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Evangelho de Mateus Silvio Dutra DEZ/2015 2 Sumário Mateus 1 3 Mateus 2 6 Mateus 3 10 Mateus 4 14 Mateus 5 18 Mateus 6 165 Mateus 7 333 Mateus 8 395 Mateus 9 406 Mateus 10 419 Mateus 11 429 Mateus 12 438 Mateus 13 448 Mateus 14 463 Mateus 15 472 Mateus 16 485 Mateus 17 498 Mateus 18 509 Mateus 19 539 Mateus 20 555 Mateus 21 563 Mateus 22 577 Mateus 23 589 Mateus 24 598 Mateus 25 610 Mateus 26 628 Mateus 27 648 Mateus 28 661 3 Mateus 1 Mateus conta a genealogia de Jesus a partir de Abraão, porque foi a Abraão que Deus fez a promessa de abençoar todas as nações da terra por meio dAquele que descenderia dele no futuro, a saber Jesus Cristo (Gál 3.14,19). O evangelista dividiu as quarenta e duas gerações de Abraão até José, em três grupos de quatorze, como se vê no verso 17. De Abraão até Davi, a quem foi feita também a promessa da Nova Aliança, pelas fiéis misericórdias prometidas por Deus à casa de Davi. De Davi até a deportação dos judeus para Babilônia, onde foram purificados da idolatria para serem restaurados posteriormente em sua própria terra, para reedificarem o templo e para poderem recepcionar a Jesus. E da deportação para Babilônia, até o nascimento de Jesus. Estas 42 gerações da genealogia do Senhor somam cerca de 2.000 anos de antepassados. Nenhum outro personagem da história teve um registro tão antigo e extenso de seus ancestrais, como Jesus Cristo, porque aprouve a Deus marcar, para nos deixar o testemunho da descendência do nosso Senhor e Salvador, pela certeza de que somente nEle e em nenhum outro, temos o cumprimento das fiéis promessas feitas a Abraão e a Davi, quanto Àquele que descenderia deles e que seria o Rei de um reino eterno, e o único por meio de quem somos livrados da maldição da lei, para recebermos uma salvação, herança e bênção eternas. Como estava designado por Deus, desde antes da fundação do mundo, que Jesus deveria proceder, segundo a carne, da tribo de Judá, então são nomeados os filhos de Judá, Perez e Zerá, mas não foi em Zerá, mas em Perez, conforme o conselho do Senhor, que foi chamada a genealogia de Jesus. Quatro mulheres são nomeadas na genealogia do Senhor. Duas eram estranhas à comunidade de Israel: Raabe, um cananita, e Rute, uma moabita, revelando em figura que o Senhor não viria somente para a nação de Israel, mas também para todos os povos gentios. E as outras duas, apesar de serem de Israel, haviam adulterado, a saber: Tamar, nora de Judá, e Bete-Seba esposa de Urias, que concebeu a Salomão de Davi. 4 Nisto, se antecipou que Jesus viria para conduzir pecadores ao arrependimento, para serem incluídos em Sua família celestial e divina. Como a genealogia de Jesus foi contada na descendência de Davi, e particularmente em todos aqueles seus descendentes, que foram reis em Judá, até Zedequias, quando houve a deportação para Babilônia, então foram contados tanto reis ímpios quanto piedosos na descendência do Senhor. Isto não significa que estes reis ímpios também fazem parte da família de Deus, mas que Deus cumpre os Seus propósitos e tem Seus escolhidos até mesmo na descendência dos maus. Mateus destacou nos versos 1, 16, 17 e 18 o título de Cristo, palavra grega para Ungido, correspondente à palavra hebraica Messias. Jesus é portanto, o Messias, o Cristo, o Ungido, citado em Daniel 9.25; Salmo 2.2 e Isaías 61.1, para que ficasse registrado que Ele realizaria toda a Sua obra na terra, completamente debaixo da unção e poder do Espírito Santo. A partir do verso 18, Mateus começou a registrar algumas das circunstâncias que envolveram a concepção e o nascimento do Senhor. Foi anunciado pelo anjo Gabriel a José, que Maria não havia concebido de homem algum, quando se achou grávida do Senhor Jesus, mas que tal concepção fora obra direta do Espírito Santo no ventre de Maria, uma vez que a mesma permanecia virgem, e assim deveria permanecer até o nascimento do Senhor. Esta revelação foi feita a José para que ele não deixasse Maria, secretamente, como havia intentado fazer, para não infamá-la pensando que ela tivesse cometido adultério. Esta forma sobrenatural da formação do corpo de Jesus havia sido profetizada por Isaías cerca de 700 anos do seu nascimento. E a José foi declarado pelo arcanjo Gabriel, que Aquele que Maria trazia em seu ventre era o Salvador do mundo, porque salvaria as pessoas do seu povo, dos seus pecados, a saber, não todas as pessoas do povo de José, mas as pessoas que fazem parte do povo de Jesus, ou seja, aqueles que são salvos por Ele, motivo porque deveria ser colocado nEle, ao nascer, o nome de Jesus, que significa no hebraico, o Salvador. Mateus 1.1 Livro da genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão. Mateus 1.2 A Abraão nasceu Isaque; a Isaque nasceu Jacó; a Jacó nasceram Judá e seus irmãos; 5 Mateus 1.3 a Judá nasceram, de Tamar, Farés e Zará; a Farés nasceu Esrom; a Esrom nasceu Arão; Mateus 1.4 a Arão nasceu Aminadabe; a Aminadabe nasceu Nasom; a Nasom nasceu Salmom; Mateus 1.5 a Salmom nasceu, de Raabe, Booz; a Booz nasceu, de Rute, Obede; a Obede nasceu Jessé; Mateus 1.6 e a Jessé nasceu o rei Davi. A Davi nasceu Salomão da que fora mulher de Urias; Mateus 1.7 a Salomão nasceu Roboão; a Roboão nasceu Abias; a Abias nasceu Asafe; Mateus 1.8 a Asafe nasceu Josafá; a Josafá nasceu Jorão; a Jorão nasceu Ozias; Mateus 1.9 a Ozias nasceu Joatão; a Joatão nasceu Acaz; a Acaz nasceu Ezequias; Mateus 1.10 a Ezequias nasceu Manassés; a Manassés nasceu Amom; a Amom nasceu Josias; Mateus 1.11 a Josias nasceram Jeconias e seus irmãos, no tempo da deportação para Babilônia. Mateus 1.12 Depois da deportação para Babilônia nasceu a Jeconias, Salatiel; a Salatiel nasceu Zorobabel; Mateus 1.13 a Zorobabel nasceu Abiúde; a Abiúde nasceu Eliaquim; a Eliaquim nasceu Azor; Mateus 1.14 a Azor nasceu Sadoque; a Sadoque nasceu Aquim; a Aquim nasceu Eliúde; Mateus 1.15 a Eliúde nasceu Eleazar; a Eleazar nasceu Matã; a Matã nasceu Jacó; Mateus 1.16 e a Jacó nasceu José, marido de Maria, da qual nasceu JESUS, que se chama Cristo. Mateus 1.17 De sorte que todas as gerações, desde Abraão até Davi, são catorze gerações; e desde Davi até a deportação para Babilônia, catorze gerações; e desde a deportação para Babilônia até o Cristo, catorze gerações. Mateus 1.18 Ora, o nascimento de Jesus Cristo foi assim: Estando Maria, sua mãe, desposada com José, antes de se ajuntarem, ela se achou ter concebido do Espírito Santo. Mateus 1.19 E como José, seu esposo, era justo, e não a queria infamar, intentou deixá-la secretamente. 6 Mateus 1.20 E, projetando ele isso, eis que em sonho lhe apareceu um anjo do Senhor, dizendo: José, filho de Davi, não temas receber a Maria, tua mulher, pois o que nela se gerou é do Espírito Santo; Mateus 1.21 ela dará à luz um filho, a quem chamarás JESUS; porque ele salvará o seu povo dos seus pecados. Mateus 1.22 Ora, tudo isso aconteceu para que se cumprisse o que fora dito da parte do Senhor pelo profeta: Mateus 1.23 Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, o qual será chamado EMANUEL, que traduzido é: Deus conosco. Mateus 1.24 E José, tendo despertado do sono, fez como o anjo do Senhor lhe ordenara, e recebeu sua mulher; Mateus 1.25 e não a conheceu enquanto ela não deu à luz um filho; e pôs- lhe o nome de JESUS. Mateus 2 O modo de Jesus manifestar a Sua majestade divina, continua sendo o mesmo, desde o Seu nascimento, a saber, numa manjedoura de Belém, porque não é com pompa e notoriedade que Ele se manifesta aos Seus súditos, mas sempre em humilde obscuridade. Homens sábios do Oriente vieram dar-Lhe honra, quando ainda era um recém-nascido, porque lhes foi revelado por Deus onde encontrá-lO. A genuína presença e majestade do Senhor Jesus continua se manifestando a muitos humildes de coração, em muitas manjedouras deste mundo, enquanto osgrandes e entendidos não chegam a conhecê- Lo, porque aprouve ao Pai revelá-lo aos pequeninos e contritos de coração. Deus é poderoso para esconder a revelação de Cristo de ímpios arrogantes que lhe resistem, como fizera em relação a Herodes, mas pode também fazer com que reis piedosos se dobrem aos pés do Senhor, e O adorem, em localidades pobres, que não costumam ser frequentadas por aqueles que são considerados grandes segundo o mundo. Assim, a visita dos magos foi um prenúncio do modo e do método de Deus para revelar Cristo aos homens. Se estes magos eram dados a artes mágicas condenadas por Deus, a visita deles a Jesus em Belém, revelou a vitória de Cristo sobre os poderes das 7 trevas, convertendo para a Sua luz, aqueles que se encontravam debaixo do domínio do diabo. Além disso, enquanto muitos em Israel se endureceriam, quanto à recepção do Messias, os gentios representados nestes magos, estavam se curvando para adorar o Senhor, mesmo quando era ainda um menino. A visita dos magos para dar honra a Cristo precipitou a perseguição e matança realizadas pelo rei Herodes. O diabo tentou impedir o surgimento do Libertador de Israel, tal como havia feito nos dias do nascimento de Moisés, pelo cruel estratagema de matar todos meninos do sexo masculino de dois anos para baixo, que habitavam na localidade e arredores, onde fora anunciado o nascimento tanto de Moisés, quanto de Jesus. A história se repete, porque toda vez que Deus suscita um instrumento poderoso de libertação dos que se encontram escravizados pelo diabo, este se levanta com grande fúria, para tentar impedir tal obra de libertação. Todavia, os propósitos de Deus não podem ser frustrados, e a libertação será operada em meio a todos os danos que possam ser causados pelo Inimigo. Está determinado que Jesus reine para todo o sempre em glória na Nova Jerusalém, mas em sua encarnação, havia sido designado e predito que deveria nascer na humilde Belém de Judá. Isto se deveu a muitas razões, mas especialmente à de que tudo o que se refere ao reino do Messias, começa pequeno como o grão de mostarda e termina em grandeza e em glória. A fidelidade no pouco será exigida antes de que se veja a colocação em grandeza e glória. Os que desejarem uma coroa terão que carregar voluntariamente uma cruz. Os que aspirarem pelo consolo eterno terão que suportar sofrimentos com paciência perseverante. O galardão será tanto maior nem tanto pelas graças recebidas, mas pelas perseguições e tribulações sofridas por amor a Cristo. A humilhação e a humildade da manjedoura, da cidade natal de Belém, das perseguições de Herodes, da fuga para o Egito, têm o propósito de nos ensinar e fazer recordar estas verdades anteriormente referidas. A riqueza de Cristo representada pelo ouro; o bom perfume de Cristo representado pela mirra, e a oração intercessória poderosa de Cristo 8 como nosso Sumo Sacerdote, representada pelo incenso, que foram oferecidos pelos magos, serão sempre achados onde houver verdadeira adoração na Sua santa presença. Sempre haverá uma estrela para guiar a todos aqueles que pretendam honrar verdadeiramente ao Senhor Jesus, que será providenciada pelo Pai, que é quem atrai a todo a quem é dado ter a revelação da pessoa de Cristo. Esta estrela é o Espírito Santo trabalhando em nossas mentes e corações, para que não erremos o caminho da verdadeira adoração, que é feita aos pés do Senhor. Assim como Jesus teve que ser escondido de seus perseguidores, no Egito, por seus pais, de igual modo, deve continuar sendo escondido daqueles que O rejeitam voluntariamente, porque aqueles que rejeitam aqueles que são enviados por Ele, também são rejeitados, e o modo visível desta rejeição é por nos retirarmos do meio deles. Jesus é tão precioso que não deve ser exposto voluntária e deliberadamente ao desprezo de homens ímpios. Aqueles que não se julgam dignos de receberem a paz do Senhor, devem viver sem a referida paz, em sinal de juízo contra a impiedade deles, do mesmo modo como Herodes ficou privado da abençoadora e graciosa presença do Senhor, até o dia da sua morte, em grande ruína. Os que não desejam ser promotores da paz, ou seja, pacificadores, excluem-se automaticamente da bem-aventurança, nesta vida e na do porvir, porque Jesus afirma que somente os pacificadores são bem- aventurados. Deste modo, até hoje, os seguidores de Jesus, quando forem perseguidos numa cidade devem fugir para outra. Quando não são bem recebidos num determinado lugar, devem procurar outro. Isto não é covardia e nem vergonha, mas simplesmente, não permitir que o grande nome do Senhor, que deve ser sempre santificado, venha a ser exposto à ignomínia e desonra. Pelas perseguições e tribulações que sofremos podemos aprender o quanto somos dependentes de Deus para tudo, de maneira que esta lição nunca seja esquecida por toda a eternidade. A fuga de José e Maria com Jesus para o Egito, já se encontrava nos desígnios de Deus, e por isso profetizou esta fuga muitos séculos antes pela boca do profeta Oseias (Os 11.1). 9 Isto nos ensina que a obra do evangelho deve ser feita em meio a perseguições, conforme o conselho predeterminado por Deus antes mesmo da fundação do mundo (At 4.27,28), para que o Seu grande Nome seja glorificado pelas sucessivas vitórias da fé, da graça e do evangelho, nas batalhas que são empreendidas contra os principados e potestades das trevas, para a libertação daqueles que eles têm trazido em cativeiro. Mateus 2.1 Tendo, pois, nascido Jesus em Belém da Judeia, no tempo do rei Herodes, eis que vieram do oriente a Jerusalém uns magos que perguntavam: Mateus 2.2 Onde está aquele que é nascido rei dos judeus? pois do oriente vimos a sua estrela e viemos adorá-lo. Mateus 2.3 O rei Herodes, ouvindo isso, perturbou-se, e com ele toda a Jerusalém; Mateus 2.4 e, reunindo todos os principais sacerdotes e os escribas do povo, perguntava-lhes onde havia de nascer o Cristo. Mateus 2.5 Responderam-lhe eles: Em Belém da Judeia; pois assim está escrito pelo profeta: Mateus 2.6 E tu, Belém, terra de Judá, de modo nenhum és a menor entre as principais cidades de Judá; porque de ti sairá o Guia que há de apascentar o meu povo de Israel. Mateus 2.7 Então Herodes chamou secretamente os magos, e deles inquiriu com precisão acerca do tempo em que a estrela aparecera; Mateus 2.8 e enviando-os a Belém, disse-lhes: Ide, e perguntai diligentemente pelo menino; e, quando o achardes, participai-mo, para que também eu vá e o adore. Mateus 2.9 Tendo eles, pois, ouvido o rei, partiram; e eis que a estrela que tinham visto quando no oriente ia adiante deles, até que, chegando, se deteve sobre o lugar onde estava o menino. Mateus 2.10 Ao verem eles a estrela, regozijaram-se com grande alegria. Mateus 2.11 E entrando na casa, viram o menino com Maria sua mãe e, prostrando-se, o adoraram; e abrindo os seus tesouros, ofertaram-lhe dádivas: ouro incenso e mirra. Mateus 2.12 Ora, sendo por divina revelação avisados em sonhos para não voltarem a Herodes, regressaram à sua terra por outro caminho. Mateus 2.13 E, havendo eles se retirado, eis que um anjo do Senhor apareceu a José em sonho, dizendo: Levanta-te, toma o menino e sua 10 mãe, foge para o Egito, e ali fica até que eu te fale; porque Herodes há de procurar o menino para o matar. Mateus 2.14 Levantou-se, pois, tomou de noite o menino e sua mãe, e partiu para o Egito. Mateus 2.15 e lá ficou até a morte de Herodes, para que se cumprisse o que fora dito da parte do Senhor pelo profeta: Do Egito chamei o meu Filho. Mateus 2.16 Então Herodes, vendo que fora iludido pelos magos, irou-se grandemente e mandou matar todos os meninos de dois anos para baixo que havia em Belém, e em todos os seus arredores, segundo o tempo que com precisão inquirira dos magos. Mateus 2.17 Cumpriu-se então o que fora dito pelo profeta Jeremias: Mateus 2.18 Em Ramá se ouviu uma voz, lamentação e grande pranto: Raquel chorandoos seus filhos, e não querendo ser consolada, porque eles já não existem. Mateus 2.19 Mas tendo morrido Herodes, eis que um anjo do Senhor apareceu em sonho a José no Egito, Mateus 2.20 dizendo: Levanta-te, toma o menino e sua mãe e vai para a terra de Israel; porque já morreram os que procuravam a morte do menino. Mateus 2.21 Então ele se levantou, tomou o menino e sua mãe e foi para a terra de Israel. Mateus 2.22 Ouvindo, porém, que Arquelau reinava na Judeia em lugar de seu pai Herodes, temeu ir para lá; mas avisado em sonho por divina revelação, retirou-se para as regiões da Galileia, Mateus 2.23 e foi habitar numa cidade chamada Nazaré; para que se cumprisse o que fora dito pelos profetas: Ele será chamado nazareno. Mateus 3 No final do capítulo precedente, Mateus registrou que Jesus foi habitar na Galileia, na cidade de Nazaré, depois de ter retornado com seus pais, José e Maria, do Egito. É dito então no início deste terceiro capitulo, que “Naqueles dias...”, ou seja, quando Jesus habitava em Nazaré, já tendo decorrido cerca de 30 11 anos, que João, o Batista apareceu pregando no deserto da Judeia dizendo: “Arrependei-vos, porque é chegado o reino dos céus.”. João falou da necessidade de arrependimento para entrar no reino dos céus. Falou do juízo vindouro sobre aqueles que rejeitassem a salvação que estava sendo oferecida gratuitamente pelo Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. João falou do batismo de fogo do Espírito Santo, e do corte de toda árvore (pessoa) que não desse bom fruto. Em suma, João pregou o evangelho, antes mesmo do próprio Jesus começar a pregá-lo. Isto foi designado por Deus para servir de sinal que a doutrina pregada por Jesus provinha da mesma fonte, a saber do céu, do Espírito Santo, conforme foi permitido a João pregá-la ainda na dispensação do Antigo Testamento, no apagar das luzes daquela antiga dispensação, próximo da inauguração da nova dispensação da graça, com a instituição de uma Nova Aliança, no sangue de Jesus. Jesus começou o Seu ministério terreno somente depois de ter sido batizado no Espírito Santo, quando este veio sobre Ele na forma de uma pomba, quando era batizado nas águas por João. Aquele era o marco inicial do Seu ministério. Por isso os dados relativos tanto à infância de João, quanto à de Jesus, são omitidos por Mateus, porque o evangelho foi escrito para contar a história da nossa redenção pelo Senhor, e esta se encontra configurada especialmente no período do Seu ministério de três anos. João é citado na história da redenção, porque fora vinculado ao ministério do Senhor, pelo desígnio de Deus, para demonstrar principalmente, o Seu poder e fiel cumprimento de todas as profecias relativas à vida e obra de Seu Filho Unigênito, em favor dos pecadores. João não foi achado pregando nos castelos, mas no deserto da Judeia. Aqueles que quisessem indagar acerca das coisas relativas à salvação teriam que descer das alturas em que se encontravam, vindo ao deserto da humilhação, para ouvirem a pregação de João, e se arrependerem de seus pecados. Este seria o mesmo caráter da pregação de Cristo, porque o evangelho chama, antes de tudo, ao arrependimento. À contrição de coração, à pobreza de espírito, para que se possa receber a coroa de glória e o óleo 12 de alegria prometidos por Deus aos que viessem a se converter de seus pecados, pela fé no Messias. A principal função de João havia sido profetizada por Isaías, cerca de setecentos anos antes: “3 Eis a voz do que clama: Preparai no deserto o caminho do Senhor; endireitai no ermo uma estrada para o nosso Deus. 4 Todo vale será levantado, e será abatido todo monte e todo outeiro; e o terreno acidentado será nivelado, e o que é escabroso, aplanado.” (Is 40.3,4) A função de preparar o caminho do Senhor no deserto, e endireitar no ermo uma estrada para o nosso Deus, não poderia ser realizada tentando ser agradável a todas as pessoas, mas manifestando o genuíno amor de Deus, pela pregação da verdade. Este é o único modo pelo qual Deus pode operar levantando os abatidos e oprimidos (vale levantado); trazer ao arrependimento e humildade os que andam na soberba (outeiro e monte abatidos); e reparar os danos produzidos pelo pecado (terrenos acidentados e escabrosos, nivelados e aplanados). Não foi de topografia, de geografia que Deus falou através do profeta Isaías, mas acerca da condição do coração humano. Por isso importava que Jesus fosse batizado por João, para cumprimento de toda a justiça, porque estava determinado nos conselhos divinos que Ele deveria ser achado na forma de servo, identificado plenamente com a humanidade que veio salvar, exceto em relação ao pecado, porque não tinha pecado. E aquele batismo nas águas foi o momento determinado para que Ele fosse também e principalmente batizado no Espírito Santo, que veio sobre Ele na forma de uma pomba, para que desse início ao Seu ministério terreno, até que completasse a obra que Lhe fora designada para ser feita em nosso favor. Por causa dessa perfeita obediência e submissão à vontade do Pai, João ouviu a voz do Pai relativa a Jesus, dizendo: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo.” Mateus 3.1 Naqueles dias apareceu João, o Batista, pregando no deserto da Judeia, Mateus 3.2 dizendo: Arrependei-vos, porque é chegado o reino dos céus. 13 Mateus 3.3 Porque este é o anunciado pelo profeta Isaías, que diz: Voz do que clama no deserto; Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas. Mateus 3.4 Ora, João usava uma veste de pelos de camelo, e um cinto de couro em torno de seus lombos; e alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre. Mateus 3.5 Então iam ter com ele os de Jerusalém, de toda a Judeia, e de toda a circunvizinhança do Jordão, Mateus 3.6 e eram por ele batizados no rio Jordão, confessando os seus pecados. Mateus 3.7 Mas, vendo ele muitos dos fariseus e dos saduceus que vinham ao seu batismo, disse-lhes: Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira vindoura? Mateus 3.8 Produzi, pois, frutos dignos de arrependimento, Mateus 3.9 e não queirais dizer dentro de vós mesmos: Temos por pai a Abraão; porque eu vos digo que mesmo destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão. Mateus 3.10 E já está posto o machado á raiz das árvores; toda árvore, pois que não produz bom fruto, é cortada e lançada no fogo. Mateus 3.11 Eu, na verdade, vos batizo em água, na base do arrependimento; mas aquele que vem após mim é mais poderoso do que eu, que nem sou digno de levar-lhe as alparcas; ele vos batizará no Espírito Santo, e em fogo. Mateus 3.12 A sua pá ele tem na mão, e limpará bem a sua eira; recolherá o seu trigo ao celeiro, mas queimará a palha em fogo inextinguível. Mateus 3.13 Então veio Jesus da Galileia ter com João, junto do Jordão, para ser batizado por ele. Mateus 3.14 Mas João o impedia, dizendo: Eu é que preciso ser batizado por ti, e tu vens a mim? Mateus 3.15 Jesus, porém, lhe respondeu: Consente agora; porque assim nos convém cumprir toda a justiça. Então ele consentiu. Mateus 3.16 Batizado que foi Jesus, saiu logo da água; e eis que se lhe abriram os céus, e viu o Espírito Santo de Deus descendo como uma pomba e vindo sobre ele; Mateus 3.17 e eis que uma voz dos céus dizia: Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo. 14 Mateus 4 João foi decapitado a mando de Herodes quando contava apenas cerca de 30 anos de idade, porque foi morto logo no início do ministério de Jesus, quando contava com a mesma idade com a qual João havia sido morto. Assim, se deu cumprimento à Palavra de João que importava que a sua luz brilhasse apenas por um pouco, porque convinha que ele diminuísse e que Jesus crescesse. De igual modo, todos os ministérios que estão vinculados a Cristo, têm a mesma função que teve João, a saber, surgir, anunciar a Cristo e desaparecer de cena, de maneira que apenas o nome de Cristo seja perpetuado por todas as gerações. No entanto, é importantedestacar, que em relação ao tempo de permanência do Senhor, na carne, neste mundo, na realização do Seu próprio ministério, que Ele também deixou este mundo para ir para junto do Pai, quando contava apenas 33 anos de idade. Nisto há um grande ensinamento para todos nós, que vivemos neste mundo, que não é a extensão do tempo de vida que temos aqui, que pode ser considerado como prova da bênção de Deus, porque nascido de mulher não havia maior que João, o Batista, e sem qualquer sombra de dúvida, Cristo é sobre todos e nem o somatório de todos os seres da terra e do céu, podem sequer serem comparados à Sua grandeza e glória. Portanto, tudo que Jesus sofreu neste mundo em relação à humilhação a que foi submetido, inclusive a de ser tentado pelo diabo, foi em razão de ter carregado sobre Si o nosso próprio opróbrio, porque não havia nenhum motivo para carregar qualquer opróbrio, por sua própria causa, porque, afinal, não tinha qualquer pecado. Tudo o que Ele sofreu foi por nós e por nossa causa. Ele suportou aflições e triunfou sobre todas as coisas, inclusive sobre a própria morte, para servir de exemplo para nós, e para ser o autor e consumador da nossa salvação. Deste modo, não foi pela vontade e desígnio do próprio diabo que Ele foi conduzido ao deserto para ser tentado, mas pelo Espírito Santo. E importava que fosse tentado estando em extrema fraqueza, decorrente do jejum completo que fizera de quarenta dias e noites, para nos mostrar quão suficiente é o poder da graça do Espírito Santo que estava nEle, porque havia sido batizado no Espírito quando foi batizado nas águas por 15 João, o Batista, pouco tempo antes de ser conduzido pelo Espírito ao deserto, para ser tentado. Ele venceu a tentação de suportar a fome, não atendendo à insinuação do diabo que mostrasse o Seu poder transformando pedras em pães. Necessitamos aprender esta lição, para que não venhamos a tentar a Deus nos momentos em que estivermos passando por necessidades. Por sabermos que Deus é poderoso para nos sustentar com a palavra que procede da Sua boca, nestas horas difíceis. De igual modo, não devemos tentar a Deus, por nos lançarmos ao encontro de dificuldades e perigos por sugestão do diabo, para demonstrarmos que temos o poder do Senhor sobre as nossas vidas. Quanto a isto Jesus nos deixou o exemplo de não atender a Satanás, quando este lhe pediu para que se lançasse do pináculo do templo abaixo, porque segundo ele, Deus teria que cumprir o que está registrado nas Escrituras, que daria ordens a Seus anjos a respeito de Jesus, para que lhe sustentassem em suas mãos, para nunca tropeçar em alguma pedra. Também, devemos rejeitar completamente o oferecimento por parte do diabo, da glória vã das coisas deste mundo que passa, desde que nos submetamos a ele. Deus é digno de ser adorado, e somente Ele deve ser adorado e buscado. Nosso coração não deve estar preso a nenhuma coisa deste mundo. Somente o Senhor é digno de ser servido, e todo nosso serviço aos homens, deve ser, na verdade, por amor a Ele, e para trazer honra e glória ao Seu santo nome. Fomos criados por Deus para isto, e é portanto, deste modo, que devemos viver, a saber, conforme o propósito da nossa vocação. Entretanto, é de pasmar, que haja tão grande desinteresse por parte da maior parte da humanidade, em ter um conhecimento pessoal e íntimo da pessoa de Jesus, que tão maravilhosamente se manifestou ao mundo por amor de nós. Fora dEle, a vida não tem nenhum verdadeiro significado, propósito e sentido. Por isso, mesmo antes de ter encarnado há cerca de dois mil anos atrás, Deus não nos deixou sem o testemunho da Sua pessoa e vontade, pela revelação que fez aos antigos, e especialmente nas Escrituras do Antigo Testamento através dos profetas. 