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Política Pública de socioeducaçãosocioeducação conquistas e retrocessos Organizadores: Alexandre Almeida Rocha Cleide Lavoratti Silmara Carneiro e Silva série referência Conselho Editorial Dra. Anelize Manuela Bahniuk Rumbelsperger (UFPR) Dr. Antonio José dos Santos (IST/SOCIESC) Esp. Carlos Mendes Fontes Neto (UEPG) Dr. Cezar Augusto Carneiro Benevides (UFMS) Dr. Edson Armando Silva (UEPG) Dr. Erivan Cassiano Karvat (UEPG) Dra. Jussara Ayres Bourguignon (UEPG) Dra. Lucia Helena Barros do Valle (UEPG) Dra. Luísa Cristina dos Santos Fontes (UEPG) Dr. Marcelo Chemin (UFPR) Dr. Marcelo Engel Bronosky (UEPG) Dra. Marcia Regina Carletto (UTFPR) Dra. Maria Antonia de Souza (UTP/UEPG) Dra. Marilisa do Rocio Oliveira (UEPG) Ms. Rodrigo Labiak (UNICAMP) EDITORA ESTÚDIO TEXTO Editora-chefe Ana Caroline Machado Diretora Josiane Blonski Política Pública de socioeducaçãosocioeducação conquistas e retrocessos Organizadores: Alexandre Almeida Rocha Cleide Lavoratti Silmara Carneiro e Silva série referência Depósito Legal na Biblioteca Nacional. O conteúdo desta obra é de inteira responsabilidade dos autores. © 2020 Alexandre Almeida Rocha, Cleide Lavoratti, Silmara Carneiro e Silva e autores Coordenação editorial Editora Estúdio Texto Capa, projeto gráfico e diagramação Ana Caroline Machado Supervisão Josiane Blonski Assistente administrativo Érika Blonski Ficha Catalográfica elaborada por Maria Luzia Fernandes Bertholino dos Santos – CRB9/986 P769 Política pública de socioeducação: conquistas e retrocessos [livro eletrônico]/ Alexandre Almeida Rocha; Cleide Lavoratti; Silmara Carneiro e Silva (Org.) Ponta Grossa: Estúdio Texto, 2021. (Série Referência) 213p., il. ISBN: 978-65-87261-10-2 1. Medida socioeducativa. 2. Adolescente. 3. ECA. 4. Sistema socioeducativo. 5. Atendimento socioeducativo. I. Rocha, Alexandre Almeida (Org.). II. Lavoratti, Cleide (Org.). III. Silva, Silmara Carneiro e (Org.). IV. T. CDD: 364.36 Rua XV de Setembro, 931 - Uvaranas - Ponta Grossa – Paraná – 84020-050 Tel. +55 (42) 3027-3021 | +55 (42) 98416-9795 www.editoraestudiotexto.com.br ® A presente obra marca um tempo de avanços e retrocessos no âmbito da política pública de socioeducação no Brasil. Fortalecidos pelos avanços que a atenção à criança e ao adolescente obteve no país desde o final do século XX e atentos ao conjunto de retrocessos que temos presenciado no campo dos direitos e das políticas públi- cas, não poderíamos deixar de demarcar nossa posição ético-polí- tica e teórica em favor da manutenção de uma direção progressiva e radicalmente comprometida com o desenvolvimento humano de crianças e adolescentes e esta posição está delineada na respectiva obra que organizamos e ora apresentamos. Considerados em condição peculiar de desenvolvimento as crianças e adolescentes brasileiros são sujeitos de direitos à luz da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adoles- cente - ECA. Portanto, gozam de toda a proteção que lhe é devida pela família, pela sociedade e pelo Estado, tal como preconiza a le- gislação nacional. Encontram-se amparados ainda pela Convenção Universal dos Direitos da Criança e pelos demais tratados e con- venções recepcionados pelo Direito brasileiro. No que se refere especialmente ao público de adolescentes em conflito com a lei a legislação nacional avançou para além do ECA. Doze anos depois, o país sancionou a lei 12.594/2012 a qual instituiu o Sistema Nacio- nal de Atendimento Socioeducativo - SINASE. Podemos dizer que esta lei representou um marco importante no conjunto de avanços da referida área, somado a outros elementos de natureza programá- tica que apontaram para uma direção progressiva do ponto de vista político-administrativo para a implementação da socioeducação en- quanto política pública no Brasil. Esses foram avanços importantes, que apesar de serem de natureza jurídica, contornam os dispositivos legais que configuram os parâmetros de atuação do Estado e da so- APRESENTAÇÃOAPRESENTAÇÃO ciedade brasileira mediante as demandas de atendimento do público infanto-juvenil e, portanto, são balizadores das ações. Por outro lado, é também sabido que há uma distância entre o universo jurídico e a realidade material e concreta, que por vezes mais parece um abismo. Sem desconsiderar os avanços jurídico-po- líticos alcançados na área da infância e juventude no Brasil, essa distância se intensifica, quando tratamos do atendimento prestado pelo Estado aos adolescentes em conflito com a lei. Conjuntamente aos esforços progressivos obtidos na área, setores contrários à demo- cratização dos direitos à infância e à adolescência que interpretam a realidade social brasileira, pautados na criminalização da pobreza e no entendimento de que as classes pobres brasileiras são ‘classes perigosas’ têm somado esforços para a regressão do campo dos direi- tos, para o recrudescimento da legislação de proteção à infância e à adolescente no Brasil. Na área da socioeducação esse movimento se manifesta pelo conjunto de projetos de lei que tramitam no Congres- so Nacional que têm no bojo de suas pautas a redução maioridade penal, o aumento do tempo de internação, entre outras mudanças regressivas no ECA e no SINASE, o que impõe um profundo retro- cesso no amparo aos adolescentes vulneráveis no Brasil, viola os direitos constitucionais, ferindo cabalmente o princípio da vedação do retrocesso. Tem-se conhecimento de que no país a vulnerabilida- de social gera vulnerabilidade penal, pois a questão social sempre foi e ainda é tratada em muitos casos, como ‘caso de polícia’. Apre- sentados esses avanços e retrocessos, os capítulos que inauguram o presente livro, que compõem a sua primeira unidade, caracterizam jurídico e politicamente seu escopo. O primeiro deles, de autoria de seus organizadores, trata das me- didas socioeducativas no Brasil, traçando inicialmente um apanhado histórico do atendimento voltado ao adolescente em conflito com a lei e, na sequência, de seus dispositivos jurídicos e contradições. Imergindo teoricamente sobre a temática, o segundo capítulo apre- senta os contornos sociojurídicos do controle penal juvenil no Brasil à luz dos conceitos gramscianos de Estado Ampliado e de Subal- ternidade. O referido capítulo é de Silmara Carneiro e Silva; Pedro Henrique Galeto; Emanuelle Minella Rodrigues; Heloisa Ribeiro Garcia e de Kimberly Juliana dos Santos. Ainda de cunho teórico, o capítulo 3 aborda o sistema socioeducativo à luz da contribuição de Bourdieu. O referido capítulo é de autoria de Eugênia Aparecida Cesconeto e de Vera Maria Ribeiro Nogueira. O capítulo seguinte, de autoria de Paulo Fernando Pinheiro e Elisa Stroberg Schultz que aborda a Doutrina da Proteção Integral e o adolescente em conflito com a lei, apresentando a equivocada exclusão da rede de proteção deste campo de trabalho. Com esta discussão encerramos o bloco de capítulos que se voltam para a questão de cunho teórico e sobre o ordenamento jurídico-político em torno dos avanços e retrocessos que contornam a socioeducação no país. O último bloco de capítulos que consolida o livro versa sobre a materialização do ECA, os desafios da inclusão social dos adolescen- tes autores de atos infracionais, apresenta análises de experiências de atendimento a nível estadual e municipal e por fim retrata os desafios do contexto da pandemia para o sistema socioeducativo. O primeiro capítulo desta segunda unidade, tratando-se do capítulo 5, aborda os desafios à inclusão social de adolescentes autores de atos infracio- nais no Brasil, de autoria de Ivana Aparecida Weissbach Moreira. Na sequência o capítulo 6 retrata a materialização do ECA no sistema socioeducativo no Ceará, indicando desafios e contradições, de auto- riade Julianne Stéfane Duarte Dias, Ingrid Lorena da Silva Leite. Na sequência, de autoria de Alana Águida Berti e de Ana Luiza Ruchell Nunes, o capítulo 7 retrata os adolescentes infratores do regime de semiliberdade da Casa Sebastião Osório Martins da Cidade de Ponta Grossa (PR), no qual as autoras retratam a sua interrelação com o mundo das artes visuais. Para finalizar a segunda unidade, sendo o último capítulo da obra, de autoria de Linccon Fricks Hernandes e de Carla de Souza Matos, o capítulo trata do atendimento socioeducati- vo no contexto da pandemia, inflexionando a discussão para pensar tempos de tecer velhos e novos desafios. Imbuídos, coletivamente, na direção da tessitura de velhos e novos desafios, conforme aludem Linccon Fricks Hernandes e Car- la de Souza Matos e fortalecidos pela posição crítica e propositiva dos diferentes autores que compõem a presente obra, desejamos que ela seja um instrumento de luta que, em articulação ao conjunto de outros instrumentos, possa colaborar com a direção progressiva e radicalmente democrática da política pública de socioeducação no Brasil. Desejamos uma boa leitura a todos(as)! Alexandre Almeida Rocha Cleide Lavoratti Silmara Carneiro e Silva AS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS: HISTÓRICO DO ATENDIMENTO, DISPOSITIVOS JURÍDICOS E CONTRADIÇÕES NO BRASIL ...................................................11 Alexandre Almeida Rocha. Cleide Lavoratti. Silmara Carneiro e Silva CONTORNOS SOCIOJURÍDICOS DO CONTROLE PENAL JUVENIL NO BRASIL À LUZ DOS CONCEITOS GRAMSCIANOS DE ESTADO AMPLIADO E DE SUBALTERNIDADE ....................................................................33 Silmara Carneiro e Silva. Pedro Henrique Galeto. Emanuelle Minella Rodrigues. Heloysa Ribeiro Garcia. Kimberly Juliana dos Santos BOURDIEU E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA O ENTENDIMENTO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO ...........59 Eugênia Aparecida Cesconeto. Vera Maria R. Nogueira DESAFIOS À INCLUSÃO SOCIAL DE ADOLESCENTES AUTORES DE ATOS INFRACIONAIS NO BRASIL .................85 Ivana Aparecida Weissbach Moreira A DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL E ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI: A EQUIVOCADA EXCLUSÃO DA REDE DE PROTEÇÃO ...... 111 Paulo Fernando Pinheiro. Elisa Stroberg Schultz SUMÁRIOSUMÁRIO A MATERIALIZAÇÃO DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NA POLÍTICA DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO CEARÁ: DESAFIOS E CONTRADIÇÕES .......................................................................135 Julianne Stéfane Duarte Dias. Ingrid Lorena da Silva Leite ADOLESCENTES EM CUMPRIMENTO DE MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE SEMILIBERDADE DA CASA SEBASTIÃO OSÓRIO MARTINS DA CIDADE DE PONTA GROSSA (PR): INTERRELAÇÃO COM O MUNDO DAS ARTES VISUAIS ........................................................................157 Alana Águida Berti. Ana Luiza Ruchell Nunes ATENDIMENTO SOCIOEDUCATIVO NO CONTEXTO DA PANDEMIA DE COVID-19: TEMPOS DE TECER VELHOS E NOVOS DESAFIOS ...............................................183 Linccon Fricks Hernandes. Carla de Souza Matos SOBRE OS AUTORES ...............................................................207 Política pública de socioeducação: conquistas e retrocessos | 11 Alexandre Almeida Rocha. Cleide Lavoratti. Silmara Carneiro e Silva INTRODUÇÃO O presente texto versa sobre as medidas socioeducativas previs- tas no Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA como também no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo - SINASE, le- gislação específica que trata da política de socioeducação no Brasil. Aborda, também, alguns aspectos históricos que configuram a forma de atuação do Estado diante do público de adolescentes que come- tem atos infracionais. Estamos cientes de que, apesar dos avanços trazidos pela Cons- tituição Federal de 1988 para o população infanto-juvenil, detalha- dos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, não são os atos nor- mativos que irão mudar a realidade da criança e do adolescente no Brasil, mas é a partir deles que as ações devem ser realizadas, não se esquecendo que a manutenção do que já temos, assim como a sua ampliação, dependerá não de teorias, doutrinas, ou de discursos, mas da atuação política de cada cidadão e, em especial, de cada um dos envolvidos diretamente com as questões atinentes aos problemas das crianças e dos adolescentes. A partir desse pressuposto cabe questionarmos “30 anos de Constituição para quem?”1, esta é a pergunta estampada na capa de 1ANJOS, Alexsandro dos; ALTHAUS, Bruno Margraf; COSTA, Igor Sporch da. 30 anos de Constituição para quem? Reflexos do I Congresso de Direito Pú- blico UEPG. Porto Alegre: Editora Fi, 2019. HISTÓRICO DO ATENDIMENTO, DISPOSITIVOS JURÍDICOS HISTÓRICO DO ATENDIMENTO, DISPOSITIVOS JURÍDICOS E CONTRADIÇÕES NO BRASILE CONTRADIÇÕES NO BRASIL AS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS: AS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS: 12 | Alexandre Almeida Rocha, Cleide Lavoratti e Silmara Carneiro e Silva (Org.) uma coletânea de artigos que realizaram um balanço da Constituição Federal de 1988. Atualizamos, com a licença devida, para “32 anos de Constituição para quem?” e complementamos, “30 anos de Esta- tuto da Criança e do Adolescente para quem?”. A pergunta suscita muitas discussões, de caráter teórico e prático, contudo não esconde a realidade que nos é subjacente: crianças e adolescentes à margem do processo civilizatório e vigiados pelo “olho do poder”.2 As garantias e os direitos não se concretizam sozinhos. A frase, embora retrate uma obviedade, tem plena aplicabilidade quando se analisam os principais atos normativos que se referem à proteção das crianças e dos adolescentes. Primeiro aspecto é cons- tatar que existem diversos atos normativos, de caráter internacio- nal, constitucional e infraconstitucional -, que estruturam um quadro normativo, tanto no que diz respeito ao reconhecimento de direitos, quanto ao estabelecimento de políticas públicas. Não temos proble- ma com isto. O problema surge exatamente quando buscamos as respostas que possam justificar a não concretização do que está plasmado nor- mativa e abstratamente nestes textos jurídicos. Inevitavelmente, en- contra-se como ator e responsável principal pela não concretização destes direitos e garantias o Estado. Há um dever de proteção do Es- tado que está sendo negligenciado, infelizmente, desde o surgimento da Constituição Federal e do ECA. A iniciativa de escrever esse artigo sobre as medidas socioedu- cativas, soma-se a tantas outras ações intentadas por aqueles que compreenderam e internalizaram os valores e princípios plasmados normativamente e têm, de forma incansável, empreendidos esforços para a concretização dos direitos das crianças e dos adolescentes, não obstante a postura, muitas vezes, de descaso e de não compro- misso do Estado que implica no descumprimento do seu dever de proteção. Iniciaremos as reflexões desse trabalho, identificando a forma como o Estado brasileiro interviu historicamente na área da infân- 2 Alusão ao título da obra de SALIBA, Maurício Gonçalves. O olho do poder: análise crítica da proposta educativa do Estatuto da Criança e do Adolescen- te. São Paulo: Editora UNESP, 2007. Política pública de socioeducação: conquistas e retrocessos | 13 cia e da juventude, para podermos avaliar os avanços conquistados legalmente e os desafios que ainda se colocam para a efetivação dos direitos da população infanto-juvenil, especialmente para as políti- cas de socioeducação. BREVE HISTÓRICO DO ATENDIMENTO AOS ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI NO BRASIL Embora regido por legislação específica, o atendimento às crian- ças e adolescentes no Brasil carrega a herança das práticas repres- soras e de controle social que historicamente marcaram as políticas voltadas à população empobrecida no país. As práticas de proteção social mais sistemáticas na fase colonial/ imperial brasileira, a par das estratégias de sobrevivência das camadas populares, foram empreendidas pelos padres jesuítas e pelos demaissetores da Igreja. A Companhia de Jesus chegara a esta nova terra em 1549, ainda pretendendo, segundo estudos, definir o melhor encaminhamento para suas ações. [...] quando os jesuítas se definiram sua prioridade pela educação das crian- ças, principalmente nativas e mestiças, filhos dos colonizadores portugueses e órfãos portugueses e brasileiros, com exclusão das crianças negras, introduziram as punições corporais como forma educativa. (BARROS, 2005, p. 104). A intervenção inicial do Estado na vida das famílias brasilei- ras, e especialmente de crianças e adolescentes, pode ser entendida como uma estratégia para o avanço do capitalismo no país que, além de redimensionar constantemente o papel do Estado para atender os interesses das elites econômicas, também teve por objetivo controlar os inúmeros aspectos da vida familiar, como garantia à preservação da ordem vigente e da reprodução social da população. O Estado brasileiro formulou as primeiras leis e programas des- tinados às crianças e adolescentes com um alto grau de autoritarismo e repressão. “Não é a toa que o que mais específica que se referia à infância e adolescência no final do século XIX, figurava em forma de 14 | Alexandre Almeida Rocha, Cleide Lavoratti e Silmara Carneiro e Silva (Org.) leis penais e de regulação da força de trabalho.” (PEREIRA JÚNIOR et al, 1991, p. 17). No Código Criminal de 1830 e no Código Penal de 1890 deman- dava-se a aplicação das mesmas penas dos adultos infratores a me- nores de idade, com o objetivo de conter a “vadiagem” e corrigir a “delinquência” apresentadas nesse período como decorrentes da não absorção do total de mão de obra livre. (RIZZINI, 1997). Estas leis deixavam claro que o alvo de sua intervenção não eram “crianças”, mas “menores”, provenientes de uma classe cujo nível sócio-econô- mico era baixo e, estando em situação irregular, tornavam-se uma “ameaça para a sociedade”. “Tais representações não por acaso estavam associadas a deter- minados extratos sociais, sendo a periculosidade atrelada à infância das classes populares.” (RIZZINI, 1997, p. 34). A lei penal aparece então como um instrumento de classe, pro- duzido por uma determinada classe social para aplicação às classes inferiores, e a justiça penal como mecanismo de dominação, carac- terizada pela gestão diferenciada das ilegalidades cometidas pelas elites de poder econômico e político (que são imunizadas da crimi- nalidade) e pelas classes subalternas (que têm suas práticas ilegais fortemente criminalizadas, reprimidas e punidas). A função do sistema penal seria a de moralizar a classe operária, fazendo com que esta aprenda a respeitar as regras da propriedade privada, tenha um comportamento de docilidade no trabalho, entre outros comportamentos que visam garantir a ordem na sociedade. Em 1891 regularizam-se as relações trabalhistas das crianças e dos adolescentes absorvidas pelas fábricas brasileiras, evitando-se assim que se tornassem “delinquentes”, ao mesmo tempo em que exploram sua mão de obra. “Na década de 1890, os menores repre- sentavam 15% do total de mão de obra empregada sendo no setor têxtil cerca de 25% do total de mão de obra.” (PEREIRA JÚNIOR et al, 1991 p. 112). Política pública de socioeducação: conquistas e retrocessos | 15 A diferenciação entre Criança e Menor3 construída historicamen- te cria estereótipos que mascaram as desigualdades sociais e lançam bases para ações assistencialistas e de caráter repressivo que marcam o trajeto das políticas destinadas a esta área, desde sua origem. Surge em 1927 o Primeiro Código de Menores, separando me- didas de atendimento de crianças e adultos infratores com vistas à “ressocialização” das primeiras à sociedade. Este código relaciona a figura do Juiz de Menores ao Estado, ao qual caberia a “tutela e assistência” dos menores “vadios” e do “trabalhador”. Vistos numa escala crescente de periculosidade, do abandono à delinquência, os menores deveriam ser alvos de uma ação mais incisiva do Estado, caracterizada pela intervenção mesmo direta e até implantação de ações de isolamento em instituições totais, intermediadas pelo Juizado de Menores. (PEREIRA JÚNIOR et al, 1991, p. 18). Em 1940, o novo Código Penal amplia o limite de irresponsa- bilidade penal para 18 anos. Ainda na década de 40 foram criados o Departamento Nacional da Criança (DNC), subordinado ao Ministé- rio da Educação, a LBA, Legião Brasileira de Assistência e o SAM - Serviço de Assistência aos Menores, órgão do Ministério da Justiça. A criação de tantos órgãos voltados para o problema específico da infância e da juventude pode parecer um avanço para esta área, no entanto, as entidades desenvolviam um trabalho isolado entre si, seguindo a mesma lógica do sistema penitenciário adulto. A preocupação com a preservação da ordem social aparen- temente ameaçada e o interesse de assegurar a modernização capitalista brasileira determinavam os critérios de eleição do es- quema de proteção da criança, marcada pelo restabelecimento da autoridade e a confiança nas instituições de atendimento à criança que eram importadas dos ‘Estados Unidos e da Europa’. (PEREIRA JÚNIOR et al, 1991, p. 143). 3 Para aprofundar a discussão sobre os estereótipos criados em torno das categorias “criança” e “menor” ver: PEREIRA JUNIOR, A. et al. Os impasses da cidada- nia: infância e adolescência no Brasil. Rio de Janeiro: Ibase, 1991; e RIZZINI, I. O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil. Rio de Janeiro: Petrobrás, 1997. 16 | Alexandre Almeida Rocha, Cleide Lavoratti e Silmara Carneiro e Silva (Org.) A partir da década de 60, o SAM, sendo alvo de constantes de- núncias e inquéritos, é denunciado por suas instalações inadequadas, despreparo dos técnicos e dirigentes para o trabalho com as crianças e adolescentes e é substituído pela Fundação Nacional do Bem Estar do Menor - FUNABEM, que partindo de uma nova visão, busca a superação das práticas repressivas, concebendo o “menor” como um problema decorrente da pobreza e “desestruturação” de suas famí- lias devendo ser objeto de prática assistencialista e em último caso a internação seria aplicada como medida de assistência, visando a “ressocialização”. “A visão do menor como ameaça social cede lugar à da criança carente e abandonada. As práticas assistencialistas passam a ter prio- ridade maior que as práticas punitivas”. (PEREIRA JÚNIOR et al, 1991, p. 20). Em 1979 é criado o Segundo Código de Menores, que delimita sua ação na assistência, proteção e vigilância a menores de 18 anos, que se encontrem em “situação irregular”. A Doutrina da Situação Irregular, ao firmar suas ações, se concretiza numa intervenção estatal não só ao “menor” delin- quente, mas também ao “menor” pobre em situação de carência social. Mas, esta intervenção estatal, sendo de cunho de defesa social, para controle da desordem, pouco atendia aos interesses das necessidades sociais dos “menores”. (SOUZA, 1984, p. 27). (grifos nossos). O paradigma de “situação irregular” é mais uma forma de cris- talização de estereótipos da pobreza, que visa justificar as medidas autoritárias e repressivas delegadas a esta parcela da população, que aparece despojada de seus atributos e características infantis, para se tornar caso de polícia e ressocialização. A lei 6.697 de 1979 sintetiza a dicotomia pão e palmatória, e es- tabelece legalmente a critério que define a pessoa de até 18 anos ou como criança e adolescente, ou ainda como “menores”. Pela nova lei o menor é definido em situação irregular quando priva- do de condições essenciais e sua subsistência, saúde e instrução obrigatória. (PEREIRA JÚNIOR, 1991, p. 21). Política pública de socioeducação: conquistas e retrocessos | 17 Ao citar tais privações, a lei omite a figura do Estado e do modo de produção que as criaram, atribuindo aos pais e/ou responsáveis a “causa” por estas irregularidades. A figura do Juiz de menores conti- nua aexercer a função de tutelador e fiscalizador das ações dos “me- nores”, defendendo a sociedade das ameaças que eles representam. A partir da abertura democrática no país nos anos 80, o atendi- mento às crianças e adolescentes é revisto, mesmo porque os movi- mentos populares reivindicatórios4 exigiam do governo uma nova posição frente às questões sociais que vinham se agravando (aumen- to de crianças em situação de rua, assassinatos de meninos e meni- nas de famílias pobres, trabalho infantil, aumento do acolhimento de crianças em instituições, etc.). Sendo assim, em 1988 é promulgada a Constituição Federal, que incorporando os princípios básicos da Declaração Universal dos Di- reitos da Criança (1959), expressa em seu artigo 2775 que: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade o direito à vida, a saúde, a alimentação, a educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito e a convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de discriminação, ex- ploração crueldade e opressão6. (grifos nossos). A Constituição de 1988 rompe, ao menos teoricamente, com modelos autoritários e repressivos, delegados ao trato da infância e juventude empobrecida do Brasil e passa a conceber todas as crian- ças e os adolescentes como sujeitos de direitos. Exigindo uma série de modificações nos programas que até então eram responsáveis por essa área. 4 Destaca-se o papel do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) criado em 1985, que deu visibilidade ao problema das crianças que viviam nas ruas das grandes cidades e denunciou os frequentes assassinatos desta população. 5 O artigo 227 resultou da junção de duas emendas populares “Criança e Consti- tuinte” e “Criança Prioridade Absoluta”. 6 A lei coloca como sendo responsáveis pelo bem-estar da criança /adolescente primeiro a família, depois a sociedade e por último o Estado, deixando claro ainda os vestígios liberais na construção da legislação social. 18 | Alexandre Almeida Rocha, Cleide Lavoratti e Silmara Carneiro e Silva (Org.) O início da década de 90 é marcado pela extinção da FUNA- BEM e criação do FCBIA (Fundação Centro Brasileiro da Infância e de Adolescência), dos programas CIAC (Centro Integrados de As- sistência à Criança) e pela aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O ECA regulamenta e detalha o artigo 227 da Constituição Fe- deral de 1988 e incorpora as conquistas da Convenção Internacional dos Direitos da Criança (1989), traz um novo paradigma jurídico de atenção à população infanto-juvenil: o da Proteção Integral, defi- nindo no seu artigo 3º que: A criança e o adolescente gozam de todos os direitos funda- mentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. (BRASIL, Presidência da República, 1990). (grifos nossos). O Estatuto da Criança e do Adolescente foi resultado de um gran- de movimento social que reuniu setores da sociedade brasileira (Mi- nistério Público, Judiciário, pastorais religiosas, movimentos sociais e profissionais de entidades governamentais e não governamentais) em torno da luta pelos direitos humanos de crianças e adolescentes. Tanto o ECA como a Constituição Federal trazem um novo en- tendimento de políticas públicas a partir do momento em que pro- põem a participação da sociedade civil na sua elaboração, monito- ramento e avaliação, através da criação de conselhos municipais, estaduais e nacional dos direitos da criança e do adolescente, que são órgãos deliberativos e controladores das políticas públicas, com composição paritária de representantes do governo e da sociedade civil organizada7. 7 Outros espaços de participação da sociedade civil organizada criados a partir da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente são as Conferên- cias realizadas a cada dois anos em todo o território nacional com a finalidade do controle da política pública por parte dos cidadãos, os Fóruns de entidades não-go- vernamentais, as audiências públicas, dentre outros mecanismos que contribuem para uma maior presença da população nos espaços deliberativos e consultivos das políticas de atenção à população infanto-juvenil. Política pública de socioeducação: conquistas e retrocessos | 19 A Política de atendimento às crianças e adolescentes no Brasil, segundo o Estatuto, deve ser operacionalizada através de um con- junto articulado de ações governamentais e não governamentais nas três esferas de Governo (União, Estados e Municípios) que tenham por objetivo a Proteção Integral deste segmento. A concepção de um Sistema de Garantias de Direitos de Crian- ças e Adolescentes (SGD) desenvolvido a partir da Doutrina Jurídica da Proteção Integral contida no ECA, enfatiza a necessidade de arti- culação das políticas públicas e dos diferentes órgãos de atendimen- to à população infanto-juvenil.8 Diferente de outros sistemas operacionais de políticas públicas (SUS9, SUAS10) o Sistema de Garantias dos Direitos Humanos de crianças e adolescentes é entendido “[...] mais como um “sistema estratégico”, do que propriamente como um “sistema de atendimen- to direto”. Essa natureza “estratégica” é próprio aliás do sistema de promoção e proteção dos direitos humanos, em geral, do qual ele é parte” (NOGUEIRA NETO, 2011, p. 15). 8 “Art. 5º Os órgãos públicos e as organizações da sociedade civil, que integram esse Sistema, deverão exercer suas funções, em rede (...)” (BRASIL. Presidên- cia da República. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, 2006, p. 4). (grifos nossos). 9 O Sistema Único de Saúde / SUS criado pela Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990) é fundado no direito universal e equitativo à saúde previsto na Constituição de 1988 é organizado de forma participativa, re- gionalizada e hierarquizada, onde os serviços devem seguir um comando único da Política Nacional de Saúde. 10 O Sistema Único de Assistência Social/ SUAS criadas em 2004 pela Política Nacional de Assistência Social é um sistema descentralizado político-administra- tivamente para os Estados, e os Municípios e possui comando único das ações em cada esfera de governo. Tem centralidade na família e seus serviços seguem a lógica de níveis de complexidade de proteção social. O SUAS se organiza em dois níveis de Proteção Social: o da Proteção Social Básica destinadas às famílias e indivíduos em condição de vulnerabilidades sociais devido a pobreza, privações e fragilização de vínculos familiares e comunitários, e o da Proteção Social Especial destinadas às famílias e indivíduos com direitos violados e vínculos fragilizados e/ou rompidos. A Proteção Social Básica é executada pelos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e a Proteção Social Especial pelos Centros de Refe- rência Especializados de Assistência Social (CREAS). 20 | Alexandre Almeida Rocha, Cleide Lavoratti e Silmara Carneiro e Silva (Org.) Segundo o Conselho Nacional dos Direitos de Crianças e Ado- lescentes – CONANDA: Art. 1º O Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Ado- lescente constitui-se na articulação e integração das instâncias públicas governamentais e da sociedade civil, na aplicação de instrumentos normativos e no funcionamento dos mecanismos de promoção, defesa e controle para a efetivação dos direitos hu- manos da criança e do adolescente, nos níveis Federal, Estadual, Distrital e Municipal. § 1º Esse Sistema articular-se-á com todos os sistemas nacio- nais de operacionalização de políticas públicas, especialmen- te nas áreas da saúde, educação, assistência social, trabalho, segurança pública, planejamento, orçamentária, relações exte- riorese promoção da igualdade e valorização da diversidade. (BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, 2006, p.1). (grifos nossos). O SGD é estruturado a partir de três grandes eixos: Promoção dos direitos humanos, Defesa dos direitos humanos, e Controle da efetivação dos direitos humanos, os quais articulam organicamente instituições que possuem atribuições específicas na garantia dos di- reitos à população infanto-juvenil, mas interdependentes, para pro- porcionar a Proteção Integral às crianças e adolescentes. No que se refere especificamente ao adolescente em conflito com a lei, além das garantias legais trazidas pela Constituição Fe- deral, e pelo ECA materializado na atuação do SGD, um avanço no atendimento desse público foi a aprovação em 2012 do Sistema de Atendimento Socioeducativo (SINASE), que será abordado na se- quência. Política pública de socioeducação: conquistas e retrocessos | 21 O SINASE E AS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS O SINASE é uma forma de regulamentação do ECA, no que se refere ao público de adolescentes que cometem atos infracionais. Portanto, deve efetivar os princípios do ECA e assegurar o respeito à Doutrina da Proteção Integral, como orientadora das ações que contornam as medidas socioeducativas em âmbito nacional, às quais o SINASE está voltado. Neste sentido, o desafio do SINASE é o de garantir que o Estado rompa com a característica repressora, cerce- adora dos direitos, tal como ele intervinha antes do ECA, e que res- peite tal como deve fazer no âmbito das medidas protetivas, também no campo das medidas socioeducativas. O SINASE está disposto na lei de nº 12.594 de 18 de janeiro de 2012, tratando-se de um conjunto de regras e princípios que regula- mentam a execução das medidas socioeducativas voltadas aos ado- lescentes em conflito com a lei em âmbito nacional; ou seja, voltada ao público de adolescentes que cometem atos infracionais. Confor- me seu artigo 1º, o SINASE é: [...] o conjunto ordenado de princípios, regras e critérios que envolvem a execução de medidas socioeducativas, incluindo-se nele, por adesão, os sistemas estaduais, distrital e municipais, bem como todos os planos, políticas e programas específicos de atendimento a adolescente em conflito com a lei. (BRASIL 2012). Ao regulamentar a matéria das medidas socioeducativas, define, além da sua execução, a forma de aferição e julgamento do ato infra- cional. Podemos verificar que esta legislação foi conquistada depois de 12 anos do ECA e essa morosidade na regulamentação da matéria não se dá à toa. A afirmação e efetividade das garantias constitucio- nais (materiais e processuais) dos adolescentes em conflito com a lei, ainda são desafios inerente à área. A sociedade e os representantes do próprio Estado não dispõem de meios objetivos e/ou subjetivos eficazes para a devida constatação das condições de vida dos ado- lescentes. O que implica em desconsiderar, que em muitos casos, os adolescentes que cometem atos infracionais, antes de infringirem a lei, tiveram suas vidas violadas, devido a não garantia e efetivida- 22 | Alexandre Almeida Rocha, Cleide Lavoratti e Silmara Carneiro e Silva (Org.) de de seus direitos fundamentais; que antes de serem adolescentes autores de atos infracionais foram vítimas de violência por parte da família, da sociedade e ou do próprio Estado. Ao infracionar, esses adolescentes não deixam a situação de sujeitos violados. Abramovay (2002, p. 59), tratando do cenário de violência em relação à juventu- de em países latino-americanos, afirma que estudos recentes [...] comprovam que adolescentes vítimas de violência na infân- cia apresentam maior possibilidade de se tornarem agentes de violência no futuro. Por isso é necessário alertar para a impor- tância fundamental de políticas públicas (universais e específi- cas), contemplando os jovens. Nestes casos, a condição de cidadão dos adolescentes não passa de letra morta na lei, diante da aspereza e insegurança que determi- nam as suas condições de vida, o que indica a ausência e/ou a precá- ria cobertura de políticas públicas para a adolescência e juventude. Viver na rua, evadido da escola; sob o risco de não sobreviver me- diante os usos de abusos de sua condição de adolescente em face dos interesses do mercado, do tráfico de drogas, do trabalho precário e ou de sua vulnerabilidade diante do mundo das drogas, da violência urbana e da criminalidade, são exemplos corriqueiros de aspectos históricos da trajetória de vida de um adolescente em conflito com a lei. De acordo com Oliveira (2018) a vulnerabilidade social é fator de vulnerabilidade penal no Brasil. Muitos deles acometidos por problemas de saúde mental, sem expectativas de desenvolvimento dissociadas dos vínculos nefastos contraídos ao longo de sua vida. Então, antes do julgamento moral, mediante a prática do ato infracional, é importante questionar quem são esses adolescentes? Antes de serem autores de atos infracionais eles são adolescentes, têm uma história cujas marcas mantêm rela- ções com diferentes formas de exploração e opressão. Considerar a história de vida dos adolescentes pode não ser suficiente. Buscar compreendê-la em suas múltiplas determinações é fundamental para uma justa interpretação das suas condições de vida. Esta é uma pre- missa para formar um entendimento justo para a aplicação e para a execução da medida socioeducativa e chegar àquela que seja perti- Política pública de socioeducação: conquistas e retrocessos | 23 nente ao seu caso concreto. Esse desafio está posto pela Constituição Federal de 1988, pelo ECA e pelo SINASE a sociedade brasileira. A atuação da sociedade e do Estado deve ser condizente com a con- dição peculiar de desenvolvimento dos adolescentes. Considerá-lo sujeito de direitos é ato que assegura a sua dignidade e cidadania. De acordo com o SINASE, os objetivos das medidas socioe- ducativas são três: o primeiro deles é a responsabilização do ado- lescente pelo ato infracional cometido; o segundo é o objetivo da integração social; e o terceiro objetivo é a reprovação da conduta do adolescente. (BRASIL, 2012). Para a efetivação da integração social, tal como posto na legislação, é necessário um conjunto de ações de proteção. É o Estado que deve, com primazia, desenvolver esse conjunto de ações junto do adolescente e de sua família, sem perder de vista a relação destes com a comunidade e a sociedade, da qual ambos fazem parte. É impossível pensar a inserção de um adolescente na sociedade, o seu retorno a uma convivência humana em condições saudáveis, sem a realização de tais ações. Tais ações que devem ser mediadas pelas diferentes áreas das políticas públicas em vista da proteção para o desenvolvimento humano do sujeito. E deve-se dar prioridade à articulação com os serviços da rede socioas- sistencial, o que segundo a literatura recente sobre o tema indica não ser a realidade no Brasil. (MORAIS; FERREIRA, 2019, SANTOS; AMARAL, 2019). Considerando o objetivo educativo das medidas socioeducati- vas, é importante destacar que se torna muito difícil que um ado- lescente tenha consciência que sua conduta deva ser reprovada pela sociedade e pelo Estado quando a própria sociedade e o próprio Es- tado, também não oferecem o que lhe é devido, por direito. O ca- ráter educativo da medida fica extremamente limitado, mediante a afirmação de um Estado negligente. Punir não é educar. Educação envolve inicialmente, proteção, orientação e direção, ainda que lhe seja também imputada a tarefa de responsabilização, como uma das suas dimensões, esta não se resume a ela. Diante de um cenário de não proteção de adolescentes cabe os seguintes questionamentos: Como julgar, sem justiça? Como res- ponsabilizar o outro quando também se tem responsabilidade sobre a questão? Num Estado que não protege, a responsabilização de quem 24 | Alexandre Almeida Rocha, Cleide Lavorattie Silmara Carneiro e Silva (Org.) comete infrações se torna pífia; a integração social se torna ineficien- te e a reprovação da conduta não atinge caráter pedagógico. Dito de outra forma, o ECA e o SINASE não são efetivados socialmente. Em vista da apreensão dos elementos necessários para a con- quista de um patamar de ação no qual a aplicação e a execução das medidas socioeducativas se tornem minimamente eficazes, faz-se necessário partir do respeito efetivo de seus princípios. Na sequên- cia destacamos alguns deles. O princípio da mínima intervenção; o princípio da brevidade e o princípio da excepcionalidade que são princípios que fundamentam as medidas socioeducativas. Outro princípio muito importante para a forma de aplicação e execução das medidas socioeducativas é o princípio da autocom- posição e da priorização de práticas restaurativas no âmbito da sua aplicação e execução. Este princípio inova na forma e no conteúdo das medidas socioeducativas, quando imprime uma nova lógica de responsabilização, uma responsabilização baseada na reflexão sobre as necessidades humanas e na empatia. Ainda que as práticas restau- rativas não assegurem, por si só, as mudanças necessárias do ponto de vista da proteção dos adolescentes, ao que se apresenta é um an- coradouro para práticas menos aflitivas, o que em si é um alento, em meio a tantas contradições entre a forma e o conteúdo, neste campo de ação. O conjunto de princípios, ora vigentes, fazem frente às formas históricas de responsabilização inspiradas em modelos retributivos e punitivistas e que ainda hoje é a realidade de muitas instituições prisionais, em face da intensificação do Estado Penal no mundo e no Brasil. (COSTA; GUEDES, 2017). Então, ao se examinar os princípios das medidas socioeducativas, tal como estão dispostos no SINASE, chega-se à compreensão de que são princípios que contribuem para que as medidas socioeducativas tenham, de um lado, a efetivação da dimensão sancionatória, ou seja, para cor- responder ao objetivo da responsabilização, mas também garan- tam, por outro lado, sobretudo, a sua dimensão sociopedagógica. O que nos alerta para a necessidade de afirmação imperiosa e urgente desta última dimensão, considerando a realidade das instituições. (COSTA; GUEDES, 2017). Política pública de socioeducação: conquistas e retrocessos | 25 Diante do exposto, destacamos que de nada adianta, uma lei perfeita se ela não for efetivada na realidade. Eficácia jurídica não é suficiente quando se trata do campo dos direitos programáticos (SARLET, 2012). O campo das medidas socioeducativas requer a eficiência da ordem programática dos direitos sociais, a fim de asse- gurar proteção social aos adolescentes, assim como eficácia jurídica de seus direitos fundamentais e liberdade individuais, antes, durante e depois do processo socioeducativo. Caso tais garantias não se efe- tivem, tudo não passará de uma panaceia jurídica e social, que se desenvolve à revelia do Estado Democrático de Direito. É preciso pensar, do ponto de vista substancial, na efetivação da cidadania dos adolescentes. Não se aplica medida socioeducativa à toa, a esmo; não se aplica medida socioeducativa sob o disfarce da proteção. Ao contrário, deve-se proteger para se evitar a aplicação de medidas socioeducativas. Estas devem ser a última ratio, tal como nos indica a doutrina jurídica, ao retratar a razão de ser do direito pe- nal em um Estado Democrático de Direito. (BITENCOURT, 2015). Para a aplicação e execução de medidas socioeducativas, minima- mente referenciadas na defesa da cidadania e da dignidade humana, deve-se com urgência parar para pensar e rever os mecanismos de integração social a que as medidas estão sujeitadas na realidade so- cial, a disposição das políticas públicas e do Estado. Seriam eles me- canismos fortalecidos na atual fase da sociabilidade do capital? Sob quais condições materiais, educativas e culturais estão submetidas, por exemplo, as famílias dos adolescentes que cometem atos infra- cionais, sendo seus núcleos primários de integração social? Quem são os adolescentes acometidos pelo Estado Penal brasileiro? Qual a realidade das comunidades dos adolescentes sob o alcance do siste- ma socioeducativo? Para quê e para quem se põem, no cotidiano prá- tico-político da aplicação e execução, as medidas socioeducativas no Brasil? Como vivem os adolescentes autores de atos infracionais, quais são as suas fragilidades pessoais? Estas são algumas questões que o Estado Brasileiro ainda não respondeu. Não se tem dados sis- tematizados, por municípios, Estados e a nível federal com robustez para o planejamento e efetivação de uma política de socioeducação condizente com as necessidades humanas dos adolescentes brasilei- ros, que tem na sua trajetória de vida o rompimento com o pacto 26 | Alexandre Almeida Rocha, Cleide Lavoratti e Silmara Carneiro e Silva (Org.) de cidadania, mediante a prática de atos infracionais? De quem é a responsabilidade nesse caso? Seria o Estado Democrático de Direi- to Brasileiro jovem demais para empreender esforços responsáveis para responder a esta realidade? Qual seria a medida socioeducativa mais apropriada a ser aplicada às autoridades públicas, neste caso? Seria, de outra forma, o próprio sinal de falência das funções pú- blicas do Estado, no trato da questão? Ou seria indício de crime de responsabilidade? Como pensar a responsabilização e a reeducação neste caso? Seria a reprovação da conduta suficiente? Estas e outras perguntas não podem deixar de ser feitas, enquanto a Constituição Federal, o ECA e o SINASE estiverem vigentes no país e enquanto as medidas socioeducativas se mantiverem submetidas aos seus pre- ceitos. Trata-se de um conjunto de medidas, as quais iremos descre- ver, uma a uma, na sequência. A primeira das medidas socioeducativas é a de advertência. Esta medida é aplicada de forma pontual e executada imediatamente pelo juiz. É uma medida que visa advertir o adolescente da reprovação de sua conduta e orientá-lo para que não reitere na mesma conduta afli- tiva, lesiva dos direitos das outras pessoas. Então esta é uma medida que se aplica e se executa, imediatamente, pela autoridade judicial. A outra medida é a de reparação de dano. Esta é aplicada para o adolescente que comete o ato infracional de natureza patrimonial. Esta medida que pode ser aplicada para aquele adolescente que te- nha condições financeiras, que sua família possa prover a reparação do dano por ele causado, ou que ele mesmo possa reparar o dano se a lesão que ele provocou é, por exemplo, diante de um patrimônio físico que pode ser recuperado, reparado pela sua própria ação. En- tão, neste caso, o adolescente terá cumprido a medida socioeduca- tiva quando reparar, finalmente, o dano. A outra medida é a medida de prestação de serviço à comunidade. Nesta medida, o adolescente deverá realizar uma atividade laborativa para uma instituição de na- tureza social, uma instituição de natureza educativa, demais institui- ções que prestem serviços públicos que ele possa desenvolver uma ação laboral em comunhão com a sua vocação para o trabalho. Esta medida deve considerar a condição escolar do adolescente, o horário que ele frequenta a escola e se for um adolescente trabalhador tam- bém deve-se considerar também seu horário de trabalho para que a Política pública de socioeducação: conquistas e retrocessos | 27 medida não o prejudique. A medida de prestação de serviço à comu- nidade junto com a liberdade assistida que é a próxima medida que descreveremos são medidas chamadas de medidas de meio aberto. Cabe destacar que a prestação de serviço à comunidade é aplicada e executada com o adolescente vivendo em liberdade, estando ele no contexto da sua família e da comunidade. A liberdade assistida, uma outra medida socioeducativa, também é uma medida em meio aber- to. Esta medida não prevê especificamente uma ação a ser realizada pelo adolescente como é o caso da medidade prestação de serviços à comunidade, mas ela pode ser aplicada de forma acumulada ou isoladamente. A medida de liberdade assistida prevê uma orienta- ção por parte de um profissional responsável que empreenderá ações de integração social do adolescente: a matrícula e frequência esco- lar; orientação e encaminhamento para cursos profissionalizantes; o acompanhamento socioassistencial dele e de seus familiares, enfim, um conjunto de ações que contribuam para que este adolescente se insira socialmente e que possa, então, desenvolver suas atividades de vida básicas como qualquer sujeito que viva em liberdade e que tenha assegurados seus direitos. Além das medidas em meio aberto, o ECA e o SINASE preveem as medidas denominadas restritivas e privativas da liberdade. São as medidas chamadas de meio fechado – semiliberdade e interna- ção. Na semiliberdade, o adolescente é retirado do contexto fami- liar e colocado no âmbito de uma instituição. Esta instituição deve garantir prioritariamente para este adolescente a escolarização e a profissionalização em articulação com os serviços da comunidade, uma vez que a liberdade do adolescente é restrita, porém se mantém enquanto um direito a ser usufruído, ainda que de forma limitada, durante o cumprimento da respectiva medida. Estas duas atividades devem ser desenvolvidas fora da instituição e devem ser realizadas pelo adolescente não necessariamente sob o acompanhamento direto de um profissional da instituição. Mas ele pode protagonizar a sua ação, ir à escola, fazer seu curso profissionalizante na comunidade e retornar a qualquer momento, de acordo com as regras institucionais para o local de cumprimento da medida. Este adolescente se mantém sob a tutela do Estado, porém pode realizar visitas a sua família e durante o percurso da execução da medida, ainda que se mantenha 28 | Alexandre Almeida Rocha, Cleide Lavoratti e Silmara Carneiro e Silva (Org.) sob a tutela do Estado. As atividades externas podem ser realizadas sem prévio aviso a autoridade judicial. A medida de semiliberdade não comporta prazo determinado. Ela deve ser avaliada de seis em seis meses e não pode ultrapassar o tempo de três anos da mesma maneira que é a medida de internação, sendo esta a próxima e última medida descrita. A medida socioeducativa de internação é aquela que atinge, in- tegralmente, a liberdade do adolescente. A medida de internação é, portanto, privativa de liberdade; também não comporta prazo míni- mo, mas deve ser avaliada regularmente considerando o prazo de seis em seis meses e não pode ultrapassar o período de três anos. Aquele adolescente que completa 21 anos durante o cumprimento da medida socioeducativa de internação deve ser compulsoriamente liberado da instituição. (BRASIL, 2012). Este é um critério da legislação. Du- rante o tempo em que o adolescente cumpre a medida de internação ele poderá também fazer atividades externas, desde que não tenha prévia determinação em contrário na sentença, que é o documento no qual o juiz aplica a medida socioeducativa ao adolescente. Du- rante o período de internação este adolescente é colocado em uma instituição. As instituições de internação no Brasil, na sua maioria, seguem os modelos de presídios e suas práticas são arraigadas a este modelo, ainda que a forma de atuação, as atividades desenvolvidas e o foco do trabalho deva ser diferenciado, segundo a legislação, con- siderando a condição peculiar de desenvolvimento dos adolescentes. (BRASIL, 1990; BRASIL, 2012). Portanto, cabe ressaltar que no país algumas instituições (isto não é algo extraordinário) ainda tem resquícios do período da doutrina da situação irregular. Muitas delas, ainda tem estruturas físicas muito arcaicas da época ainda do período anterior da promulgação do ECA e reproduzem práticas de violên- cia. (COSTA; GUEDES, 2017). Por outro lado, existem algumas instituições de privação de liberdade de adolescentes, como é o caso de algumas unidades de privação do Estado do Paraná, por exemplo, que possuem uma ar- quitetura própria considerando os parâmetros legais assegurados pela legislação, apontam avanços em termos estruturais, conquanto ainda seguem os modelos de instituições prisionais, o que impõe limites para uma mais ampla abertura e aperfeiçoamento de práticas Política pública de socioeducação: conquistas e retrocessos | 29 educativas no trato do trabalho cotidiano com os adolescentes. Tais instituições tem uma estrutura mínima de espaços para realização de atividades de escolarização, atividades esportivas de recreação e as equipes adotam as estratégias possíveis em vista de uma metodo- logia que assegure minimamente a dimensão sócio pedagógica, em detrimento da jurídico-sancionatória. Esta que deve ser entendida apenas no sentido da restrição do direito de ir e vir, e até mesmo esta restrição pode ser atenuada, a depender das condições objeti- vas e subjetivas do adolescente. Ademais, o trabalho das instituições deve ser de cunho eminentemente educativo garantindo a proteção integral dos adolescentes, mediante ações de integração humana e social, seja no âmbito interno da instituição seja através de ativida- des externas em articulação com a família e com a comunidade. O adolescente em cumprimento da medida socioeducativa de interna- ção não está privado desse e de outros direitos, conforme previsão no ECA. (BRASIL 1990). Consideramos, para tanto, que a formação dos profissionais da socioeducação é muito importante para que a dimensão sociopeda- gógica se sobreponha à dimensão jurídico-sancionatória; ou seja, que as ações socioeducativas enfrentem os resquícios da história e que promovam a dignidade humana e a cidadania dos adolescentes. Esta é uma pauta que deve se manter em cena, considerando que a política de capacitação dos profissionais da socioeducação e da rede socioassistencial em relação à execução das medidas socioeducati- vas, a nível de Brasil, ainda é precária. (FAERMANN; NOGUEIRA, 2017). Estas então, são as medidas socioeducativas previstas pelo ECA e pelo SINASE e estas foram algumas reflexões para pensarmos as medidas socioeducativas no Brasil, em suas proposições e contra- dições. Para finalizarmos esta reflexão é necessário pensarmos na urgência de uma formação crítica dos sujeitos envolvidos com esta realidade, profissional e politicamente, para que a vida dos adoles- centes em conflito com a lei no Brasil não se desperdice, em meio às desigualdades e exclusões, preconceitos e discriminações, explora- ções e opressões sofridas por eles no seu cotidiano. Na sua maioria, se referem à adolescentes advindos de populações vulneráveis, de adolescentes que não tiveram na sua história a garantia de proteção 30 | Alexandre Almeida Rocha, Cleide Lavoratti e Silmara Carneiro e Silva (Org.) por parte da sociedade, da família e do Estado. Reforçamos a ideia de que é necessário pensar que estes adolescentes necessitam de me- didas protetivas para que efetivamente se integrem na sociedade. E é necessário estarmos atentos aos grupos, aos políticos que tem lan- çado mão de projetos de lei que visam enrijecer as medidas socioe- ducativas sob um discurso falacioso de que o ECA e o SINASE não garantem a responsabilização. Ao contrário, a legislação garante a responsabilização. A dificuldade está nos processos de materializa- ção integral dos dispositivos da lei. Finalmente, é importante dizer a todos e todas que fiquem aten- tos e acompanhem, na conjuntura atual, o estado dos vários proje- tos que visam enrijecer as medidas socioeducativas e, notem à luz dos que apresentamos neste texto, o quão vazias de sentido elas são, quando confrontadas com o ECA e o SINASE. Então é importante pensarmos que neste momento do auge dos trinta anos do ECA e no ano que o SINASE completa seus oito anos, é necessário pensarmos e problematizarmos possibilidades de efetivação de ações concre- tas que afirmem novas mediações em face das garantias jurídicas já conquistadasno país; que trabalhemos para a formação de uma consciência crítica diante desta problemática no Brasil. CONSIDERAÇÕES FINAIS A história das políticas de atendimento a criança e do adolescen- te no Brasil até a promulgação da Constituição Federal de 1988 foi da afirmação de políticas fundamentadas na denominada Doutrina da Situação Irregular. Com o Estatuto da Criança e do Adolescente a Doutrina da Pro- teção Integral foi adotada como fundamento para o atendimento de crianças e adolescentes no país. O ECA é fruto de uma luta conjun- ta de diversos sujeitos da sociedade e do Estado que defenderam arduamente a conquista da garantia e regulamentação dos direitos fundamentais desta parcela da população no Brasil. Estes sujeitos históricos, tiveram o compromisso de construir bases sólidas, jurí- dica e politicamente fundamentadas, para a proteção das crianças e adolescentes no âmbito do Estado Democrático de Direito, com base Política pública de socioeducação: conquistas e retrocessos | 31 nos princípios constitucionais da Carta de 1988, e têm na cidadania e na dignidade humana do público infanto-juvenil, os fundamentos centrais do seu trabalho, inspirados pelo texto constitucional e pelas bandeiras dos movimentos sociais que foram os grandes protagonis- tas desta história, pautando a matéria para o Estado, o que repercutiu no ECA e posteriormente no SINASE. Portanto, necessário é ficarmos atentos às contradições entre a forma e a realidade das medidas socioeducativas no Brasil, a consi- derar as contradições que medeiam estas dimensões. Eficácia jurí- dica não pressupõe a priori eficácia social e no campo das medidas socioeducativas esta mediação ainda está por ser construída em vista da sua consolidação e isso só se faz na prática cotidiana das lutas sociais para que novas e melhores formas de execução e de aplica- ção das medidas, com o aprofundamento do estudo e do diálogo e intenções políticas em torno da efetividade dos direitos das crianças e adolescentes no Brasil. Então, nós esperamos, com este texto, ter contribuído com todos e todas para que, de alguma forma, aqueles que não conhecem as medidas, que tenham encontrado noções básicas das medidas socio- educativas durante o texto e que tenham parado para pensar nas suas proposições e contradições, em face das condições a que estão ex- postos os adolescentes no Brasil. Aqueles (as) que já eram próximos do campo das medidas socioeducativas tenham tido a oportunidade de dialogar de alguma maneira com os autores e que tenhamos, nes- se percurso dialógico, apresentado alguns elementos para a inflexão deste debate no país. REFERÊNCIAS ABRAMOVAY, M; CASTRO, M.G; PINHEIRO, L.C; et al. Juventude, violên- cia e vulnerabilidade social na América Latina: desafios para políticas públicas. Brasília: UNESCO, 2002. BARROS, N. V. Violência intrafamiliar contra criança e adolescente. Trajetó- ria histórica, políticas sociais, práticas e proteção social. 2005, 266f. Tese (Douto- rado em Psicologia Clínica), Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005. 32 | Alexandre Almeida Rocha, Cleide Lavoratti e Silmara Carneiro e Silva (Org.) BITENCOURT, C. R. Tratado de Direito Penal: parte geral 1. São Paulo: Sarai- va, 2015. BRASIL. Presidência da República. Constituição Federal de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 20 out.2020. ______.Estatuto da Criança e do Adolescente (1990). Disponível em: http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm. Acesso em: 09 mai. 2020. ______. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (2012). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12594.htm. Acesso em: 03, dez. 2020. COSTA, R. P.; GUEDES, O. S. As expressões das prisões no mundo do capital. Argumentum, v. 9, n. 2, p. 108-119, 2017. FAERMANN, L. A.; NOGUEIRA, R. R. Unidades de Atendimento de adoles- centes em conflito com a lei: reflexos da violação dos direitos humanos. Serviço Social em Revista, v. 19, n. 2, p. 23-44, 2017. OLIVEIRA, B. C. S. “Nenhum passo atrás”: algumas reflexões em torno da re- dução da maioridade penal. Serviço Social & Sociedade, n. 131, p. 75-88, 2018. MORAIS, J. B. T.; FERREIRA, M. D.A.M. 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Emanuelle Minella Rodrigues. Heloysa Ribeiro Garcia. Kimberly Juliana dos Santos INTRODUÇÃO O controle penal é o principal meio de punição no sistema capi- talista, fundamental para concretizar a força estatal, sendo uma das maneiras pela qual o Estado burguês realiza sua intervenção, obje- tivando reproduzir e manter a força de trabalho. Podemos perceber a ideologia burguesa nesse meio de punição e repressão, baseado na seletividade e na discriminação de classe, visando manter o seu domínio e resguardar a propriedade. Partindo do pressuposto que a sociedade é violenta na sua estrutura e que a violência é uma op- ção para que as bases do poder sejam mantidas, a criminalização de determinadas classes, vulneráveis socialmente, vai ao encontro à concepção da manutenção do controle e administração do exército industrial de reserva, encoberto na ideia de combater o crime. A discussão acerca dos adolescentes em conflito com a lei é atu- al e de relevância social, tanto no âmbito da política como profis- sional, visto que engloba diversos aspectos estruturais, conjunturais, jurídicos e sociais. Quando o adolescente comete um ato infracional recebe uma resposta estatal que está prevista em lei e se aos adultos o controle penal é muito questionado, a situação se exacerba quando a pauta é a responsabilização dos adolescentes, violência juvenil e CONTORNOS SOCIOJURÍDICOS CONTORNOS SOCIOJURÍDICOS DO CONTROLE PENAL JUVENIL DO CONTROLE PENAL JUVENIL NO BRASIL À LUZ DOS CONCEITOS NO BRASIL À LUZ DOS CONCEITOS GRAMSCIANOS DE ESTADO GRAMSCIANOS DE ESTADO AMPLIADO E DE SUBALTERNIDADEAMPLIADO E DE SUBALTERNIDADE 34 | Alexandre Almeida Rocha, Cleide Lavoratti e Silmara Carneiro e Silva (Org.) redução da maioridade penal. Portanto, o objetivo deste trabalho é analisar a previsão do controle penal juvenil nas legislações federais que dispõe sobre adolescentes autores de atos infracionais no Brasil. Através de revisão de literatura, o controle penal será abordado à luz do conceito de Estado Burguês, em articulação com os conceitos gramscianos de Estado Ampliado e subalternidade, ancorados por uma análise documental da Constituição Federal de 1988, Estatuto da Criança e do Adolescente e do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo articulando com a análise da vulnerabilidade social vivenciado pelos adolescentes na sociedade brasileira. Trata-se de uma pesquisa exploratória, de cunho descritivo e analítico através da técnica de análise hermenêutica, autocomposi- tiva e sociológica. O artigo estrutura-se da seguinte forma: no pri- meiro item é apresentado o conceito gramsciano de Estado Amplia- do e o controle penal constituído a partir da trama entre sociedade política e sociedade civil comoinstrumento legítimo da sociedade política para a repressão das forças sociais opositoras de um regime. O segundo expõe o Controle Penal como face coercitiva do Estado burguês. O terceiro discute o conceito de subalternidade em Gramsci e a criminalização das classes subalternas unida ao desenvolvimento histórico e expansivo do capitalismo em uma relação de dominação e exploração. O quarto analisa as expressões da face coercitiva do Estado nas legislações federais e os contornos jurídicos do controle penal juvenil no brasil, retratando o paradoxo da socioeducação que possui um caráter jurídico-sancionatório e pedagógico corroboran- do com as duas faces do Estado para Gramsci, violência/coerção e consenso/educação. E o quinto e último, analisa dados sociológicos e estatísticos apontando a seletividade no controle penal e como o sistema socioeducativo administra as classes subalternas. Os resultados apontam que há, de forma sistemática, a configu- ração formal do exercício do controle penal juvenil nas legislações federais do Brasil, diante de adolescentes em vulnerabilidade social enquanto expressão da condição subalterna, frente a sociedade civil e política na sociedade brasileira, sob a atual fase do capitalismo contemporâneo. Política pública de socioeducação: conquistas e retrocessos | 35 O CONTROLE PENAL À LUZ DO CONCEITO GRAMSCIANO DE ESTADO AMPLIADO A socialização da política promoveu a ampliação do Estado no capitalismo contemporâneo. Dotado de novas funções, esse Estado, tido como Estado Integral ou Ampliado, se forma na conjunção da sociedade política com a sociedade civil. Essa foi a concepção de Estado que o teórico italiano Antonio Gramsci (1891-1937) adotou para fazer a leitura dessa nova expressão estatal na sociedade oci- dental, do século XX. Estudiosos do seu pensamento apontam que as questões principais que nortearam sua investigação se deram a partir das peculiaridades decorrentes do capitalismo, o domínio fascista no Estado Nacional italiano, entre outros. De acordo com Liguori (2006, p. 178) o pensador italiano “[...] é o maior estudioso marxista das superestruturas. ” Para que possamos utilizar sua concepção de Estado para a análise do controle penal de adolescentes autores de atos infracionais no Brasil é necessário compreender com maior pro- fundidade essa concepção gramsciana. Ao longo do desenvolvimento histórico as concepções e defini- ções sobre Estado e sociedade civil se deram de diferentes maneiras, desde Maquiavel perpassando pelos jusnaturalistas (Hobbes, Locke e Rousseau) até chegarmos aos pensadores da linha marxista, sendo a partir de Karl Marx que o Estado deixa de ser superior aos homens e passa a ser visto como instrumento jurídico a serviço da classe dominante em uma sociedade. Mas, é em Gramsci que há o desen- volvimento de uma concepção de Estado, que deriva de uma noção de sociedade civil mais complexa e elaborada, o que é reflexo da complexificação das relações sociais na fase do capitalismo mono- polista, na qual a socialização da política passou a ser uma estratégia das classes que ocupavam o Estado; ou seja, da classe dominante, na sua relação com as classes dominadas. Para Gramsci, o Estado é conjunção de sociedade civil que é composto por um conjunto de instituições ou organizações respon- sáveis por elaborar e difundir ideologias e sociedade política que é a esfera composta por aparelhos policial-militar e burocráticos res- ponsáveis pela coerção e repressão. (DURIGUETTO, 2007). É atra- vés desta última esfera que o Controle Penal é exercido pelo Estado, 36 | Alexandre Almeida Rocha, Cleide Lavoratti e Silmara Carneiro e Silva (Org.) em face da sociedade. Enquanto instrumento a serviço das classes dominantes, ou seja, daquelas que ocupam o Estado como governo, o controle penal é, em última instância, a ação violenta das classes dominantes em relação às classes dominadas, legitimado socialmen- te e institucionalizado pelo Estado. Ou seja, trata-se do uso consen- sual da coerção de um grupo sobre aqueles que são identificados como opositores ao consenso social, político e cultural hegemônico. Em Gramsci, o Estado é força, utilizando de um complexo de atividades teórico-práticas pelas quais a classe dirigente justifica e mantém o seu domínio. Entretanto, essa dominação não se mantém apenas através da coerção legal, necessita de legitimação através do consentimento dos seus governados, assim, Estado também é con- senso (GRAMSCI, 2004). Por isso, Estado para Gramsci é consenso e coerção ou hegemonia encouraçada de coerção. Nessa trama entre Sociedade política e sociedade civil é que se constitui o controle penal enquanto atividade legítima da sociedade política para tolher, castrar e reprimir as forças sociais opositoras de um regime. Sob a égide de Estados Democráticos de Direito o poder de punir do Esta- do possui distintos travos jurídicos que asseguram o uso comedido da força diante dos civis. A chancela dos direitos humanos garante que o Estado não possa ultrapassar um limiar de ação tal que os indi- víduos não sejam, por essa via, usurpados de sua vida, de seus bens e de sua propriedade. Ao contrário, o ius puniendi fora concebido historicamente, exatamente, para a salvaguarda dos direitos naturais do homem em face de suas relações com a sociedade civil. Afora, a salvaguarda do direito liberal burguês à vida, aos bens e à proprieda- de, o direito de punir no Estado Capitalista assume uma função ma- terial, a do controle e administração do exército industrial de reserva. A prisão, tal como as guerras de Estado servem a esse papel. Nesta toada, o controle penal, visto à luz do materialismo histórico dialé- tico, ou da filosofia da práxis, para se utilizar da definição gramscia- na de marxismo, é uma ‘sentinela’ em formação permanente, com uma arma engatilhada para a testa das classes subalternas. Ou seja, aquelas classes que só sobrevivem de forma dependente e resignada à ordem do capital. Portanto, a mercê de todas as suas vicissitudes, inclusive das diferentes formas de controle da força produtiva, das quais o controle penal é uma delas. Pode-se dizer: uma das mais Política pública de socioeducação: conquistas e retrocessos | 37 eficientes, porque das mais perversas na ordem do capital, uma vez que se trata, materialmente, do escárnio dos subalternos legitimado pelos ‘bons cidadãos’. Entretanto, é a função ideológica do controle penal que o mantém sob o manto imaculado da ordem. Fazer durar a barbárie como realidade histórica de determinados grupos, é a tarefa de um Direito que se propõe a garantia da segurança pública, daque- les que são tomados como parte legítima do tecido social e político de um determinado bloco histórico, de uma determinada formação jurídica e ideológica. A ideologia, nos termos marxianos, enquanto imaginário social que inverte a realidade, possui três dimensões: a da alienação, a da mistificação e a da reificação. (CHATELET apud SCHLESCENER, 2017). O controle penal enquanto ideologia, alie- na, mistifica e reifica a relações humanas e sociais. A sociedade se aliena de si mesma, na medida em que separa a humanidade entre o ‘eu’ cidadão burguês e o ‘outro’ eliminável da estrutura. As relações humanas se mistificam na medida em que o ‘outro’, existe somen- te na medida em que está para a superestrutura na exata proporção de sua ineficácia estrutural, enquanto cidadão estrito de um Estado Penal, porque despossuído das qualidades necessárias para o gozo de sua personalidade jurídica civil. Ou seja, porque subalterno na ordem do capital. Com isso, o sujeito é reificado e se vê estranho de si mesmo na ordem penal. Diante do exposto, necessário se faz analisar as características do Controle Penal como parte da face coercitiva do Estado burguês. E, de como esta face do Estado se expressa na relação jurídica esta- belecida pelo Estado com o conjunto de adolescentes autores de atos infracionais. E, ainda como esta relaçãose materializa na ação con- creta da sociedade política na relação com a sociedade civil, ao se defrontar especificamente com uma população juvenil que, no caso do Brasil, é na sua maioria vulnerável socialmente, por consequên- cia de uma determinação estrutural do capitalismo contemporâneo e de sua repercussão no contexto nacional. 38 | Alexandre Almeida Rocha, Cleide Lavoratti e Silmara Carneiro e Silva (Org.) O ESTADO BURGUÊS E O CONTROLE PENAL O Estado não é um poder que surgiu de fora para dentro da so- ciedade, pelo contrário, ele é um produto da própria sociedade, é a resposta de que a sociedade se “ [...] enredou numa irremediável contradição com ela própria e está dividida por antagonismos irre- conciliáveis [...]” (ENGELS, 2014, p. 208), e para que diante desses antagonismos as classes conflitantes não se sucumbam em uma luta que não trará nenhum resultado faz-se necessário um poder para co- locar ordem nesse conflito. Dessa forma, o Estado surge do antago- nismo e da luta de classes, um órgão de dominação de uma classe e submissão de outra. Assim não há neutralidade nessa instituição, nascida e desenvolvida sob a égide das concepções da classe domi- nante (LENIN, 2010). É necessário ressaltar que o Estado é “[...] da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante, classe que, por intermédio dele [...] adquire novos meios para a repressão e exploração da classe oprimida” (ENGELS, 2014, p. 92). Portanto, o Estado é para a classe dominante um instrumento para manter a exploração e a opressão, ordenado a partir do modo de produção existente. O Estado, na concepção marxista, é uma comissão que faz a gerência dos negócios referentes a burguesia. No capitalismo o Es- tado é submisso à burguesia sendo um instrumento de exploração do trabalho na ordem do capital, uma máquina repressiva que permite a classe burguesa garantir sua dominação. Nessa perspectiva o Estado é a representação da burguesia, ou seja, Estado burguês. No processo de dominação, um dos componentes desse Estado é a instituição da força pública, formada não só por “[...] homens armados, como, ainda, de acessórios materiais, os cárceres e as insti- tuições coercitivas de todo o gênero [...]” (ENGELS, 2014, p. 209), assim sendo, o Controle Penal está na composição da força do Es- tado. O Controle Penal como face coercitiva exercido pelo Estado burguês é uma manifestação orgânica originada a partir das relações de produção capitalistas, sendo implementado desde a denomina- da “acumulação primitiva” descrita por Marx (1985) em O Capital, com o objetivo de contenção e punição daqueles considerados peri- gosos ou que atentavam contra a lógica burguesa. Política pública de socioeducação: conquistas e retrocessos | 39 Durante o curso da história a acumulação capitalista se desen- volveu e expandiu-se, de tal forma que, para o Estado se tornou algo ineliminável na manutenção das formas exploratórias e dominantes da burguesia sobre o proletariado, estes que – na acumulação primi- tiva do capital “[...] foram repentinamente arrancados de seu modo de vida costumeiro tampouco conseguiam se ajustar à disciplina [...] (MARX, 2013, p. 806) – tornaram-se, na sua maioria por forças con- textuais, marginalizados e desiguais, a escória da sociedade. Em de- corrência disso, surge uma legislação perversa voltada para estes que se tornaram o escorralho social. O atual cenário nacional se baseia no modo capitalista de produ- ção, sendo percebida na sua essência a nítida divisão de classes na composição da estratificação social, indicando cada vez mais uma parcela reduzida da sociedade que concentram o grande poderio ca- pitalista, e do outro lado, uma grande parcela da população vivendo em condições de extrema escassez de recursos, na sua maioria classe trabalhadora subordinada a receber ínfimos retornos, buscando nada mais do que a sua subsistência e o restante, mas também expressiva na sua quantidade que, busca maneiras destoantes dos padrões, da ordem e das normas estabelecidas socialmente. Como diria Marx (2013, p. 293), “[...] cada capitalista mata muitos outros [...] os quais usurpam e monopolizam todas as vantagens”, assim aumentando a extensão da miserabilidade, da servidão, degeneração, opressão e punição. O Controle Penal é fundamental para a força estatal, sendo o principal meio de punição no sistema capitalista, configurando-se como um dos meios pelo qual o Estado burguês intervém na repro- dução e manutenção da força de trabalho, pois era necessário aos olhos preocupados da burguesia instaurar um dispositivo de punição visando combater os atos delituosos contra a propriedade. A ideologia burguesa penetra de forma específica o controle penal, sendo que suas medidas de repressão visam manter o status quo e o resguardo da propriedade, assim garantindo e perpetuando o seu domínio. Dessa forma, o controle penal está enraizado pelos pressupostos burgueses, com base na seletividade e discriminação de classe. Se o capitalismo promove as desigualdades sociais o controle penal tem a função de forçar os desiguais para a criminalização. 40 | Alexandre Almeida Rocha, Cleide Lavoratti e Silmara Carneiro e Silva (Org.) A CRIMINALIZAÇÃO DAS CLASSES SUBALTERNAS É a partir das formas de dominação, opressão e repressão, ou seja, nas relações de poder na qual os sujeitos estão inseridos que se pode compreender o conceito de subalternidade no pensamento gramsciano. Este conceito é utilizado na contemporaneidade “[...] para descrever as condições de vida de grupos e camadas de classe em situações de exploração ou destituídos dos meios suficientes para uma vida digna. ” (SIMIONATTO, 2009, p. 42). A partir do surgimento do Estado burguês se estabelece uma uni- dade no plano jurídico-formal e na ideologia propagada para toda a sociedade. Essa unidade compreende-se como resultante da orga- nicidade relacional entre sociedade política e sociedade civil. Para Gramsci nos Estados modernos as classes dominantes não possuem o poder somente porque controlam os aparelhos de coerção do go- verno, mas porque possuem “ [...] um formidável aparelho composto de dispositivos institucionais e culturais que lhe permitem difundir de forma direta e indireta sua concepção do mundo” (LIGUORI; VOZA, 2017, p. 1412). As classes subalternas possuem um laço his- tórico com a sociedade civil, mas para que se unifiquem ambas de- vem se tornar Estado (SIMIONATTO, 2009). Somente através da autonomia, de uma vitória permanente, é que a classe subalterna romperia a subordinação provocada pela classe dominante, porém na historicidade da classe subalterna perce- be-se que mesmo em uma aparente vitória permanente permanecem em um estado de alerta e posição de defesa (GRAMSCI, 2002 apud SIMIONATTO, 2009). Essa vitória permanente de conquista da au- tonomia só poderá ocorrer por meio de um longo processo e luta complexa, mas para que essa luta contra as estruturas de poder tenha êxito é necessário visitar o passado e compreender a característica flexível e duradoura da condição de subalternidade (BUTTIGIEG in LIGUORI; VOZA, 2017). Os interesses dos grupos dominantes e os interesses dos grupos que estão em subordinação se interligam, implicando-se frente a or- ganicidade econômica-política presente no Estado, pois a forma de vida estatal é concebida de maneira dinâmica e processual, onde a Política pública de socioeducação: conquistas e retrocessos | 41 formação e superação dos equilíbrios instáveis se dá a partir desses interesses (SIMIONATTO, 2009). Na concepção gramsciana, a subalternidade é uma categoria re- lacional, que define determinados sujeitos a uma relação de poder e submissão, seja cultural, econômica, político-ideológica e jurídico- -formal, que subordina, domina, oprime e pune. Como mencionado nos parágrafos anteriores, é na relação de poder que podemos com- preender o conceito de subalternidade em Gramsci, sendo a partir dessa relação de poder que se produz a escassez
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