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NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO Coordenação Pedagógica – IBRA DISCIPLINA A HISTÓRIA DA ÁFRICA E ALGUMAS TEORIAS Sumário 1. A HISTÓRIA DA ÁFRICA E ALGUMAS TEORIAS .............................................................. 3 2. CONCEPÇÕES DA HISTÓRIA DA ÁFRICA: EUROCENTRISMO, AFROCENTRISMO ... 14 3. A CRONOLOGIA PARA ESTUDAR A HISTÓRIA DA ÁFRICA ......................................... 23 4. O QUADRIPARTISMO FRANCÊS ..................................................................................... 28 5. UMA ABORDAGEM MULTI E INTERDISCIPLINAR: HISTÓRIA E ARQUEOLOGIA, HISTÓRIA E ETNOLOGIA, HISTÓRIA E ORALIDADE ......................................................... 30 REFERÊNCIAS UTILIZADAS E CONSULTADAS: ................................................................ 36 1. A HISTÓRIA DA ÁFRICA E ALGUMAS TEORIAS - Sobre teorias raciais: Nenhum trabalho sobre a África seria completo se não houvesse uma apresentação e mesmo discussão das teorias raciais. Nesse sentido a Fundação Mauricio Grabois traz um extrato do documento Introdução às Realidades Econômicas e Sociais do Daomé – NBE, Paris, e que apresentamos nesta apostila para pensar as questões raciais que influíram para o escravagismo e que de certa forma estão alicerçadas ainda, nas sociedades, no que diz respeito às práticas racistas que ainda perduram. Diz o documento: em sua célebre obra A Origem das Espécies por Meio da Seleção Natural, Darwin demonstrou que os animais e as plantas se modificam e se transformam sem cessar, que o aparecimento de formas novas, assim como o desaparecimento das antigas, não é devido a um ato criador de Deus, mas resultado de uma evolução natural e histórica. As pesquisas ulteriores efetuadas em animais e plantas fósseis confirmaram a teoria evolucionista de Darwin e comprovaram que os organismos antigos têm uma estrutura mais simples que a dos organismos recentes e que o homem evoluiu das formas menos complexas às formas mais complexas. Darwin explicou, em sua teoria, como a variabilidade e a hereditariedade são propriedades dos organismos. As modificações úteis à planta ou ao animal, em sua luta pela vida, fixam-se, acumulam-se e, transmitindo-se por hereditariedade, determinam o aparecimento de novas formas vegetais e animais. Como assinalou Marx, “Darwin assestou um golpe mortal à „teologia ‟nas ciências naturais”. Isto constituiu grande vitória da interpretação materialista dos fenômenos da natureza. Não obstante, Marx e Engels consideravam que a doutrina darwiniana continha erros essenciais, notadamente quando afirmava que a luta no seio de uma mesma espécie constituía fator decisivo do fenômeno biológico, dando razão assim à teoria reacionária de Malthus1, o malthusianismo. 1 1 A Teoria Populacional Malthusiana foi desenvolvida por Thomas Malthus, economista, estatístico, demógrafo e estudioso das Ciências Sociais. Malthus observou que o crescimento populacional, entre 1650 e 1850, dobrou decorrente do aumento da produção de alimentos, das melhorias das condições de vida nas cidades, do aperfeiçoamento do combate às doenças, das melhorias no saneamento básico, e os benefícios obtidos com a Revolução Industrial, fizeram com que a taxa de mortalidade declinasse, ampliando assim o crescimento natural. Com efeito, se Darwin pôde demonstrar de maneira irrefutável a origem do homem a partir dos macacos antropoides, ele não soube sair do terreno puramente biológico para dar uma solução completa a este problema. Coube aos fundadores do marxismo resolver cabalmente o problema da origem do homem, ao demonstrar que foi o trabalho e o emprego de ferramentas o que mais contribuiu para separar o homem do animal irracional. (DOCUMENTO, apud FUNDAÇÃO MAURÍCIO GRABOIS, 1981, s/p) Em sua obra O Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em Homem, Engels escreveu: “O trabalho, dizem os economistas, é a fonte de todas as riquezas. E o é efetivamente (...) em conjunto com a natureza que lhe fornece a matéria a ser convertida em riqueza. Mas o trabalho é infinitamente mais importante ainda. É a condição fundamental, primeira, de toda a vida humana e a tal ponto que, num certo sentido, se pode afirmar: o trabalho criou o homem”. “As raças humanas são o resultado do desenvolvimento histórico”. Assim, a teoria de Darwin e a ciência opõem o monogenismo ao poligenismo – teoria da origem do homem a partir de macacos diferentes. A teoria racista do poligenismo perdeu seus apoios principais, e a Declaração Sobre a Raça e os Preconceitos Raciais (UNESCO, Paris, 26.9.77) reconhece: a) todos os homens que vivem em nossos dias pertencem à mesma espécie e descendem da mesma fonte; b) a divisão da espécie humana em raças é, em parte, convencional e arbitrária, não implica em hierarquia de qualquer ordem que seja. Numerosos antropólogos acentuam a importância da variabilidade humana, mas creem que as divisões “raciais” têm interesse científico limitado e podem conduzir a uma abusiva generalização; c) no estágio atual dos conhecimentos biológicos, não se poderia atribuir as realizações culturais dos povos a diferenças de potencial genético. As diferenças Preocupado com o crescimento populacional acelerado, Malthus publica em 1798 uma série de ideias alertando a importância do controle da natalidade, afirmando que o bem estar populacional estaria intimamente relacionado com crescimento demográfico do planeta. Malthus alertava que o crescimento desordenado acarretaria na falta de recursos alimentícios para a população gerando como consequência a fome. Malthus foi, ainda mais além em suas pesquisas afirmando que o crescimento populacional funcionava conforme uma progressão geométrica, enquanto que a produção de alimentos, mesmo nas melhores condições de produção dos setores agrícolas só poderiam alcançar o crescimento em forma de uma progressão aritmética. entre tais realizações explicam-se plenamente por sua história cultural. Os povos do mundo de hoje mostram possuir potenciais biológicos iguais, o que lhes permite atingir qualquer nível de civilização. O racismo falsifica grosseiramente os conhecimentos relativos à biologia humana. Deste modo, a ciência marxista obtém nesse aspecto importante vitória. O trabalho e o uso de instrumentos de trabalho permitiram as modificações físicas no ser humano, o desenvolvimento de sua mão e de seu cérebro, o aparecimento da linguagem falada, que criaram uma distinção essencial entre o homem e os outros animais. (...) (DOCUMENTO, apud FUNDAÇÃO MAURICIO GRABOIS, 1981, s/p) É preciso dizer que os agrupamentos raciais se caracterizam por uma forte variabilidade individual, e as demarcações entre as diferentes raças são geralmente intermediárias, assim como a unificação mais estreita do tipo corporal da humanidade e de suas raças. Hoje, pode-se afirmar que não existe em nenhuma parte do mundo “raças puras”. O monogenismo do homem, cientificamente provado, a criação do homem pelo trabalho e o seu desenvolvimento histórico, onde predominam os fatores sociais, reforçam a tese de Marx e Engels segundo a qual as diferenças rácicas serão eliminadas pela evolução histórica da humanidade. Daomé é um país de 112 mil quilômetros quadrados, na África negra, povoado essencialmente de negros, que se dividem geralmente em dois tipos: o sudanês e o guineense. Não é fácil distinguir estes dois tipos na atual população do país, pelas características que se lhes atribui, em consequência de seu desenvolvimento histórico (trocas comerciais e culturais, migrações, mestiçagens etc.). As dificuldades de delimitação desses dois tipos provêm igualmente do fato de as populações de Daomé manterem desde longo tempo trocas comerciaise culturais com outros tipos e outras raças (europóide, principalmente portuguesa). Segundo nossa opinião, e nosso conhecimento, as sub-raças na África não têm sido objeto de estudos sérios até agora. Sua classificação esquemática e sua localização comportam larga margem de incerteza. Pelas conclusões a que chegamos, podemos dizer que a população de Daomé é quase exclusivamente negróide. Uma coisa é certa: constitui parte da humanidade (três milhões de seres) vivendo num território que se desdobra ao longo do Atlântico até o rio Níger. Se a origem do povoamento de Daomé e de toda a África é ainda questão a ser aprofundada, desde já devemos rejeitar todas as teorias malthusianistas