16 Todavia, como dissemos anteriormente, não são poucos os que vivem como se nada tivesse sido profetizado acerca de Cristo, e que vivem como se Ele não tivesse se manifestado pessoalmente ao mundo. Caminham sem Cristo, sem Deus, sem o mínimo interesse em investigar as coisas que foram reveladas de uma vez para sempre, para o conhecimento da glória de Deus na face de Cristo. Vivem como se estivessem ainda nos dias do Antigo Testamento, quando a revelação da glória do Senhor era feita com por um espelho, como uma figura, das realidades que já se cumpriram conforme havia sido profetizado acerca dEle, como por exemplo, o fato de ter-se mudado de Nazaré para a cidade de Cafarnaum, da Galileia, dando-se cumprimento à profecia de Isaías. “1 Mas para a que estava aflita não haverá escuridão. Nos primeiros tempos, ele envileceu a terra de Zebulom, e a terra de Naftali; mas nos últimos tempos fará glorioso o caminho do mar, além do Jordão, a Galileia dos gentios. 2 O povo que andava em trevas viu uma grande luz; e sobre os que habitavam na terra de profunda escuridão resplandeceu a luz.” (Is 9.1,2) Antes mesmo que houvesse Galileia, Deus profetizou acerca dela, porque para o povo desprezado que vivia naquela região resplandeceria a esperança da luz da glória do evangelho, por meio de Jesus Cristo. Aquele era apenas um sinal da luz que seria derramada em todas as nações, para aqueles que desejassem sair das trevas do pecado, da ignorância e da obscuridade, pela união espiritual com Cristo. A luz está disponível ainda em nossos dias, e estará disponível enquanto durar a dispensação da graça, mas é necessário vir para a luz de Jesus, se desejarmos de fato sair da condição de morte, para a condição de vida, a vida eterna e abundante que somente o Senhor pode nos dar. E o ministério que Jesus começou nos dias em que viveu na carne neste mundo, Ele tem continuado através da Igreja, que é o Seu corpo, realizando obras ainda maiores do que as que Ele havia realizado em Seu ministério terreno, a saber: “23 E percorria Jesus toda a Galileia, ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do reino, e curando todas as doenças e enfermidades entre o povo. 24 Assim a sua fama correu por toda a Síria; e trouxeram-lhe todos os que padeciam, acometidos de várias doenças e tormentos, os endemoninhados, os lunáticos, e os paralíticos; e ele os curou. 17 25 De sorte que o seguiam grandes multidões da Galileia, de Decápolis, de Jerusalém, da Judeia, e dalém do Jordão.” Aqueles que Ele tem chamado, tal como os primeiros apóstolos e discípulos, e que tudo têm deixado para segui-lO, são aqueles que têm dado continuidade à Sua obra de salvação e libertação na terra. E o modo de alcançar esta bênção continua sendo o mesmo desde o princípio, a saber, pelo atendimento da convocação ao arrependimento, ou seja, à transformação da vida, pelo retorno a Deus, por meio da fé em Jesus Cristo, para viver a vida celestial, espiritual e divina, conforme Deus planejou para o homem, desde antes da fundação do mundo. Mateus 4.1 Então foi conduzido Jesus pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo Diabo. Mateus 4.2 E, tendo jejuado quarenta dias e quarenta noites, depois teve fome. Mateus 4.3 Chegando, então, o tentador, disse-lhe: Se tu és Filho de Deus manda que estas pedras se tornem em pães. Mateus 4.4 Mas Jesus lhe respondeu: Está escrito: Nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus. Mateus 4.5 Então o Diabo o levou à cidade santa, colocou-o sobre o pináculo do templo, Mateus 4.6 e disse-lhe: Se tu és Filho de Deus, lança-te daqui abaixo; porque está escrito: Aos seus anjos dará ordens a teu respeito; e: eles te susterão nas mãos, para que nunca tropeces em alguma pedra. Mateus 4.7 Replicou-lhe Jesus: Também está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus. Mateus 4.8 Novamente o Diabo o levou a um monte muito alto; e mostrou-lhe todos os reinos do mundo, e a glória deles; Mateus 4.9 e disse-lhe: Tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares. Mateus 4.10 Então ordenou-lhe Jesus: Vai-te, Satanás; porque está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele servirás. Mateus 4.11 Então o Diabo o deixou;e eis que vieram os anjos e o serviram. Mateus 4.12 Ora, ouvindo Jesus que João fora entregue, retirou-se para a Galileia; Mateus 4.13 e, deixando Nazaré, foi habitar em Cafarnaum, cidade marítima, nos confins de Zabulom e Naftali; Mateus 4.14 para que se cumprisse o que fora dito pelo profeta Isaías: 18 Mateus 4.15 A terra de Zabulom e a terra de Naftali, o caminho do mar, além do Jordão, a Galileia dos gentios, Mateus 4.16 o povo que estava sentado em trevas viu uma grande luz; sim, aos que estavam sentados na região da sombra da morte, a estes a luz raiou. Mateus 4.17 Desde então começou Jesus a pregar, e a dizer: Arrependei- vos, porque é chegado o reino dos céus. Mateus 4.18 E Jesus, andando ao longo do mar da Galileia, viu dois irmãos - Simão, chamado Pedro, e seu irmão André, os quais lançavam a rede ao mar, porque eram pescadores. Mateus 4.19 Disse-lhes: Vinde após mim, e eu vos farei pescadores de homens. Mateus 4.20 Eles, pois, deixando imediatamente as redes, o seguiram. Mateus 4.21 E, passando mais adiante, viu outros dois irmãos - Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João, no barco com seu pai Zebedeu, consertando as redes; e os chamou. Mateus 4.22 Estes, deixando imediatamente o barco e seu pai, seguiram- no. Mateus 4.23 E percorria Jesus toda a Galileia, ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do reino, e curando todas as doenças e enfermidades entre o povo. Mateus 4.24 Assim a sua fama correu por toda a Síria; e trouxeram-lhe todos os que padeciam, acometidos de várias doenças e tormentos, os endemoninhados, os lunáticos, e os paralíticos; e ele os curou. Mateus 4.25 De sorte que o seguiam grandes multidões da Galileia, de Decápolis, de Jerusalém, da Judeia, e dalém do Jordão. Mateus 5 “1 Jesus, pois, vendo as multidões, subiu ao monte; e, tendo se assentado, aproximaram-se os seus discípulos, 2 e ele se pôs a ensiná-los, dizendo: 3 Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus. 4 Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados. 5 Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra. 19 6 Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque eles serão fartos. 7 Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia. 8 Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus. 9 Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus. 10 Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus. 11 Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguiram e, mentindo, disserem todo mal contra vós por minha causa. 12 Alegrai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus; porque assim perseguiram aos profetas que foram antes de vós. 13 Vós sois o sal da terra; mas se o sal se tornar insípido, com que se há de restaurar-lhe o sabor? para nada mais presta, senão para ser lançado fora, e ser pisado pelos homens. 14 Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte; 15 nem os que acendem uma candeia a colocam debaixo do alqueire, mas no velador, e assim ilumina a todos que estão na casa. 16 Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras, e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus. 17 Não penseis que vim destruir a lei ou os profetas; não vim destruir, mas cumprir. 18 Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a terra passem, de modo nenhum passará da lei um só i ou um só til, até que tudo seja cumprido. 19 Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e assim ensinar aos homens, será chamado o menor no reino dos céus; aquele, porém, que os cumprir e ensinar será chamado grande no reino dos céus. 20 Pois eu vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus. 21 Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; e, Quem matar será réu de juízo. 22 Eu, porém, vos digo que todo aquele que se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo; e quem disser a seu irmão: Raca, será réu diante do sinédrio; e quem lhe disser: Tolo, será réu do fogo do inferno. 20 23 Portanto, se estiveres apresentando a tua oferta no altar, e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, 24 deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai conciliar-te primeiro com teu irmão, e depois vem apresentar a tua oferta. 25 Concilia-te depressa com o teu adversário, enquanto estás no caminho com ele; para que não aconteça que o adversário te entregue ao guarda, e sejas lançado na prisão. 26 Em verdade te digo que de maneira nenhuma sairás dali enquanto não pagares o último ceitil. 27 Ouvistes que foi dito: Não adulterarás. 28 Eu, porém, vos digo que todo aquele que olhar para uma mulher para a cobiçar, já em seu coração cometeu adultério com ela. 29 Se o teu olho direito te faz tropeçar, arranca-o e lança-o de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno. 30 E, se a tua mão direita te faz tropeçar, corta-a e lança-a de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que vá todo o teu corpo para o inferno. 31 Também foi dito: Quem repudiar sua mulher, dê-lhe carta de divórcio. 32 Eu, porém, vos digo que todo aquele que repudia sua mulher, a não ser por causa de infidelidade, a faz adúltera; e quem casar com a repudiada, comete adultério. 33 Outrossim, ouvistes que foi dito aos antigos: Não jurarás falso, mas cumprirás para com o Senhor os teus juramentos. 34 Eu, porém, vos digo que de maneira nenhuma jureis; nem pelo céu, porque é o trono de Deus; 35 nem pela terra, porque é o escabelo de seus pés; nem por Jerusalém, porque é a cidade do grande Rei; 36 nem jures pela tua cabeça, porque não podes tornar um só cabelo branco ou preto. 37 Seja, porém, o vosso falar: Sim, sim; não, não; pois o que passa daí, vem do Maligno. 38 Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. 39 Eu, porém, vos digo que não resistais ao homem mau; mas a qualquer que te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; 40 e ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa; 41 e, se qualquer te obrigar a caminhar mil passos, vai com ele dois mil. 21 42 Dá a quem te pedir, e não voltes as costas ao que quiser que lhe emprestes. 43 Ouvistes que foi dito: Amarás ao teu próximo, e odiarás ao teu inimigo. 44 Eu, porém, vos digo: Amai aos vossos inimigos, e orai pelos que vos perseguem; 45 para que vos torneis filhos do vosso Pai que está nos céus; porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons, e faz chover sobre justos e injustos. 46 Pois, se amardes aos que vos amam, que recompensa tereis? não fazem os publicanos também o mesmo? 47 E, se saudardes somente os vossos irmãos, que fazeis demais? não fazem os gentios também o mesmo? 48 Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai celestial.” Para o comentário deste capítulo e dos dois seguintes (6 e 7) nós usaremos basicamente adaptações de textos escritos por Thomas Watson e por David Martin Lloyd Jones. Como o sermão é introduzido pelas bem-aventuranças, apresentaremos primeiro o comentário de Thomas Watson relativo às mesmas. AS BEM-AVENTURANÇAS Por Thomas Watson (traduzido e adaptado por Silvio Dutra) “1 Jesus, pois, vendo as multidões, subiu ao monte; e, tendo se assentado, aproximaram-se os seus discípulos, 2 e ele se pôs a ensiná-los, dizendo: 3 Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus. 4 Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados. 5 Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra. 6 Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque eles serão fartos. 7 Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia. 8 Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus. 9 Bem-aventurados os pacificadores, porqueeles serão chamados filhos de Deus. 10 Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus.”. (Mt 5.1-10). 22 As palavras deste sermão pregado por nosso Senhor Jesus Cristo devem ser fixadas permanentemente pelos seus ministros nas memórias dos seus ouvintes, porque há muitos que têm uma memória ruim conforme se diz em Tiago 1.25, e as suas recordações escoam facilmente tal como a água que sai de um recipiente. Aqueles que têm o encargo de conduzirem os espíritos dos homens no caminho do céu devem lembrar que assim como não se pode ter um sangue enriquecido sem um intestino que funcione bem, de igual modo se uma verdade não ficar retida na memória, ela nunca poderá, como diz o apóstolo Paulo em I Tim 4.6, nos nutrir com as palavras da fé. E com que frequência o diabo, a ave do ar, apanha a boa semente que é semeada! Quantos sermões o diabo tem roubado! E é uma triste verdade que as pessoas não se permitam serem furtadas tão facilmente de seus bens materiais, mas dão pouca ou nenhuma atenção ao fato de o diabo lhes furtar continuamente o alimento espiritual, através do qual elas podem ser fortalecidas na fé. Por isso os ministros de Cristo devem sempre brilhar não como velas ou lâmpadas, nem mesmo como planetas, mas como estrelas no firmamento de glória, porque eles são estas estrelas que devem brilhar nas mãos do Senhor, como se vê em Apo 1.20; para que possam iluminar o caminho que conduz os pecadores à salvação. A honra de converter almas não foi dada por Deus aos anjos, mas aos ministros do evangelho. Deus confiou aos Seus ministros a maioria das Suas joias preciosas, as Suas verdades e as almas das pessoas que pertencem a Ele. Por isso o púlpito é mais elevado do que o trono de qualquer rei terreno, porque o ministro verdadeiramente constituído representa ninguém menos do que o próprio Deus. E agora, quanto ao rebanho do Senhor: se os ministros têm que aproveitar todas as oportunidades para pregarem, o rebanho por sua vez, tem que aproveitar todas as oportunidades para ouvir e colocar em prática as coisas que ouve. Quando a Palavra de Deus é pregada, o pão da vida é repartido a todos, e este pão é mais precioso do que ouro e prata com se diz no Sl 119.72. Na Palavra pregada, céu e salvação são oferecidos a você. 23 Jesus começou o Seu sermão no Monte com bem-aventuranças que contêm promessas e bênçãos. O povo de Deus se encontra com muitas dificuldades e desânimos, e a marcha dos crentes não é somente perigosa e cansativa, como o próprio coração deles está sempre pronto a desfalecer. Não é portanto de se estranhar que Jesus tenha colocado diante dos crentes a coroa da bem-aventurança para animar a sua coragem e inflamar o seu zelo. A bem-aventurança é o alvo que deve ser atingido, é o centro do qual devem partir todas as linhas da vida; é a flor da alegria dos crentes. É aquela condição abençoada na qual devem ser achados os servos de Jesus, conforme ele cita em Mt 24.46: “Bem-aventurado aquele servo a quem o seu senhor, quando vier, achar assim fazendo.”. A bem-aventurança está portanto ligada a uma condição de alma, a um estado de espírito, a uma atitude de estrita obediência à Palavra de Deus, em todos os deveres ordenados nela. Assim a bem-aventurança não consiste na aquisição de coisas mundanas, na aquisição de bens naturais e terrenos. Cristo não diz: “Bem-aventurados são os ricos”, ou “Bem-aventurados são os nobres”, contudo muitos idolatram estas coisas. Os filósofos pagãos ensinam que bem-aventurança é ter suficiência de subsistência e prosperar no mundo. Mas não há muitos crentes que parecem ser desta mesma opinião filosófica? Poucos chegam a entender que a árvore da bem-aventurança não cresce num paraíso terrestre. Deus não amaldiçoou a terra por causa do pecado? Como vemos em Gên 3.17? Contudo, muitos estão cavando para acharem a sua felicidade aqui, como se eles pudessem achar uma bênção numa maldição. Nestas profundidades terrenas Salomão cavou mais do que qualquer outro homem e chegou à conclusão que tudo deste mundo é vaidade, enfado e canseira, dando um firme testemunho de que é somente em Deus que se pode satisfazer verdadeiramente o espírito, e alcançar a condição da bem-aventurança. As coisas terrenas não podem satisfazer aos anelos do espírito e assim nunca tornarem uma pessoa bem-aventurada, porque estas coisas são 24 transitórias, passageiras, e por isso Paulo diz que elas não são uma realidade permanente, senão uma aparência passageira, como lemos suas palavras em I Cor 7.31: “e os que usam deste mundo, como se dele não usassem em absoluto, porque a aparência deste mundo passa.”. O dom da vida que reside no espírito é muito mais do que o sustento do corpo físico. É por isso que Jesus diz o que lemos em seu ensino sobre esta verdade em Mt 6.25: “Por isso vos digo: Não estejais ansiosos quanto à vossa vida, pelo que haveis de comer, ou pelo que haveis de beber; nem, quanto ao vosso corpo, pelo que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais do que o vestuário?”. A bem-aventurança não se encontra de fato nas coisas terrenas porque elas não podem aquietar o coração atribulado. Elas não podem trazer alívio e livramento ao coração que está sendo batido pelas batalhas espirituais. A bem-aventurança não se encontra nas coisas terrenas porque é exatamente nelas que encontramos a maior fonte de tentação para nos afastar da comunhão com Deus, conforme vemos no dizer do apóstolo João em I Jo 2.15 a 17: “15 Não ameis o mundo, nem o que há no mundo. Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele. 16 Porque tudo o que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não vem do Pai, mas sim do mundo. 17 Ora, o mundo passa, e a sua concupiscência; mas aquele que faz a vontade de Deus, permanece para sempre.”. A bem-aventurança que Deus tem para os seus filhos não é fugaz como todas as riquezas deste mundo; e não fere os nossos corações como tais riquezas, porque não há o temor de perdê-las. Se nós não tivermos estas coisas terrenas, não seremos amaldiçoados, nem sequer podemos ser mais santificados por causa delas. E devemos saber que é grande a tentação para entesourar riquezas para o próprio dano daquele que o fizer, como se diz em Eclesiastes 5.13: “Há um grave mal que vi debaixo do sol: riquezas foram guardadas por seu dono para o seu próprio dano;”. 25 Definitivamente não é no acúmulo de bens terrenos que devemos colocar todo o nosso empenho e esperança de encontrar a bem-aventurança. É com todas estas coisas em vista que Paulo afirma o que lemos em I Tim 6.9,10: “9 Mas os que querem tornar-se ricos caem em tentação e em laço, e em muitas concupiscências loucas e nocivas, as quais submergem os homens na ruína e na perdição. 10 Porque o amor ao dinheiro é raiz de todos os males; e nessa cobiça alguns se desviaram da fé, e se traspassaram a si mesmos com muitas dores.”. Muito bem. Tendo mostrado em que a bem-aventurança não consiste, eu mostrarei agora em que ela consiste: Em primeiro lugar, consiste em alegria, em regozijo e gozo pela certeza das coisas que o espírito possui. Um homem pode possuir uma propriedade e contudo não desfrutá-la. Ele pode ter o domínio da coisa mas não o seu conforto. Mas a verdadeira bem-aventurança sempre produz prazer na alma. Em segundo lugar, a bem-aventurança melhora a alma, e a enobrece, tornando-a mais preciosa para Deus e para o seu próprio possuidor. A bem-aventurança traz deleite verdadeiro e duradouro. Na verdadeira bem-aventurança há variedade. E somente em Jesus há a plenitude de todas as coisas das quais necessita o nosso espírito, como se vê em Col 1.19. A verdadeira bem-aventurança tem a eternidade estampada nela, e deve ser inabalável, algo que não admita nenhuma mudança ou alteração. O crente já se encontra abençoado em certo sentido. Somente o fato de ter escapadoda condenação eterna por estar em Cristo já é uma grande bênção. Mas há muitas bênçãos ocultas em Cristo que o crente é convocado a buscar através de uma vida devotada a Deus. Simei amaldiçoou Davi mas ele não se importou, ainda que em grande angústia e tribulação, porque tinha a convicção que ele era um abençoado de Deus. Os santos são coparticipantes da natureza divina como se afirma em II Pe 1.4. Eles foram abençoados por Deus com todas as bênçãos espirituais nas regiões celestes em Cristo como se vê em Ef 1.3. Os crentes têm a semente de Deus neles (I Jo 3.9), e esta semente é a semente da bem-aventurança. 26 A flor da glória nasce da semente da graça. A graça e a glória não diferem em tipo mas em grau. A graça é a raiz e a glória o fruto. A graça é a gloria no amanhecer, e a glória é a graça no entardecer. A graça é o primeiro elo da corrente da bem-aventurança. Mas todo aquele que tem o primeiro elo da corrente na sua mão, tem a posse da corrente inteira com todos os seus demais elos. Os santos já são bem-aventurados porque os seus pecados não lhes serão mais imputados para juízo condenatório. Toda a dívida dos seus pecados foi paga por Cristo na cruz. Os santos já são bem-aventurados porque têm o selo do Espírito Santo. Eles têm todas as coisas desta vida cooperando para o seu bem. Tanto a prosperidade quanto a adversidade pode torná-los melhores, quer em gratidão, quer em devoção, santificação e adoração. Os santos já são bem-aventurados porque eles podem ser achados debaixo da cruz, mas não mais da maldição. Falemos agora sobre a primeira bem-aventurança. O Senhor Jesus diz em Mateus 5.3: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus.”. Nós podemos observar o toque e aroma da divindade neste sermão do Senhor, o qual vai além de toda a filosofia humana. Na verdade ele vai no sentido contrário da filosofia humana, porque aqui se diz que a pobreza produz riquezas, e não somente isto, que aquele que é enriquecido pela pobreza aqui referida, possui um reino. De igual modo, nós veremos na bem-aventurança que se segue a esta primeira, que o choro, a tristeza, produz conforto. Diz-se que a água das lágrimas acenderá a chama da verdadeira alegria. E mais ainda, que a perseguição trará felicidade, pois se diz que felizes são os perseguidos por causa da justiça. Observe como diferem a doutrina de Cristo e a opinião dos homens carnais. Eles pensam que bem-aventurados são os ricos, mas Cristo diz que bem-aventurado é o pobre de espírito. O mundo pensa que bem-aventurados são aqueles que se encontram no pináculo da glória mundana, mas Cristo diz que bem-aventurados são os que estão no vale. 27 Aqueles que usariam as joias de Cristo, mas que recusam a Sua cruz, são estranhos ao verdadeiro cristianismo. Observe a conexão entre a graça e a sua recompensa. Aqueles que são pobres de espírito terão o reino de Deus. Nosso Salvador encoraja os homens à santidade associando mandamentos com promessas. Ele amarra dever e recompensa juntamente. Uma parte destes versículos das bem-aventuranças consiste no dever e a outra parte consiste na recompensa. Nós observamos também nas bem-aventuranças que elas estão encadeadas e uma conduz a outra. Aquele que tem pobreza de espírito é quebrantado. Aquele que é quebrantado é submisso. Aquele que é submisso é misericordioso e assim por diante. Nisto consiste a diferença entre um verdadeiro filho de Deus, e um hipócrita. O hipócrita se gaba de possuir alguma graça pretensiosa, no entanto ele não possui todas as graças, como verdadeiramente as possui aquele que é nascido do Espírito. O hipócrita não tem pobreza de espírito, nem pureza de coração. Mas um filho de Deus tem todas as graças no seu coração, ainda que seja em semente, e necessite ainda crescer em graus. Ser pobre de espírito não é o mesmo que ser pobre de bens terrenos, porque é possível ser pobre de bens e não ser pobre de espírito. E há também distinção em ser espiritualmente pobre, e ser pobre de espírito, porque aquele que não tem a graça de Jesus, é espiritualmente pobre, e não é pobre de espírito, e não conhece até mesmo a sua pobreza espiritual, como se vê em Apo 3.1. Bem, então, o que devemos entender por pobre de espírito? A palavra grega para pobre é ptocoi, e esta significa estar reduzido à mendicância, ser destituído de riqueza, influência, posição, honra, e estar destituído de virtudes cristãs e riquezas eternas, ser desamparado, e impotente para realizar um objetivo, enfim, ser necessitado em todos os sentidos. Pobre de espírito significa então aqueles que são trazidos ao senso da sua própria miséria, em razão dos seus pecados, e que não veem nenhuma bondade em si mesmos, e em seu desespero se entregam completamente à misericórdia de Deus em Cristo. 28 Pobreza de espírito é um tipo de auto negação. A pessoa se vê como o publicano da parábola de Lc 18.13, e fala juntamente com Paulo que não há nenhuma justiça nela própria que lhe possa recomendar a Deus, como se vê em Fp 3.9. Por que Jesus teria começado o sermão do Monte com pobreza de espírito? Certamente o Senhor a colocou na frente das demais bem-aventuranças, citando-a antes das demais, porque a pobreza de espírito é o fundamento no qual todas as outras graças são colocadas. Tal como o fruto não pode ser produzido numa árvore sem raiz, de igual modo as demais graças não podem existir sem pobreza de espírito. Quando uma pessoa vê os seus próprios defeitos e se vê imperfeita por causa dos seus pecados, então chorará na presença de Cristo. E esta pobreza de espírito fará com que tenha fome e sede de justiça, porque desejará estar conformado àquilo que Deus é em Sua própria natureza, a saber: santo. Assim, a pobreza de espírito é a causa da humildade, porque quando um homem vê a sua necessidade de Cristo, e como depende das suas graças, isto o leva a se humilhar. E até que sejamos pobres de espírito, não somos habilitados a receber a graça. Aquele que está inchado com uma opinião de autoexcelência e autosuficiência, não está ajustado para receber a Cristo. Ele já está cheio de si mesmo. Se a mão está cheia de pedras, ela não pode receber ouro. O copo deve ser esvaziado primeiro, antes que possa ser enchido com a água viva do Espírito. Assim, Deus esvazia primeiro o homem de si mesmo, antes de enchê-lo com a Sua preciosa graça. Somente o pobre de espírito pode ser alcançado pela missão de Cristo, porque se diz que ele veio para os que estão quebrados quanto ao senso da sua indignidade: Nós lemos no texto de Isaías 61.1: “O Espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu para pregar boas-novas aos mansos; enviou-me a restaurar os contritos de coração, a proclamar liberdade aos cativos, e a abertura de prisão aos presos;”. Até que sejamos pobres de espírito, Cristo não é precioso para nós. 29 Antes de vermos nossas próprias necessidades, nunca veremos o valor que Cristo tem para nós. Os que são ricos em pobreza de espírito são aqueles que são verdadeiramente ricos da graça de Deus, porque Ele a derrama abundantemente sobre os humildes. Deste modo, as riquezas de um crente consistem na sua pobreza de espírito. Esta pobreza o habilita a um reino celestial. Logo, quão pobres são aqueles que pensam serem ricos, e quão ricos são aqueles que se veem pobres e necessitados da graça de Deus! Se bem-aventurado é o pobre de espírito, então pelo sentido oposto podemos entender que o amaldiçoado é o orgulhoso de espírito, como vemos em Pv 16.5, que diz: “Todo homem arrogante é abominação ao Senhor; certamente não ficará impune.” Aqueles que se julgam muito bons para irem para o céu jamais o alcançarão. Tal como o fariseu de Lc 18.11 não serão justificados por Deus porque o orgulho deles não lhes permite enxergarem o quanto necessitam de arrependimento. Não admira que Cristo chame tais homens de cegos porque eles estão nus, mas se recusam a receber o vestidobranco de justiça de Jesus para cobrirem a sua nudez, porque pensam que são ricos e que não necessitam de nada da parte do Senhor. Eles estão cegos e não poderão ver que estão nus caso não apliquem o colírio de Cristo aos seus olhos espirituais para que possam ver. O pobre de espírito é verdadeiramente rico para com Deus porque entre os muitos benefícios que lhe advêm de tal pobreza podemos destacar os seguintes: O pobre de espírito é desmamado de sua própria alma. O seu ego deixa de ser o centro de seus objetivos e atenções, e Cristo passa a ocupar este lugar central em sua vida. Ele não confia em si mesmo e não busca apoio na sua própria alma para estar firme, mas nAquele que o fortalece em tudo. Assim, o pobre de espírito é um adorador e admirador de Cristo. Ele tem os pensamentos mais elevados acerca de Jesus. Ele se vê nu e corre para Cristo para se cobrir com a Sua veste de justiça, de modo a poder obter a Sua bênção. 30 O pobre de espírito nunca está satisfeito com a pobreza da sua alma quanto aos dons e graças de Deus, e se empenha diligentemente em buscá-los nEle, para enriquecer o seu espírito. Ele lamenta sempre por não ter mais graça para poder glorificar ainda mais o nome do Seu Deus. E esta é a diferença principal entre o hipócrita e um verdadeiro filho de Deus. O hipócrita se gaba daquilo que pensa possuir, e o filho de Deus lamenta o que lhe falta e reconhece que sem a graça do Senhor nada é e nada tem. Assim, aquele que é pobre de espírito é também humilde de coração. Homens ricos costumam ser orgulhosos e arrogantes, mas o pobre de espírito é manso e submisso. E quanto mais graça ele tem, mais humilde ele se torna, pois entende o quanto é devedor a Deus. Quando executa bem qualquer dever reconhece que o fez muito mais pela força de Cristo do que pela sua própria força; porque ele reconhece que o seu trabalho na obra de Deus foi realizado pela graça do Senhor, sendo portanto imitador do apóstolo Paulo, conforme podemos ver em I Cor 15.10. O pobre de espírito ora muito porque reconhece o quanto depende da oração porque vê o quão longe está do padrão da santidade divina, então implora mais graça e mais fé ao Senhor, para poder estar em conformidade com Ele. O pobre de espírito é muito grato porque sabe o quanto tem sido alvo da misericórdia de Deus. A pobreza de espírito é o fundamento no qual Deus constrói o edifício da glória. Deste modo, é possível que alguém tenha as riquezas do mundo e ainda ser pobre, porque a verdadeira riqueza de alguém não consiste na quantidade de bens mundanos que ele possui, mas na grandeza da sua pobreza de espírito. Quanto mais pobre de espírito uma pessoa for, mais rica ela será da graça de Jesus, porque terá sempre mãos vazias para serem enchidas por Deus com as bênçãos espirituais que destinou aos crentes em Cristo Jesus. E assim se cumpre a verdade citada em Ef 1.3: “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou com todas as bênçãos espirituais nas regiões celestes em Cristo;”. 31 Esta pobreza é a nobreza do crente. Deus olha para o pobre de espírito como uma pessoa honrada. Aquele que é vil aos seus próprios olhos é precioso aos olhos de Deus, porque se apresenta verdadeiro diante dEle por se reconhecer ser um vil pecador. A pobreza de espírito aquieta a alma, pois leva a pessoa a descansar em Cristo. Ele se vê pobre, mas pode dizer juntamente com Paulo em Fp 4.19: “o meu Deus proverá todas as minhas necessidades”. Os que desejam ser ricos segundo o mundo buscam construir um reino temporal aqui, mas o pobre de espírito almeja por um reino celestial. E os santos reinarão com Cristo numa maneira gloriosa, porque lhes é prometido não um reino terreno, mas o reino dos céus. Depois da morte os santos são coroados como vemos em Apo 2.10. Eles não são apenas perdoados por Cristo, mas são também coroados. A coroa é um símbolo de honra e autoridade. A coroa que os santos receberão é mais excelente do que todas as demais. E não haverá o risco de se perder esta coroa, conforme o temor que sentem os reis terrenos quanto à possibilidade de perderem as suas. Esta coroa não instigará inveja porque um santo não invejará outro, porque todos serão coroados. Esta coroa é imarcescível, porque não pode murchar, tal como murchavam as coroas de louro que os atletas vitoriosos recebiam no passado. E esta coroa dos crentes é também eterna, e jamais perderá o seu brilho, conforme se vê em I Pe 5.4. No terceiro céu, a saber, no paraíso, que é citado em II Cor 12.2, neste lugar sublime e glorioso será erguido o trono dos santos, e este trono é seguro e inabalável, conforme a promessa que Jesus fez aos crentes vencedores em Apo 3.21:. “Ao que vencer, eu lhe concederei que se assente comigo no meu trono.”. Um preço foi pago para isto. Jesus derramou o seu sangue na cruz para que o santos conquistassem o reino através do Seu sangue. Jesus foi pregado na cruz para nos trazer à coroa. Ele diz que bem-aventurados são os pobres de espírito porque eles têm um reino, a saber, o reino do céu. E aqueles que têm um reino têm também uma coroa. A recompensa da pobreza de espírito é portanto muito alta e não pode ser comparada a nenhum bem terreno passageiro. 32 Nós entendemos então porque são tão fortes as exigências de Deus para que os Seus filhos se santifiquem em tudo, empenhando-se em todo o esforço para mortificarem o pecado e a carne, pois afinal, a recompensa que lhes é feita é a de um reino eterno celestial glorioso. Nós podemos pensar que é um grande sacrifício nos empenharmos para mortificar definitivamente o pecado em nossas vidas, mas Deus não acha nenhum sacrifício em nos dar graciosamente um reino tão maravilhoso; o contrário, foi do Seu inteiro agrado concedê-lo a nós, conforme se vê em Lc 12.32. Os crentes são herdeiros do reino, e qual destes herdeiros não deseja ser coroado? Tiago nos diz em Tg 2.5: “Ouvi, meus amados irmãos. Não escolheu Deus os que são pobres quanto ao mundo para fazê-los ricos na fé e herdeiros do reino que prometeu aos que o amam?”. Enquanto neste mundo, parece que os santos fiéis e piedosos são massacrados pelas suas próprias fraquezas, e pelas investidas furiosas dos principados das trevas sobre eles, mas eles são chamados pelo Senhor a exultarem em tudo isto porque a fidelidade deles será recompensada com um reino onde serão consolados definitivamente de todos os seus sofrimentos. Para que tivéssemos a firme certeza desta esperança Deus colocou o reino dentro de nós. O reino de Deus está dentro do crente como se vê em Lc 17.21. Este reino significa o reino da graça no coração. E a graça pode ser comparada a um reino porque ordena a lei de Deus no espírito e executa tudo o que é necessário para a nossa transformação de glória em glória à própria imagem e semelhança do Senhor. A graça rege sobre os nossos pecados destruindo-os e colocando-os com sua autoridade, em cadeias. E governa assim sobre o orgulho, sobre a paixão e a incredulidade. Se há evidências seguras deste reino da graça trabalhando no nosso coração, então podemos estar certos de que entraremos no reino dos céus depois da nossa morte, e de que seguramente seremos coroados por Cristo para reinarmos juntamente com Ele. Lembremos que assim como há graus de tormento para aqueles que forem para o inferno, de igual modo há graus de glória para os herdeiros do reino de Deus, e assim quanto mais serviço alguém fizer para o Senhor, 33 maior será a sua glória no reino futuro que lhe está prometido e garantido por Deus. Deus recompensará os homens segundo as suas obras, e assim, quanto for maior o serviço, maior será a recompensa. Deus tem planejado isto para nos incentivar a buscarmos uma santidade, devoção e serviço cada vez maiores. Quanto for maior a glória que Deus receber através de nossas obras, maior será a nossa própria glória quando estivermos reinando juntamente com Cristo. Isto seráuma grande honra para nós pelo modo como o Senhor nos distinguirá como forma do Seu agrado pela nossa fidelidade a Ele. Basílio disse que a esperança de um reino deveria levar o crente a ter coragem e alegria em todas as suas aflições. Nós encerraremos nosso comentário sobre a primeira bem-aventurança, com esta citação de Basílio, e estaremos comentando em seguida a segunda bem-aventurança citada por Jesus em Mateus 5.4, a de que os que choram são bem-aventurados porque serão consolados. Há oito degraus na escada da bem-aventurança. Eles podem ser comparados à escada de Jacó que alcançava o topo do céu. Nós já analisamos o primeiro e agora falaremos sobre o segundo degrau, que é o da consolação que nos vem pelo fato de chorarmos. Nós temos que passar pelo vale das lágrimas para podermos chegar ao paraíso. Choro é um assunto triste e desagradável para se tratar, mas não é nisto em que consiste a bem-aventurança, senão no consolo que vem depois do choro. O choro é colocado aqui no lugar do arrependimento. E o que o texto quer afirmar é que os quebrantados são bem-aventurados, porque embora as lágrimas dos santos sejam lágrimas amargas, contudo elas são lágrimas abençoadas. Há uma tristeza mundana que consiste geralmente no lamento pela perda de coisas terrenas, e há uma tristeza diabólica que é o lamento por não se poder satisfazer aos desejos pecaminosos, e à soberba da vida. Há dois objetos da tristeza espiritual referida por Jesus nesta bem- aventurança: primeiro, tristeza pelo nosso próprio pecado, e segundo, tristeza pelo pecado de outros. 34 Enquanto nós tivermos o fogo do pecado queimando em nossas vidas, nós, temos que ter a água das lágrimas para extingui-lo (Ez 7.16). João Crisóstomo dizia que bem-aventurados não eram necessariamente aqueles que choram pelos mortos, mas os que choram por causa do pecado. A Caim aborreceu mais o castigo que Deus proferiu sobre ele, do que o seu próprio pecado. Ele disse que o seu castigo era mais do que o que ele poderia suportar. Em vez de chorar e se arrepender ele se endureceu no seu pecado. Assim, a declaração de Caim é uma rebelião e não uma demonstração de arrependimento. Tal como ele há muitos que rasgam as suas vestes diante de Deus, mas não os seus corações. Um arrependimento sincero é espontâneo e voluntário. Um arrependimento verdadeiro é espiritual, pois nos faz lamentar muito mais pelo pecado do que pelo sofrimento ao qual o nosso pecado deu causa. Faraó estava triste pela pestilência que o Egito estava sofrendo, mas não pela pestilência que havia em seu próprio coração endurecido, que estava dando causa a todos aqueles juízos que Deus despejou sobre o Egito nos dias de Moisés. Um pecador pode assim lamentar os juízos que acompanham os seus pecados, e não lamentar propriamente pelo pecado. A palavra hebraica para pecado é hatat, e significa rebelião. Esta palavra define bem o que é o pecado, porque um pecador luta contra Deus. Então bem-aventurados são todos os que conhecem o que significa o pecado e que se entristecem pela sua condição de pecadores, com o desejo de serem santificados por Deus, e serem libertos dos seus pecados. Nós temos que chorar pelo pecado como sendo a forma de ingratidão mais alta. Nós pecamos contra o sangue de Cristo e contra a graça do Espírito Santo e não choraremos? Nós reclamamos da descortesia que sofremos da parte de outras pessoas e não choraremos pela nossa própria descortesia para com Deus? 35 Mas não são apenas estes os motivos pelos quais devemos chorar por causa do pecado. Nós devemos chorar também o fato de o pecado nos impor uma privação, pois nos impede de ter comunhão com Deus. Por isso, as lágrimas do evangelho devem cair do olho da fé. Se estas lágrimas espirituais de tristeza pelo pecado não fluírem de nós, de maneira alguma poderemos receber as consolações do Espírito Santo, traduzidas no derramar das suas graças em nossos corações. As águas de um verdadeiro arrependimento são águas que limpam. Elas levam para longe, como numa inundação, toda a sujeira dos nossos pecados. Tal como o apóstolo Paulo diz em II Cor 7.10: “Porque a tristeza segundo Deus opera arrependimento para a salvação, o qual não traz pesar; mas a tristeza do mundo opera a morte.” . Este tipo de tristeza pelo pecado que é segundo Deus, traz indignação contra o pecado, luta contra o pecado, defesa da justiça de Deus: Diz-se que bem-aventurados são os que choram, porque lágrimas procedem dos olhos, e a palavra hebraica para olho, é ain, que é a mesma palavra usada para fonte, manancial. Isto indica que nossas lágrimas por causa do pecado têm que jorrar continuamente de nossos olhos espirituais, assim como a água que jorra de uma fonte. As águas do arrependimento não devem transbordar somente pela manhã, mas durante todos os períodos do dia. Como Paulo disse: eu morro diariamente'”” (I Cor 15:31), assim um crente também deveria dizer: “eu lamento diariamente”. Esta tristeza pelo pecado é o melhor antídoto contra a apostasia, a saber, para não se voltar as costas para Deus e abandonar a comunhão dos santos na Igreja. Até mesmo os próprios filhos de Deus têm que chorar pelo pecado, pedindo perdão a Deus, para perdoar pecados passados, presentes e futuros, porque assim como o arrependimento é renovado, o perdão também é renovado. Caso os pecados pudessem ser perdoados antes de serem cometidos, isto tornaria nulo o ofício de Cristo de nosso Mediador e Sumo-Sacerdote, porque não haveria necessidade da Sua intercessão em nosso favor junto do Pai. É importante saber que embora o pecado seja perdoado, ele ainda tentará se rebelar, embora seja coberto, no entanto não está curado (Rom 7.23). 36 Assim como a água penetra no casco de um barco furado, e deve ser escoada continuamente para que o barco não afunde, de igual modo navegamos nas águas do pecado, que devem ser continuamente escoadas de nossas vidas através do arrependimento. Assim como nós choramos pelos nossos próprios pecados, devemos também chorar pelos pecados de outros. Chore pelos erros e blasfêmias da nação. Chore pelo quanto a vontade de Deus é transgredida no mundo, pelo quanto a Sua Palavra é desonrada e quanto o Seu santo nome é blasfemado. Nossas lágrimas podem ajudar a extinguir a ira de Deus, que está pronta a ser despejada sobre o mundo pecador. Por isso a Palavra nos ordena a interceder em favor de todos os homens, e a maior parte desta intercessão consiste no pedido de misericórdia a Deus pelos seus pecados, como podemos ver em I Tim 2.1,2. Quando há sinais de que a ira de Deus está pronta para irromper sobre a nação, sobre os nossos lares, igrejas, não há momento mais oportuno para intensificarmos a nossa tristeza em arrependimento pelo pecado, porque quando Deus tira a Sua espada da bainha para pelejar contra o mundo de pecado, quando parece que Ele está de pé no limiar do templo, pronto para levar de nós o Seu evangelho e nos abandonar, nossas lágrimas possivelmente podem fazer com que cesse a Sua ira e Ele volte a ser favorável a nós. E este procedimento é ordenado na própria Bíblia, como podemos ver os profetas Isaías, Oseias, Joel, Sofonias, entre outros. A Ceia do Senhor é também outro momento oportuno para nos entristecermos pelos nossos pecados e confessá-los a Deus. Se ela foi instituída por Jesus para ser um memorial da Sua morte, então certamente Ele deseja que façamos uma justa avaliação dos nossos pecados, pois foi exatamente por causa deles que Ele morreu na cruz. E se é pela morte do Senhor que alcançamos misericórdia da parte de Deus, não podemos esquecer que sem uma tristeza amarga pelo pecado não podemos receber tal misericórdia, porque a ausência de tristeza pelo pecado indica o nosso desprezo pelo Seu sacrifício, e a falta de reconhecimento da necessidade que temos da Sua misericórdia para sermos perdoados. Quando há ausência de sensibilidade pelo pecado, o coração permanece endurecido como pedra.E uma pedra não é sensível a qualquer coisa. Um coração de pedra é conhecido por sua inflexibilidade. Uma pedra não se 37 dobra e não se rende ao toque. Por isso um coração endurecido não se inclinará diante do cetro de Cristo. Há muitos murmuradores, mas poucos quebrantados de coração. A maioria está como o chão rochoso no qual há falta de umidade, como se vê na parábola do semeador. Nós ouvimos muitos lamentos em tempos difíceis, mas os que lamentam não estão conscientes de terem um coração endurecido. Quando Deus chama os homens ao arrependimento em vez de lamentarem por seus pecados, eles endurecem seus corações e se alegram em suas luxúrias em vez de se entristecerem, eles se colocam na situação de juízo extremamente perigosa, citada em Is 22.12-14. É exatamente para evitar este terrível endurecimento de coração que o apóstolo Tiago nos ordena a transformar o nosso riso em pranto, quando há pecados em nós ou em outros para serem lamentados, em vez de vivermos nos alegrando desconsiderando tais pecados numa clara demonstração de desprezo aos juízos de Deus. “Senti as vossas misérias, lamentai e chorai; torne-se o vosso riso em pranto, e a vossa alegria em tristeza.” (Tg 4.9). É melhor chorar pelo pecado e ser alegrado por Deus, do que se alegrar agora no pecado, e depois chorar eternamente num juízo eterno. É neste sentido que entendemos as palavras proferidas por Cristo em Lc 6.24,25. “24 Mas ai de vós que sois ricos! porque já recebestes a vossa consolação. 25 Ai de vós, os que agora estais fartos! porque tereis fome. Ai de vós, os que agora rides! porque vos lamentareis e chorareis.” (Lc 6.24,25). É somente quando o pecado cessar que as lágrimas também cessarão (Apo 7.17). Por isso, enquanto estivermos neste mundo, devemos evitar a todo custo a maldição de um engano terrível que é muito comum de se ver, pois não são poucos os que afirmam a misericórdia de Deus como pretexto para continuarem em seus pecados. Assim, alguém afirma que Deus é misericordioso e então se entrega à prática deliberada do pecado. Mas afinal para quem é a misericórdia? Para o pecador que não se arrepende, ou para o pecador entristecido? Não há misericórdia para aquele que não pretende abandonar o pecado. 38 Deus faz uma proclamação de misericórdia ao quebrantado, e como pode então aquele que vive abertamente em rebelião contra Ele reivindicar o benefício do Seu perdão? Outro grande perigo para o endurecimento do coração é o fato de se pensar que há pecados pequenos que não são considerados por Deus. “Não é um pequeno pecado?”. Eles dizem. E assim ficam endurecidos e insensíveis e incapazes de lamentar por suas misérias. E quem buscaria a Deus com um coração penitente em busca de misericórdia, enquanto continuar pensando que o pecado é apenas uma coisa leve? Nenhum pecado pode ser pequeno porque é contra a Majestade do céu. Não há nenhuma traição pequena, porque todas elas são contra a pessoa do Rei Jesus. Não permita portanto, que Satanás lance uma nuvem diante de seus olhos para que você não veja a real dimensão do pecado. E ninguém se iluda com a infinita paciência e longanimidade de Deus que faz com que Ele não execute imediatamente a Sua sentença sobre o pecado. Deus não é um credor precipitado que requer o pagamento imediato da dívida e que não dá nenhum tempo para o seu pagamento. A longanimidade de Deus não deve ser portanto um motivo para abusarmos da Sua bondade e graça, e assim nenhum crente verdadeiro deveria permitir que o canal da tristeza que conduz ao arrependimento seja obstruído pela corrupção do pecado. O juízo do Senhor é como uma pedra que cai, cujo peso de impacto é maior quanto maior for o tempo da sua queda. Pecados contra a paciência de Deus são pecados terríveis porque nem mesmo os anjos caídos cometeram este tipo de pecado que é contra a misericórdia e longanimidade de Deus. Então é preciso que o Espírito Santo produza em nós quebrantamento de coração e inspire nossas tristezas pelo pecado para que possamos expressá-las diante de Deus. O consolo prometido no texto da bem-aventurança é produzido pelo Espírito. 39 Observe que Deus reserva a melhor safra do seu vinho para o final. Primeiro ele prescreve tristeza pelo pecado e então serve por último o vinho da consolação. O diabo faz exatamente o contrário. Ele serve o melhor primeiro e reserva a pior safra para o final. Satanás oferece os seus pratos delicados diante dos homens. Ele lhes apresenta o pecado de uma forma colorida, atraente, com beleza, adocicado com prazer, com lucro, e então, no fim, a triste conta é apresentada para ser paga. Esta é a razão por que o pecado tem tantos seguidores, porque mostra o melhor primeiro. Mas Deus mostra o pior primeiro. Primeiro ele prescreve um remédio amargo, o do arrependimento, e é isto o que nos leva a chorar, mas então Deus nos dá uma recompensa, a de sermos consolados conforme a promessa da bem-aventurança. Por isso as lágrimas do evangelho não são perdidas porque são sementes de consolo divino. Depois da corrente de lágrimas o Espírito Santo faz fluir no nosso interior uma corrente de alegria. Daí, se dizer que aqueles que semeiam em meio a lágrimas ceifarão com alegria, conforme se lê no Sl 126.5. O coração quebrantado é esvaziado do orgulho e então Deus o enche com a Sua bênção. O vale de lágrimas traz ao espírito um paraíso de alegria. A alegria de um pecador impenitente produzirá tristeza, porque é sempre este o salário que é pago pelo pecado. Mas a tristeza do quebrantado produz alegria. “Sua tristeza será transformada em alegria” (João 16:20). As consolações que Deus dá aos quebrantados excedem todos os demais consolos e a raiz na qual estes confortos crescem é o Espírito Santo. Ele é chamado ”o Consolador” em João 14.26. E o Espírito consola aplicando as promessas a nós mesmos e nos ajudando a tirar águas desses mananciais da salvação. O Espírito derrama o amor de Deus no coração do crente e sussurra secretamente a ele o perdão que recebeu para os seus pecados, e esta visão do perdão dilata o coração com alegria. Estes confortos são reais e verdadeiros, porque o Espírito de Deus não pode testemunhar aquilo que é falso. 40 Há muitos nesta época que fingem confortar, mas os confortos deles são meras imposturas. Mas os confortos dos santos são verdadeiros porque eles têm o selo do Espírito Santo fixado neles. Quando um homem é trazido aos mandamentos de Cristo, para crer e obedecer, então ele fica preparado para receber a misericórdia. É por isso que antes de consolar o Espírito primeiro convence do pecado. E quando o coração é arado pelo convencimento do pecado, Deus semeia nele a semente do conforto. Assim, aqueles que se vangloriam de conforto, mas que nunca foram convencidos ainda de seus pecados, nem quebrantados por causa dos seus pecados, devem ter motivo para suspeitar que o conforto deles não passa de uma ilusão de Satanás. O Espírito de Deus é um Espírito santificante, antes de ser um Espírito consolador. Alguns falam do Espírito confortante mas nunca tiveram o Espírito santificante. Assim, suas alegrias são falsas, e estes falsos confortos deixarão os homens na morte. Eles terminarão em horror e desespero. Então os efeitos da verdadeira consolação do Espírito Santo são completamente diferentes dos confortos de Satanás, que muitos alegam ser de Deus. O diabo é capaz, não somente de se transfigurar em anjo de luz, como se lê em II Cor 11.14, como também em se disfarçar em consolador. Mas os consolos de Deus nos conduzem à humilhação porque não permitem que sejamos inchados com orgulho, apesar destes consolos do Espírito Santo elevarem o nosso coração em gratidão. E os confortos que Deus dá aos quebrantados não são misturados. Eles não trazem pesar conforme se afirma em II Cor 7.10. Mas os confortos mundanos são como água misturada com sujeira, porque em meio aos sorrisos o coração está triste. O pecador pode ter umrosto sorridente enquanto tem uma consciência que o acusa. Mas os confortos espirituais são puros. Eles não são misturados com culpa porque lançam fora o medo e trazem o perdão de Deus. De modo que o consolo que vem depois da tristeza pelo pecado é a alegria do Espírito Santo, e nada mais do que alegria. 41 Tão doces são estes confortos do Espírito que eles enfraquecem muito e moderam nossa alegria em coisas mundanas. Aquele que tem bebido da água do Espírito, não terá depois sede de água; e aquele homem que tem uma vez provado quão bondoso é o Senhor e bebido do Espírito, não terá sede imoderada por delícias terrenas. O Espírito Santo não pode produzir no espírito alegrias impuras tal como o sol não pode produzir trevas. Assim, aquele que tem os confortos do Espírito Santo se manifestando nele, nunca desejará negociar com o pecado, porque ele mataria tais confortos. Os confortos que Deus dá para os seus quebrantados nesta vida são confortos gloriosos: “Alegria cheia de glória” como se lê em I Pe 1.8. Eles são gloriosos porque eles são um antegosto daquela alegria que nós teremos no céu. São tão gloriosos os confortos do Espírito que um crente nunca está tão triste que não possa se alegrar. Observe então que é verdadeiramente bem-aventurado o que chora, porque o quebrantado é um privilegiado, pois será confortado por Deus. Os olhos do quebrantado não devem portanto estar tão cheios de lágrimas a ponto de lhe impedir de enxergar as promessas de perdão no sangue de Jesus Cristo. A virtude e conforto de um remédio está em usá-lo. De igual modo quando as promessas forem aplicadas com fé, elas trarão conforto. Mas lembremos que uma mente mundana pode nos privar do conforto divino. Deus esconde o seu rosto daqueles que amam o mundo e que se conformam ao modo do mundo. Um coração, enquanto mundano, não deve contar com as consolações do Espírito Santo. Aquele que busca confortos terrenos apagará com estes falsos confortos o verdadeiro conforto do Espírito. Devemos evitar também a tentação de fazer dos confortos divinos o fim mesmo da vida cristã, porque até mesmo ao Senhor faltaram tais confortos em determinados momentos de seu ministério terreno, e é de se esperar que o mesmo suceda conosco. Mas embora um filho de Deus nem sempre tenha conforto expressado em flor, ele sempre o tem em semente. Embora ele não sinta conforto de Deus contudo ele está debaixo do Seu conforto. 42 Um crente pode ser elevado em graça e ser rebaixado em conforto. As montanhas altas estão sem flores. As minas de ouro têm pouco ou nenhum trigo crescendo nelas. O coração de um crente pode ser uma mina de ricos filões de graça, entretanto ser estéril de conforto. Entretanto, o quebrantado é o herdeiro do conforto, porque somente por um breve momento Deus poderá abandonar as pessoas do Seu povo como vemos em Isaías 54.7, contudo há um tempo que vem brevemente quando os quebrantados terão todas as lágrimas enxugadas de seus olhos, e serão plenamente cheios de conforto. Esta alegria está reservada para o céu. Porque se diz que são bem aventurados os que choram porque deles é o reino dos céus. Aleluia. Amém! Vamos da continuidade ao nosso comentário sobre as bem-aventuranças, falando agora sobre a terceira bem-aventurança, citada por Jesus no texto de Mateus 5.5, no qual lemos o seguinte: “Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra.”. Esta mansidão tem um aspecto duplo, mansidão para com Deus e mansidão para com o homem. Na mansidão para com Deus duas coisas são insinuadas: a primeira é a submissão à Sua vontade; e a segunda, o dobrar-se à Sua Palavra. Ser manso então em relação a Deus significa seguir o exemplo de mansidão que Jesus nos deixou sendo submisso à vontade do Pai, e por ter se dobrado inteiramente à Sua palavra, vivendo debaixo do exclusivo poder e direção do Espírito Santo. Assim, é espiritualmente submisso aquele que se conforma à mente de Deus, e não luta contra as instruções da Sua santa Palavra, mas com as corrupções do seu coração. E quão feliz é isto, quando a Palavra vem com majestade e é recebida com mansidão no coração, como se diz em Tiago 1.21. Este ato de receber a Palavra com mansidão referido por Tiago, significa acatar com submissão tudo que nos é ordenado nela pelo Senhor. A mansidão consiste basicamente em três coisas: a primeira, suportar danos; a segunda, perdoar danos, e a terceira, recompensar o mal com o bem. 43 Vamos repetir para você poder memorizar em que consiste basicamente a mansidão: Primeiro, suportar danos. Segundo, perdoar danos. E terceiro, recompensar o mal com o bem. Quanto a suportar danos, podemos dizer desta graça da mansidão, que ela não é conseguida facilmente. Mas lembremos que um espírito submisso, tal como pano molhado, não pegará fogo facilmente. A mansidão é a rédea da raiva. As paixões são inflamáveis, mas a mansidão é a água divina que as apaga. A mansidão é a rédea da boca, porque amarra a língua e lhe dá um bom comportamento. A precipitação de espírito é oposta à mansidão. Quando o coração ferve em paixão e ira, ele se encontra longe da mansidão. A raiva pode ser encontrada num homem sábio, mas ele não se permitirá ser dominado por ela, no entanto a raiva permanece no coração dos tolos, e tem ali a sua moradia. O homem iracundo é como pólvora, sempre pronto a entrar em chamas ao menor atrito. A ira altera o estado de consciência tanto como o álcool o faz no que está embriagado. Assim o uso da razão é suspenso naquele que se deixa dominar pela ira. Somente em alguns casos é justificado ficarmos irados. Há uma ira santa. Aquela ira sem pecado que é contra o pecado. Na qual mansidão e zelo podem estar juntos. Em assuntos da defesa da verdade do evangelho, um crente deve ser vestido com o espírito de Elias, e estar “cheio da ira do Senhor” como se vê em Jer 6.11. Cristo era manso conforme se diz em Mt 11:29, contudo era zeloso, como se vê em João 2.14,15. E este Seu zelo pela casa de Deus o consumiu. A malícia também é oposta à mansidão. A malícia é o retrato do diabo. Um espírito malicioso não é um espírito manso. A disposição para se vingar também é oposta à mansidão. A vingança é um ofício para Deus e não para os homens. Por isso a Bíblia proíbe a vingança, como se vê em Rm 12.19. 44 Lutas espirituais são legítimas, quando consistem na luta contra o diabo, e com a parte carnal do homem, e abençoado é todo aquele que busca se vingar das suas luxúrias. Mas outros tipos de lutas são ilegais. Passar por um dano sem vingança não traz qualquer descrédito à honra de um homem. Um espírito nobre esquece um dano que tenha sofrido, ainda que injustamente. No entanto, a autodefesa, ou legítima defesa, como é mais conhecida, é consistente com a mansidão cristã. Neste sentido os magistrados são ministros de Deus para vingarem o mal, como citado em I Pe 2.14 e Rm 12.17, e assim, o exercício do ofício deles não é oposto à mansidão. A maledicência também é oposta à mansidão. A maledicência sempre carrega a intenção de desprezar, ofender e difamar outros. Quando Paulo chamou os Gálatas de insensatos, a sua intenção não era a de ofendê-los e difamá-los, senão apenas de reformá-los pela repreensão que lhes dirigiu. Não é mansidão mas fraqueza separar-nos da nossa integridade. Deve haver mansidão cristã, como também prudência cristã. Ambas devem caminhar lado a lado. É legítimo sermos nossos próprios defensores em face de acusações injustas que possamos sofrer. Somente haverá falta quando replicarmos os danos procurando pagá-los na mesma moeda com que os sofremos. Tendo considerado acerca da mansidão quanto ao seu aspecto de suportar danos, vejamos agora o relativo ao de se perdoar danos. Um espírito manso é um espírito perdoador. Por natureza os homens são dados a esquecerem a bondade que recebem de outros, mas lembram-se com facilidade dos danos que sofreram. Mas Deus exige que sejamos como Ele, perdoandode coração e esquecendo os danos que sofremos, conforme se exige em Mt 18.27. Deus perdoa completamente todos os nossos pecados. E um crente verdadeiramente manso também perdoa todos os danos dos seus ofensores, em face do arrependimento deles. Deus perdoa frequentemente porque nós pecamos frequentemente. Como Ele perdoa setenta vezes sete nos ordena também que façamos o mesmo. 45 É nosso dever estar sempre prontos para perdoar conforme se ordena em Col 3.13; ainda que tenhamos que suportar aqueles que parecem mais monstros do que homens, porque não deixam de nos fazer o mal a par de todo o bem que possamos lhes fazer. Mas nós cessaríamos de fazer o bem porque outros não cessaram de serem maus? Lembremos que quanto mais danos perdoarmos mais brilhará a nossa graça. Se faltar a algum crente esta virtude do perdão então lhe faltarão também as demais graças. Porque onde há uma graça, há todas as demais. Se a mansidão estiver faltando, o que haverá é apenas uma falsa corrente de graça. A fé será uma fábula, o arrependimento uma mentira, e a humildade, uma hipocrisia. E considerando que você diz que não pode perdoar, pense em seu pecado. Seu próximo não é tão ruim lhe ofendendo quanto você é por não lhe perdoar. Seu próximo, lhe ofendendo, transgride contra um homem, mas você, enquanto se recusa a lhe perdoar, peca contra Deus. Também considere o perigo que você está correndo negando-se a perdoar, porque Deus tem disposto o dever de perdoar de tal maneira que as suas ofensas não serão perdoadas por Ele, se você não perdoar as ofensas do seu próximo conforme vemos em Mc 11.26. O terceiro aspecto relacionado à mansidão é recompensar o mal com o bem; e este é um grau mais elevado do que o anterior. Jesus diz em Mt 5.43,44: “Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus;”. E o apóstolo Paulo acrescenta em Rom 12.20,21: “Portanto, se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá- lhe de beber; porque, fazendo isto, amontoarás brasas de fogo sobre a sua cabeça. Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem.”. E também o apóstolo Pedro nos diz em I Pe 3.9: “Não tornando mal por mal, ou injúria por injúria; antes, pelo contrário, bendizendo; sabendo que para isto fostes chamados, para que por herança alcanceis a bênção.”. 46 A mansidão nos mostra a marca de um verdadeiro santo. Ele é de um espírito submisso, sincero. Ele não é provocado facilmente. Quando o crente se dispõe a vencer o mal com a mansidão, Deus honra a sua obediência à sua Palavra, fazendo com que triunfe a causa do bem. Deixe-me pedir a todos os vocês que se esforcem para buscarem esta graça superior da mansidão; conforme se ordena no texto de Sofonias 2.3: “Buscai ao Senhor, vós todos os mansos da terra, que tendes posto por obra o seu juízo; buscai a justiça, buscai a mansidão; pode ser que sejais escondidos no dia da ira do Senhor.”. Buscar insinua que nós podemos perder esta graça da mansidão, não a alcançando. Então, nós temos que fazer uma exibição pública depois de achá-la. E isto faremos mostrando que somos de fato mansos tanto para aprender de Deus, quanto para suportar danos e perdoar ofensas sofridas. A mansidão é necessária em tudo o que fizermos, especialmente quando estivermos instruindo outros no caminho da verdade conforme se ordena em II Tim 2.25. A mansidão conquista os oponentes da verdade. A mansidão é necessária quando ouvimos a Palavra, como se afirma em Tg 1.21. Aquele que ouve o sermão ou o ensino da verdade com preconceito e sem mansidão, não adquire nenhum bem, mas feridas. Ele transformará o azeite da graça de Deus em veneno e se ferirá com a espada do Espírito, que é a Palavra de Deus, em vez de vencer o Inimigo com ela. Paulo diz em Gál 6.1: “se algum homem chegar a ser surpreendido nalguma ofensa, vós, que sois espirituais, corrigi-o com espírito de mansidão; olhando por ti mesmo, para que não sejas também tentado.”. No original grego, o verbo para corrigir neste texto de Gálatas 6.1 é katartizo, que significa emendar, tal como um cirurgião faz a união de um osso fraturado com o cuidado de não causar outras lesões ao ferido. Somos indesculpáveis se não buscarmos a graça da mansidão porque temos este exemplo fixado na Bíblia, na vida dos servos de Deus e na do próprio Cristo. “Dizei à filha de Sião: Eis que o teu Rei aí te vem, manso, e assentado sobre uma jumenta.”(Mt 23.5). Jesus foi insultado, mas não insultou os seus agressores como se lê em I Pe 2.23. Jesus nos ordena em Mt 11.29 a aprendermos do Seu próprio exemplo de mansidão. 47 Moisés era o homem mais manso da terra, conforme se afirma em Nm 12.3. Quando os israelitas murmuravam contra ele em vez de se irar, ele intercedia em favor deles (Êx 15.24, 25). A mansidão é um grande ornamento de um crente como afirmado em I Pe 3.4. E quão agradável se torna aos olhos de Deus o crente que usa esta joia preciosa. Deus poderia facilmente esmagar os pecadores e enviá-los logo ao inferno mas Ele modera a Sua ira porque embora esteja cheio de majestade, contudo está cheio de mansidão. A mansidão forja um espírito nobre e excelente. Um homem manso é um homem valoroso. Ele adquire uma vitória sobre si mesmo. A paixão surge de fraqueza, mas o homem manso pode conquistar a sua fúria. Aquele que é tardio para se irar, ou seja, que é longânimo, é melhor do que o poderoso, e do que aquele que conquista uma cidade, como lemos em Pv 16.32. Ser manso é nadar contra a natureza, é contrariá-la, e portanto é algo difícil de ser conquistado, e por isso este esforço merece se recompensado, e daí se dizer que os mansos herdarão a terra. A paixão pode fazer um inimigo de um amigo, mas a mansidão, ao contrário, pode fazer um amigo de um inimigo. Quando é dito que os mansos herdarão a terra, não significa que eles não herdarão mais do que a terra. Eles herdarão o céu também. Nós procederemos agora ao comentário da quarta bem-aventurança citada por Jesus em Mateus 5.6: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque eles serão fartos.” Nós chegamos agora ao quarto passo da bem-aventurança. A fome e a sede espiritual são abençoadas porque é prometido que serão saciadas por Deus. Toda fome e sede relativas à justiça do reino de Deus serão saciadas. A fome e a sede natural são desejos por alimento e água necessários para crescimento ou para a manutenção da vida. O pão e a água naturais provêm o sustento do corpo natural; e o pão e a água espirituais provêm o sustento do corpo espiritual. E qual é o significado da justiça referida por Jesus? 48 Esta justiça é evangélica, a saber, que alcançamos por causa da nossa fé no evangelho. Ela é uma justiça dupla: uma que nos atribuída e outra que é implantada em nós. A justiça evangélica que nos é atribuída por Deus no dia da nossa conversão, quando cremos pela primeira vez em Cristo, recebendo-O em nossos corações, é a relativa à nossa justificação. Esta justiça que nos é atribuída é a justiça do próprio Cristo. Ela nos é atribuída pela nossa fé nEle. Em virtude desta justiça, quanto à condenação eterna, Deus olha para o crente que foi justificado por tal justiça de Jesus, como se ele nunca tivesse pecado. Esta é uma justiça perfeita. É por causa desta justiça com a qual fomos justificados na conversão, que se diz em Col 2.10 que os crentes se encontram perfeitos em Cristo diante de Deus: “E estais perfeitos nele, que é a cabeça de todo o principado e potestade;”. É por causa desta justiça que lhe foi atribuída na conversão, que o crente terá fome daquela outra justiça que é implantada. Uma justiça implantada se refere à retidão inerente à pessoa do crente, ou seja, às graças do Espírito; à santidade do coração. Esta fomepor esta justiça que é implantada comprova a existência da verdadeira vida espiritual. Daí Cristo afirmar que estes que têm fome e sede de justiça serão saciados, porque foram vivificados pelo Espírito Santo na conversão, e agora podem ter esta fome e sede, porque enquanto estavam mortos em delitos e pecados, sem a vida do Espírito Santo habitando neles, não poderiam ter tal fome e sede. O crente pode, no entanto, perder o seu apetite por esta justiça evangélica que deve alimentar o seu espírito, caso venha a entristecer e a apagar o Espírito Santo, porque, neste caso, apesar de ter sido vivificado por Cristo, estará como morto perante Deus, porque as graças do Espírito estão prontas a morrer naqueles que se afastam da comunhão com Jesus. Um homem morto não pode ter fome. A fome procede da vida. A fome espiritual se seguirá ao novo nascimento (I Pe 2.2). Assim, sem esta fome espiritual não pode haver crescimento espiritual, porque somente os que têm fome se disporão a se alimentar do verdadeiro alimento espiritual. Tudo o que Deus requer de Seus filhos, para participarem do Seu banquete espiritual é que eles tragam apenas o seu apetite, porque Ele tem estabelecido um preço que é acessível a todos para obtenção das coisas divinas, como se lê em Is 55.1,2: 49 “1 Ó vós, todos os que tendes sede, vinde às águas, e os que não tendes dinheiro, vinde, comprai, e comei; sim, vinde, comprai, sem dinheiro e sem preço, vinho e leite. 2 Por que gastais o dinheiro naquilo que não é pão? E o produto do vosso trabalho naquilo que não pode satisfazer? Ouvi-me atentamente, e comei o que é bom, e a vossa alma se deleite com a gordura.”. Assim não nos é ordenado que compremos a justiça com dinheiro. Se alguém convidar amigos à sua mesa, ele não espera que eles deveriam trazer dinheiro para pagar pelo jantar deles, mas que venham somente com apetite. Assim, o Senhor diz que não é penitência, peregrinação, farisaísmo que Ele requer. Traga somente seu estômago se você tem fome e sede de justiça. O pecado tem um gosto doce para os ímpios porque eles não têm nenhuma fome espiritual de justiça. Eles estão cheios da sua própria justiça como se vê em Rm 10.3. E um estômago cheio recusa o favo de mel. Esta é a doença de Laodiceia. Ela estava cheia e não tinha nenhum estômago para valorizar o colírio e o ouro de Cristo, conforme se lê em Apo 3.17. Não há ninguém que esteja tão vazio da graça como aquele que julga estar cheio. A Palavra reprova aqueles que em vez de terem fome e sede de justiça, têm fome e sede de riquezas. Esta é a fome e a sede dos homens cobiçosos. A avareza é idolatria como se afirma em Col 3.5. Muitos crentes erigiram o ídolo de ouro no templo dos seus corações. O pecado mais difícil de se desarraigar é o da cobiça. Geralmente quando outros pecados deixarem os homens, este permanece. E a cobiça, o amor ao dinheiro, é a raiz na qual nascem todos os males. E a cobiça não produzirá fome e sede de justiça, senão fome e sede de toda sorte de injustiças. Deste modo, o problema não está em ser a fome e sede fracas, mas haver a ausência total delas. Uma fome e sede fracas são como um pulso que bate fraco, mas mostra que há vida. E estes desejos fracos não devem ser desencorajados porque há uma promessa feita a eles de que a cana quebrada não será esmagada pelo Senhor como Ele afirma em Mt 12.20. Uma cana é algo fraco em si mesma, e quanto mais se a cana estiver quebrada, entretanto não será esmagada e florescerá como a vara seca de Arão. Olhando em sua fraqueza para Cristo, Seu Sumo-Sacerdote será ajudado por Ele porque é paciente, poderoso e misericordioso. 50 Se você não tem aquele apetite como antigamente pelas coisas divinas, contudo não seja desencorajado, porque com o uso adequado dos meios da graça você pode recuperar seu apetite. Chamamos de meios de graça a oração, o louvor, o jejum, a adoração, a meditação e prática da Palavra de Deus, a comunhão dos crentes, e o compromisso com a obra do evangelho. As riquezas não duram para sempre, mas a justiça dura para sempre e é por isso que os homens são exortados a trabalharem por este alimento que não perece, e não para ajuntar riquezas terrenas. A menos que nós tenhamos fome desta justiça evangélica nós não podemos obtê-la, porque Deus nunca jogará fora as Suas bênçãos naqueles que não as desejam. Assim como os exercícios físicos estimulam o apetite natural, de igual modo o exercício na piedade estimula o apetite espiritual, conforme se afirma em I Tim 4.7. Aos que têm fome e sede de justiça Deus promete dar-lhes plenitude de fartura e daí se dizer que os tais são bem-aventurados porque serão aperfeiçoados na justiça que eles desejam como algo vital para a sua subsistência espiritual. Deus saciará o espírito faminto porque Ele mesmo incitou esta fome. Ele plantou desejos santos em nós, e Ele não satisfaria esses desejos? Deus satisfará o faminto porque o espírito faminto é muito grato pela misericórdia. Deus ama dar a misericórdia dele onde ele pode ter um maior louvor. Nós nos encantamos em dar àqueles que são gratos. Deus enche o espírito faminto com plenitude de graça, paz e alegria. Assim é de fato uma grande bem-aventurança ter fome e sede de justiça. Considere por que Cristo recebeu o Espírito sem medida (João 3.34). Não foi para Si mesmo. Ele estava infinitamente cheio antes. Mas ele estava cheio com a unção santa para este fim, a saber, para que ele pudesse derramar a Sua maravilhosa graça no espírito faminto. Você é ignorante? Cristo estava cheio com sabedoria para poder lhe ensinar. Você está sujo? Cristo estava cheio com graça para poder limpá-lo. A alma não virá então a Cristo que tem toda a plenitude para saciar o faminto? Peçamos portanto a Deus que jamais nos falte o apetite espiritual pelo qual Ele nos dará crescimento e força, para podermos fazer a Sua vontade. 51 Nós procederemos agora ao comentário da quinta bem-aventurança citada por Jesus em Mateus 5.7: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia.” Haveria necessidade de pregar sobre misericórdia mais do que nestes tempos desapiedados em que nós vivemos? Mas como muitos não sabem exatamente o que é misericórdia, falaremos primeiro sobre os vários tipos de misericórdia. A misericórdia é uma disposição por meio da qual nós carregamos no coração as misérias de outros e estamos prontos em todas as ocasiões a sermos instrumentos para o bem deles. Muitos confundem misericórdia com amor, mas há algumas diferenças marcantes entre ambos. Em algumas coisas o amor e a misericórdia são iguais, mas em outras eles diferem, como as águas de um rio que podem ter duas nascentes, mas se encontram no fluxo. O amor e misericórdia diferem nisto: o amor é mais extenso. O amor é um amigo constante que nos visita até mesmo quando estamos bem. Já a misericórdia é como um médico que só nos visita quando estamos doentes. O amor age mais por afeto. Mas a misericórdia age mais por um princípio de consciência. A misericórdia empresta sua ajuda a outros, mas O amor dá seu coração a outros. Deste modo, eles diferem, mas o amor e a misericórdia concordam em que ambos estão sempre prontos a prestarem bons serviços. A misericórdia procede de um trabalho da graça no coração. Por natureza, nós estamos bem longe da misericórdia. O pecador é por natureza uma oliveira brava e não uma oliveira que dá bom azeite. O caráter e vocação do homem natural é ser desapiedado como se lê em Rm 1.31; e a misericórdia que ele possui é um instinto natural e não a misericórdia santificada que é um fruto do Espírito Santo. 52 Por natureza nós não produzimos azeite, mas veneno; não o óleo da misericórdia, mas o veneno do pecado. Além desta falta da misericórdia divina que não pode ser achada na nossa natureza terrena, há algo que é também implantado por Satanás, porque o príncipe das trevas trabalha no coração dos homens como se vê em Ef 2.2. E seele domina os homens não é de se estranhar que eles sejam inclinados a serem implacáveis e sem misericórdia. Afinal, que misericórdia pode ser esperada do inferno? De forma que, se o coração é afinado com a misericórdia, é por causa da mudança que a graça produziu nele, conforme se vê em Col 3.12. Assim, antes de um homem ser misericordioso, é necessário que seja uma nova criatura; e a misericórdia é algo para ser aprendido com Deus, que nos ensinará isto de modo prático, na experiência da vida. Nós devemos ser misericordiosos às almas de outros, especialmente aquelas que não foram salvas. Realmente este é o principal tipo de misericórdia, porque o espírito é a coisa mais preciosa que existe. Mais do que nós sentimos pela morte física de alguém, nós deveríamos sentir pela sua morte espiritual, porque este é o estado permanente de toda pessoa que não conhece a Cristo, e também devemos sentir pela sua morte eterna, que se seguirá à sua morte física. Assim uma alma misericordiosa reprovará os pecadores impenitentes na expectativa de que eles se convertam de seus pecados. Nós estaremos sendo misericordiosos quando lutarmos com eles pela salvação de seus espíritos e não permitirmos que eles desçam quietamente para o inferno. Se a casa de uma pessoa estivesse pegando fogo nós deixaríamos de lhe dar o devido aviso para não assustá-la quanto ao prejuízo que estava sofrendo? E nós ficaremos calados vendo alguém dormir o sono da morte e vendo o fogo da ira de Deus pronto para queimá-lo? Veja então como é um trabalho abençoado o trabalho do ministério! A pregação da Palavra nada mais é do que mostrar misericórdia às almas. Ministros que toleram o pecado por temor de não ofenderem as pessoas são maus ministros. É um erro pensar que ser agradável a todos, ainda que estejam perdidos em pecados é uma forma de mostrar estima e amizade por eles. 53 Na verdade, ainda que muitas pessoas se sintam ofendidas e ressentidas com os pastores, quando eles pregam de maneira veemente contra o pecado, não importa, porque aquele que faz isto está sendo verdadeiramente misericordioso para com elas, uma vez que é disto que depende o destino eterno feliz delas, caso venham a se arrepender dos seus pecados. Olhe como Jesus e João Batista pregavam em seus ministérios. Eles diziam “arrependei-vos e crede no evangelho” fazendo duras repreensões contra aqueles que viviam no pecado. Quando Jesus e João diziam aos fariseus que eles eram uma raça de víboras, que seriam cortados pela raiz pelo machado do juízo de Deus, eles estavam demonstrando verdadeiro amor e verdadeira misericórdia para com eles, porque estavam dando a eles o aviso solene do que lhes sucederia caso não se arrependessem dos seus pecados. Então fiel, misericordioso, e verdadeiramente amigo é o pastor que repreende aqueles que estão vivendo na prática deliberada do pecado. Ainda que aqueles que estão na carne façam um juízo errado pensando que isto é falta de misericórdia. Então estes pastores que não pregam contra o pecado são maus pastores. São ministros que não têm uma misericórdia verdadeira pelas almas perdidas. O cuidado deles é maior por dízimos do que por almas. Por realizações materiais do que por almas. Os tais são mercenários e não ministros de Cristo, e caso tenham tido uma chamada para o ministério, acabaram se desviando dela. Como podem ser chamados de pastores aqueles que não possuem intestinos de misericórdia? Tais homens não alimentam os espíritos das pessoas com verdades sólidas. Quando Cristo enviou os seus apóstolos, ele lhes deu o texto que eles deveriam pregar e ensinar. Os ministros de Cristo devem pregar as coisas que pertencem ao reino de Deus. Eles são desapiedados se em vez de repartir o pão da vida, encherem as cabeças das pessoas com especulações e noções vazias, que fazem apenas cócegas na consciência. 54 Há ministros que pregam como se eles estivessem falando uma língua desconhecida. Alguns ministros gostam de planar nas alturas como a águia e voam acima da capacidade das pessoas, e se esforçam bastante para serem mais admirados do que compreendidos. É falta de misericórdia para com as almas pregar para não ser entendido. Ministros deveriam ser estrelas para dar luz, não nuvens para esconder a verdade. É crueldade para com as almas quando nós andarmos para tornar as coisas fáceis em coisas difíceis. E muitos são culpados de subirem ao púlpito somente para exibirem a própria glória deles e divertirem as pessoas. Isto cheira mais a orgulho do que a misericórdia. Nós devemos também ser misericordiosos com os nomes de outros. Um bom nome é uma das maiores bênçãos na terra. Assim, é grande falta de misericórdia, uma grande crueldade, infamar o renome dos homens, conforme se vê em Rom 3.13. O homem orgulhoso e invejoso atacará a reputação de outros. E pensando em apagar os nomes que ataca, julga que o seu poderá brilhar mais do que os deles. O invejoso difama a dignidade dos outros, mas a Bíblia nos ensina a nos alegramos com a estima e fama de outros como se vê em Rm 1.8 e Hb 11.2. A calúnia é portanto uma grande demonstração de falta de misericórdia. E a defesa do bom nome dos que são caluniados é uma grande demonstração de misericórdia. Lembremos que Deus requererá em juízo cada palavra ociosa que foi proferida pelos homens, especialmente aquelas que foram usadas para infamar outros. Em vez de infamarmos as pessoas, nós devemos ser misericordiosos em relação às ofensas que eles nos fazem. Estejamos prontos para mostrar misericórdia àqueles que nos prejudicaram. Nós lemos em Pv 19.11 que “A discrição do homem fá-lo tardio em irar- se; e sua glória está em esquecer ofensas.”. Nós devemos ser misericordiosos às necessidades de outros. Considere os pobres; veja as lágrimas deles, e os seus suspiros e gemidos. 55 Deus demonstra a Sua misericórdia e cuidado com os pobres nos muitos mandamentos da Lei de Moisés que prescreveu para o benefício deles como se pode ver por exemplo em textos como Ex 23.11; Lev 19.9; 25.35 e Dt 14.28,29. Na verdade Deus agrava o Seu juízo nos ricos mais do que nos pobres, porque se aos primeiros deu confortos e facilidades neste mundo, no entanto pesou muito sobre eles a responsabilidade de assistirem aos necessitados com suas riquezas, e na medida que não o fazem agravando a pobreza no mundo, sofrerão um maior juízo de condenação. No entanto, o pobre não foi cumulado com este peso de responsabilidade da parte de Deus, e nisto tem uma grande vantagem em relação aos ricos, e assim não houve nenhuma injustiça da parte de Deus em ter disposto a criação de tal sorte que houvesse pobres e ricos no mundo. Então a riqueza deve ser usada para a exibição de generosidade para com o próximo, conforme é da vontade de Deus. Por isso Deus requer as boas obras depois que somos justificados, mesmo que sejamos pobres, porque se somos pobres de bens materiais, nada nos impede de sermos ricos da graça de Jesus para usá-la em benefício de outros. Assim, apesar de sermos justificados somente pela fé, devemos lembrar que a fé justificadora nunca está só, porque deve ser acompanhada pelas boas obras. Embora as boas obras não sejam a causa da salvação, contudo elas são evidências da salvação. Embora elas não sejam o fundamento da nossa casa espiritual, contudo elas são a sua estrutura. Deste modo, não deve ser edificada uma fé em obras, mas devem ser edificadas obras em fé. As boas obras são a pedra de toque da fé como se vê em Tg 2.18. Estes frutos das boas obras adornam a árvore da justiça. