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AGROECOLOGIA MILITANTE

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AGROECOLOGIA MILITANTE
Contribuições de Enio Guterres
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AGROECOLOGIA MILITANTE
Contribuições de Enio Guterres
EDITORA
EXPRESSÃO POPULAR
Ivani Guterres
1ª edição
2006
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Copyright © 2006, by Editora Expressão Popular
Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho e Maitê Carvalho Casacchi
Projeto gráfico e capa: ZAP Design
Diagramação: Mariana Vieira de Andrade
Impressão e acabamento: Cromosete
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada
ou reproduzida sem a autorização da editora.
1ª edição: dezembro de 2006
EDITORA EXPRESSÃO POPULAR
Rua Abolição, 266 - Bela Vista
CEP 01319-010 – São Paulo-SP
Fone/Fax: (11) 3112-0941
vendas@expressaopopular.com.br
www.expressaopopular.com.br
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Sumário
APRESENTAÇÃO ....................................................................................................... 7
TRIBUTO AO COMPANHEIRO ENIO GUTERRES ............................................. 9
PERDEMOS UM COMPANHEIRO, GANHAMOS UM DESAFIO ................... 13
1. OS CAMINHOS DA TRANSIÇÃO – a longa passagem da agricultura química
para a agricultura camponesa ecológica ................................................................... 17
2. SECA NO RIO GRANDE DO SUL – quem são os responsáveis? ........................ 29
3. MONOCULTURA DA SOJA – riqueza para alguns, crise e miséria para a maioria ... 37
4. QUEM VAI COMER A SOJA ENVENENADA? ................................................ 45
5. BIODIESEL – oportunidade para a agricultura camponesa ................................... 47
6. TECNOLOGIAS APROPRIADAS ....................................................................... 49
7. SOBERANIA ALIMENTAR, BIODIVERSIDADE E
DIVERSIDADE CULTURAL ............................................................................... 53
8. AGRICULTURA CAMPONESA X AGRICULTURA IMPERIALISTA ............. 73
9. BASES TEÓRICAS E EPISTEMOLÓGICAS DA AGROECOLOGIA
A PARTIR DA SOCIOLOGIA RURAL ................................................................ 91
10. NIM (Azadirachta indica) ..................................................................................... 97
11. ASSISTÊNCIA TÉCNICA E EXTENSÃO RURAL PARA O PLANTIO
CAMPONÊS .......................................................................................................... 99
12. A MOTIVAÇÃO DOS CAMPONESES PARA O DESENVOLVIMENTO
RURAL SUSTENTÁVEL (a partir do conhecimento local) ................................ 131
13. PLANEJAMENTO – Quem não sabe onde quer chegar não chega lá nunca .... 135
14. A FORMAÇÃO DO MTD (Movimento dos Trabalhadores Desempregados)
no Rio Grande do Sul e o primeiro assentamento rururbano ............................... 145
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O lançamento deste livro, contendo textos referentes a ecolo-
gia, transgênicos, biodiesel, agroecologia e organizações sociais,
antecipou-se ao falecimento de Enio Guterres (1961-2005), uma
pessoa muito especial que tive a felicidade de conhecer, com quem
convivi durante mais de 21 anos e com quem tive dois filhos, André
Vinícius e Jamile.
Enio teve um imenso amor pela vida e um grande respeito pelo
seu semelhante. Por isso, acreditou que poderia sonhar e ajudar na
construção de um mundo melhor, dividindo esse sonho com mui-
tas pessoas, que o ajudaram na busca dessa realização.
Enio sonhou com um mundo mais justo e humano, onde fosse
possível compartilhar amor, experiências, conhecimentos e que atra-
vés da organização de ações, pudéssemos mais facilmente modifi-
car o presente e construir um futuro melhor. Também acreditava que
as crenças que temos sobre nós mesmos determinam quem somos,
e foi através do seu trabalho que viu a possibilidade de concretizar
um sonho, o qual virou projeto de vida, tanto que se dedicou inte-
gralmente às questões ambientais e sociais, propondo-se a trabalhar
 APRESENTAÇÃO
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junto com os pequenos agricultores, ajudando a desenvolver a
sensibilização para a preservação do planeta.
A continuidade do seu trabalho se dará através daqueles que
acreditaram e tiverem um convívio mais equilibrado e harmonioso
com a natureza e toda a criação, transmitindo assim uma aborda-
gem de compreensão e respeito em face do universo.
Ivani Guterres
Agosto de 2005
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A Via Campesina gaúcha, do Brasil e internacional perdeu um
grande companheiro. Um quadro exemplar. Parece se cumprir a
triste sina de que, “a gente só dá o devido valor depois que se per-
de”.
Enio Guterrez foi um quadro exemplar da Via Campesina. Suas
contribuições ajudaram não só a Via Campesina gaúcha e brasilei-
ra, mas também a Via Campesina internacional, com suas reflexões
e preocupações que foram utilizadas em vários espaços e instâncias.
Ele desenvolveu qualidades fundamentais, que nos deixou como
exemplo e legado. Uniu o critério da preocupação científica, de es-
tudar, de pesquisar, com a militância social, de sempre estar ao lado
e junto com os trabalhadores rurais, com os camponeses.
Criterioso nas suas preocupações, sempre esteve antenado com
os desafios que o capitalismo, agora em sua fase internacional, im-
punha aos camponeses, seja no Rio Grande do Sul, seja em todas as
partes do mundo.
Dedicado ao estudo, aproveitou os contatos, os professores e o
ambiente acadêmico do seu mestrado na Espanha para ampliar o
TRIBUTO AO COMPANHEIRO ENIO GUTERRES
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intercâmbio entre os movimentos e o debate sobre os dilemas que
as novas formas de atuação do capitalismo internacional criava en-
tre os camponeses.
E contribuiu muito com seus escritos e debates para entender-
mos a natureza desses dilemas e sobretudo as formas de enfrentá-
los, enquanto classe. Os leitores vão perceber pelos artigos e ensaios
que estão nesse livro quais eram suas preocupações. Vejam que to-
dos os temas estão à frente, no tempo e na luta de classes. Enio nos
ajudou a combater os transgênicos, nos alertou sobre a importân-
cia da soberania alimentar, sobre a importância de defender e pre-
servar a biodiversidade combinada com as atividades de produção
agrícola.
Refletia sobre a necessidade de adequar as técnicas de produção
agrícola com a produção de alimentos saudáveis e com o equilíbrio
do meio ambiente, do qual todos fazemos parte. Discorreu sobre a
importância do biodiesel e de adequar a mecanização agrícola a es-
calas necessárias para os camponeses e para o meio ambiente.
Enio foi, a seu modo, um cientista militante. Enio foi acima de
tudo um militante comprometido com o povo brasileiro e com os
camponeses.
Enio foi um grande pedagogo. Estudioso e conhecedor em pro-
fundidade dos temas a que se dedicava, nunca usou da arrogância
do saber, mas usou a sabedoria para ensinar com mais clareza os
demais. E tinha uma paciência camponesa, de explicar com o mes-
mo afinco e atenção para o deputado e para o assentado, lá na base.
Enio foi o verdadeiro “agrônomo pé-no-chão”, da tradição re-
volucionária, de transformar o meio rural numa sociedade mais justa
e fraterna. E de transformar a produção agrícola numa atividade
prazerosa, adequada à preservação do meio ambiente, priorizando
a produção de alimentos saudáveis para nosso povo.
Pagou com a vida a irracionalidade de nosso sistema de trans-
porte. Mas deixou um grande legado. Deixou seu exemplo de mili-
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tante. Deixou-nos a obrigação de segui-lo, na preocupação do estu-
do, da pesquisa, de colocar os conhecimentos científicos e as técni-
cas a serviço do bem-estar dos trabalhadores, e não apenas paraexplorá-los, como faz o capitalismo.
Espero que o registro histórico das contribuições do Enio nos
anime, a todos e a todas, a seguir seu exemplo: estudo, militância e
dedicação aos camponeses! Será a melhor maneira de homenageá-lo.
João Pedro Stedile
Pela Via Campesina do Brasil
Agosto de 2005
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PERDEMOS UM COMPANHEIRO,
GANHAMOS UM DESAFIO
A notícia chegou-nos como um petardo. “O senhor Enio
Guterres sofreu um acidente de carro e está em estado grave no
Pronto Socorro.” Corremos feito doidos e quando conseguimos
chegar ao setor de traumatologia o que ouvimos desmontou-nos por
completo. “O acidente foi grave e o senhor Enio já chegou aqui com
parada cardíaca. Não pudemos fazer mais nada.”
Uma carreta Volvo, numa ultrapassagem perigosa e proibida,
colheu de frente o Gol que Enio dirigia, tirando-lhe a vida. Perdía-
mos ali uma pessoa singular.
Os filhos perdiam um pai exemplar. A esposa perdia não só o
amor de sua vida, mas o marido dedicado e atencioso. Os parentes
perdiam um irmão, primo, cunhado, genro amigo e estimado. A mãe
perdia o filho dileto.
Todos nós perdemos um amigo, uma pessoa séria – e ao mesmo
tempo alegre –, alguém de fácil convivência e incapaz de uma pala-
vra dura ou ofensiva. E todos perdemos um técnico competente,
estudioso, preparado, disciplinado e dedicado à causa do povo.
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Enio fizera uma opção de classe muito clara ainda no tempo de
estudante de agronomia na Universidade Federal de Santa Maria.
Depois de formado, passou em concurso público e foi trabalhar na
Emater/RS. Dela foi demitido pelo governador Antônio Britto
quando manifestou publicamente sua opção pelo Partido dos Tra-
balhadores.
Trabalhou nas lavouras da família em Coronel Bicaco (RS) – pois
não conseguiu emprego após ser demitido pela Emater – até que foi
convidado a assessorar tecnicamente o recém-fundado Movimento
dos Pequenos Agricultores (MPA). Enio ajudara a fundar o MPA
em seu município e chamara a atenção como técnico e como
pedagogo popular.
A partir de 1997, Enio integrou-se na construção do MPA como
assessor técnico, trabalhando em Cruzeiro do Sul e percorrendo todo
o Estado. Em 1998, é escolhido para fazer parte da assessoria técni-
ca do PT na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, mas não
se desvincula de seu trabalho junto aos pequenos agricultores.
Com a vitória de Olívio Dutra nas eleições para governador, Enio
passa a fazer parte da equipe que vai implantar o Programa de Re-
forma Agrária do governo popular, aí permanecendo pelos quatro
anos e conquistando respeito entre os assentados e militantes do
MST pela sua capacidade técnica e de diálogo. Nesse período, estu-
da e escreve sobre uma nova modalidade de assentamentos então
experimentada, o assentamento rururbano.
Em 2003, retorna como assessor técnico da Via Campesina,
compondo a equipe do gabinete parlamentar conquistado pela Via
Campesina na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul.
Nesse período, aprofunda seus estudos teóricos e práticos sobre
agroecologia, sementes crioulas, transição agroecológica,
transgênicos, agricultura camponesa, assistência técnica e energia de
biomassa. Estava preparando tese de mestrado para a Universidade
de Córdoba, Espanha, com o professor e pesquisador Eduardo Sevilla
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Gusmán, desenvolvendo a temática do método para a transição
agroecológica.
Por designação da Via Campesina, estava também na coorde-
nação de três importantes projetos em estudo nos Movimentos
Camponeses, que são a mecanização camponesa, a implantação de
projetos de biodiesel e a elaboração de um plano camponês coorde-
nado pelo MPA e Via Campesina nacional. Participou também de
encontros internacionais, representando a Via Campesina do Bra-
sil em atividades sobre soberania alimentar, transgênicos e comér-
cio internacional.
Seus 44 anos de vida intensa e bem vivida foram interrompidos
brutalmente quando voltava de um assentamento do MST em
Guaíba (RS), onde regular e disciplinadamente ia todas as quartas-
feiras colher dados para sua tese de mestrado e debater com os as-
sentados como estavam fazendo a transição de modelo tecnológico.
Unir teoria e prática era um traço marcante em sua maneira de ser
militante e intelectual. No dia seguinte, no dia em que o sepulta-
mos, estaria coordenando o lançamento de um trator popular de
tecnologia chinesa adequado à agricultura de pequeno porte.
Perdemos um amigo, um companheiro, um militante, um téc-
nico competente, mas ganhamos uma luz e um desafio novo. Con-
tinuar a luta pela qual ele tanto se doou e fazer viver neste país a
reforma agrária, a agricultura camponesa e o respeito aos que traba-
lham na terra.
Frei Sérgio Görgen
Maio de 2006
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1. OS CAMINHOS DA TRANSIÇÃO – a longa passagem
da agricultura química para a agricultura camponesa ecológica
Somos condenados a fazer o caminho caminhando, não raro na noite
escura, sem ver claramente a direção e sem poder identificar os empeci-
lhos. E precisamos crer e esperar que o caminho nos conduza a algum
lugar que seja bom para se morar e demorar nele.
Leonardo Boff
Nos espaços protegidos
Onde a “revolução verde” não entrou, não é preciso passar por
ela para depois sair, fazer a passagem, a transição. É preciso valori-
zar as práticas existentes e, através do diálogo, do debate, das trocas
de experiências, ampliá-las com os conhecimentos desenvolvidos
pela agroecologia nos últimos anos. As formas novas de incorpora-
ção de matéria orgânica através de plantas melhoradoras do solo, por
exemplo, ou a restrição e até a eliminação do uso do fogo, prática
tradicional na agricultura camponesa quando a terra era mais abun-
dante e a coivara era uma prática necessária.
Nos espaços protegidos, a agricultura camponesa aperfeiçoa-se das
práticas conservadas, valorizando a resistência e resgatando sementes
e raças ali preservadas e levando-as para as áreas e regiões onde a “re-
volução verde” devastou a biodiversidade e os saberes camponeses.
Começar pequeno
O que nasce grande é o monstro. O que é normal nasce pequeno.
Alguns se entusiasmam com a agroecologia e querem começar
tudo de uma vez e quebram a cara. Muitos técnicos, partidários da
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agroecologia, não conseguem pensar em termos de transição, de
passagem, de uma mudança de acordo com as condições reais da
vida do pequeno agricultor, e levam o camponês a tentar uma tran-
sição brusca. De um dia para outro, largar todas as práticas da “re-
volução verde” e praticar a agroecologia. A maioria dos casos resul-
tou em decepção e uma volta humilhante do agricultor a praticar
os meios da “revolução verde”.
Não podemos esquecer que a terra está contaminada e depen-
dente dos insumos químicos. Ao redor continuam as práticas da
monocultura e do uso intensivo de venenos. O pequeno agricul-
tor não é uma ilha. As práticas dos vizinhos afetam as suas. E
muitos conhecimentos básicos de uma agricultura diversificada,
ecológica e sem venenos foram esquecidos. E entre um prejuízo
insuportável para o pequeno agricultor e o uso de alguma técnica
ou insumo da “revolução verde”, ele não tem alternativas a não ser
continuar usando.
É preciso ir reforçando a partir de práticas concretas os elemen-
tos que diminuem a dependência e aumentam a autonomia do cam-
ponês na construção de um novo jeito de produzir na terra.
A insustentabilidade da agricultura química
Mas é importante também saber que a agricultura química das
multinacionais vai enfrentar uma crise brutal. Ela é uma agricultu-
ra petro-dependente, isto é, dependente demais do petróleo. A maior
parte dos adubos e venenos são fabricados com derivados de petró-
leo. E opetróleo está cada vez mais escasso e mais caro.
As monoculturas criam cada vez mais pragas e aumentam dra-
maticamente os problemas com insetos, fungos e ervas chamadas
“daninhas”. Isso aumenta custos e mesmo com os recursos da
transgenia, da clonagem, da mutagênese, de novos produtos quími-
cos, da adubação suplementar, esses problemas são amenizados por
alguns anos e depois voltam com mais força.
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As monoculturas atraem cada vez mais doenças nas plantas. Isso
é fruto do desequilíbrio do meio ambiente, da falta de biodiversidade,
do empobrecimento do solo. Nesse modelo, os problemas tornam-se
crônicos e sem solução dentro do arsenal de meios oferecidos pelo
instrumental técnico-científico da “revolução verde”. Essas doenças
são tratadas com meios químicos que aumentam os custos para o
agricultor na mesma medida em que diminuem a eficácia. E se isso
implica aumento de custos, está acrescentando insustentabilidade
econômica ao esgotamento tecnológico.
Os problemas só se acumularão para a agricultura das
multinacionais e os camponeses serão chamados pela sociedade
urbana para salvar a produção de alimentos com qualidade para todo
o povo depois do fracasso total da agricultura química.
PPPPPor onde começar?or onde começar?or onde começar?or onde começar?or onde começar?
Cresce dia-a-dia, entre os pequenos agricultores, a vontade de
sair da agricultura química, produzir sem venenos e sem adubos
químicos, adotar um modelo tecnológico de base ecológica. Mas
surgem muitas dúvidas e inseguranças. Alguns tentam e não dá certo.
Alguns procuram fazer uma passagem radical, mudar tudo de um
ano para o outro e muitas vezes dá tudo errado. Assim mesmo, ten-
ta-se de novo, pois a cada dia fica mais claro que no modelo da agri-
cultura química, controlada pelas multinacionais, não há lugar para
os pequenos. Os camponeses tendem mesmo a desaparecer.
Aí nos vêm duas perguntas-chave: como fazer a passagem de um
tipo de agricultura para a outra? E por onde começar?
Para andar mil quilômetros é preciso dar os primeiros passos.
Então, é preciso começar. Por pouco que seja, é preciso fazer, pois é
assim que se aprende, se acumula experiência, se adquire segurança.
Mas é preciso termos claro que se trata de uma passagem, um
processo de transição. Não é possível mudar num passo só. É preci-
so ir dando passos ano a ano. Por vários motivos:
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• a terra que usamos está contaminada por adubos químicos e
pelo uso de venenos;
• as sementes “melhoradas” pelas empresas multinacionais são
viciadas pelo pacote químico e substituí-las completamente é um
processo demorado;
• o meio ambiente, especialmente o solo, ao nosso redor está de-
sequilibrado, e os insetos, fungos e plantas concorrentes, indicadoras
(ditas “daninhas”), estão fora de controle;
• nós não temos recursos financeiros sobrando para arcar com
três, quatro anos de transição de uma agricultura para outra, ban-
cando eventuais prejuízos;
• não dispomos de conhecimentos suficientes que nos dêem se-
gurança para enfrentar todos os problemas e desafios que nos sur-
gem no dia-a-dia;
• não temos assistência técnica e pesquisa suficiente na área
agroecológica para acompanhar todos os pequenos agricultores que
iniciam um processo de passagem, de transição.
Por essas razões, é que precisamos ir construindo devagar o novo
jeito de produzir que vai trazer melhores condições de vida na roça
e a produção de alimentos saudáveis para os consumidores. Dar
passos lentos, mais firmes e seguros é melhor que correr, tropeçar e
cair. Esse é o nosso desafio.
Então, quais os passos iniciais que precisamos dar?
Recuperação e manejo do solo
A terra, o solo, é a base de tudo na agricultura e na pecuária. O
solo é um organismo vivo e cheio de vida. Da forma como for trata-
do, vai responder. Se for maltratado, vai produzir ervas daninhas, criar
fungos que vão atacar as plantas. Se for bem tratado, vai nos dar plantas
sadias, fortes e resistentes a eventuais ataques de doenças e pragas.
A agricultura química não se preocupa em tratar o solo. Ela se preo-
cupa em tratar a planta. Dá altas doses de adubo químico para a plan-
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ta. Normalmente adubos à base de N-P-K. Quando o solo se desequi-
libra e aparecem as ervas concorrentes, fora de controle, aplicam-se
herbicidas. Quando os insetos e fungos escapam do controle, aplicam-
se inseticidas e fungicidas. Sempre tratando a planta e não olhando que
todos esses problemas são causados por desequilíbrios provocados no
solo e no meio ambiente. Só dando um exemplo: com o N-P-K estamos
alimentando a planta com três elementos. Mas as plantas precisam de
42 elementos e microelementos. Então, alimentando as plantas com
N-P-K, na verdade, se está criando uma planta fraca, doente e desequi-
librando o solo, pois as plantas vão sugando até o extremo os outros 39
elementos e microelementos de que elas precisam. E isso vai matando
a vida do solo. Para corrigir isso, só com matéria orgânica, corretivos
naturais (pós de rocha, por exemplo) e rotação de culturas que vão res-
taurar a microbiologia (as diferentes e numerosas formas de vida) do
solo, que vão transformar de forma equilibrada a matéria orgânica nos
alimentos de que as plantas precisam.
Um dos primeiros passos a serem dados é o cuidado, a recupe-
ração da fertilidade natural e o manejo ecológico do solo. A base
fundamental de uma nova agricultura, a base de um novo modelo
tecnológico é a terra. A agricultura química contaminou e esgotou
o solo, matou parte da vida que tem em seu interior.
Para mudar de modelo, é essencial começar a recuperar o solo,
nem que seja aos poucos. Pode-se fazer um plano de ir recuperando
um ou dois hectares a cada ano. Mas a recuperação não se dará num
único ano. Vai se dar aos poucos, até que recupere todo seu poten-
cial de matéria orgânica, recupere a microbiologia (os pequeninos
seres vivos que repõem os microelementos no solo), reponha o ni-
trogênio de forma natural, retenha a umidade. É bom sempre lem-
brar que recuperar o solo é também um trabalho lento e paciencioso,
de vários anos.
As vantagens: menor custo com fertilizantes, maior facilidade
para controlar as plantas concorrentes (erradamente chamadas de
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“daninhas”), menor transferência de renda para as fábricas de adu-
bos, maior autonomia para o agricultor, maior resistência das plan-
tas em períodos de estiagem, maior aproveitamento dos resíduos
(estercos, restos, bagaços etc.) na propriedade.
Livrar-se dos vLivrar-se dos vLivrar-se dos vLivrar-se dos vLivrar-se dos venenos agrícolasenenos agrícolasenenos agrícolasenenos agrícolasenenos agrícolas
Os agrovenenos são a principal fonte de recurso das multina-
cionais. E o principal instrumento de exploração dos camponeses e
dos agricultores em geral. É o mecanismo mais eficaz de transferência
de renda da agricultura para a indústria. Presta-se a todo tipo de
manipulação, pois muitas doenças, muitos insetos e muitas ervas
ditas “daninhas” são artificialmente disseminadas para depois se
vender os venenos. E com as novas técnicas da biotecnologia de
laboratório, será sempre fácil “criar” doenças, oferecendo simulta-
neamente os “remédios”.
Os agrovenenos são também os principais responsáveis pela
contaminação das águas e do solo e por inúmeros problemas de saúde
dos agricultores. São também os responsáveis pela contaminação dos
alimentos.
O uso intensivo de venenos tem causado vários problemas para
as plantas que não são alvo das aplicações. Por exemplo, os peque-
nos agricultores têm dificuldades de cultivar mandioca e uvas onde
se usam muitos herbicidas à base de glifosato ou à base de 2-4 D.
O uso de venenos na agricultura tem aumentado a cada dia que
passa. Os insetos, as plantas e os fungos tornam-se resistentes e exi-
gem doses cada vez mais fortes e venenos cada vezmais perigosos.
As sementes transgênicas mantêm a dependência aos venenos,
e até aumentam. E não é fácil livrar-se depois que se está acostuma-
do. As facilidades momentâneas cativam.
A diversificação por si só já reduz o uso de venenos. A rotação
de culturas também. E há inseticidas biológicos, que não provocam
efeitos colaterais, que podem ser utilizados.
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É possível diminuir e aos poucos ir eliminando o uso de vene-
nos na agricultura à medida que comunidades inteiras forem fazendo
em conjunto a passagem para outro modelo tecnológico baseado nos
recursos da própria natureza e na agroecologia.
DDDDDiviviviviversificar a prersificar a prersificar a prersificar a prersificar a produção – escapar da monoculturaodução – escapar da monoculturaodução – escapar da monoculturaodução – escapar da monoculturaodução – escapar da monocultura
A monocultura é um dos principais desastres da agricultura
química e um dos principais meios de concentrar renda e inviabilizar
os pequenos agricultores, bem como esgotar o solo e desequilibrar
o meio ambiente.
Construir um novo modelo começa pela diversificação da
produção, pelo que se chama de policultivo – muitos tipos de produ-
ção – e pela combinação da criação de animais com agricultura, como
forma de aproveitar os resíduos animais como adubação orgânica.
PPPPPrrrrroduzir para o autoconsumo familiaroduzir para o autoconsumo familiaroduzir para o autoconsumo familiaroduzir para o autoconsumo familiaroduzir para o autoconsumo familiar
A soberania alimentar do camponês começa em casa. Produzir
sua própria alimentação variada e de forma estável, com qualidade
e sem agrotóxicos, contribui para aumentar significativamente as
áreas descontaminadas de venenos químicos, bem como aumenta a
capacidade de autonomia dos pequenos agricultores.
ContrContrContrContrControlar as sementes e mudasolar as sementes e mudasolar as sementes e mudasolar as sementes e mudasolar as sementes e mudas
As sementes são insumos básicos que devem estar sob o contro-
le dos agricultores e suas organizações. Colher, selecionar, conser-
var, experimentar, cruzar, melhorar sementes e mudas deve ser uma
prática a ser retomada pelos agricultores para construir um novo
modelo de agricultura.
DDDDDisponibilidade de águaisponibilidade de águaisponibilidade de águaisponibilidade de águaisponibilidade de água
Coletar água da chuva, fazer pequenos açudes, cuidar das fon-
tes e nascentes de água, criar peixes, ter sempre água boa, em abun-
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dância, para o consumo familiar e para os animais é um dos pilares
de uma agricultura que se auto-sustenta gerindo bem um recurso
que às vezes (em tempo de seca) se torna escasso.
MMMMMatas e pomaratas e pomaratas e pomaratas e pomaratas e pomareseseseses
As árvores e as matas são fundamentais para o equilíbrio ecoló-
gico e controle de pragas, pois abrigam boa parte dos inimigos na-
turais. São importantes também para manter a umidade e regular o
clima e as chuvas. Uma parte pode ser destinada ao consumo do-
méstico, como lenha e madeira e outras necessidades, garantindo
sempre sua reposição.
O pomar tem também uma dupla importância: garante uma
grande biodiversidade (animal e vegetal) ao mesmo tempo em que
contribui para uma alimentação equilibrada, saudável e variada.
E o plantio de árvores pode ser também uma boa fonte de ren-
da. Pode ser utilizado em sistemas de agroflorestas, combinando
produção de frutas ou de madeira com produção agrícola e animal
(leite, carne, mel etc.). A falta de madeira no mundo tende a ser cada
vez maior e quem hoje plantar árvores está, além de equilibrando a
natureza, fazendo uma poupança para o futuro.
DDDDDomínio de conhecimentos básicosomínio de conhecimentos básicosomínio de conhecimentos básicosomínio de conhecimentos básicosomínio de conhecimentos básicos
Um dos maiores roubos que a agricultura das multinacionais fez
com os camponeses foi roubar-lhes séculos de conhecimentos que
foram transmitidos de pai para filho, durante várias gerações, em
especial através da fala (tradição oral) e da experiência (aprendiza-
do da prática e do ensino). Boa parte desse conhecimento não foi
registrado, não foi escrito. Muito conhecimento, muita sabedoria
camponesa popular se perdeu para sempre. É preciso reconquistar
esse patrimônio perdido e buscar novos conhecimentos possíveis
graças a sempre novos avanços do conhecimento humano, com base
nos princípios agroecológicos de produção.
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Cada família de agricultores precisa se tornar cientista de sua
própria profissão, aprendendo com a natureza, com o comportamen-
to das plantas, dos animais e do meio ambiente, bem como buscar
conhecimentos sistematizados pelos estudos científicos acumulados
pela humanidade.
Faz-se urgente que tenhamos escolas básicas de agricultura eco-
lógica, para possibilitar um novo patamar coletivo de conhecimen-
tos básicos que dêem segurança mínima para construir uma outra
forma de fazer agricultura para a passagem, a transição, firme e de-
cidida, para uma agricultura livre dos produtos químicos e de ve-
nenos, dependente da grande indústria multinacional.
ConstrConstrConstrConstrConstrução de nossa própria infra-estrução de nossa própria infra-estrução de nossa própria infra-estrução de nossa própria infra-estrução de nossa própria infra-estruturauturauturauturautura
De forma associada, cooperativada, devemos construir nossa
própria infra-estrutura de produção, transporte, armazenagem, in-
dustrialização e comercialização da produção. Isso tornará os cam-
poneses independentes dos atravessadores, que também ficam com
a maior parte da renda.
A metodologia da transição agroecológica –
o jeito de fazer
Precisamos construir uma metodologia para massificar a transi-
ção, a passagem de um modelo para o outro. Alguns elementos dessa
metodologia podem ser os seguintes:
• Iniciar com um planejamento das ações, com base nos grupos
e nas comunidades rurais, tendo o território rural presente, buscando
a articulação das dimensões econômica, política, tecnológica, social,
cultural e ambiental. Discutir conceitos como os da agroecologia e
dos agroecossistemas.
• Uma metodologia que gere relações de co-responsabilidades entre
as famílias dos agricultores, suas organizações e seus assessores. As ações
planejadas de forma participativa devem proporcionar situações de
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reflexão e tomadas de decisão progressivas por parte de cada família e
pelo conjunto das comunidades envolvidas, e depois executadas com
um constante monitoramento, avaliação e replanejamento. Logo, a
obtenção dos resultados esperados estará subordinada ao efetivo com-
prometimento de todos buscando alcançar os objetivos individuais e
coletivos que venham a ser estabelecidos.
• Considerar a complexidade e o dinamismo dos sistemas de pro-
dução, assim como os limites ambientais em que se desenvolvem, de
modo a contribuir para o redimensionamento, redesenho e uso ade-
quado dos meios de produção disponíveis e ao alcance de todos.
• Estabelecer uma articulação dos movimentos sociais da Via
Campesina com parcerias estratégicas, sejam instituições de assis-
tência técnica, ensino e pesquisa, buscando a formação de redes,
fóruns regionais, territoriais e outras formas de integração, em que
a participação das famílias dos agricultores na definição de linhas
de pesquisa, avaliação, validação e recomendação de tecnologias
apropriadas esteja no centro.
• Considerar as especificidades relativas a etnias, gênero, gera-
ção e diferentes condições socioeconômicas e culturais das popula-
ções rurais, em todos os programas, projetos de assistência técnica,
pesquisa e atividades de capacitação.
• Estimular a democratização dos processos de tomada de deci-
são, com participação de todos os membros das famílias na gestão
da unidade familiar e nasestratégias de desenvolvimento das comu-
nidades.
• A participação de jovens e mulheres camponesas, consideran-
do as especificidades socioculturais, deve ser central em todo o pro-
cesso de transição e um dos elementos centrais da metodologia.
• Fortalecer iniciativas educacionais apropriadas para agricultu-
ra camponesa, baseadas na Pedagogia da Alternância, assim como
outras experiências educacionais construídas a partir da realidade das
famílias camponesas.
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• Essa metodologia deve ser o mais participativa possível e de-
vemos utilizar a vivência do dia-a-dia de cada pessoa, estabelecen-
do estreita relação entre teoria e prática, propiciando a construção
coletiva de saberes, o intercâmbio de conhecimentos de experiências
exitosas, que deram certo, com o qual os agricultores e os técnicos
possam aprender uns com os outros.
(Texto publicado no livro Os novos desafios da agricultura camponesa,
de 2004, em parceria com frei Sérgio Görgen e Flávio Vivian)
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2. SECA NO RIO GRANDE DO SUL – quem são os
responsáveis?
O Rio Grande do Sul está vivendo a pior seca de sua história
contemporânea. Não basta ficarmos no debate superficial de que isso
é um fenômeno da natureza, “culpa de São Pedro”, ou coisas desse
tipo. Precisamos ver a fundo as causas estruturais dessa seca, pois se
olharmos os dados oficiais veremos que nos últimos 14 anos tive-
mos oito secas.
Em 1991, 287 municípios decretaram situação de emergência.
Em 1996, foram 222. O número foi de 195 em 1997. Em 1999
foram 115, em 2000 foram 153, em 2003 foram 226, em 2004
foram 390 e, em 2005, até agora, 404 municípios já decretaram
situação de emergência, com tendência a se agravar.
Vários cientistas do mundo inteiro afirmam que está ocor-
rendo uma mudança no clima. Recentemente, entrou em vigor
o Protocolo de Kyoto,,,,, talvez o tratado internacional mais impor-
tante para a humanidade, que trata das mudanças climáticas
provocadas pelo efeito estufa – o aquecimento do planeta em
função das emissões de gases pelo processo industrial e pelas
queimadas das florestas.
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O Protocolo de Kyoto estabelece compromissos para os países
desenvolvidos, como a redução de pelo menos 5%, em relação aos
níveis de 1990, das emissões antrópicas combinadas de gases de
efeito estufa para os períodos de 2008 a 2012.
Se nada for feito e se continuarmos a destruir todas as florestas tro-
picais mundiais, a desestabilização do clima pode, realmente, ficar muito
pior do que o previsto. É hora de reagirmos. Não podemos mais acei-
tar esse comportamento de passividade diante das evidências sobre o
que vem ocorrendo. Afinal, são diversos os “fenômenos naturais”, como
furacões, enchentes e secas, em especial essa que hoje atinge o RS.
O que está acontecendo com o planeta? E o que é efeito estufa?
Um grupo de cientistas, economistas e administradores, conhe-
cido como Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas
(IPCC, sigla em inglês), se reuniu nas Nações Unidas pela primeira
vez em 1988 para informar os governos das possíveis causas e con-
seqüências das mudanças climáticas e soluções para aliviar o pro-
blema. Segundo o IPCC, o aquecimento global não somente está
ocorrendo, mas é largamente induzido pelo homem, e irá aumen-
tar muito mais rapidamente do que o anteriormente pensado.
A superfície da Terra sofreu um aquecimento de 0,6 grau du-
rante o século passado. A década de 1990 foi o período que regis-
trou os anos mais quentes desde que os registros instrumentais co-
meçaram a ser feitos, em 1861. A maior parte do aquecimento
observado nos últimos 50 anos é atribuída a atividades humanas,
como a emissão de dióxido de carbono (CO
2
) devido à queima de
combustíveis fósseis – petróleo e carvão mineral – e devido às quei-
madas e à destruição das florestas.
O efeito estufa
Em uma estufa de vidro ou de plástico, como essas usadas pelos
agricultores para cultivar hortaliças e flores nas regiões frias, com risco
de geada, a atmosfera interior é mais úmida. Os raios luminosos
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(radiação luminosa), ao passarem através do vidro ou plástico e
chocarem-se com o solo e plantas, sofrem absorção, reflexão e dis-
persão, transformando-se em raios infravermelhos (radiação térmi-
ca) que, ao colidir com o vapor da água, aumentam a temperatura
no interior da estufa.
Também dentro da estufa há maior concentração de gás carbônico,
pois ele é produzido pela transpiração das plantas e solo e não pode se
dispersar pelo vento. Ao ficar contido, aumenta sua concentração. A
radiação infravermelha colidindo com o gás carbônico também au-
menta a temperatura ambiente no interior da estufa.
Isso é suficiente para que um trabalhador ou dona de casa en-
tenda o que é o efeito estufa e acompanhe a construção do conceito
de mudança climática. O planeta Terra é muito mais complexo que
o interior de uma estufa de vidro ou de plástico.
A realidade de que é o ser humano que está provocando mudan-
ças climáticas está acima de qualquer questionamento. Enquanto
certos interesses velados e elementos da mídia de massa gostam de
criar a impressão de uma controvérsia geral, na realidade existe um
consenso global entre os cientistas de que as mudanças climáticas
têm origem no modo “moderno” de vida humana.
A destruição das florestas, em especial da Floresta Amazônica,
provocará a desordem total do clima. O Rio Grande do Sul já teve
seu território com 40% de cobertura vegetal. Com a “moderniza-
ção” da agricultura e o desmatamento vigoroso nas décadas de 1970
e 1980, chegou-se a 5,6% de cobertura vegetal em fins dos anos de
1980. Atualmente, após alguma recuperação, estima-se que o RS
tenha em torno de 17% de cobertura vegetal.
FFFFFlorlorlorlorloresta Amazônica: qual imporesta Amazônica: qual imporesta Amazônica: qual imporesta Amazônica: qual imporesta Amazônica: qual importância para o clima e sua rtância para o clima e sua rtância para o clima e sua rtância para o clima e sua rtância para o clima e sua relaçãoelaçãoelaçãoelaçãoelação
com a seca no RS?com a seca no RS?com a seca no RS?com a seca no RS?com a seca no RS?
Existe um processo de absorção de calor nos trópicos pela Flo-
resta Amazônica, carregado através de massivas nuvens de chuva e
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distribuído através da circulação de massas de ar para as regiões de
latitudes mais altas. A energia do Sol, em termos anuais – 2,5 vezes
maior no Equador do que nos pólos – é distribuída de forma ho-
mogênea por todo o planeta. Sem a floresta (27,5 milhões de hec-
tares, uma área do tamanho do Estado do Rio Grande do Sul, já foi
destruída), o mecanismo de transferência de energia pode ser leva-
do ao colapso.
De acordo com o físico brasileiro Eneas Salati, de toda a água
que cai na forma de chuva sobre a região Amazônica, de 50% a 75%
retorna à atmosfera através da evaporação e transpiração, chovendo
novamente pela ação dos ventos alísios que vêm do oceano Atlânti-
co, chegando a ficar nesse processo de evaporação e chuva até sete
vezes, já que a área da bacia chega a 4 mil quilômetros de extensão.
Um fenômeno extraordinário e sem paralelo.
Numa floresta tropical saudável, a transpiração, processo pelo
qual o vegetal libera água para a atmosfera, chega a representar 60%
da umidade do ar na Amazônia. A evaporação, a partir das folhas e
dos caules dos vegetais, responde pelos outros 40%. Quando a flo-
resta está intacta, quase não ocorre evaporação diretamente do solo,
mas da biomassa que não está submersa. Essa evapotranspiração
representa uma enorme quantidade de energia solar e, de acordo com
o meteorologista brasileiro Luiz Carlos Molion, chega a 80% de toda
a energia solar que vem diretamente à floresta.
Eneas Salati estima que o fluxode energia através da bacia do
Amazonas é o equivalente de 5 a 6 milhões de bombas atômicas
explodindo diariamente. Considerando-se a floresta intacta, com sua
poderosa bomba de evapotranspiração, 75% dessa energia é usada
para evaporar a água. O ar quente e úmido gerado pela floresta tro-
pical, então, sobe rapidamente e gera enormes nuvens cúmulos-nim-
bos cheias de chuva que, empurradas pelos ventos, fazem chover em
novas áreas, liberando energia como “calor latente” de volta para a
atmosfera. Dessa forma, direciona a grande massa de ar que atra-
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vessa a Bacia do Amazonas no sentido leste para oeste, até encon-
trar a cadeia de montanhas dos Andes. O fluxo, então, se divide em
três correntes. A corrente central passa por cima das montanhas e
segue através do oceano Pacífico e continua a oeste na altura da li-
nha do Equador, seguindo a convergência da corrente marítima
quente do Norte. A corrente sul é defletida pelas montanhas e atra-
vessa pelo cerrado brasileiro até a Patagônia. Já a corrente norte é
carregada por cima da massa de ar que circula entre Equador e os
trópicos e cruza o Caribe, toca a costa leste dos Estados Unidos e
vai através do Atlântico para a Europa do Norte.
Contudo, se a floresta tropical não estiver intacta, a quantidade
de energia solar que pode ser carregada para as latitudes mais eleva-
das fica reduzida a um quinto ou até menos. Somente essa redução
já seria suficiente para causar um esfriamento significativo em regiões
temperadas.
As mudanças na transferência de energia a partir dos trópicos
trazidas pela destruição da floresta Amazônica provocarão, nas lati-
tudes intermediárias, a geração de fortes e turbulentas rajadas de
ventos, o que funcionaria como uma descontinuidade entre a maio-
ria dos sistemas circulatórios locais que perfazem o sistema circula-
tório global.
A corrente de ar polar é a corrente mais poderosa de todas. Ela
circula entre as massas de ar que se formam na região polar e aque-
las que se formam entre os trópicos e as zonas temperadas. Portan-
to, ela corre seu caminho em alta velocidade entre a corrente quen-
te dos trópicos e o ar frio do pólo Norte. Todo o clima é função das
correntes de ar que circulam do norte ao sul e vice-versa. Quando
ela empurra as correntes mais para o Sul, traz frio e ar seco com ela.
Quando ela permanece retida mais ao norte, então temos o ar quente
dos trópicos com tudo que isso representa (pesadas chuvas, ventos
de superfície e depressão atmosférica). Quanto mais ao sul a cor-
rente polar empurrar, mais frio torna-se o clima. Se a circulação
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enfraquecer devido aos desmatamentos (pois passa a haver menos
transferência de calor), então a corrente polar terá mais força e fará
com que todo o sistema do clima do hemisfério Norte chegue mais
perto da linha do Equador. Isso significa mais frio e menos chuva
na zona temperada.
Uma diminuição de apenas 10% a 20% na quantidade de vapor
de água sendo transportada no sistema faz uma enorme diferença para
o total de transferência de energia – uma redução, em termos de ener-
gia, equivalente a mais de 20 vezes a energia total usada na indústria
e na agricultura em todo o mundo. Pequenas mudanças relativas nas
trocas de energia no oceano Pacífico podem causar uma mudança no
sistema climático, exatamente como ocorreu em 1997/1998 com o
El Niño. Esse fenômeno deveria nos dar motivo para uma profunda
reflexão sobre o que estamos fazendo com a floresta Amazônica, bem
como com as outras florestas tropicais de outras regiões do planeta.
As florestas tropicais estão sendo destruídas em todo o planeta a
taxas cada vez maiores. Estimativas atuais indicam que 17 milhões de
hectares estão sendo destruídos anualmente. Desse valor, cerca de 6
milhões de hectares correspondem à Amazônia brasileira, incluindo-
se nesse cálculo a destruição causada pela produção de carvão vegetal
para produção siderúrgica. Além do que foi provocado pela indústria
de carvão vegetal, mais de 50 milhões de hectares de floresta Amazô-
nica já foram destruídos em questão de poucas décadas.
Como se isso não bastasse, a agricultura industrial “moderna”,
agora travestida de agronegócio, agrava as mudanças climáticas. Em
reportagem da Folha de S. Paulo, de 28 de fevereiro, pesquisadores
da Unesp mostram como a atividade agrícola provoca a emissão de
gás carbônico. O solo descoberto, livre de vegetação, emite grandes
quantidades de CO
2
, gás causador do aquecimento da atmosfera.
Conforme estudos realizados sobre o efeito estufa no Brasil, há
projeções de elevações médias de temperatura em torno de 4 a 4,5
graus, reduzindo o volume de chuvas nos meses de verão.
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Essa seca que está ocorrendo no Rio Grande do Sul pode ser
conseqüência do desmatamento da floresta Amazônica, e é um fe-
nômeno que poderá se repetir com mais freqüência. Frio e calor
também poderão ocorrer com maior intensidade fora de meses con-
siderados normais.
Portanto, o que está ocorrendo não são fenômenos naturais, mas
sim fenômenos provocados pela ação do homem. Isso ocorre em fun-
ção de um modelo de desenvolvimento socioeconômico calcado na
derrubada da floresta para o cultivo de pasto e de grãos – monocultura
incentivada pelas empresas transnacionais que aqui no Estado patro-
cinam campanhas como a do “Poder da soja”, com objetivo de lucro
a qualquer preço. A natureza está reagindo, o que pode virar rotina,
causando sérios danos sociais, ambientais e econômicos.
O que devemos fazer, de forma estrutural, para estancar esse
problema? Quem deve pagar essa conta? Quem deve ser responsa-
bilizado pelas mudanças do clima? São questões que merecem um
bom debate hoje para que o amanhã venha a existir.
Março de 2005
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3. MONOCULTURA DA SOJA – riqueza para alguns,
crise e miséria para a maioria
Grandes grupos transnacionais associados a latifundiários e
empresários brasileiros fazem uso de grande onda de propagan-
da e jogadas de marketing para expandir seu poder político e eco-
nômico de classe dominante no campo. Utilizam a soja, assim
como outros produtos de exportação, como um grande negócio.
Com a queda internacional dos preços, os pequenos e médios
agricultores que embarcaram nessa monocultura sofrem as con-
seqüências da crise.
Foi divulgada propaganda enganosa para a expansão do cul-
tivo da soja como um grão milagroso para gerar superavit nas con-
tas públicas, o grande cavalo de batalha do agronegócio, pesqui-
sadores fascinados apontam para o grande crescimento. “A cada
ano, pesquisas a respeito dos efeitos sobre a saúde gerados pela
soja e seus componentes parecem crescer exponencialmente.”
“Novas descobertas vislumbram que a soja tem benefícios poten-
ciais que podem ser muito mais amplos do que jamais se imagi-
nou.” Assim escreve Mark Messina, Coordenador Geral do Ter-
ceiro Simpósio Internacional sobre a Soja, ocorrido em
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38
Washington, em novembro de 1999, citado por Sally Fallon e
Mary Enig, PhD.*
Durante quatro dias, cientistas reunidos em Washington, pro-
digamente financiados, fizeram suas apresentações tanto para uma
imprensa maravilhada quanto para seus patrocinadores: United
Soybean Board (União dos Conselhos da Soja), American Soybean
Association (Associação Americana da Soja), Monsanto, Protein
Tecnhnologies International (Tecnologias Internacionais sobre Pro-
teína), SoyLife, Whitehall-Robins Healtercare (Produtos Farmacêu-
ticos Whitehall-Robins), além dos Conselhos da Soja e outros.
O simpósio marcou o apogeu de uma campanha de marketing,
de uma década, destinada a cativar o consumidor pela aceitação do
tofu, do leite de soja, sorvete de creme de soja, queijo de soja,
salchicha de soja, bem como seus derivados,destacadamente as
isoflavonas como a genistieína e a deadzeína, compostos tipo
estrogênicos encontrados na soja.
Esse evento coincide com a decisão da U. S. Food and Drug
Administratrion (FDA – Administração de Alimentos e Fármaco
dos EUA) de aclamar a necessidade, para a saúde, do consumo de
produtos que tenham “baixas taxas de gorduras saturadas e
colesterol”, pela presença de 6,25 gramas de proteína por porção de
* “ALERTA – Soja: tragédia e engodo”. Apresentado no Terceiro Simpósio Interna-
cional da Soja por Sally Fallon, autora do livro Nourishing Traditions: The Cookbook
that Challenges Politically Correct Nutrition and the Diet Dictorcrats (1999, 2ª edi-
ção, New Trends Publishing)/”Tradições da Nutrição: livro de receitas que desafia
politicamente a nutrição correta e os ditadores de dietas”), e presidente da Weston
A. Price Foundation, Washington, DC (www.WestonAPrince.org)
Mary G. Enig, PhD, é a autora de Know Your Fats: The Complete Primer for
Understanding the Nutrition of Fats, Oils and Cholesterol Association, e vice
presidente da Weston Price Foundatin, Washington, DC.
Tradução livre de Luiz Jacques Saldanha, com co-tradução de Eduardo Rache
da Motta. Maio de 2004.
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39
soja, feita em 25 de outubro desse mesmo ano de 1999. “O marketing
do alimento perfeito.”
Recentemente pôde se constatar essa grande propaganda no
Brasil em megaevento da soja, quanto simultaneamente ocorreu a
VII Conferência Mundial de Pesquisa da Soja, a IV Conferência
Internacional de Processamento e Utilização da Soja e o III Con-
gresso Brasileiro de Soja, nos dias de 29 de fevereiro a 5 de março
de 2004, em Foz do Iguaçu, no Paraná.
Esse evento foi promovido pelo Ministério da Agricultura, Pe-
cuária e Abastecimento e pela Embrapa (Empresa Brasileira e Pes-
quisa Agropecuária), com apoio do Banco do Brasil, órgãos do go-
verno brasileiro em parceria com a iniciativa privada do dito setor
do agronegócio brasileiro.
Pôde-se presenciar muita propaganda do tipo:
• “O uso industrial da soja está em expansão para uma grande
variedade de produtos como o biodiesel e outros produtos indus-
triais. O consumo vem aumentando em 10% ao ano. Quanto às
exportações, vêm caindo na Europa e aumentando na China. O setor
privado vem investindo pesado em pesquisas, em que as indústrias
como Cargil, ADM e BUNGE destacam-se.”
• No Brasil nos últimos 10 anos, o crescimento se deu em mé-
dia 10% ao ano. Só na safra 2002/2003 o crescimento foi de 24%,
sendo 9% em produtividade e 13% em aumento de área.
• A soja no cerrado brasileiro – – – – – “O cerrado possui uma área total
de 204 milhões de hectares – 1/3 do território brasileiro. Possui solos
quimicamente pobres, porém de fácil correção. Com uma topogra-
fia plana, profundos e fisicamente ricos, com um regime de chuvas
bem distribuídos, durante 6 meses do ano. Essa nova fronteira abran-
ge regiões do Centro Oeste, Norte e Nordeste, em Estados como
MT, TO, MS, GO, BA, PI, PA, RR e RO.” A produção de soja
brasileira nos cerrados passou de 2%, nos anos de 1970, para 20%
nos anos de 1980, 40% nos anos de 1990 e na safra 2002/2003 foi
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40
60% do total da safra, com uma produção de 15 milhões de tone-
ladas, sendo o Estado do MT o maior produtor brasileiro; depois
vem o PR com uma produção de 10,9 milhões de toneladas, e o RS,
com 9,6 milhões de toneladas. O potencial de crescimento da área
é muito grande. Segundo a Embrapa, o Brasil tem um potencial de
50 milhões de hectares só no cerrado, que podem ser utilizados para
a produção de grãos. Colocado como fator positivo é o fato de o
MT, por exemplo, ter somente pouco mais 3 mil produtores de soja
em grandes propriedades. “Como fator negativo, para o aumento
da produção e produtividade, é o caso do RS, que possui em torno
de 130 mil produtores de soja (pequenos e médios).”
• Segundo a Embrapa, o mundo tropical vem buscar tecnologia
no Brasil. A soja tem sido o carro-chefe do agronegócio brasileiro.
Aumento das exportações, novas tecnologias e investimentos, com
aumento do PIB, que hoje representa 11,5% dos 42% gerados pelo
agronegócio.
• A tendência de curto prazo, se continuar esse aumento em
torno de 10% ao ano, em quatro anos, 2008, é chegar a mais de 80
milhões de toneladas, podendo ser o maior produtor mundial.
• “Os estoques mundiais estão caindo. A produção mundial, que
não chega a 200 milhões de toneladas ao ano, confronta-se com um
consumo estimado de 210 milhões de toneladas para 2004/2005.
Os atuais preços: US$ 9,5 o bushel = US$ 350 a tonelada, quase U$
20 dólares a saca de 60 kg. Isso está no mesmo patamar do ano de
1986. A demanda depende da elasticidade da renda. Os países po-
tenciais para isso são os asiáticos – China, Índia, Rússia e Nigéria,
por exemplo, que possuem mais de 50% da população com 7% da
renda mundial. Por outro lado, os países ricos do G-7 possuem 84%
da renda mundial, mas somente 11,7% da população.
Quando tudo apontava para essa “maravilha”, preços a quase
US$ 20, ou seja, mais de R$ 50 a saca, produção “maior” e com
custos “mais baixos” por causa dos transgênicos, euforia semelhan-
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41
te à década de 1970 e 1980, quando pequenos agricultores enfeiti-
çados pelas mil maravilhas do “ouro-verde” começam a substituir
até o pomar e a horta para “ganhar dinheiro”, quando tudo isso era
propagandeado pelas multinacionais e seus seguidores no Estado e
no país e parecia tudo a grande vitória, veio o que ninguém imagi-
nava. Alguns oportunistas e imediatistas misturaram semente com
agrotóxico junto a cargas de soja para exportação e era só a descul-
pa que os controladores do mercado da soja – sete corporações in-
ternacionais – precisavam para derrubar os preços e acabar com a
“bolha” especulativa.
Desde 2003, o Brasil é o principal exportador de soja do mun-
do. Em 2003/2004, foram colhidos 52 milhões de toneladas, das
quais 29 milhões foram processados, resultando em 5,6 milhões de
toneladas de óleo e 23,4 milhões de toneladas de farelo. A maior
parte da exportação é para alimentar vacas, porcos e galinhas de
muitos países.
Um alimento barato e dirigido aos pobres e agora, em função da
propaganda, como uma substância “milagrosa”, que previne doenças
do coração e o câncer, que varre os “calores” da menopausa.
Há por trás da soja uma grande indústria que ganha muito di-
nheiro. Estima-se que, em 2003, cerca de US$ 84 bilhões teriam
irrigado os negócios de sementes, agrotóxicos, fertilizantes, máqui-
nas, implementos, combustíveis, transportes, armazenagem, segu-
ros, intermediações financeiras, processamento, embalagens etc.
Tudo isso com custos sociais – uma população enorme de pe-
quenos agricultores que são “embretados” pela propaganda e aca-
bam se encalacrando numa monocultura como se fossem grandes
produtores. E com custos ambientais, pois há uma contaminação
com transgênicos e agrotóxicos, que afetam as pessoas, contaminam
a água, o solo e diminuem as florestas, por conseqüência diminuem
as águas e afetam o clima, mudando-o, com veranicos, estiagem,
ondas de frio e calor fora de época. Estima-se um dispêndio de R$
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42
2 bilhões com fungicidas no controle da ferrugem da soja, para a
safra que se avizinha.
“A ameaça sanitária é crescente em função do crescimento e da
expansão da soja a novos nichos ecológicos. Novas pragas exóticas
podem surgir. Mais agrotóxicos serão usados e novas barreiras sani-
tárias podem ser impostas à soja brasileira.”
“A literatura registra mais de uma centena de insetos e um núme-
ro elevado de fungos, bactérias, vírus, nematóides ou plantas dani-
nhas, considerados pragas de soja. Destas, 22 pragas foram conside-
radas de alto risco devido ao elevado potencial de introdução e
dispersão e aos seus impactos econômicos, ambientais e sociais.”*
Fica patente que a soja, considerada o motor do agronegócio,está à mercê de ameaças que podem esboroar a sua competitividade
e sustentabilidade, drenando divisas, renda e postos de trabalho, além
do incomensurável risco ao meio ambiente. Outros organismos, que
sequer eram referidos como pragas da cultura, podem se adaptar à
mesma, em função do vácuo ecológico e pela simplificação do
agroecossistema decorrente da monocultura da soja.
Há estimativas recentes preocupantes em relação ao mercado fu-
turo, pois estima-se que os Estados Unidos devam colher, este ano,
em torno de 80 milhões de toneladas. O Brasil deve colher em torno
de 60 milhões e a Argentina em torno de 40 milhões de toneladas.
Somado isso a outros países produtores, estima-se para esta safra de
2004/2005 uma produção mundial de 222 milhões de toneladas,
contra 189,12 milhões da safra de 2003/2004. Os estoques mundiais,
que no ano de 2003/2004 eram de 36,19 milhões de toneladas, pas-
saram para 50,2 milhões de toneladas. Isso pode acarretar uma
superoferta do produto, conseqüentemente uma queda nos preços
futuros da soja, ou no mínimo permanecer nos patamares históricos,
em média US$ 10 a saca, ou seja, em torno de R$ 30 a saca de 60 kg.
* Mais detalhes podem ser encontrados em www.gazzoni.pop.com.br
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A estimativa de preços para a safra de 2004/2005, segundo o Depar-
tamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA, setembro/2004),
deve ficar entre 5,4 a 6,4 centavos de dólar o buschel (US$ 11,90 a
US$ 14,11 por saca). Isso é preço de entrega no porto.
Com a crise do mercado e a queda nos preços, quem mais sofre
são os pequenos agricultores, pois o retorno por hectare mal cobre
os custos de produção e sobra muito pouco por hectare, isso se o
tempo contribuir com boas chuvas. Qualquer problema de estiagem,
como a que ocorreu este ano, pode aprofundar ainda mais essa cri-
se, voltando novamente o que já ocorreu em passado recente, quando
muitos pequenos agricultores tiveram que vender suas terras para
os médios e grandes e abandonar a agricultura, pois estes, quando
se endividam, renegociam e prorrogam as dívidas.
Por isso é urgente e necessário aos pequenos agricultores que
estão na monocultura da soja uma conversão, uma transição
gradativa e crescente para um novo padrão de produção, uma nova
matriz tecnológica e um novo padrão de consumo, diversificando
as atividades produtivas, redesenhando os lotes e as pequenas pro-
priedades, como elemento central de uma estratégia para resistir à
crise e à miséria e superar, gerando trabalho e renda para a família,
para a região e para o país.
Setembro de 2004
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4. QUEM VAI COMER A SOJA ENVENENADA?
Durante os meses de maio e junho, muitas notícias vieram à tona
na grande mídia sobre a soja contaminada com agrotóxico no Rio
Grande do Sul. A China rejeitou milhares de toneladas de soja – fala-
se em seis navios, totalizando 359 mil toneladas de soja. Passado um
mês e pouco do episódio, o assunto saiu da mídia, mas várias per-
guntas sem respostas são feitas: para onde foi essa soja? Quem vai
ou está consumindo?
Com certeza, essa soja com veneno está sendo consumida pelas
pessoas dos países pobres. Informações diversas dizem que aqueles
navios rejeitados pela China foram desviados para países como
Malásia, Tailândia e outros. E a soja retida no porto de Rio Gran-
de? E a que está sendo comercializada internamente no Rio Grande
do Sul e no Brasil?
As notícias de um mês atrás diziam que, para proteger o consu-
midor interno, fiscais do Ministério da Agricultura, em inspeção nos
armazéns e silos de empresas e cooperativas do Estado, tinham sus-
pendido a comercialização de milhares de toneladas de soja com
suspeita de contaminação. O que foi feito com essa soja? Será que
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não está sendo esmagada para fazer azeite, margarina, maionese,
doces e tantos outros produtos derivados dessa soja contaminada
com veneno?
Muito se falou em investigar, apurar e punir os responsáveis, em
pedir desculpa ao governo chinês, em não tolerar mais esse tipo de
“ganância e imediatismo”. O fato é que as notícias e as manchetes
sumiram dos meios de comunicação, a soja voltou a ser comercializada,
as responsabilidades não foram apuradas, nem os responsáveis foram
punidos. E o povo que está consumindo isso, quem o protege?
Agora, além do consumo de transgênicos, estamos comendo soja
com veneno para o tratamento de doenças de semente, que é ilegal e
deveria ser eliminado. E onde está o direito dos cidadãos, dos consu-
midores, de sabermos o que estamos consumindo e qual a qualidade
dos produtos? E os órgãos responsáveis pela fiscalização e pelo zelo
no cumprimento das leis e das normas de segurança alimentar?
Esperamos em breve obter essas respostas de alguém.
Agosto de 2004
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5. BIODIESEL – oportunidade para a agricultura camponesa
A produção de biodiesel como uma alternativa para o cultivo
de grãos oleaginosos, principalmente para a região produtora, po-
derá ser uma grande oportunidade para a agricultura camponesa?
Quase 30 anos após a criação do Pró-Álcool, o maior programa de
combustível renovável do mundo, o Brasil pode voltar a apostar em um
novo projeto de energia limpa. O biodiesel, também denominado
biocombustível ou combustível renovável, é produzido com óleos ve-
getais, reagidos com um percentual de metanol ou etanol (álcool extraído
da cana-de-açúcar). O processo resulta em biodiesel e glicerina.
Em função da crise do petróleo e da forte pressão internacional
pela diminuição da emissão de gases poluentes na atmosfera, como
o dióxido de carbono (CO
2
) e o metano, derivados da queima de
combustíveis fósseis, como o petróleo e o carvão vegetal, além da
queima de florestas, causadores do efeito estufa – aquecimento do
planeta –, o debate em torno da substituição do petróleo e da pro-
dução de energia alternativa “limpa” torna-se realidade.
O programa de biodiesel é semelhante ao programa brasileiro de
álcool combustível, que deu sustentação ao preço do açúcar, cujo maior
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produtor e exportador é o Brasil. Toda a gasolina vendida tem 25%
de álcool, do qual o Brasil também é o maior exportador mundial.
Em janeiro de 2005, o governo brasileiro publicou a Lei no
11.097, que em seu artigo segundo diz que o biodiesel fica intro-
duzido na matriz energética brasileira, sendo fixado em 5% em
volume o percentual mínimo obrigatório de adição de biodiesel ao
óleo diesel comercializado ao consumidor final, em qualquer parte
do território nacional. Em seu inciso primeiro, estabelece o prazo
de 8 anos após a publicação dessa lei para a utilização de 5% e de 3
anos para um mínimo de 2% da mistura em volume de biodiesel
ao óleo diesel. A proposta do governo prevê que o biodiesel B2 se
torne obrigatório até o final de 2007 e que misturas mais altas, de
5% a 20% (B5-B20), se tornem obrigatórias até 2012.
O Brasil consome cerca de 40 bilhões de litros de diesel anual-
mente. Um programa B5 obrigatório iria resultar em nova deman-
da por cerca de 2 milhões de toneladas de óleo vegetal por ano. O
Brasil produziu cerca de 5,5 milhões de toneladas de óleo de soja
na última temporada, dos quais aproximadamente 2,4 milhões de
toneladas foram exportados.
Diferente da época do Pró-Álcool, os movimentos sociais têm a
oportunidade de debater e participar da elaboração de um possível
Programa Nacional de Biodiesel. Por isso a importância da infor-
mação e discussão de nossa parte. Acreditamos ser um assunto de
extrema importância para o momento.
Texto escrito para a apresentação da cartilha sobre o biodiesel,
que foi impressa em agosto de 2005.
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6. TECNOLOGIAS APROPRIADAS
Durante o governo Olívio Dutra, o então Departamentode De-
senvolvimento Rural e Reforma Agrária (DRA), da Secretaria de
Agricultura do Estado, cujo diretor era frei Sergio Görgen, teve a
oportunidade de coordenar um estudo sobre a possibilidade de o
Rio Grande do Sul vir a ter uma montadora de tratores populares,
que poderia desencadear um processo de mecanização popular no
Estado e no país.
Após a realização de estudos, concluiu-se que era viável, opor-
tuno e necessário um Programa de Mecanização Camponesa. Con-
forme escreve frei Sérgio no livro Os novos desafios da agricultura cam-
ponesa, “a indústria de máquinas e implementos agrícolas no Brasil
se estruturou para atender os grandes. Por isso que só fabricam tra-
tores, colheitadeiras e implementos grandes, sofisticados, pesados e
caros. O pequeno agricultor precisa investir em mecanização leve,
simples, resistente, rústica, econômica e barata”.
No entanto, esse projeto foi suspenso por falta de maior interesse
por parte da iniciativa privada e dos governos no sentido de tomar a
dianteira do processo e viabilizar a construção de uma empresa.
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A mecanização da pequena unidade camponesa familiar, longe
de ser entendida como substituta da mão-de-obra, que na agricul-
tura de pequeno porte é considerada escassa, é indispensável. Mas a
grande maioria das máquinas disponível no mercado é cara para o
padrão de posse dos pequenos agricultores. A indústria de máqui-
nas, com raras exceções, ainda não deu atenção necessária à fabrica-
ção de equipamentos adequados à realidade.
Atualmente, uma montadora daquele tipo já é realidade no Es-
tado. A empresa Metade Sul Ltda., de Pelotas, deu início a um pro-
cesso de importação e montagem de micros e pequenos tratores chi-
neses, ou partes destes, para a viabilização da mecanização popular
para unidades familiares camponesas de nossos agricultores peque-
nos e médios.
Estamos de acordo com o diretor presidente da empresa, Irajá
Rodrigues, quando escreve que “os pequenos agricultores e assen-
tados da reforma agrária vêm demonstrando uma grande capacida-
de de resistência ao processo de exclusão social, face à inexistência
de políticas públicas que sejam capazes de estimular a missão da pro-
dução de alimentos e de garantia de vida para milhões de brasilei-
ros”. Na avaliação, o que está faltando é um salto para um nível
tecnológico melhor, com a complementação da enxada e da junta
de bois por uma mecanização adequada.
No Brasil, segundo alguns estudos, existe uma demanda repri-
mida desse tipo de tratores de mais de 70 mil unidades por ano.
Ofertas desses tratores a baixo preço configurarão um mercado al-
tamente promissor, principalmente se for resolvido o problema do
financiamento aos pequenos agricultores.
A solução para a importação em larga escala de tratores chineses para
suprir a necessidade da demanda brasileira e até, quem sabe, da Améri-
ca Latina, exigirá um tratamento adequado das relações com o fabri-
cante chinês, por um lado, e com os poderes públicos federal e estadual
de outro, de modo a obter o máximo de vantagens comparativas.
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Acredita-se que os movimentos sociais, através de suas coopera-
tivas, podem participar na busca de alguns acordos comerciais com
aquela empresa para a venda desses tratores, visto que muitas partes
parecem que estão sendo superadas, tais como investimentos iniciais,
tratativas para importações, projeto de construção da planta indus-
trial, fabricação, montagem, serviços de assistência técnica, manu-
tenção e reposição de peças e outros.
A China possui 22 províncias, além de quatro regiões autôno-
mas. A maior parte das regiões possui fábricas de minitratores, ten-
do em conta a enorme demanda de mais de 100 milhões de unida-
des agrícolas familiares naquele país.
Segundo informações preliminares, as principais fábricas desses
tipos de tratores encontram-se em Liaoning, Shandong, Jiangsu,
Zhejiang, Hubei e Guangdong, com modelos relativamente idên-
ticos e preços bastante competitivos entre si. Várias das empresas
de fabricantes de tratores dessas províncias já se encontram em con-
dições de investir no exterior e buscam mercados e parceiros para
realizarem tais investimentos, a exemplo dos investimentos de uma
delas em Pomerode, em Santa Catarina.
Por iniciativa nossa e com a participação da CUT-RS e da Fe-
deração dos Metalúrgicos, além de lideranças dos movimentos so-
ciais da Via Campesina, fez-se uma visita de reconhecimento e pri-
meiro contato com a direção da empresa. Pôde-se verificar, in loco,
algumas unidades de tratores chineses, da marca Green Horse, pe-
quenos, de alta qualidade, robustos e versáteis e – o mais impor-
tante – com preços possíveis de serem suportados pelos agriculto-
res camponeses, num processo de mecanização planejada das
pequenas propriedades.
A empresa conveniou com o Centro Federal de Educação
Tecnológica de Pelotas (CEFET-RS), responsável pela formação dos
técnicos das maiores montadoras de tratores do Brasil, para ofere-
cer produtos à altura das necessidades dos agricultores.
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Comparando os preços de três modelos com as principais mar-
cas disponíveis no Brasil, pode-se verificar uma grande diferença,
conforme tabela abaixo:
MMMMMarararararcacacacaca MMMMModeloodeloodeloodeloodelo PPPPPotênciaotênciaotênciaotênciaotência PPPPPrrrrreço R$eço R$eço R$eço R$eço R$ OOOOObs.bs.bs.bs.bs.
G. Horse GH 18 18 CV 11.000,00 3 rodas
Tramontini DF 18 18 CV 16.600,00
Yanmar TC 14 14 CV 19.000,00
G. Horse 204 20 CV 27.000,00 Tracionado e com
dir. hidráulica
Yanmar 1145-4 39 CV 58.860,00
Agrale AG 4230 26 CV 43.000,00
G. Horse 454 45 CV 45.000,00 Tracionado e com
dir. hidráulica
Massey 250 ADV 51 CV 77.300,00
Yanmar 1155-4 55 CV 65.050,00
Fonte: tabela fornecida pela montadora Metade Sul Ltda.
Nesses valores já está incluído o preço de revenda (15%). No caso
dos movimentos sociais, as cooperativas poderão ser as revendedoras e
prestadoras de assistência técnica; podem-se treinar os técnicos das pró-
prias cooperativas para que sejam os responsáveis pela assistência técnica.
Acredita-se que, para agricultores com área de até 50 hectares
ou para grupos de famílias, o modelo de 20 CV seja suficiente para
um bom trabalho de preparo do solo, plantio, tratos culturais, além
de possuir um equipamento para diversos outros serviços, como
triturador, bomba de água, reboque etc.
Tudo isso passa necessariamente por pesquisas, assistência téc-
nica e formação, para que um equipamento, no caso um trator, possa
frentear toda uma rede de mecanização na pequena propriedade, em
que a busca constante de tecnologias apropriadas possam melhorar
a qualidade de vida das famílias camponesas.
Maio de 2005
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7. SOBERANIA ALIMENTAR, BIODIVERSIDADE E
DIVERSIDADE CULTURAL
A soberania alimentar e a diversidade cultural ou etnodiversidade,
dois temas que estão inter-relacionados com um terceiro, a
biodiversidade, ou seja, a diversidade da vida no planeta, não subsis-
tem sozinhos. O futuro da humanidade depende deles. São três te-
mas que a Conferência da Terra e da Água vai debater e apontar para
a sociedade caminhos para a resistência e superação da atual civiliza-
ção do Brasil e do mundo.
A biodiversidade funcional
Que é biodiversidade? – A biodiversidade é o conjunto de di-
versos organismos vivos que habitam a terra. Esse termo nos indica
o caráter diverso da vida, formada por bactérias, fungos e liquens,
protozoários e algas, bichos de diferentes tipos, insetos, moluscos,
crustáceos, peixes, plantas superiores, répteis e anfíbios, aves, ma-
míferos e outras espécies. O próprio homem forma parte da
biodiversidade terrestre, assim como a cultura dos diferentes gru-
pos humanos. O conceito de biodiversidade abarca também as di-
ferentes comunidades de organismos, ou seja, os ecossistemas, onde
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se criam condições especiais que permitem que se desenvolvam umas
ou outras espécies.
A etnobiodiversidade é a diversidade de culturas e raças da es-
pécie humana que habitam esse planeta. Com seus diferentes hábi-
tos, costumes, religião e relação com a natureza, a humanidade for-
ma uma imensa heterogeneidade.
A diversidade é a constante da vida. Ela não só se expressa nos
diferentes reinos, taxinomia, famílias, gêneros e espécies de organis-
mos vegetais e animais, mas também se manifesta dentro de indiví-
duos de uma mesma espécie, ainda que às vezes não consigamos
observá-la à primeira vista.
Quantos somos? – O número de organismos que habita a terra é
incalculável; basta dizer que em um só metro quadrado de solo podem
existir mais de 2 milhões de organismos pertencentes a mais de mil
espécies distintas de animais. Por outro lado, o número de espécies di-
ferentes que habitam o planeta não é conhecido. Atualmente, já foram
identificadas cerca de 1,75 milhão de espécies biológicas, embora a ci-
fra real das espécies existentes possa chegar aos 100 milhões.
Qual a importância da biodiversidade para a humanidade? – A
humanidade depende da biodiversidade para obter alimentos, me-
dicamentos, materiais para a elaboração de roupa e utensílios diver-
sos, materiais para a construção, energia, fins ornamentais, tintas,
cosméticos e outros. Não obstante essas principais qualidades, a
biodiversidade gera toda uma série de funções ecossistêmicas que
permitem manter a vida e as condições sobre as quais se desenvol-
vem os diferentes organismos vivos, inclusive a humanidade.
A Via Campesina Internacional propõe:
• “Que a Biodiversidade deve ser a base para garantir a soberania
alimentar, como um direito fundamental e básico – não negociável –
dos povos. Direito que deve prevalecer sobre as diretrizes da OMC.
Hoje, existem 800 milhões de pessoas com fome. Para resolver esse
problema, devemos pensar em utilizar os alimentos locais com que
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nos brinda a diversidade, apoiar os mercados locais e regionais, apli-
car a pesquisa, a tecnologia e a ciência com maior eqüidade”.
• “Uma moratória na bioprospecção (exploração, coleção e
recoleção, transporte e modificação genética) e o acesso aos recur-
sos genéticos e aos conhecimentos que os camponeses e as comuni-
dades indígenas possuem desses recursos, enquanto não existirem
mecanismos de proteção dos direitos de nossas comunidades para
prevenir e controlar a biopirataria”.
• “Proteger e promover os direitos dos agricultores sobre os re-
cursos genéticos, o acesso à terra, à água, ao trabalho e à cultura.
Isso deve passar por um amplo processo informativo e participativo
dos sujeitos para a preservação da biodiversidade. Para isso, estabe-
lecer um mecanismo de consulta e monitoramento permanente com
as organizações de produtores, indígenas e comunidades”.
Desde que o homem passou a fazer agricultura, há mais de 10
mil anos, os camponeses protegem e preservam a diversidade gené-
tica, selecionam as variedades mais produtivas e melhoram aquelas
menos eficientes.
A conservação, armazenamento e seleção de novas variedades
foram se desenvolvendo de geração em geração, os recursos genéti-
cos foram assim considerados uma responsabilidade dos produto-
res rurais. Depois da II Guerra Mundial, nos meados dos anos de
1940, quando a população urbana teve um grande crescimento em
relação à população rural, o assunto “alimento” se converteu em tema
e espaço de organismos internacionais e a produção de alimentos
foi também tratada por governos e instituições. Logo surgiu a cha-
mada “revolução verde”. As empresas agroalimentares cresceram
rapidamente, a produção de insumos e sementes foi adquirindo um
valor maior por se tratar de um negócio muito rentável.
Posteriormente, foram estabelecidos novos usos para os recursos
genéticos, criou-se o projeto genoma humano e a biotecnologia pas-
sou a fazer a manipulação genética de plantas, animais e humanos.
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A cada diferente etapa corresponderam diferentes formas de pro-
priedade dos recursos genéticos. Antes da entrada das multinacionais,
os recursos genéticos eram considerados patrimônios da humanida-
de e assim se subscreveu nos tratados internacionais.
Posteriormente, as empresas dedicadas às sementes e aos
insumos, assim como alguns fitomelhoradores, pressionaram para
que fossem reconhecidos os direitos dos obtentores e foi criada a
União Internacional de Proteção aos Direitos de Obtentor sobre
Variedades Vegetais (Upov). Na etapa atual, um grande número de
trabalhos da biotecnologia é conduzido sob o esquema de patentes
protegidas pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual e
pela OMC. Com isso, os materiais vivos entram em um regime si-
milar ao da propriedade industrial (leia-se propriedade privada).
Das 250 mil espécies de plantas superiores que se conhecem, a
cerca de 50% se atribui alguma utilidade direta para o homem. Apre-
sentam interesse alimentar entre 20 mil – 50 mil espécies de plan-
tas e cerca de 6 mil são relacionadas como plantas de cultivo no
Manual de Plantas Cultivadas de Bailey (1976). Na medicina tradi-
cional se empregam entre 25 mil e 75 mil espécies vegetais, das quais
só 1% foi estudada de forma aceitável suas propriedades terapêuti-
cas. Na atualidade, cerca de 20 mil são os compostos naturais pro-
cedentes das plantas até agora caracterizados pela indústria farma-
cêutica, de perfumaria e do ramo da fitoquímica. No entanto, essa
cifra representa uma ínfima parte da enorme diversidade química
do reino vegetal e animal.
O homem como criador da biodivO homem como criador da biodivO homem como criador da biodivO homem como criador da biodivO homem como criador da biodiversidadeersidadeersidadeersidadeersidade
A humanidade tem utilizado a diversidade existente na nature-
za para prover-se de alimentos. Mas, além disso, o homem, desde
que iniciou a agricultura, empreendeu um processo de criar diver-
sidade. Durante a Revolução Agrícola do Neolítico, o homem não
só domesticou as espécies animais e vegetais, mas também seu tra-
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balho de seleção deu lugar ao aparecimento de novas espécies vege-
tais não existentes nas espécies silvestres, como o milho.
A grande diversidade de variedades das espécies cultivadas que
conhecemos (muitas desaparecidas ou em vias de desaparecimen-
to) se devem à adaptação que o homem fez às diferentes condições
sobre as quais cultivou e se desenvolveu a agricultura a suas prefe-
rências e diferentes estratégias de sobrevivência.
Exemplos dessa tremenda diversidade das espécies cultivadas encon-
tramos por todo o mundo. Na China, até a metade do século passado,
se cultivava mais de dez mil variedades de trigo. Na Índia, se emprega-
vam mais de 30 mil variedades de arroz. Em algumas chácaras dos Andes,
foram encontrado mais de 50 variedades de batatas em uma mesma
comunidade, algumas resistentes à neve, outras à seca, adaptadas a di-
ferentes altitudes ou tipos de solos e com diferentes características
nutricionais, medicinais e rituais. Não só foi importante a criação de
diversidade, também foi o conhecimento adquirido no seu manejo, os
sistemas agrícolas desenvolvidos e o uso da flora e da fauna silvestre.
A biodivA biodivA biodivA biodivA biodiversidade está em perigoersidade está em perigoersidade está em perigoersidade está em perigoersidade está em perigo
Se bem o homem contribuiu com a criação de biodiversidade,
a atual civilização está provocando uma enorme destruição da
biodiversidade do planeta, tanto do número de espécies quanto de
ecossistemas, atingindo também grupos humanos e seus conheci-
mentos, sua cultura, sua tradição e seus costumes.
Devemos assinalar que a extinção de espécies é um processo
natural da evolução. O que não é normal é o ritmo que vem ocor-
rendo em nossos dias. A taxa de extinção normal

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