003), ao comentarem os trabalhos da ANPEd,
observam que entre os autores mais citados desponta António Nóvoa, com 23%.
10. A esse respeito, consultar: Dominicé, 1988; 1990; Josso, 1988;
Pineau, 1988.
11. Informações sobre a história da criação do grupo podem ser encon-
tradas em Catani et al. (1997) e Bueno (1998). Sobre a linha de trabalho
do grupo, consultar os artigos: Bueno et al. (1993); Sousa et al. (1996);
Catani; Bueno; Sousa, 2000; entre outros.
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393Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 385-410, maio/ago. 2006
palavra endereçada, atenta aos efeitos que ela
produz sobre seu destinatário. (2003, p. 5)
Da mesma forma, Josso (1999) distin-
gue as histórias de vida como ‘projeto de co-
nhecimento’ e as histórias de vida ‘a serviço de
projetos’. No primeiro caso, o relato oral, ou
escrito, tenta abranger a totalidade da vida em
seus diferentes registros, bem como em sua
duração, mas na maior parte das vezes dá-se o
segundo caso, em que a história produzida
pelo relato é limitada a uma entrada que visa
fornecer o material útil a um projeto específi-
co. Em outras palavras, se a intenção é produzir
conhecimento sobre algum tema ou situação
utilizando relatos (orais ou escritos), teremos
como resultado trabalhos que, colocando-se
em novo paradigma (do sujeito e do ator rea-
bilitado), são bastante distintos daqueles em
que o método autobiográfico opera como ins-
trumento de formação e funciona como projeto
de conhecimento global do sujeito.
Esses aspectos e essas diferenciações
quanto às concepções e aos modos de pôr o
método autobiográfico em ação, ao ganharem
adesão crescente e se espraiarem por todo o
Brasil, acabaram por adquirir feições próprias
aqui. Foi surpreendente, no entanto, observar
que, a despeito de vários desses autores euro-
peus estarem na origem das motivações que
levou tantos pesquisadores a desenvolverem
trabalhos com autobiografias e histórias de vida,
a perspectiva da pesquisa/formação defendida
poreles teve pouca ressonância no Brasil, como
será visto a seguir.
Anos de 1990: crescimento,
diversidade, tendências
A análise do material reunido, referen-
te ao período que se estende entre 1990 e
2003, foi reveladora não apenas de um visível
crescimento das pesquisas nesse período, mas
também de uma significativa diversificação das
modalidades e dos usos das autobiografias e
histórias de vida. Esses estudos espraiaram-se
para além do domínio da sociohistória da edu-
cação, marca predominante na década anteri-
or, para explorar novos temas e construir novos
objetos. Essa diversidade e as tendências que se
mostraram mais marcantes nessa produção se-
rão examinadas a seguir. Antes, porém, consi-
derou-se importante apresentar alguns indica-
dores quantitativos para oferecer uma visão
geral sobre o crescimento dos estudos, com
eles também indicando o papel que os progra-
mas de pós-graduação jogaram nesse processo.
Teses e dissertações: o papel dos
programas de pós-graduação
Os dados obtidos no Banco de teses da
CAPES mostram que o ano de 1995 foi um mar-
co nesse movimento de crescente adesão aos
estudos com histórias de vida. De uma produ-
ção que oscilou entre 2 e 4 trabalhos por ano,
entre 1990 e 1994, há um salto em 1995, com
a marca de 14 trabalhos: 10 mestrados e 4
doutorados. Esse número correspondeu a quase
o dobro dos trabalhos produzidos nos cinco
anos precedentes, tal como pode ser visto no
Gráfico 1 (próxima página).
Daí para frente, com pequenas oscila-
ções, as pesquisas de pós-graduação que fazem
uso dessas abordagens aumentam continua-
mente, chegando a atingir a cifra de 30 traba-
lhos só no ano de 2003. No período compre-
endido entre 1990 e 2003, foram localizados
165 trabalhos, sendo 128 de mestrado e 37 de
doutorado, defendidos em instituições de todas
as regiões do país, com a participação de 21
universidades federais, além de outras – esta-
duais, PUCs e universidades privadas. É prová-
vel que esse número seria ainda maior se fos-
sem feitas buscas diretas em todas as bibliote-
cas dessas universidades.
A USP foi a detentora da maior produção,
com 24 trabalhos; seguida, em ordem decrescen-
te, pela Universidade Federal de Santa Maria –
UFSM –, no Rio Grande do Sul, com 16 trabalhos,
e pela PUC-SP, com 15. Entre as universidades
privadas, sobressaíram-se a Universidade da Cida-
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394 Belmira BUENO et al. Histórias de vida e autobiografias na formação de professores...
de de São Paulo – UNICID – e a Universidade
Metodista de Piracicaba (estado de São Paulo) –
UNIMEP –, cada uma com 6 trabalhos12 .
Na FEUSP, Elza Nadai foi, na década de
1990, uma das pioneiras em desenvolver estu-
dos sobre os professores e suas memórias, tra-
balhando em uma perspectiva que, derivando
da história oral, aproximava-se dos estudos
com histórias de vida de professores, tal como
viriam a se multiplicar nesse período. Em 1990,
Ricardo Ribeiro defendeu, sob sua orientação,
a dissertação Inspeção e escola primária em São
Paulo: trabalho e memória (1990). E, no ano
seguinte, ela própria, sua tese de livre-docência
– A educação como apostolado: história e re-
miniscências (São Paulo 1930-1970), utilizan-
do o que ela denominava de récit de vie (Nadai,
1991). Nessa pesquisa, em que a autora com-
bina vários procedimentos e fontes, foi estuda-
do um grupo de professores do antigo ensino
secundário, por meio de um amplo leque de
questões – representações, memória, discurso,
formação, escola, sociedade, profissionalização.
Apoiado em uma diversidade de autores – Paul
Veyne, Le Goff, Bosi, Halbwachs, Thompson, M.
Isaura P. Queiroz –, esse trabalho filia-se à his-
tória da profissão docente, tal como Denice
Catani (2000) já o havia incluído.
Também pioneiro, porém em linha bem
diversa, foi o trabalho realizado por M. Ignez
Joffre Tanus, em sua tese defendida em 1992
na FEUSP, sob o título Mundividências – histó-
ria de vida de migrantes professores. Publicada
depois como livro (Tanus, 2002), o trabalho
explora as visões de mundo, os processos de
subjetivação e de identificação presentes na pro-
fissão, buscando compreender o imaginário e a
realidade de grupos de migrantes-professores, a
partir de duas questões básicas: a da identida-
de e a da construção da noção de realidade. A
autora aproveita a situação de um trabalho
empírico para colher depoimentos dos infor-
mantes acerca de suas histórias de vida, reali-
zando o que ela denomina de uma ‘escuta
sensível’ (Tanus, 2002).
Esses trabalhos são indicativos não ape-
nas do movimento que estava se iniciando em
direção às autobiografias e histórias de vida, na
década de 1990, mas também de sua diversifi-
cação. Nessa década, vamos com efeito encon-
trar essa característica no recurso das histórias
de vida e das memórias, cujos usos vão muito
além do domínio da sociohistória da educação,
como já observado. Assim é que se buscam com-
preender especificidades da atuação de grupos de
12. Uma análise sobre os dados obtidos junto ao Banco CAPES foi apresen-
tada no Simpósio Internacional Escrever a Vida. Novas abordagens de uma
teoria da autobiografia. São Paulo, Universidade de São Paulo, FFLCH,,,,, setem-
bro de 2005. Nesse trabalho, constam outras tabelas que permitem visualizar
melhor a distribuição dos trabalhos entre as instituições do país (Bueno, 2005).
395Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 385-410, maio/ago. 2006
profissionais docentes, de áreas e disciplinas diver-
sas, pela alternativa das histórias de vida como pro-
cedimentos de pesquisa. Ampliam-se igualmente as
referências às autobiografias e o gênero (literário)
passa a ser valorizado pela sua contribuição ao
entendimento de especificidades da vida escolar,
do exercício da profissão docente, da construção
de representações e relações com a escola e o co-
nhecimento, entre outras13 . E são justamente as-
pectos como esses que serão sublinhados pelos
textos que, no período, introduzem, por meio de ar-
tigos publicados em periódicos e livros, a hipótese
do recurso a memória/histórias de vida/autobiogra-
fias como procedimentos de formação. Inserindo-se
em expressivo movimento internacional, observável
pelas produções educacionais oriundas da França,
Canadá, Portugal e Suíça, os textos que propugnam
pelo caráter formador das histórias de vida apresen-
tam-se também como fontes para a compreensão
das peculiaridades da formação e especificidades das
situações educativas formais e informais14 . Se se
pode identificar um traço comum aos textos pu-
blicados na década de 1990, talvez este seja o do
esforço pela multiplicação do potencial expli-
cativo/formador das memórias/histórias de vida/
autobiografias. Nesse sentido, o recurso a elas é
invocado para permitir a compreensão do proces-
so de mudança e desenvolvimento dos professo-
res, observando-se uma proliferação de interesses
suscitados pela vaga das histórias de vida e sua
extensão a universos educativos variados.
Com efeito, o conjunto dos trabalhos
analisados evidenciou um grande espraiamen-
to dos estudos autobiográficos, caracterizado
por um leque amplo de temas e perspectivas de
análise, mas com algumas convergências. Assim
é que foram recorrentes os trabalhos que bus-
cam, por exemplo, compreender especificidades
da atuação de grupos de profissionais docen-
tes de áreas e períodos diversos, tal como pôde
ser observado tanto nos trabalhos de pós-gra-
duação como em livros e artigos.
Ainda que também dispersos no con-
junto, foi possível identificar nesse âmbito tra-
balhos que guardam maior proximidade entre
si, como no caso dos estudos que derivam da
história oral e se situam em uma intersecção
com a perspectiva das histórias de vida de pro-
fessores. Vários desses trabalhos foram defen-
didos na FEUSP, dentre os quais: o mestrado e
o doutorado de Ricardo Ribeiro (1990 e 1996)
– um sobre a atuação de antigos inspetores es-
colares nos anos de 1930-45 e o outro, de
antigas professoras primárias nos anos de 1925-
1945; a pesquisade Eleny Mitrulis (1993) tam-
bém sobre os inspetores, mas abrangendo o
início da atuação dos supervisores de ensino; e
sobre período mais recente, as dissertações de
Daiane Vieira (2002) e Elza Pino dos Santos
(2003) – a primeira versando sobre a atuação
de antigos diretores, homens que fizeram car-
reira no magistério entre 1950-1980; e a se-
gunda, o trabalho de professoras primárias que
atuaram entre as décadas de 1960-1980. Fora
do âmbito da pós-graduação, também houve
estudos nessa linha, como pode ser visto no
livro de Sanches (1999) – Orientação educacio-
nal e o adolescente. Nele, a autora trabalha
com dez histórias de vida (orais) para compre-
ender a atuação do orientador educacional,
valendo-se também de um relato de sua própria
experiência durante os anos de graduação.
Em outros estudos, a atuação de grupos
de profissionais foi estudada a partir de outras
categorizações como, por exemplo, de professo-
res negros ou afrodescendentes (Rofino, 1996;
Ribeiro, 2001), de professores que tiveram
militância política (Dobbeck, 2000), de professo-
res leigos (Rodrigues, 2001), entre outras.
Ao lado dessa temática, outras também
se mostraram recorrentes, sobretudo nos traba-
lhos de pós-graduação. A análise dos resumos
permitiu verificar, por exemplo, que os docentes
do ensino fundamental e as áreas de Alfabetiza-
13. A esse respeito, ver o texto de Denice Catani (1991), “Pedagogia e
museificação”, no qual ela explora as potencialidades da obra memo-
rialística de Elias Canetti – A língua absolvida – para a compreensão da
educação, da formação e da vida escolar. Ver também os trabalhos indica-
dos na nota seguinte, nos quais se explicita o uso que foi feito dessa obra
em cursos e projetos de formação docente.
14. Essas características são típicas dos trabalhos desenvolvidos pelas
pesquisadoras do GEDOMGE-FEUSP. Entre outras pesquisas, suas teses
de livre-docência também versaram sobre autobiografias e histórias 
de vida. Ver: Catani (1994), Bueno (1996), Sousa (2000) e Chamlian (2004).
396 Belmira BUENO et al. Histórias de vida e autobiografias na formação de professores...
ção e Matemática se constituíram nos focos de
maior atenção, enquanto que no ensino superi-
or foi a de História de Educação, com uma pro-
dução de 25 trabalhos. Embora um bom número
desses trabalhos tenha se voltado ao estudo das
antigas escolas normais, foi curioso observar que
o tema das relações de gênero não ganhou a
ênfase que haveria de se esperar. Isso ocorreu
não apenas em relação a esse tema, mas também
no conjunto dos trabalhos, de vez que apenas
cinco indicaram ter utilizado a categoria gêne-
ro, dois destes em parceria com a categoria
etnicidade para focalizar a questão do professor
negro. Importante registrar que essa temática
vem se acentuando nos últimos anos, como será
referido mais adiante, neste texto.
O tema da identidade profissional sur-
preendeu pela alta recorrência, seguido de perto
por outros dois: saberes docentes e educação
continuada. Essa recorrência foi observada
notadamente nos resumos. Entre os trabalhos
completos selecionados, menciona-se o de
Carmen Lúcia Pérez (2002), defendido na
FEUSP, que usou narrativas orais e escritas. A
questão da construção da identidade (tal como
o tema é enunciado na maior parte das vezes)
apareceu com maior freqüência nos trabalhos
defendidos na PUC-SP, dentre os trabalhos se-
lecionados para leitura completa; mas ao se
considerar os resumos, esse foi um tema estu-
dado em todas instituições. Profissionais de
áreas as mais diversas foram estudados sob esse
foco, notadamente os professores. Alguns títu-
los que aparecem nos resumos a partir de 1995
servem para ilustrar a tônica desse conjunto de
trabalhos: Memória e identidade: a travessia de
velhos professores através de suas narrativas; A
professora alfabetizadora: caminhos e descaminhos
na construção de uma identidade; A representação
identitária no professor de história: um estudo
com depoimentos orais; Identidade, culturas e
memórias de ex-professores; Autoformação, his-
tórias de vida e construção de identidades do/a
educador/a; Identidades musicais de alunas de
pedagogia: música, memória e mídia; Identidade
do diretor da escola pública: compromisso com a
transformação do cotidiano escolar.
Além dos professores, observou-se um
interesse pelo estudo da identidade dos professo-
res negros (Rofino, 1996) e afrodescendentes
(Oliveira, 2001)15 , assim como por aqueles que já
se aposentaram e se encontram em fase de enve-
lhecimento (Stano, 2001a)16 . Esse tema esteve
presente em uma série de estudos que contem-
plam a questão identitária a partir de outros ân-
gulos. É o caso das pesquisas que analisam pro-
cessos de escolha profissional (Enge, 2004) ou as
que contemplam os percursos de formação. Al-
guns desses trabalhos se interessam por examinar
o modo pelo qual os profissionais se tornaram
professores (Hage, 1997); outros, como o deixa-
ram de ser, como no caso do estudo de Flavinês
Lapo (1999) que analisou as histórias de vida
profissional de docentes que abandonaram o
magistério e/ou a escola pública. Um outro con-
junto de estudos, ainda nessa perspectiva, inves-
tiga a construção da identidade a partir dos sig-
nificados atribuídos, pelos professores, à profissão
e ao trabalho docente. Uma modalidade recente
de estudos que se alinham ao tema da identida-
de, a grande maioria de mestrado, diz respeito
àqueles em que os autores se propõem à análise
de sua própria trajetória profissional. Buscam eles,
em geral, compreender como vieram a se tornar
os professores que são – de arte, de história,
biologia, educação especial, alfabetizadores/as17 ,
entre outros. Sobre a questão da identidade e
desse tipo de estudos, serão feitas algumas con-
siderações na seção final deste texto.
Os livros
A leitura dos livros reiterou alguns desses
15. Esse trabalho foi defendido no Instituto de Psicologia da USP. Na
ANPEd, trabalhos versando sobre temática da identidade dos professores
negros aumentou com a criação do GT Estudos Afro-Brasileiros e Educa-
ção. Entre 2002 e 2003, foram localizados quatro estudos com esse foco.
16. Esse trabalho de doutorado, orientado por Mere Abramowicz, foi
publicado como livro logo a seguir, no mesmo ano (Stano, 2001b).
17. Estudos desse tipo, em nível de doutorado, foram identificados dois:
o de Pereira (1997), defendido na PUC-SP, e o de Warschauer (2000),
defendido na FEUSP.
18. A expressão foi utilizada por Ivor F. Goodson (1992), na coletânea
Vidas de professores (Nóvoa, 1992).
397Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 385-410, maio/ago. 2006
temas, mas fez ressaltar outros, sobretudo pelo
fato de nem todos terem sido produzidos como
teses ou dissertações. Vários resultaram de proje-
tos desenvolvidos por grupos de pesquisa e, em
muitos deles, os autores valem-se das narrativas
como matéria prima para a análise, focalizando a
profissão sob os mais diversos ângulos.
Selva Fonseca (1997) assina o livro Ser
professor no Brasil, utilizando-se da história oral
de vida mediante o registro da história individu-
al dos sujeitos que fazem e ensinam história.
Isso permitiu produzir documentos e interpreta-
ções nos quais os personagens explicitam e atri-
buem diferentes sentidos às suas experiências,
mostrando como suas produções e suas ações
profissionais estão intimamente ligadas ao modo
pessoal de ser e viver. Por sua vez, o livro de
Geni Vasconcelos (2000) – Como me fiz profes-
sora – é uma coletânea de artigos sobre histó-
rias de vida de professores, alguns tratando de
temáticas relativas à construção da identidade
profissional; outros, a partir de narrativas dos
próprios professores, sobre suas histórias de
formação. Segundo a organizadora, o objetivo
foi o de buscar, por meio desse trabalho, resgatar
o respeito à categoria do magistério, dando
voz18 aos professores; e o de também mostrar
que a identidade do professor se tece com
múltiplos fios. Próximo dessa linha de trabalho,
situa-se um capítulo de autoria de Cynthia de
Souza (1998) “Fragmentos de histórias devida
e de formação de professoras paulistas”, no qual
ela apresenta resultados de uma pesquisa base-
ada em entrevistas com uma centena de mulhe-
res pertencentes a estratos médios urbanos, cujo
objetivo foi o analisar a escolha do magistério
como profissão, por meio do resgate de aspec-
tos de sua memória familiar e profissional.
O livro Identidade do professor no enve-
lhecimento (Stano, 2001b) também elege a ques-
tão da identidade, com o objetivo de investigar
como o exercício profissional determina, colabora
e marca a qualidade do envelhecimento dos pro-
fessores. Nesse sentido, ouvindo as histórias de
vida de docentes aposentados, procura captar o
que restou, o que tem determinado sua forma de
viver a velhice, como produto de singularidades
históricas e culturais. Pelas narrativas, foi possível
observar a correspondência assegurada pelo
habitus entre o antes e o depois, já que, uma vez
afastado da escola e de todo o grupo de profis-
sionais correspondentes, mantém-se o conjunto
de práticas e modos incorporados durante o exer-
cício profissional. Os professores elaboraram o
seu envelhecer mantendo o tempo de seu ‘ser-pro-
fessor’ por meio de contatos com os alunos ex-
alunos/novos alunos. Quando perguntados sobre
qual a sua profissão, respondem: sou professor
aposentado, evitando, segundo a autora, a ‘dis-
sociação do Eu’ na aposentadoria e assegurando
um envelhecer professoral.
Sob esse ângulo, o livro de Isabel M. Bello
(2002), Formação, profissionalidade e prática do-
cente19 , pode complementar-se com o de Rita
Stano ao investigar a profissão tomando por base
os ciclos de vida profissional (Huberman, 1992).
Nele, ela analisa, a partir do ponto de vista das
professoras, comportamentos, destrezas, atitudes e
valores necessários à formação profissional por
meio das histórias de vida de três professoras por
ela entrevistadas. Visa, com isso, à compreensão de
aspectos da formação e da profissionalização do-
cente. Do ponto de vista dos ciclos de vida, Bello
se detém em fases que antecipam aquela contem-
plada por Stano (2001a e 2001b), quando os pro-
fessores já não estão mais na profissão, mas ain-
da se sentem e se vêem como professores.
As questões da profissionalização e da
formação foram contempladas, sob outros pris-
mas, em outros livros publicados no período
em análise, alguns focalizando a prática peda-
gógica dos professores com vistas à sua trans-
formação, outros, o autoconhecimento e o co-
nhecimento sobre o professor, a constituição de
sua subjetividade e a formação.
Em uma perspectiva backtiniana, as ques-
tões da formação e da profissionalização foram
19. Originalmente o trabalho foi apresentado como dissertação de
mestrado na Universidade Paulista – UNIP.
20. A propósito dessa temática, cumpre registrar a tese de M. Catarina
Curi (2001), Memórias de leitura de professoras primárias no estado de São
Paulo: uma história leitura contada por professoras, defendida na PUC-SP.
398 Belmira BUENO et al. Histórias de vida e autobiografias na formação de professores...
tratadas em duas coletâneas que resultaram de
uma pesquisa conjunta sobre leitura e escrita de
professoras. Um deles é Histórias de professores
– leitura, escrita e pesquisa em educação, de
Sonia Kramer e Solange Jobim e Souza (1996), e
o outro, Narrativas de professoras: pesquisando
leitura e escrita numa perspectiva sócio-histórica,
de M. Teresa de Freitas (1998). Kramer e Souza
utilizam as histórias de vida como alternativa para
os estudos sobre a prática pedagógica, enfa-
tizando o papel do sujeito ativo e criativo e a
produção, por meio das narrativas, de um conhe-
cimento que se situe na encruzilhada de vários
saberes. A entrevista é como uma construção de
intertextos, e as falas, mais do que respostas, são
uma ação dialógica por meio da qual o sujeito
constrói e reconstrói sentidos. Freitas (1998), por
sua vez, busca saber como os professores lêem,
escrevem e como construíram essa relação ao lon-
go de suas vidas. O grupo considerou que os
efeitos do método autobiográfico se fizeram sen-
tir, tanto para aquele que narra, organizando suas
experiências vividas e lhes atribuindo significado,
quanto para o pesquisador que, ao colher as en-
trevistas, com o pesquisado se identifica20 .
Próximo dessa temática é o livro de
Ana Chrystina Mignot e M. Teresa Santos Cu-
nha (2003), Práticas de memória docente, cujos
textos focalizam a escrita de professores e pro-
fessoras, visando enriquecer as discussões so-
bre as práticas de memória docente construídas
na e sobre a escola. A obra é organizada por
conjuntos de textos que contemplam, no pri-
meiro, a ‘escrita ordinária’ de professores, pro-
duzida sob os mais diferentes pretextos, que
permite perceber a escola como um espaço de
valorização da escrita e de busca de liberdade
de expressão21 . O segundo conjunto dedica-se
a textos que trabalham com a escrita autobio-
gráfica de docentes que “lançaram a mão da
escrita para registrar, reivindicar propor, resistir,
eternizar, enfim, a própria vida” (p. 13)22 .
Por outro lado, o trabalho organizado
por M. Helena Barreto Abrahão (2001) – Histó-
ria e histórias de vida. Destacados educadores fa-
zem a história da educação rio-grandense –,
além de trazer as histórias de vida de doze edu-
cadores, apresenta “elementos histórico-sociais
do contexto de inserção dessas histórias em seu
conjunto [...]” (p. 29). De acordo com António
Nóvoa, que escreveu o prefácio, esse livro não
se fecha apenas nos registros biográficos, na
medida em que os autores procuraram confron-
tos que iluminassem suas interpretações, assu-
mindo que a história de vida é sempre uma
‘construção’, na qual também participa o inves-
tigador. As três categorias que serviram de ma-
triz analítica para a análise e interpretação des-
sas histórias de vida — formação, vida pessoal/
profissional e construção de identidade — cons-
tituem, segundo ele, “os limites justos de uma
interpretação sensata” (p. 9).
Na categoria de trabalhos que relatam,
sobretudo, experiências de pesquisa/formação
fazendo uso do método autobiográfico e que
diferem, nesse sentido, dos trabalhos até aqui
descritos, foram localizados apenas três: as
duas coletâneas organizadas pelas coordenado-
ras do GEDOMGE-FEUSP: Docência, memória e
gênero: estudos sobre formação (Catani et al.,
1997) e A vida e o ofício dos professores: for-
mação contínua, autobiografia e pesquisa em
colaboração (Bueno et al., 1998); e o livro
Como nos tornamos professoras?, de Roseli
Cação Fontana (2000), cuja pesquisa aproxima-
se dessa perspectiva de trabalho.
As duas primeiras publicações resulta-
ram de um projeto de educação continuada de-
senvolvido pelo GEDOMGE, entre 1993 e 1997.
Dele participaram professoras (e alguns poucos
professores) da rede pública, por meio de um
trabalho que, ao fazer uso da escrita autobiográ-
fica, teve por objetivo levar os professores a
compreenderem e a se apropriarem de sua pró-
pria história. Docência, memória e gênero, como
indica o nome do grupo, constituíram-se no
21. De certo modo, essa tese contraria as conclusões de Kramer; Souza
(1996), que afirmam, a partir das entrevistas, que a escola parece atuar
mais na formação do não-leitor do que na do leitor.
22. O livro organizado por Celso Martinazzo (2000) – Histórias de vida
de professores: formação, experiências e práticas – é outra coletânea com
a história de lembranças, experiências e momentos marcantes da vida de
um grupo de professores, porém, pouco analítico, quase meros relatos.
399Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 385-410, maio/ago. 2006
tríplice foco de trabalho, que se vale da leitura
da obra memorialística de Elias Canetti, A língua
absolvida, como pretexto para a produção auto-
biográfica das professoras. No capítulo “História,
memória e autobiografia na pesquisa educacio-
nal e na formação”, as autoras dão ênfase, de
um lado, à vertente de investigação que o mé-
todo autobiográfico suscitou na experiência de
formação; de outro, o potencial trazido pelo
trabalho da memória e da contramemóriano
campo da profissão docente. A outra coletânea,
A vida e o ofício dos professores, traz novos
resultados da pesquisa, tanto do ponto de vista
teórico como das práticas de formação desen-
volvidas pelo grupo. A segunda parte do livro
inclui os textos dos onze professores, que che-
garam até o final da experiência, como forma de
explicitar mais autenticamente os resultados
desse projeto de pesquisa/formação e de produ-
ção de (auto)conhecimento por parte do grupo.
O trabalho de Roseli Cação Fontana
(2000), Como nos tornamos professoras?, é
fruto da transcrição das discussões de um gru-
po de estudos e de pesquisa que durante dois
anos se reuniu na qualidade de professoras-
pesquisadoras, com o propósito de investigar a
própria condição profissional. O grande inves-
timento do estudo concentrou-se na análise
das características do trabalho docente em seu
fazer cotidiano. As histórias de vida aparecem
de forma complementar para esclarecer um dos
aspectos – a escolha da profissão – presentes
na análise da constituição do ser profissional.
O relato de seis professoras entre 20 e 45 anos
de idade é oportunidade para trazer à tona
alguns dos principais temas presentes na ques-
tão da escolha da profissão docente, tais como:
dom, vocação, adesão/identificação, aprendiza-
do, aprendizado com o outro.
Os periódicos
Se nos anos de 1990 assistimos a um
período de expansão e incremento dos estudos
sobre educação que recorrem às histórias de
vida/autobiografias, tal como ficou patente na
produção de pesquisas de pós-graduação e nos
livros (considerando-se que a maior parte são
coletâneas e como tal contou com a participa-
ção de vários autores), isso não significa que o
número de artigos em periódicos científicos te-
nha acompanhado esse crescimento. A rarefação
de estudos com autobiografias/histórias de vida
veiculados pelas revistas, tal como já registrada
a propósito da década anterior, permanece pra-
ticamente a mesma, embora em números abso-
lutos tenha havido um crescimento.
Entre os anos de 1990-1993, seguindo
a mesma tendência dos trabalhos de pós-gradu-
ação e livros, as produções veiculadas nos pe-
riódicos se espraiam em temas que contemplam
questões referentes a diferentes parcelas de pro-
fissionais do magistério, mas a tônica principal
dos investimentos parece ser a explicitação de
especificidades do trabalho e da profissão do-
cente. Coincidindo com a perspectiva evidenci-
ada nos anos de 1990, do interesse pelos estu-
dos sociohistóricos da profissão docente, a ten-
dência ao recurso às memórias/histórias de vida
parece afirmar-se nesse domínio pelo seu poten-
cial de conhecimento/pesquisa.
Em quatro artigos publicados, apare-
cem trabalhos representativos dos estudos
sociohistóricos da educação. Dois deles, já re-
feridos anteriormente, foram publicados no
início dos anos de 1990: o de Lea Paixão
(1991), sobre antigas professoras primárias
mineiras que trabalharam entre 1924 e 1938,
em Educação em Revista; e o de Zeila Demartini
e Fátima Antunes (1993), sobre o magistério
primário como profissão para as mulheres e
carreira para os homens, nos Cadernos de Pes-
quisa. Além desses, figuram outros dois artigos
publicados por Educação e Realidade e Educa-
ção em Revista, ambos em 1994. O primeiro, de
Rosa M. Silveira (1994), traz uma análise da
obra de Helena Morley, Minha vida de menina,
no qual ela examina a representação da figura
do professor no final do século XIX e enfatiza
aspectos tais como a ambivalência profissio-
nalismo/proletarização, feminização do magis-
tério, saberes docentes, entre outros, ainda que
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400 Belmira BUENO et al. Histórias de vida e autobiografias na formação de professores...
o interesse maior recaia sobre as condições
sociohistóricas nas quais a obra literária é pro-
duzida. O outro artigo, de M. de Fátima Fortes
(1994), examina características da escola rural
mineira do início do século XX (1918-1939), a
partir do depoimento de 12 professoras de ori-
gens sociais diferenciadas, que nasceram em
diversos pontos do estado entre 1898 e 1920.
Esses depoimentos foram selecionados entre os
35 utilizados na pesquisa “Trajetórias escolares
e profissionais de professoras primárias minei-
ras que iniciaram carreira antes de 1940”, co-
ordenada por Lea Paixão.
Ao lado dessa tendência, aparece nos
periódicos analisados uma outra vertente de es-
tudos autobiográficos, representada notada-
mente pelos trabalhos do GEDOMGE. Esses
textos explicitam as concepções do grupo na
perspectiva da pesquisa/formação, tratadas sob
diferentes focos em cada um dos três textos
publicados. O primeiro deles, que leva o título
homônimo do grupo, foi publicado na revista
Psicologia USP, em um número temático sobre
memória (Bueno et al., 1993). Nele, as autoras
buscam analisar os fundamentos teóricos e as
potencialidades práticas de formação de pro-
fessores, baseados em interpretações autobio-
gráficas e relatos de formação intelectual. Abor-
dam também questões teóricas relativas à me-
mória individual e coletiva, aos processos tra-
dicionais de educação docente e aos estudos
sobre gênero, em especial sobre a condição
feminina e o trabalho do magistério, destacan-
do a fecundidade da proposta de criação de
uma contramemória profissional, mediante a
produção de autobiografias e relatos no proces-
so de formação continuada de professores. No
segundo texto — “Memória e autobiografia:
formação de mulheres e formação de professo-
ras” (Sousa et al., 1996) — publicado na Revista
Brasileira de Educação, as análises incidem
sobre especificidades, constituição e recupera-
ção da memória individual e da memória femi-
nina, buscando examinar os vestígios e as con-
figurações dessas especificidades em relatos de
mulheres professoras a respeito de suas expe-
riências de vida. A partir daí, enunciam-se algu-
mas possibilidades novas acerca das relações pe-
dagógicas e dos processos de formação escolar.
Em “O amor dos começos: por uma história das
relações com a escola” (Catani; Bueno; Sousa,
2000), publicado nos Cadernos de Pesquisa, as
autoras buscam explicitar e discutir, também
com base em relatos autobiográficos escritos, as
peculiaridades das relações que os indivíduos
(homens e mulheres, alunos e professores) man-
têm com a escola e com as diferentes discipli-
nas, assim como os significados dessas relações
em histórias de escolarização e na formação da
identidade dos professores. O objetivo, como
nos textos anteriores, é o de propor novas
modalidades de formação que estimulem dispo-
sições favoráveis ao conhecimento.
Outra temática, baseada em estudos
com histórias de vida que também se fez repre-
sentar nos periódicos, tem como foco a leitu-
ra e escrita de professores. Dois desses artigos
foram publicados por Sônia Kramer, pesquisa-
dora da Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro — PUC-RJ —, na linha de trabalho
que desenvolve desde 1993, com base nas te-
orias de Walter Benjamin e Bakhtin, tal como já
referido a propósito do livro Histórias de pro-
fessores: leitura, escrita e pesquisa em educa-
ção (Kramer; Souza, 1996). O artigo veiculado
em Cadernos de Pesquisa procura analisar ex-
periências de leitura e escrita de professores,
tecidas ao longo de suas histórias de vida e
trabalho, abordando o processo de construção
de conhecimento, para compreender como foi
construída sua relação com a escrita e de que
forma essa relação influencia a prática escolar
(Kramer, 1999). No texto seguinte, que apare-
ce em Educação em Revista, a autora apresen-
ta uma síntese da produção de seu grupo de
pesquisa, retomando a temática em torno da
qual o grupo se articulou ao longo da década
de 1990 (Kramer, 2000). Um pouco antes, em
1998, esse mesmo periódico publicou um arti-
go de Antonio Augusto Batista (1998), pesqui-
sador da UFMG. O texto trata das relações de
professores de Português com a leitura, base-
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401Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 385-410, maio/ago. 2006
ada em estudos de sociologiada educação, da
família e das práticas culturais. Nele, o autor
analisa práticas de leitura docente, baseando-se
em dados coletados por meio de vários instru-
mentos, entre os quais: as lembranças redigidas
por docentes a respeito de seu processo de
formação como leitores.
A questão da identidade, tão recorren-
te nos trabalhos de pós-graduação e nos livros,
apareceu de modo reduzido nas revistas. Ape-
nas três artigos foram localizados: um deles na
Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos; o
outro em Educação em Revista; e o terceiro na
Revista Brasileira de Educação. Lea Paixão
(1995), em seu artigo “Cátedra e hegemonia da
prática docente na Faculdade de Medicina da
Universidade Federal de Minas Gerais”, examina a
identidade social dos biólogos a partir de depo-
imentos de professores, ex-professores e ex-alu-
nos, mostrando os conflitos e as tensões que se
articularam à emergência e institucionalização da
biologia como disciplina acadêmica no currículo
daquela escola de medicina. No segundo texto,
Anna Maria Caldeira (2000) utiliza fragmentos
da história de vida de uma professora de ori-
gem rural, que lecionava em uma escola pública
de Barcelona, como recurso para compreender
o processo de constituição de sua identidade.
A história é recolhida no âmbito de um estudo
etnográfico, no qual a pesquisadora focaliza a
prática pedagógica da professora. Consideran-
do os contextos em que essa identidade é for-
jada, ela mostra que seus traços constitutivos
foram construídos e reconstruídos ao longo de
sua profissionalização, desde o momento da es-
colha da profissão e da formação inicial até a
inserção e prática profissionais. Com base nesse
estudo, Caldeira afirma que a construção da
identidade não pode ser vista como um proces-
so atemporal, permanente e estável. O terceiro
texto, publicado na Revista Brasileira de Educa-
ção, é de autoria de Isabel Lelis (2001). O tema
é a identidade social do magistério, para cuja
análise a autora se vale de histórias de vida de
professoras do Rio de Janeiro que atuam em
escolas públicas e privadas do ensino funda-
mental. Com base nas narrativas, Lelis analisou
a trajetória social e instrucional das professo-
ras, considerando vários aspectos, dentre os
quais: suas famílias de origem e identidade
social, a retórica da missão do sacerdócio e da
vocação, as questões de gênero como uma
categoria importante para compreender a en-
trada na profissão (que deve ser articulada a
classe social, etnia e geração).
De caráter exclusivamente teórico-me-
todológico, versando sobre histórias de vida e
autobiografias, são dois os artigos publicados
por Educação e Pesquisa, um em 1999 e o
outro em 2002. O primeiro é de autoria de
Marie-Chistine Josso (1999), pesquisadora da
Universidade de Genebra, que oferece um am-
plo panorama europeu e internacional de auto-
res que desenvolveram pesquisas nesse campo,
cuja exposição se faz a partir de seu próprio
percurso em direção às histórias de vida. Nele,
Josso busca distinguir as “histórias de vida
como projeto de conhecimento das perspecti-
vas biográficas temáticas a serviço de projetos
específicos”. O outro texto examina as relações
entre o método autobiográfico e os estudos
com histórias de vida de professores, com des-
taque para a questão da subjetividade (Bueno,
2002). O texto também apresenta uma visão
geral sobre os vários usos que, na década de
1990, vinham se fazendo dos estudos com au-
tobiografias e histórias de vida, baseada em co-
letâneas organizadas por Nóvoa (1992a; 1992b)
e Goodson (1992).
O tema da profissão e profissionalização
dos professores apareceu em apenas dois artigos.
Derivados de uma pesquisa que investigou a
evasão de professores da escola pública em São
Paulo, no período de 1990-1995, ambos to-
mam por base as histórias de vida profissional
de 16 professores, para examinar a questão do
abandono da profissão e o desencanto dos
professores com a escola pública, sob dois
focos. O primeiro texto, publicado na revista
Psicologia USP, examina os vínculos e as rup-
turas com o trabalho docente, a partir de con-
siderações sobre o sentido do trabalho, do
402 Belmira BUENO et al. Histórias de vida e autobiografias na formação de professores...
ponto de vista social, psicológico, pessoal
(Lapo; Bueno, 2002). No outro, publicado nos
Cadernos de Pesquisa, o foco recai sobre as
trajetórias e circunstâncias que levaram o gru-
po de docentes em estudo a deixar a escola
pública e/ou a própria profissão. Ao analisarem
as etapas que caracterizam o processo de aban-
dono, as análises chamam a atenção para o
estresse e o burnout que acometem os profes-
sores em tais processos (Lapo; Bueno, 2003).
Um único texto examinou o desenvolvi-
mento profissional do professor, um tema até
então não identificado em outros estudos. Publi-
cado na Revista Brasileira de Educação, o autor
recorre à história de vida de uma professora de
matemática, como metodologia de pesquisa, para
identificar as percepções dos professores sobre as
mudanças que ocorreram em seu pensamento e/
ou prática ao longo dos anos, focalizando tam-
bém suas percepções a respeito de experiências
e/ou desafios que poderiam tê-los influenciado
nessas mudanças (Polettini, 1998).
Finalmente, cabe mencionar três textos
que tratam de temas esparsos e nos quais as
histórias de vida ou narrativas biográficas foram
utilizadas de modo tangencial. Um deles apa-
receu na Revista Brasileira de Estudos Pedagó-
gicos; outro, nos Cadernos de Pesquisa; e o
terceiro, em Educação e Realidade, tratando sua
autoras respectivamente dos seguintes temas:
Yolanda Lôbo (1996), da trajetória de vida e de
formação de Cecília Meireles, com destaque
para sua tese “O espírito vitorioso”, apresenta-
da ao concurso que prestou na Escola Normal
do Distrito Federal; M. Isabel Cunha (1996), de
experiências inovadoras de ensino de professo-
res universitários, com base em depoimentos e
com ênfase sobre seus sistemas de valores,
representações e símbolos culturais, inclusive os
de caráter afetivo; e Nádia Souza (2000), sobre
representações de corpo-identidade, em uma
perspectiva foucaultiana. Na pesquisa, essa
autora se vale, entre outras estratégias, de fo-
tos e narrativas de professores e professoras de
biologia para levá-los a falar sobre as práticas
vivenciadas em suas famílias e as implicações
destas na produção dos seus corpos-identida-
des. É relevante observar os pontos de conta-
to entre esse estudo e a dissertação de Gercina
Santana Novaes (1995), O corpo da aprendiza-
gem: um estudo sobre representações de cor-
po de professoras da pré-escola, na qual a
autora investiga, no âmbito de um estudo
etnográfico combinado com memórias, as re-
presentações de corpo de professoras da pré-
escola, cujo propósito foi o de analisar os sig-
nificados dessas representações para as ações
pedagógicas desenvolvidas nas aulas, bem
como buscar os movimentos de constituição e
(re)produção dessas representações.
Considerações finais
O exame realizado nesta revisão, con-
templando o uso das autobiografias e históri-
as de vida em investigações sobre formação de
professores e profissão docente, permitiu che-
gar a algumas conclusões. A primeira, e certa-
mente a mais importante, é que a intensificação
de tais metodologias aqui no Brasil, sobretudo a
partir dos anos de 1990, contribuiu para reno-
var a pesquisa educacional sob vários aspectos,
notadamente no que diz respeito à pesquisa e à
formação de professores, fazendo aflorar o inte-
resse por questões e temáticas novas, tais como
as que se configuram nos estudos sobre profis-
são, profissionalização e identidades docentes.
Embora as principais características da produção
analisada tenham sido apontadas ao longo do
texto, algumas serão retomadas aqui com vistas
a comentar alguns aspectos lacunares, a partir
das quais gostaríamos de oferecer algumas indi-
cações para futuros estudos da área.
O fato de termos trabalhado com várias
fontes impediu que as análises descessem a
muitos detalhes, mas por outro lado veio a favo-
recer uma série de aspectos.Primeiramente, o fato
de permitir uma visão simultaneamente quantita-
tiva e qualitativa dos trabalhos, possibilitando
identificar o espraiamento dos estudos pelas re-
23. Dados do levantamento feito em 2002 (Bueno; Catani, 2002).
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403Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 385-410, maio/ago. 2006
giões e universidades do país, o crescimento ao
longo dos anos, as características e diversidade
dos trabalhos, a partir das quais se constatou o
traço principal: a enorme dispersão dessa produ-
ção. Foi também possível verificar que houve um
desequilíbrio nas formas de divulgação e circula-
ção das pesquisas. Considerando-se o número de
trabalhos defendidos nas pós-graduações e os
trabalhos apresentados em congressos23 no perí-
odo, verifica-se que apenas uma parte dessa pro-
dução foi publicada em livros, a maioria coletâ-
neas e, de forma mais rarefeita, como artigos em
periódicos científicos. Ao se considerar que mui-
tos dos livros, capítulos de livros e artigos resul-
taram de trabalhos de grupos de pesquisas e não
de teses e dissertações, tem-se ainda mais claro
que os trabalhos gerados pelos programas de pós-
graduação ficaram circunscritos a um nível limi-
tado de divulgação.
Disso talvez resulte uma outra caracte-
rística dos trabalhos analisados: a quase abso-
luta ausência de diálogo das pesquisas com as
produções da área, em muitos casos, sem se
considerar os resultados dos trabalhos produ-
zidos na própria instituição do pesquisador. Em
vista disso, não causou tanta estranheza que
boa parcela deles não faça referência a proje-
tos sobre formação e profissionalização docente
que, em plano nacional e internacional, vêm
sendo desenvolvidos em países vizinhos. Colo-
car os professores no centro dos debates não
foi uma idéia que surgiu aqui por acaso, pois
está contida há mais de uma década nas refor-
mas que propugnam pela redefinição de seu
perfil e pela construção de ‘um novo professor’.
Alguns autores de países diversos chegam até
mesmo a sugerir uma ‘reinvenção da profissão
docente’24 . Tudo isso, certamente, faz com que
as expectativas que pesam sobre esse profissi-
onal se tornem ainda maiores. Por isso, não se
pode tomar as autobiografias sem maiores cui-
dados, como se fossem panacéias que por si só
podem transformar os professores e as escolas.
O quer se quer dizer com isso é que não
basta dialogar apenas com trabalhos que tenham
utilizado as mesmas abordagens metodológicas.
Faz-se também necessária uma interlocução com
as produções de outros contextos, indo além
dos teóricos da Europa e América do Norte. Pela
similaridade das problemáticas educacionais e
das reformas que se acham em curso nos países
da América Latina/Caribe, é desejável que as
questões propostas aqui estejam também a elas
referenciadas. Mais ainda quando se trabalha
com memórias e narrativas e se advoga que as
autobiografias favorecem ao sujeito uma apro-
priação de sua própria história, que é não ape-
nas individual, mas também coletiva. Poderíamos
nos perguntar, que história coletiva é essa, hoje?
Talvez seja esse um dos caminhos férteis para se
discutir e problematizar a questão das identida-
des/auteridades.
Outra marca que se ressalta no exame dos
trabalhos analisados é a imprecisão conceitual. A
despeito de muitos pesquisadores esclarecerem o
sentido dos termos empregados, as imprecisões
terminológicas persistem no conjunto da produção,
por duas razões interligadas: primeiro, devido à
enorme diversidade de expressões empregadas,
muitas das quais utilizadas como sinônimos, como
se houvesse um consenso a esse respeito25 ; de-
pois, pelo fato de haver uma tácita desconsideração
pela própria história das histórias de vida, suas ori-
gens, seus avanços, seus recuos, bem como sobre
as concepções e os usos que delas se fazem hoje
em diferentes campos – na história, sociologia, an-
tropologia, psicologia, literatura, além de outras26 .
Disso resulta que os pressupostos das perspectivas
24. Mello; Rego (2004), ao se referirem a esse discurso, mencionam
autores de vários países – Portugal, Brasil, Argentina, Espanha, França –
dentre os que reiteram e endossam tais idéias.
25. Gostaríamos de remeter o leitor para o texto de Gaston Pineau, no
qual ele faz um mapeamento de expressões utilizadas por diferentes auto-
res, tomando como entrada a palavra vida (biografia, autobiografia etc.).
Sua lista não contempla, portanto, muitas das expressões e denominações
que encontramos nos trabalhos analisados nesta revisão.
26. Ver, por exemplo, a relação de obras e autores que constam no final
de duas coletâneas: a de Olga von Simson (1988), Experimentos com
histórias de vida, e a organizada por Nóvoa e Finger (1988), O método
autobiográfico e a formação. É também oportuno mencionar dois trabalhos
em que as autoras oferecem contribuições valiosas, sobre o trabalho
conceitual aqui indicado, ao descreverem seus percursos teóricos no tra-
balho com histórias de vida. São eles: “História de vida e projeto: a história
de vida como projeto e as ‘histórias de vida’ a serviço de projetos”, de
Christine Josso (1999); e “Autobiografias, pesquisa histórico-sociológica
e educação”, de Zeila Demartini (2005).
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404 Belmira BUENO et al. Histórias de vida e autobiografias na formação de professores...
adotadas nos trabalhos nem sempre se fazem ex-
plícitos, ao contrário, aparecem muitas vezes am-
bíguos e até contraditórios. Contribui com isso a
liberalidade com que são feitas as apropriações te-
óricas, nem sempre com os cuidados que o trans-
porte de conceitos de uma área para a outra requer.
Desse modo, se por um lado pode-se admitir que
essa liberalidade é indicativa de uma revitalização
da área da Educação, que não pode sobreviver
nem crescer sem empréstimos conceituais, de outro
lado, deve ser vista como um alerta contra abusos
e descuidos que, contrariamente, acabam por
fragilizar a área e tornar os resultados das pesqui-
sas pouco confiáveis ou valiosos.
Nessa mesma direção, deve-se acrescen-
tar uma questão complementar às formas de
apropriação dos procedimentos autobiográficos,
que diz respeito às narrativas em primeira pessoa
– muito presentes em dissertações e livros –, em
geral utilizadas para ilustrar, exemplificar, contar,
oferecer depoimentos sobre a formação e a tra-
jetória profissional de professores. Esses trabalhos,
que possuem o mérito de fazer ecoar as vozes dos
sujeitos, atores do campo educacional, terminam
por se constituir em um rol de casos isolados,
abertos a interpretações sem fim, à espera de que
os leitores cheguem, por si mesmos, à já clássica
afirmação de Ferrarotti, a de que
[...] o nosso sistema social encontra-se integral-
mente em cada um dos nossos atos, em cada um
dos nossos sonhos, delírios, obras, comportamentos.
E a história deste sistema está contida por inteiro
na história da nossa vida individual. (1988, p. 26)
Talvez, o aprofundamento sobre esses
aspectos, notadamente sobre as apropriações
conceituais e uma definição mais precisa dos
referenciais teóricos e procedimentos de pes-
quisa e de formação pertinentes ao campo das
autobiografias e histórias de vida, possa auxi-
liar na indicação dos percursos a seguir, para
proceder a apropriações sem que com isso se
esteja a reinventar os autores a cada momen-
to, transformando as potencialidades em limi-
tações. Essa não é uma questão simples, mais
ainda quando se pretende sustentar que as
narrativas em primeira pessoa são modalidades
férteis para a educação e a formação.
Uma outra constatação a que se chegou
é que a despeito da enorme diversidade de usos
que os trabalhos exibem, paradoxalmente, o que se
observa é a prevalência de um modelo único, de
vez que caracterizado quase que exclusivamente
pelo modelo das histórias de vida ‘a serviço de
projetos’, para usar a expressão de Christine Josso
(1999). Na modalidade pesquisa/formação, além
dos trabalhos de nossa autoria, realizados na ver-
tente do ‘processo

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