e social-darwinistas, racistas e reacionárias, tanto em antropologia como em sociologia. Para os defensores do social-darwinismo, a luta pela vida aplica-se igualmente às sociedades humanas, disto deduzindo que sobrevivem os indivíduos fortes e bem adaptados enquanto sucumbem os fracos. As teorias racistas, partindo de pretensa superioridade de certas raças em relação a outras, procuram legitimar a escravidão negra, a opressão colonial e a exploração imperialista dos povos das quais a população de Daomé continua a ser vítima. A raça negra, em geral, tem sofrido com o racismo, particularmente com o europeu. Mas as outras raças conheceram elas também, esse sofrimento. É bastante citar o exemplo do racismo hitlerista, do qual os povos europeus foram vítimas. O fenômeno racista, se bem que passe, atualmente, por um claro recuo, possui sobrevivências e sequelas sérias. Teorias confusas lhe servem de ponto de apoio. As noções de raça, de nação, de língua, de cultura são confundidas, assim como os fenômenos biológicos, com os fenômenos sociais. Esta barafunda é extremamente prejudicial, dado que concorrem para transportar as desigualdades no desenvolvimento social para o plano biológico. Se o racismo está ligado às diferenças biológicas objetivas, às diferenças raciais, devemos dizer que é, antes de tudo, o desenvolvimento desigual das sociedades que o tem engendrado. As teorias racistas são o reflexo deformado das desigualdades sociais no cérebro daqueles que as sustentam. Chega-se mesmo a ouvir de sábios burgueses declarações tais como: “Nós, homens de ciências exatas, somos uma raça à parte”. E afirmam tão mísero pensamento com a maior seriedade. Para nós, (...) o homem tem um ascendente comum e, biologicamente, atingiu elevado desenvolvimento. Mas a existência das raças é um dado objetivo. O racismo, gerado pelo desenvolvimento desigual das sociedades, das classes e da luta de classes, tornou-se uma chaga da humanidade. Fenômenos sociais como a opressão colonial, a exploração imperialista da qual nossos povos foram vítimas – e continuam a ser – não encontram absolutamente justificativa nas diferenças raciais. As teorias racistas foram inventadas para justificar e eternizar a dominação de alguns povos pelas potências estrangeiras. Estas teorias influenciaram negativamente os povos africanos em geral e os do Daomé, em particular, sendo a causa de alienações diversas do homem e cujos verdadeiros fundamentos precisam ser desvendados para que os possamos eliminar. (DOCUMENTO, apud FUNDAÇÃO MAURICIO GRABOIS, 1981, s/p) Já para o historiador Ki-Zerbo (2008, s/p) o conceito de raça é um dos mais difíceis de definir cientificamente. Se admitirmos, como a maioria dos especialistas posteriores a Darwin, que a espécie humana pertence a um único tronco, a teoria das “raças” só pode ser desenvolvida cientificamente dentro do contexto do evolucionismo. Com efeito, a raciação se inscreve no processo geral da evolução diversificadora. Como observa J. Ruffie, ela requer duas condições: em primeiro lugar, o isolamento sexual, frequentemente relativo, que provoca pouco a pouco uma paisagem genética e morfológica singular. A raciação, portanto, baseia-se num estoque gênico diferente, causado quer por oscilação genética (o acaso na transmissão dos genes faz com que um deles se transmita com mais frequência que outro, ou, ao contrário, que seu alelo seja o mais largamente difundido), quer por seleção natural. Esta conduz a uma diversificação adaptativa, graças à qual um grupo tende a conservar o equipamento genético que o adapte melhor a um certo meio. (KI-ZERBO, 2008, s/p) Continuando Ki-Zerbo (2008, s/p) explica que na África, ambos os processos devem ter ocorrido. De fato, a oscilação genética, que se exprime ao máximo em pequenos grupos, operou em etnias restritas, submetidas a um processo social de cissiparidade por ocasião das disputas de sucessão ou de terras e em virtude das grandes áreas virgens disponíveis. Esse processo marcou particularmente o patrimônio genético das etnias endógamas ou florestais. Quanto à seleção natural, ela teve a oportunidade de entrar em jogo em ecologias tão contrastantes como as do deserto e da floresta densa, dos altos planaltos e das costas recobertas de mangues. Em resumo, do ponto de vista biológico, os homens de uma “raça” têm em comum alguns fatores genéticos que num outro grupo “racial” são substituídos por seus alelos; entre os mestiços, coexistem os dois tipos de genes. Como era de esperar, a identificação das “raças” se fez em primeiro lugar a partir de critérios aparentes, para em seguida ir considerando, pouco a pouco, realidades mais profundas. Aliás, as características exteriores e os fenômenos internos não estão absolutamente separados. Se certos genes comandam os mecanismos hereditários que determinam a cor da pele, por exemplo, esta também está ligada ao meio ambiente. Observou-se uma correlação positiva entre estatura e temperatura mais elevada do mês mais quente e uma correlação negativa entre estatura e umidade. Da mesma forma, um nariz fino aquece melhor o ar num clima mais frio e umidifica o ar seco inspirado. É assim que o índice nasal aumenta consideravelmente nas populações subsaarianas, do deserto para a floresta, passando pela savana. Embora possuindo o mesmo número de glândulas sudoríparas que os brancos, os negros transpiram mais, o que mantém seu corpo e sua pele numa temperatura menos elevada. Existem, portanto, diversas etapas na investigação científica no que diz respeito às raças. (KI- ZERBO, 2008, s/p) - A abordagem morfológica: Eickstedt, por exemplo, aponta Ki-Zerbo (1008, s/p) define as raças como “agrupamentos zoológicos naturais de formas pertencentes ao gênero dos hominídeos, cujos membros apresentam o mesmo conjunto típico de caracteres normais e hereditários no nível morfológico e no nível comportamental”. Desde a cor da pele e a forma dos cabelos ou do sistema piloso, até os caracteres métricos e não métricos, a curvatura femural anterior e as coroas e os sulcos dos molares, foi construído um verdadeiro arsenal de observações e mensurações. Deu-se atenção especial ao índice cefálico, por estar relacionado à parte da cabeça que abriga o cérebro. É assim que Dixon estabelece os diversos tipos em função de três índices combinados de vários modos: o índice cefálico horizontal, o índice cefálico vertical e o índice nasal. Contudo, das 27 combinações possíveis, apenas oito (as mais frequentes) foram aceitas como representativas dos tipos fundamentais, tendo sido as 19 restantes consideradas misturas. No entanto, as características morfológicas são apenas um reflexo mais ou menos deformado do estoque gênico; sua conjugação num protótipo ideal raramente se realiza com perfeição. De fato, trata-se de detalhes evidentes situados na fronteira homem/meio ambiente, mas que, justamente por isso, são muito menos inatos que adquiridos. Reside aí uma das maiores fraquezas da abordagem morfológica e tipológica, na qual as exceções acabam por ser mais importantes e mais numerosas que a regra. Além disso, não se devem negligenciar as querelas acadêmicassobre as modalidades de mensuração (como, quando, etc.), que impedem as comparações úteis. As estatísticas de distância multivariada e os coeficientes de semelhanças raciais, as estatísticas de “formato” e de “forma”, a distância generalizada de Nahala Nobis requerem tratamento por computador. Ora, as raças são entidades biológicas reais que devem ser examinadas como um todo e não parte por parte. (KI-ZERBO, 2008, s/p) - A abordagem demográfica ou populacional: Segundo Ki-Zerbo (2008, s/p) este método vai insistir, de imediato, sobre fatos grupais (reservatório gênico ou genoma), mais estáveis que a estrutura genética conjuntural dos indivíduos. De fato, na identificação de uma raça, é mais importante a frequência das características que ela apresenta do que as próprias características. Como o método morfológico está praticamente abandonado, os elementos serológicos ou genéticos podem ser submetidos a regras de classificação mais objetivas. Para Landman, uma raça é “um grupo de seres humanos que (com raras exceções) apresentam entre si mais semelhanças genotípicas e frequentemente também fenotípicas do que com os membros de outros grupos”. Alekseiev desenvolve também uma concepção demográfica das raças com denominações puramente geográficas (norte-europeus, sul-africanos, etc). Schwidejzky e Boyd acentuaram a sistemática genética: distribuição dos grupos sanguíneos A, B e O, combinações do fator Rh, gene da secreção salivar, etc. O hemotipologista também leva em conta a anatomia, mas no nível da molécula. No que diz respeito à micromorfologia, descreve as células humanas cuja estrutura imunológica e cujo equipamento enzimático são diferenciados, sendo o tecido sanguíneo o material mais prático para isso. Os marcadores sanguíneos representam um salto histórico qualitativo na identificação científica dos grupos humanos. Suas vantagens em relação aos critérios morfológicos são decisivas. Primeiramente, eles são quase sempre monométricos, isto é, sua presença depende de um só gene, enquanto o índice cefálico, por exemplo, é o produto de um complexo de fatores dificilmente localizáveis (...) (KI-ZERBO, 2008, s/p) Apesar de seus desempenhos excepcionais, contudo, o método hemotipológico e populacional encontra dificuldades. Primeiramente, porque seus parâmetros se multiplicam enormemente e já estão apresentando resultados estranhos a ponto de serem encarados por alguns como aberrantes. É assim que a árvore filogênica das populações elaborada por L. L. Cavalli-Sforza difere da árvore antropométrica. Esta coloca os Pigmeus e os San da África no mesmo ramo antropométrico que os negros da Nova Guiné e da Austrália; na árvore filogênica, esses mesmos Pigmeus e San aproximam-se mais dos franceses e ingleses e os negros australianos dos japoneses e chineses. Em outras palavras, os caracteres antropométricos são mais afetados pelo clima que os genes, de modo que as afinidades morfológicas são mais uma questão de meios similares que de hereditariedades similares. (KI-ZERBO, 2008, s/p) Os trabalhos segundo Ki-Zerbo (2008, s/p) de R. C. Lewontin, com base nas pesquisas dos hemotipologistas, mostram que, no mundo inteiro, mais de 85 % da variabilidade situa-se no interior das nações. Somente 7 % da variabilidade separa as nações que pertencem à mesma raça tradicional e também apenas 7% separam as raças tradicionais. Em resumo, os indivíduos do mesmo grupo “racial” diferem mais uns dos outros que as “raças”. É por isso que cada vez mais especialistas adotam a posição radical que consiste em negar a existência de qualquer raça. Segundo J. Ruffie, nas origens da humanidade pequenos grupos de indivíduos separados em zonas ecológicas diversificadas e afastadas, obedecendo a pressões seletivas muito fortes - enquanto os meios técnicos eram extremamente limitados -, puderam se diferenciar a ponto de dar origem às variantes Homo erectus, Homo neanderthalensis e o mais antigo Homo sapiens. O bloco facial, que é a parte do corpo mais exposta a meios ambientes específicos, evoluiu diferentemente; a riqueza de pigmentos melanínicos na pele desenvolveu-se em zona tropical, etc. Mas essa tendência especializante, rapidamente bloqueada, permaneceu embrionária. Em toda parte, o homem se adapta culturalmente (roupas, habitat, alimentos, etc.), e não mais morfologicamente, a seu meio. O homem nascido nos trópicos (clima quente) evoluiu por muito tempo como australopiteco, Homo habilis e até mesmo Homo erectus. “Foi apenas durante a segunda glaciação que, graças ao controle eficaz do fogo, o Homo erectus optou por viver em climas frios. A espécie humana transforma-se de politípica em monotípica e esse processo de desraciação parece irreversível. Hoje, a humanidade inteira deve ser considerada como um único reservatório de genes intercomunicantes”. (...) Hoje, embora não se possa traçar uma fronteira linear, dois grandes grupos “raciais” são identificáveis no continente africano dos dois lados do Saara: no norte, o grupo árabe-berbere, com patrimônio genético “mediterrâneo” (líbios, semitas, fenícios, assírios, gregos, romanos, turcos, etc.); no sul, o grupo negro. Convém notar que as mudanças climáticas, que às vezes anularam o deserto, provocaram durante milênios numerosas mesclas populacionais. A partir de várias dezenas de marcadores sanguíneos, Nei Masatoshi e A. R. Roy Coudhury estudaram as diferenças genéticas inter e intragrupos em caucasoides e mongoloides. Eles definiram coeficientes de correlação, a fim de estabelecer o período aproximado em que esses povos se separaram e constituíram grupos distintos. Ao que tudo indica, o grupo negróide tornou-se autônomo há 120 000 anos, enquanto os mongoloides e caucasoides individualizaram-se há apenas 55000 anos. Segundo J. Ruffie, “esse esquema ajusta-se à maior parte dos dados da hemotipologia fundamental”. A partir dessa época, muitas misturas se realizaram no continente africano. (KI-ZERBO, 2008, s/p) Além disso, aponta Ki-Zerbo (2008, s/p) a respeito do homem subsaariano, é preciso notar que seu nome original, atribuído por Lineu, era Homo ater (africano). Depois, eles foram chamados “negros” e, mais tarde, “pretos”. O termo “negróide”, mais abrangente, era usado às vezes para designar todas as pessoas que, às margens do continente ou em outros continentes, se pareciam com os pretos. Hoje, apesar de algumas notas dissonantes, a grande maioria dos especialistas reconhece a unidade genética fundamental dos povos subsaarianos. Segundo Boyd, autor da classificação genética das “raças” humanas, existe apenas um grupo negróide que compreende toda a parte do continente situada ao sul do Saara e também a Etiópia; esse grupo difere sensivelmente de todos os demais. Os trabalhos de J. Hiemaux estabeleceram essa tese com notável clareza. Sem negar as variantes locais aparentes, ele demonstra, pela análise de 5050 distâncias entre 101 populações, a uniformidade dos povos no hiperespaço subsaariano, que engloba tanto os “Sudaneses” quanto os “Bantu”; tanto os habitantes das regiões costeiras quanto os Sahelianos; tanto os “Khoisan” quanto os Pigmeus, os Nilotas, os Peul e outros “Etiópidas”. Em compensação, ele mostra a grande distância genética que separa os “negros asiáticos” dos negros africanos. Mesmo no campo da linguística, que nada tem a ver com o fato “racial”, mas que foi utilizada em teorias racistas para inventar uma hierarquia das línguas que refletisse a pretensa hierarquia das “raças”, na qual os “verdadeiros negros” ocupavam o grau mais baixo da escala, as classificações evidenciam cada vez mais a unidade fundamental das línguas africanas. As variantes somáticas podem ser explicadas cientificamente pelas causas das mudanças discutidas acima, especialmente os biótipos que ora dão origem a agregados de populações mais compósitas (vale do Nilo), oraa grupos populacionais isolados, que desenvolvem características mais ou menos atípicas (montanhas, florestas, pântanos, etc.). Por fim, a história explica outras anomalias através das invasões e migrações, sobretudo nas zonas periféricas. A influência biológica da península Arábica no chamado “Chifre da África” também se evidencia nos povos dessa região, como os Somali, os Galla e os etíopes, mas também, com certeza, nos Tubu, Peul, Tukulor, Songhai, Haussa, etc. Já tivemos oportunidade de ver alguns Marka (Alto Volta) com um perfil tipicamente “semita”. Em suma, conclui Ki-Zerbo (2008, s/p) a admirável variedade dos fenótipos africanos é sinal de uma evolução particularmente longa desse continente. Os fósseis pré-históricos de que dispomos indicam uma implantação semelhante às encontradas no sul do Saara numa área muito vasta, que vai da África do Sul até o norte do Saara, tendo a região sudanesa representado, ao que parece, o papel de encruzilhada nessa difusão. Com certeza, a história da África não é uma história de “raças”. Contudo, para justificar uma certa história, abusou-se demais do mito pseudocientífico da superioridade de algumas “raças”. Ainda hoje, o mestiço é considerado branco no Brasil e Preto nos Estados Unidos da América. A ciência antropológica, que já demonstrou amplamente não haver nenhuma relação entre a raça e o grau de inteligência, constata que essa conexão as vezes existe entre raça e classe social. A preeminência história da cultura sobre a biologia é evidente desde a aparição do Homo no planeta. Quando irá tal evidência impor-se aos espíritos? (KI-ZERBO, 2008, s/p) 2. CONCEPÇÕES DA HISTÓRIA DA ÁFRICA: EUROCENTRISMO, AFROCENTRISMO - Eurocentrismo: Para Praxedes (2008, s/p) realizar uma pesquisa para encontrar aspectos eurocêntricos e racistas nas obras dos mais reconhecidos pensadores considerados clássicos chega a ser uma tarefa simples. O problema é que geralmente esta não é uma preocupação dos estudiosos e dos professores universitários. Em consequência, nos cursos de licenciatura e de bacharelado para a formação de novos professores e pesquisadores, os acadêmicos passam anos estudando os autores para aprender a contribuição original de cada um para o conhecimento “universal”, atribuindo possíveis deslizes etnocêntricos como próprios do contexto intelectual de produção das obras. Muitas vezes relevamos o fato de filósofos, cientistas, sacerdotes, artistas, viajantes e colonizadores classificarem os grupos humanos que abordavam em seus trabalhos como pertencentes a raças e etnias misteriosas, donas de comportamentos selvagens, ideias atrasadas, costumes e religiões primitivas e bizarras, aparência horripilante e ideias irracionais. Como se o nosso mundo não europeu fosse habitado por seres aos quais era negado o reconhecimento como humanos. O homo sapiens foi dividido pela filosofia e pela ciência europeias em “uma hierarquia de raças que desumanizou e reduziu os subordinados tanto ao olhar científico como ao desejo dos superiores”. (SAID, 2004, p. 52, apud PRAXEDES, 2008, s/p) Em seu livro Rediscutindo a mestiçagem no Brasil, o professor Kabengele Munanga demonstra como inúmeros autores europeus considerados clássicos e inatacáveis em nossos currículos advogam as mais ensandecidas teorias racistas. Segundo Kabengele: “na vasta reflexão dos filósofos das luzes sobre a diferença racial e sobre o alheio, o mestiço é sempre tratado como um ser ambivalente visto ora como o “mesmo”, ora como o “outro”. Além do mais, a mestiçagem vai servir de pretexto para a discussão sobre a unidade da espécie humana. Para Voltaire, é uma anomalia, fruto da união escandalosa entre duas raças de homens totalmente distintas. A irredutibilidade das raças humanas não está apenas na aparência exterior: “não podemos duvidar que a estrutura interna de um negro não seja diferente da de um branco, porque a rede mucosa é branca entre uns e preta entre outros”. Os mulatos são uma raça bastarda oriunda de um negro e uma branca ou de um branco e uma negra”. (MUNANGA, 1999, p. 23, apud PRAXEDES, 2008, s/p) O filósofo Emmanuel Kant, por exemplo, presença obrigatória nos currículos dos cursos de filosofia em nosso país e no mundo a fora, na sua obra Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, de 1764, trata do que denomina como “diferenças entre os caracteres das nações”, segundo ele, na tentativa “apenas de esboçar traços que neles exprimem os sentimentos do sublime e do belo”, mas sem a intenção de “ofender a ninguém”. “Na minha opinião, escreve Kant, entre os povos do nosso continente, os italianos e os franceses são aqueles que se distinguem pelo sentimento do belo; já os alemães, os ingleses e espanhóis, pelo sentimento de sublime (...) O espanhol é sério, reservado e sincero (...) O francês possui um sentimento dominante para o belo moral. É cortês, atencioso e amável (...) No início de qualquer relação o inglês é frio, mantendo-se indiferente a todo estranho. Possui pouca inclinação a pequenas delicadezas; todavia, tão logo é um amigo, se dispõe a grandes favores (...) O alemão no amor, tanto quanto nas outras espécies de gosto, é assaz metódico, e, unindo o belo e o nobre, é suficientemente frio no sentimento de ambos para ocupar a mente com considerações acerca do decoro, do luxo ou daquilo que chama a atenção (...)” (KANT, 1993, p. 65-70, apud PRAXEDES, 2008, s/p) Ainda para Praxedes (2008, s/p) depois de caracterizar os povos dos outros continentes, desta vez realçando aqueles aspectos que considera extravagantes, grosseiros e exagerados, Kant expõe as suas opiniões sobre os negros, suas manifestações culturais e formas de religiosidade, revelando toda a sua ignorância e arrogância. Para Kant: “os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo em que um Negro tenha mostrado talentos, e afirma: dentre os milhões de pretos que foram deportados de seus países, não obstante muitos deles terem sido postos em liberdade, não se encontrou um único sequer que apresentasse algo grandioso na arte ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão; já entre os brancos, constantemente arrojam-se aqueles que, saídos da plebe mais baixa, adquirem no mundo certo prestígio, por força de dons excelentes. Tão essencial é a diferença entre essas duas raças humanas, que parece ser tão grande em relação às capacidades mentais quanto à diferença de cores. A religião do fetiche, tão difundida entre eles, talvez seja uma espécie de idolatria, que se aprofunda tanto no ridículo quanto parece possível à natureza humana. A pluma de um pássaro, o chifre de uma vaca, uma concha, ou qualquer outra coisa ordinária, tão logo seja consagrada por algumas palavras, tornam-se objeto de adoração e invocação nos esconjuros. Os negros são muito vaidosos, mas à sua própria maneira, e tão matraqueadores, que se deve dispersá-los a pauladas.” (KANT, 1993, p. 75-76, apud PRAXEDES, 2008, s/p) Um outro grande expoente do pensamento filosófico ocidental, Hegel, via nos nativos americanos “mansidão e indiferença, humildade e submissão perante um crioulo (branco nascido na colônia), e ainda mais perante um europeu”. Segundo o filósofo alemão “ainda custará muito até que europeus lá cheguem para incutir-lhes uma dignidade própria. A inferioridade desses indivíduos, sob todos os aspectos, até mesmo o da estatura, é fácil de reconhecer” (HEGEL, 1999, p. 74- 75). Sobre os negros, o grande filósofo alemão escreve que: “a principal característica dos negros é que sua consciência ainda não atingiu a intuição de qualquer objetividade fixa, como Deus, como leis, pelas quais o homem se encontraria com a própria vontade, e onde ele teria uma ideiageral de sua essência (...) o negro representa, como já foi dito o homem natural, selvagem e indomável. Devemos nos livrar de toda reverência, de toda moralidade e de tudo o que chamamos sentimento, para realmente compreendê-lo. Neles, nada evoca a ideia do caráter humano (...) a carência de valor dos homens chega a ser inacreditável. A tirania não é considerada uma injustiça e comer carne humana é considerado algo comum e permitido (...) entre os negros, os sentimentos morais são totalmente fracos – ou, para ser mais exato inexistentes”. (HEGEL, 1999, p. 83-86, apud PRAXEDES, 2008, s/p) Depois de fazer tais considerações, o filósofo conclui esta parte de sua obra argumentando que não irá mais tratar da África, pois a mesma “não faz parte da história mundial; não tem nenhum movimento ou desenvolvimento para mostrar” (HEGEL, 1999, p. 88) e mesmo o Egito, embora situado no norte da África, Hegel o interpreta “como transição do espírito humano do Oriente para o Ocidente, mas ele não pertence ao espírito africano”. O continente africano é assim eliminado da “história universal”, enquanto é retirada dos povos que lá habitam a condição de seres humanos. Esta é uma das heranças eurocêntricas da filosofia de Hegel, o filósofo que mais influenciou na elaboração do pensamento dialético de Karl Marx. (PRAXEDES, 2008, s/p) Continuando Praxedes (2008, s/p) aponta que nos clássicos da sociologia as representações depreciativas sobre o “outro” não europeu também podem ser facilmente encontradas. O fundador e criador do nome da disciplina, Augusto Comte, no seu famoso Curso de Filosofia Positiva se pergunta, na Lição 52, “Por que a raça branca possui de modo tão pronunciado, o privilégio efetivo do principal desenvolvimento social e porque a Europa tem sido o lugar essencial dessa civilização preponderante?” Ele mesmo responde: “Sem dúvida já se percebe, quanto ao primeiro aspecto, na organização característica da raça branca, e, sobretudo quanto ao aparelho cerebral, alguns germes positivos de sua superioridade” (COMTE, citado por ARON, 1982, p. 121-122, apud PRAXEDES, 2008, s/p). O também francês Alexis de Tocqueville, que viveu na mesma época de Comte, e é considerado um dos grandes clássicos da ciência política, realizou uma viagem para os Estados Unidos, nos anos de 1831 e 1832, da qual resultou o seu livro mais conhecido, A democracia na América. Na segunda parte da obra o autor discute sobre “o futuro provável das três raças que habitam o território dos Estados Unidos”. Segundo Tocqueville, ente os homens que compõem a jovem nação “o primeiro que atrai os olhares, o primeiro em saber, em força, em felicidade, é o homem branco, o europeu, o homem por excelência; abaixo dele surgem o negro e o índio. Essas duas raças infelizes não têm em comum nem o nascimento, nem a fisionomia, nem a língua, nem os costumes. Ocupam ambas uma posição igualmente inferior no país onde vivem (...)” (TOCQUEVILLE, 1977, p. 243-244). Tocqueville reconhece a opressão exercida pelos colonizadores europeus sobre os negros e índios, mas também não deixa de considerar os mesmos como selvagens e inferiores. Sobre os negros, o nobre francês não economiza adjetivos depreciativos em sua obra: “O escravo moderno não difere do senhor apenas pela liberdade. Mas ainda pela origem. Pode-se tornar livre o negro, mas não seria possível fazer com que não ficasse em posição de estrangeiro perante o europeu. E isso ainda não é tudo: naquele homem que nasceu na degradação, naquele estrangeiro introduzido entre nós pela servidão, apenas reconhecemos os traços gerais da condição humana. O seu rosto parece-nos horrível, a sua inteligência parece-nos limitada, os seus gostos são vis, pouco nos falta para que o tomemos por um ser intermediário entre o animal e o homem” (TOCQUEVILLE, 1977, p. 262, apud PRAXEDES, 2008, s/p). Nem mesmo na obra de um dos autores mais influentes sobre a sociologia contemporânea como Max Weber, deixamos de encontrar expressões grosseiras e racistas em referência aos negros. Weber é o autor do livro A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, que foi considerado por alguns estudiosos brasileiros o melhor livro de não ficção do século XX (Folha de São Paulo 11/04/1999). Na segunda parte da obra em que Weber mais trabalhou em sua vida, Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva, o autor discute de passagem a ideia de “pertinência à raça”, e comenta que, “nos Estados Unidos, uma mínima gota de sangue negro desqualifica uma pessoa de modo absoluto, enquanto que isso não ocorre com pessoas com quantidade considerável de sangue índio” (WEBER, 1991, p. 268). Até este ponto o texto parece descritivo e é apresentado como uma constatação da situação existente naquele país. Mas, logo a seguir, o Weber sempre tão cuidadoso em tentar controlar os juízos de valor emitidos em sua obra afirma: “além da aparência dos negros puros, que do ponto de vista estético, é muito mais estranha do que a dos índios e certamente constitui um fator de aversão, sem dúvida contribui para esse fenômeno a lembrança de os negros, em oposição aos índios, terem sido um povo de escravos, isto é, um grupo está mentalmente desqualificado” (WEBER, 1991, p. 268, apud PRAXEDES, 2008, s/p). Como podemos ler acima, além da “aparência dos negros puros” (...), que “certamente constitui um fator de aversão” para o grande sociólogo alemão, ele também considera que entre as “maiores diferenças raciais (...)”, “como eu pude observar”, argumenta Weber, também deve constar o que ele denomina como “o propalado cheiro de negro” (WEBER, 1991, p. 272, apud PRAXEDES, 2008, s/p). O pensamento clássico europeu não difunde representações depreciativas apenas sobre negros e índios. Émile Durkheim, por exemplo, outro autor considerado um dos fundadores da sociologia na França, em seu livro Da Divisão do Trabalho Social, ao tratar das diferenças entre os gêneros masculino e feminino, se baseou nas pesquisas do cientista Lebon, para quem: “(...) o volume do crânio do homem e da mulher, mesmo quando se comparam pessoas de igual idade, estatura e peso iguais, apresenta diferenças consideráveis em favor do homem e esta desigualdade vai igualmente crescendo com a civilização, de maneira que, do ponto de vista da massa do cérebro e, por conseguinte, da inteligência, a mulher tende a diferenciar-se cada vez mais do homem. A diferença que existe, por exemplo, entre a média dos crânios dos parisienses é quase o dobro daquela observada entre os crânios masculinos e femininos do antigo Egito” (Lebon, citado por Durkheim, 1978, p. 28). Observemos que no raciocínio de Lebon, no qual Durkheim se baseia para elaborar a sua teoria sobre a divisão do trabalho nas sociedades modernas, conforme um povo vai crescendo em civilização maior o crânio e a quantidade de massa encefálica dos seus membros e, também, maior a diferença de inteligência entre o homem e a mulher, sempre em favor do homem. (...) (PRAXEDES, 2008, s/p) A partir destes exemplos retirados aleatoriamente de textos europeus considerados clássicos, podemos nos interrogar por que muitos autores e professores das disciplinas de ciências humanas estudam os seus pensadores favoritos colocando em último plano ou simplesmente deixando de abordar os conteúdos políticos colonialistas dos seus textos. Para usarmos as palavras de Edward Said, “os filósofos podem conduzir suas discussões sobre Locke, Hume e o empirismo sem jamais levar em consideração o fato de que há uma conexão explícita, nesses escritores clássicos, entre suas doutrinas “filosóficas” e a teoria racial, as justificações da escravidão e a defesa da exploração colonial” (SAID, 1990, p. 25). Ainda, segundo o mesmo autor, “muitos humanistas de profissão são, em virtude disso, incapazes de estabelecer a conexão entre, de um lado, a longae sórdida crueldade de práticas como a escravidão, a opressão racial e colonialista, o domínio imperial e, de outro, a poesia, a ficção e a filosofia da sociedade que adota tais práticas” (SAID, 1995, p. 14, apud PRAXEDES, 2008, s/p). Todas as expressões ignorantes e depreciativas sobre os povos e culturas não europeias citadas acima, de autoria de alguns dos maiores expoentes das ciências sociais e da filosofia ocidentais, permitem concluirmos, acompanhando a reflexão de Boaventura de Sousa Santos, que “a experiência social em todo o mundo é muito mais ampla e variada do que o que a tradição científica ou filosófica- ocidental conhece e considera importante (...), e que a compreensão do mundo excede em muito a compreensão ocidental do mundo” (SOUSA SANTOS, 2004, p. 778-779). Decorre desta argumentação a necessidade de abrirmos os centros de produção de conhecimento em todo o mundo, mas principalmente os situados nos países que sofrem com a hegemonia política, econômica e cultural dos centros dominantes do capitalismo, para a identificação e a construção de saberes mais apropriados sobre as diferenças entre as culturas e grupos humanos e sobre as suas diferentes necessidades materiais e simbólicas. (PRAXEDES, 2008, s/p) Concluindo Praxedes (2008, s/p) enfatiza que no lugar destas formas preconceituosas e discriminatórias de classificação dos seres humanos espalhados pelo Globo, podemos construir uma política de reconhecimento da heterogeneidade cultural da humanidade e da pluralidade das formas de existência material e relação com o ambiente. Com isso, podemos superar o pensamento eurocêntrico que acredita e difunde que há um padrão único para a beleza e para a inteligência, o europeu, e que nos leva a avaliarmos a nós mesmos e aos nossos alunos de acordo com tal padrão, esquecendo que é apenas um padrão próprio de culturas específicas de uma região do mundo. Quando utilizamos como critérios de beleza ou de verdade as formas de arte e de pensamento europeus, estamos sendo cúmplices com as instituições dominantes e legitimando a sua dominação. Como educadores, temos a dupla tarefa de aprender e ensinar a nos vermos através de critérios próprios, livres dos pontos de vista eurocêntricos. Evidentemente, essa superação do eurocentrismo não quer dizer que devemos ignorar os códigos culturais, experiências e linguagens de origem europeia, como as ciências, artes e religiões, mas quer dizer que devermos ter a capacidade de criticá-las, dimensionando-as como formas particulares de expressão cultural de populações e grupos particulares, sem dúvida relevantes, mas que não são superiores a nenhuma outra forma de expressão cultural dos grupos humanos espalhados pelo mundo. (PRAXEDES, 2008, s/p) - Afrocentrismo: Segundo a Infopédia (s/d, s/p) basicamente, os afrocentristas discordam das teorias que relegam os africanos para a margem do pensamento e do conhecimento da Humanidade. Neste sentido, o afrocentrismo defende que se deve interpretar e estudar as culturas não europeias, nomeadamente a africana, e os seus povos do ponto de vista de sujeitos ou agentes e não como objetos ou destinatários. Segundo os afrocentristas, a noção ocidental ou europeia do conhecimento baseado no modelo grego não é tão antiga como os europeus creem ser, tendo sido adotada apenas a partir do período da Renascença na Europa. De qualquer forma, o modelo grego não pode ser considerado como “europeu” em rigor, dado que foi profundamente influenciado na sua origem e mitologia pela cultura egípcia, ou seja, por uma cultura de origem africana. A visão eurocêntrica, ou de pensamento centrado no modelo europeu, tornou-se numa visão etnocêntrica, ou seja, de valores relativos aos povos da Europa, que valoriza o modelo de pensamento e de experiência europeia em detrimento dos modelos de pensamento de outras culturas que são, por comparação, subavaliados e subvalorizados. Este conceito de afrocentrismo começou a ser defendido nos anos 80 por estudantes afro-americanos, afro- brasileiros, das Caraíbas e africanos, que começaram por adotar uma perspectiva afrocêntrica nos seus trabalhos. O afrocentrismo não defende que o mundo seja interpretado sob uma única perspectiva cultural, como foi o caso do eurocentrismo, mas que seja reconhecida a existência de uma cultura e a sua avaliação em termos de pensamento e conhecimento através da sua própria perspectiva, neste caso, e mais concretamente, que a cultura africana seja analisada, de per si, enquanto sujeito e não através de modelos culturais que por vezes não só não a entendem como a desprezam e desvalorizam. (INFOPÉDIA, s/d, s/p) Ainda segundo a Infopédia (s/d, s/p) quando, por exemplo, se fala de arte, música, dança ou teatro, as referências são sempre europeias e assumem uma supremacia em termos intelectuais e artísticos. Os afrocentristas defendem que não deve haver uma única perspectiva ou uma visão que se sobreponha às outras, mas que devem coexistir diferentes visões filosóficas e de conhecimento sem que qualquer uma delas se sobreponha às restantes. Durante cerca de cinco séculos, os africanos estiveram afastados, enquanto protagonistas, da vida social, política, artística, intelectual e econômica tanto nas sociedades de pensamento ocidental, para onde foram deslocados, como nas suas nações africanas de origem pelo colonialismo europeu. Nesse sentido, a corrente afrocêntrica defende que o conhecimento e a experiência devem ser reavaliados do ponto de vista dos africanos, enquanto seres humanos ativos capazes de conceber molduras próprias de pensamento e de experiência. Os afrocentristas defendem que os seres humanos não podem nem devem abdicar da sua cultura, seja relativamente às suas próprias referências históricas seja às do grupo onde estão inseridos. Opõem-se à deslocação, ou seja, a serem marginalizados ou a serem considerados “o outro” e defendem a centralização, ou seja, que devem ser considerados o agente, o “e”. Algumas das questões que mais preocupam os afrocentristas dizem respeito a uma certa desorientação e desconhecimento dos próprios africanos que, identificando-se como europeus ou americanos, consideram esse estatuto incompatível com o fato de serem africanos, ou, mais grave ainda, o fato de considerarem incompatível o ser cumulativamente humano e africano. (INFOPÉDIA, s/d, s/p) 3. A CRONOLOGIA PARA ESTUDAR A HISTÓRIA DA ÁFRICA Na visão de Cunha Jr (s/d, s/p) a História Africana apresenta uma possibilidade de divisão para estudo em seis grandes regiões que guardam em comum além dos aspectos geográficos, aspectos históricos e culturais. São unidades com características semelhantes, embora também abrangendo diversidade interna da região quantos aos povos e culturas, mas, quando comparadas ao conjunto africano apresentam distinções nítidas. 1. A região de história mais antiga e mais conhecida é a das civilizações do Rio Nilo, onde se destacam o Sudão e o Egito, ambos com história política e econômica com mais de 5000 anos e constituindo impérios semelhantes. Um exemplo das semelhanças é a construção de pirâmides que Vão do Alto ao Baixo Nilo, em períodos diversos com diferentes magnitudes, representando uma forma cultural típica de região. Nesta região o Egito é bem mais conhecido, sendo que os Núbios, um dos povos do Sudão, tem apresentado surpresas esplendorosas aos arqueólogos nos últimos tempos. Destacam-se: nesta região os Impérios de Kerma, Kushes, Napata e Meroes. Fixados em regiões próximas tem importância históricas os Reinos da Etiópia. 2. A costa Africana do Oceano Índico constitui uma região de grande influência comercial, de trocas intensas com os países árabes e com a Ásia. Esta região se notabiliza por um conjunto de pequenos Reinos e Cidades Estados que foram de grande esplendor arquitetônico e, devido a existência deuma língua comercial comum, o Suarile, podemos denominar de Região Suarile. 3. A terceira região importante no Continente Africano é constituída pelo Conjunto Zimbábue e África do Sul. Embora diferente da região Suarile litorânea é uma zona de intenso contato com o litoral. Zimbábue, devido à importância e antiguidade das ruínas e da extensão da civilização aí construída no passado, constitui pôr si só uma região de importância na história africana. Na mesma região do Zimbábue entre 1400 e 1800 surge o Reino do Monomotapa. Na África do Sul, apenas reinos relativamente recentes têm destaques históricos, sobretudo pelo processo de resistência às invasões europeias, como é o caso dos Zulus. 4. O quarto conjunto está ao Sul do Rio Congo, numa extensa região entre o Atlântico e os lagos Vitória e Tanganica. De influência cultural Bantu se desenvolveu entre os séculos 14 e 15 um conjunto de Reinos onde se destacam o Congo, Lunda e Luba. 5. As civilizações africanas de grande riqueza econômica e cultural formam um conjunto que geograficamente se estendem do Atlântico atravessando o sistema fluvial do Rio Níger e cobrindo os afluentes do lago Chade. Esta quinta região do Vale do Niger, assim como a do Vale do Nilo, constituem as regiões de maior importância histórica no continente devido aos longos períodos de continuidade histórica e a quantidade de conhecimentos que se tem sobre elas. Fazem parte da história da região as civilizações Nok, os Impérios de Gana, Malé e Songai. 6. A sexta região é de predominância de povos Berberes e se estende através do Deserto de Saara e bordas do Mediterrâneo. É, sobretudo, uma região marcada por invasões externas. A ligação entre estas diversas regiões e sua integração econômica pode ser trabalhada e compreendida a partir das rotas de caravanas milenares ou da história da expansão da tecnologia do ferro no continente africano. Tanto as caravanas comerciais como as rotas de expansão da tecnologia do ferro cobrem todo o território africano, indicando não apenas a presença de populações em estágios civilizatórios importantes em todo continente, como também, a existência de uma intensa integração econômica e cultural entre estes povos. (CUNHA JR, s/d, s/p) De acordo com CUNHA Jr (s/d, s/p) abaixo, uma possível cronologia dos principais fatos da História Africana anterior a presença nociva e desastrosa do europeu naquele continente. Nesta cronologia, destaco o fato de que os Europeus, através dos portugueses gastaram mais de um século para dominar algumas regiões na África e que a colonização europeia levou mais de 300 anos para se consolidar. Este período é marcado pela resistência, vitórias e derrotas dos diversos Estados Africanos, em diversas frentes de combate contra as diferentes invasões europeias. Estas dinâmicas de longa duração precisam ser compreendidas para não parecer que o predomínio europeu acontece num ato mágico e repentino, como geralmente e superficialmente é apresentado. A cronologia da História africana pode ter a seguinte composição: Aparecimento do Homo Sapiens na África - 10.000 a. C; Agricultura e criação no Vale do Nilo - 5.000 a. C; Os Faraós unificam o Estado Egípcio - 3.100 a. C; O Estado Kerma governa a Antiga Núbia no Sudão 2.250 a. C; As dinastias Egípcias colonizam a Núbia - 1.570 a. C; Os Estados Kushes e Napatos se estabelecem no Sudão - 1.100 a 500 a. C; Fenícios fundaram a Capital em Cartago - 814 a. C; Os Estados Kushes da Núbia governam o Egito - 760 a. C; A tecnologia do Ferro é introduzida no Egito pelos invasores Assírios - 500 a. C; Reinos Núbios - 400 a. C; Civilização Nok na África Ocidental - 450 a. C; Os Gregos invadem o Egito - 332 a. C; Os Romanos invadem o Egito 40 – a. C; Início do esplendor dos Reinos Axum na África Oriental – 0; Expansão Islâmica no Norte Africano – 639; Data aproximada da construção do Zimbábue – 700; Ocupação de Gana pelos Almoravides - 1.076; Fundação do Império Monomotapa na África Austral. - 1.200; Início do Império do Mali - 1.235; Fundação do Reino do Congo - 1.240; Início do Império Songai - 1.400; Os Portugueses vencem os Mouros e tomam Ceuta no Norte Africano - 1.415; Fundação do Reino Luba na região do Rio Congo - 1.420; A presença constante de mercantes portugueses no Rio Senegal - 1.445; Estabelecimento do tratado comercial entre Reinos da África Ocidental e os Portugueses - 1.456; Tratado de Alcáçovas entre Espanhóis e Portugueses que permitem aos Portugueses; A introdução de escravizados Africanos na Espanha - 1.475; Chegada dos Portugueses ao Congo - 1.484; Conversão do Rei do Congo ao Catolicismo - 1.491 (o Catolicismo já havia penetrado na Etiópia 400 anos antes); Destruição do Império Songai - 1.591; Portugueses invadem Angola transformando o Reino em Colônia - 1.575; O Reino do Congo é dominado pelos Portugueses - 1.630; Chegada dos Ingleses como invasores e colonizadores na África do Sul - 1.795; Início das Campanhas Militares de Chaka-Zulu - 1.808; Consolidação do Domínio Europeu na África - 1.884-1.885. (CUNHA JR, s/d, s/p) 4. O QUADRIPARTISMO FRANCÊS Para Montelatto, Cabrini (2009, s/p) a preocupação do professor de História em passar aos alunos, em sequência cronológica, todo o caminho da humanidade, das cavernas ao Brasil de hoje, acarreta, necessariamente, reducionismos e esquematizações. A História não só toma um sentido único e irreversível, como também relega o papel do aluno como agente histórico e sujeito da produção de seu próprio conhecimento. As diversas possibilidades e versões do fazer da história, que são a base da formação do pensamento histórico, são eliminadas. Apresentar uma proposta para o ensino da História sem discutir e analisar a permanência de práticas (felizmente, cada vez menos frequentes!) com teor europocêntrico – linear, evolutivo, etapista e finalista – parece-nos quase impossível. Cabe aos professores uma mudança na pergunta que ordinariamente fazemos: em vez de “por que isso ainda é feito?”, perguntaremos “Como isso pode ser feito de outra forma?” Apesar das discussões ocorridas desde a década de 1980, suscitadas pelas novas propostas curriculares e pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, no fim do século XX ainda tínhamos práticas escolares fundamentadas na permanência de alguns estereótipos, mitos e preconceitos. Estes permaneceram desde a consolidação do estado nação no século XIX, valorizando uma história institucional e política, cujos personagens são os heróis de uma história oficial, apresentados como únicos responsáveis pelo fazer histórico da nação. (MONTELATTO, CABRINI, 2009, s/p) Ainda para Montelatto, Cabrini (2009, s/p) trabalhar o ensino de História a partir de eixos temáticos não significa negar o conhecimento produzido historicamente nem tornar inexistente a divisão tradicional da chamada História Geral em Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea, conhecida como quadripartismo. Mas, como ressalta o historiador francês Jean Chesneaux, o quadripartismo privilegia o papel do Ocidente na história do mundo, ao mesmo tempo que reduz, quantitativa e qualitativamente, o lugar dos povos não europeus na evolução universal. Essa organização da história universal é, na verdade, um fato europeu. Em outros países, o passado pode ser organizado de modo diferente, já que são outros os pontos de referência. No ensino da História Temática, essa temporalidade linear, com sua visão europocêntrica colonialista do quadripartismo, deve ser problematizada e analisada como uma construção historicamente determinada. Para se falar em ética, cidadania, crítica à sociedade de consumo, sustentabilidade, revisãode valores e do conteúdo das ações, o professor deve assumir-se como sujeito/cidadão, explicitar seus referenciais e ter a clareza de sua não neutralidade diante do conhecimento. Para tanto, é importante que ele incorpore à sua prática a postura do professor-pesquisador, que busca construir o conhecimento. Ensino e pesquisa dessa forma são elementos indissociáveis também no Ensino Fundamental e Médio. Para o professor-pesquisador, programas e conteúdos pré-determinados, exteriores à sua interação com os alunos e ao meio que os cerca, são insuficientes. Os conteúdos e a organização dos mesmos em um programa devem ser estabelecidos com base em situações- problema construídas na experiência conjunta entre professor e aluno. (MONTELATTO, CABRINI, 2009, s/p) 5. UMA ABORDAGEM MULTI E INTERDISCIPLINAR: HISTÓRIA E ARQUEOLOGIA, HISTÓRIA E ETNOLOGIA, HISTÓRIA E ORALIDADE - O problema das fontes: De acordo com Obenga (2008, s/p) as regras gerais da crítica histórica, que fazem da história uma técnica do documento, e o espírito histórico, que pede o estudo da sociedade humana em sua caminhada através dos tempos, são aquisições fundamentais utilizáveis por todos os historiadores, em qualquer país. O esquecimento desse postulado manteve durante muito tempo os povos africanos fora do campo dos historiadores ocidentais, para quem a Europa era em si mesma, toda a história. Na realidade, o que estava subjacente e não se manifestava claramente, era a crença persistente na inexistência de uma história na África, dada a ausência de textos e de uma arqueologia monumental. Portanto, parece claro que o primeiro trabalho histórico se confunde com o estabelecimento de fontes. Essa tarefa está ligada a um problema teórico essencial, ou seja, o exame dos procedimentos técnicos do trabalho histórico. Sustentados por uma nova e profunda necessidade de conhecer e compreender ligada ao advento da era pós-colonial, os pesquisadores fundaram definitivamente a história africana, embora a construção de uma metodologia histórica ainda prossiga. Setores imensos de documentação foram revelados, permitindo aos pesquisadores formularem novas questões. Quanto mais os fundamentos da história africana se tornam conhecidos, mais essa história se diversifica e se constrói de diferentes formas, de modo inesperado. Há cerca de quinze anos produziu-se uma profunda transformação dos instrumentos de trabalho e hoje se admite de bom grado a existência de fontes utilizadas mais particularmente para a história africana: geologia e paleontologia, pré-história e arqueologia, paleobotânica, palinologia, medidas de radiatividade de isótopos capazes de fornecer dados cronológicos absolutos, geografia física, observação e análise etno-sociológicas, tradição oral, linguística histórica ou comparada, documentos escritos europeus, árabes, hindus e chineses, documentos econômicos ou demográficos que podem ser processados eletronicamente. (OBENGA, 2008, s/p) Para Obenga (2008, s/p) a variedade das fontes da história africana permanece extraordinária. Dessa forma, devem-se buscar de forma sistemática novas relações intelectuais que estabeleçam ligações imprevistas entre setores anteriormente distintos. A utilização cruzada de fontes aparece como uma inovação qualitativa. Uma certa profundidade temporal só pode ser assegurada pela intervenção simultânea de diversos tipos de fontes, pois um fato isolado permanece, por assim dizer, à margem do movimento de conjunto. A integração global dos métodos e o cruzamento das fontes constituem desde já uma eficaz contribuição da África à ciência e mesmo à consciência historiográfica contemporânea. A curiosidade do historiador deve seguir várias trajetórias ao mesmo tempo. Seu trabalho não se limita a estabelecer fontes. Trata-se de se apropriar, através de uma sólida cultura pluridimensional, do passado humano. Porque a história é uma visão do homem atual sobre a totalidade dos tempos. (...) Sem dúvida, o fato metodológico mais decisivo desses últimos anos foi a intervenção das ciências físicas modernas no estudo do passado humano, com as medidas de radioatividade dos isótopos, que asseguram a apreensão, cronológica do passado até os primeiros tempos do aparecimento do Homo sapiens (teste do carbono 14) e das épocas anteriores a 1 milhão de anos (método do potássio-argônio). Atualmente, esses métodos de datação absoluta abreviam de modo considerável as discussões no campo da paleontologia humana e da pré- história. Na África, os hominídeos mais antigos datam de -5300000 anos pelo método K/ Ar. Essa é a idade de um fragmento de maxilar inferior com um molar intacto de um hominídeo encontrado pelo professor Bryan Patterson, em 1971, em Lothagam no Quênia. Por outro lado, os dentes de hominídeos encontrados nas camadas villafranchianas do vale do Omo, na Etiópia meridional, pelas equipes francesa (Camille Arambourg, Yves Coppens) e americana (F. Clark-Howell) têm 2 a 4 milhões de anos. O nível do Zinjanthropus (nível I) do célebre depósito de Olduvai, na Tanzânia, data de 1750000 anos, sempre através do método do potássio-argônio. (OBENGA, 2008, s/p) Assim, graças ao isótopo potássio-argônio, a gênese humana do leste africano, a mais antiga de todas no estágio atual dos conhecimentos, constitui a gênese humana propriamente dita, tanto mais que o monofiletismo é uma tese cada vez mais amplamente admitida hoje na paleontologia geral. Em consequência, os restos fósseis africanos conhecidos atualmente fornecem elementos decisivos para responder a esta questão primordial das origens humanas, colocada de mil maneiras ao longo da história da humanidade: “Onde nasceu o homem? Há quanto tempo?” As velhas ideias estereotipadas, que colocavam a África praticamente à margem do Império de Clio, estão agora completamente modificadas. Os fatos, postos em evidência através de várias fontes e métodos - desde a paleontologia humana até a física nuclear - mostram claramente, ao contrário, toda a profundidade da história africana, cujas origens se confundem precisamente com as próprias origens da humanidade. (...) De acordo com Obenga (2008, s/p) o problema heurístico e epistemológico fundamental permanece sempre o mesmo na África, o historiador deve estar absolutamente atento a todos os tipos de procedimentos de análise, para articular seu próprio discurso, fundamentando-se num vasto conjunto de conhecimentos. Esta “abertura de espírito” é particularmente necessária quando se estudam períodos antigos, sobre os quais não se dispõe nem de documentos escritos nem mesmo de tradições orais diretas. Sabemos, por exemplo, que a base da agricultura para os homens do Neolítico era o trigo, a cevada e o milhete, na Ásia, na Europa e na África, e o milho, na América. Mas como identificar os sistemas agrícolas iniciais, que surgiram há tanto tempo? O que permitiria distinguir uma população de predadores sedentários de uma de agricultores? Como e quando a domesticação das plantas se difundiu nos diversos continentes? Quanto a isso, a tradição oral e a mitologia prestam apenas uma pequena ajuda. Unicamente a arqueologia e os métodos paleobotânicos podem dar uma resposta válida a tais questões importantes, relativas a essa inestimável herança neolítica que é a agricultura. (...) Tendo em vista tudo o que foi exposto, chega-se a uma conclusão que constitui um avanço metodológico decisivo: um vasto material documental, rico e variado, pode ser obtido a partir das fontes e técnicas baseadas nas ciências exatas e nas ciências naturais. O historiador se vê obrigado a desenvolver esforços de investigação por vezes audaciosos. Todos os caminhos que se abrem estão doravante entrelaçados. O conceito de “ciências auxiliares” perde cada vez mais terreno nesta nova metodologia, exceto se entendermospor “ciências auxiliares da história”, as técnicas fundamentais da pesquisa histórica, originárias de qualquer campo científico e que, de resto, não foram ainda totalmente descobertas. De agora em diante, as técnicas de investigação são parte da prática histórica e fazem com que a história se incline de forma concreta para o lado da ciência. Dessa forma, a história se beneficia das conquistas das ciências da Terra e das ciências da vida. Todavia, seu aparato de pesquisa e de crítica se enriquece, sobretudo com a contribuição das outras ciências humanas e sociais: egiptologia, linguística, tradição oral, ciências econômicas e políticas. Até hoje a egiptologia permanece uma fonte insuficientemente utilizada pela história da África. E conveniente, portanto, insistir no assunto. A egiptologia compreende a arqueologia histórica e a decifração dos textos. Nos dois casos, o conhecimento da língua egípcia é um pré-requisito indispensável. Esse idioma, que permaneceu vivo durante cerca de 5000 anos (se levarmos em consideração o copta), apresenta-se materialmente sob três escritas distintas; - Escrita hieroglífica: cujos signos se dividem em duas grandes classes: os ideogramas ou signos-palavras (por exemplo, o desenho de um cesto de vime para designar a palavra “cesto”, cujos principais componentes fonéticos são nb) e os fonogramas ou signos-sons (por exemplo, o desenho de um cesto, do qual só se retém o valor fonético nb e que serve para escrever outras palavras diferentes de “cesto”, mas que têm o mesmo valor fonético: nb, “senhor”; nb, “tudo”). Os fonogramas, por sua vez, classificam-se em: trilíteros, signos que combinam três consoantes; bilíteros, signos que combinam duas consoantes; unilíteros, signos que contêm uma só vogal ou consoante: trata-se nesse caso, do alfabeto fonético egípcio. - Escrita hierática: ou seja, a escrita cursiva dos hieróglifos, que apareceu em torno da III dinastia (-2778 a -2423); é sempre orientada da direita para a esquerda e traçada com um cálamo sobre folhas de papiro ou fragmentos de cerâmica e de calcário. Teve uma duração tão longa quanto à dos hieróglifos (o texto hieroglífico mais recente data de +394). - Escrita demótica: uma simplificação da escrita hierática surgiu em torno da XXV dinastia (-751 a -656), deixando de ser usada no século V. No plano estrito dos grafemas, reconhece-se uma origem comum entre a escrita demótica egípcia e a escrita meroítica núbia (que veicula uma língua ainda não decifrada). Considerando apenas esse nível do sistema gráfico egípcio, já se colocam interessantes questões metodológicas. Isso porque, através de uma tal convenção gráfica, dotada de fisionomia própria, o historiador - que se torna um pouco decifrador - capta por assim dizer a consciência e a vontade dos homens de outrora, já que o ato material de escrever traduz sempre um valor profundamente humano. (...) Ainda a linguística histórica é portanto uma fonte preciosa da história africana, assim como a tradição oral, que foi durante muito tempo desprezada. (...) (OBENGA, 2008, s/p) Ainda segundo Obenga (2008, s/p) no domínio das ciências humanas e sociais, a contribuição dos sociólogos e cientistas políticos permite redefinir o saber histórico e cultural. Com efeito, os conceitos de “reino”, “nação”, “Estado”, “império”, “democracia”, “feudalismo”, “partido político”, etc., utilizados em outros lugares certamente de maneira adequada, nem sempre são automaticamente aplicáveis à realidade africana. (...) Na África, as séries documentais são estabelecidas pelos mais diversos tipos de ciências - exatas, naturais, humanas e sociais. O “relato” histórico renovou-se completamente, na medida em que a metodologia consiste em empregar várias fontes e técnicas particulares ao mesmo tempo e de modo cruzado. Informações fornecidas pela tradição oral, os raros manuscritos árabes, as escavações arqueológicas e o método do carbono residual ou carbono 14 reintroduziram definitivamente o “legendário” povo Sao (Chade, Camarões, Nigéria) na história autêntica da África. (...) A prática da história na África torna-se um permanente diálogo interdisciplinar. Novos horizontes se esboçam graças a um esforço teórico inédito. A noção de “fontes cruzadas” exuma, por assim dizer, do subsolo da metodologia geral, uma nova maneira de escrever a história. A elaboração e a articulação da história da África podem, consequentemente, desempenhar um papel exemplar e pioneiro na associação de outras disciplinas à investigação histórica. (OBENGA, 2008, s/p) REFERÊNCIAS UTILIZADAS E CONSULTADAS: APPIAH, Kwame. Na Casa de meu Pai. A África na Filosofia e Cultura. São Paulo: Contraponto, 1997. ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes / Brasília, Editora da UnB, 1982. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. BONNICI, Thomas. O pós-colonialismo e a literatura: estratégias de leitura. Maringá: Eduem, 2000. COSTA E SILVA, A. A Enxada e a Lança. São Paulo: Nova Fronteira, 2002. COSTA E SILVA, A. Manilha e o Libambo. São Paulo: Nova Fronteira, 2002. CUNHA JUNIOR, Henrique. O ensino da História Africana. Disponível em <http://www.diaadia.pr.gov.br/ceja/arquivos/File/FormacaoContinuada/SIMP OSIO2009/Elena/Texto4-O_Ensino_da_Historia_Africana-Elena.pdf> Acesso em: 21.08.2010. 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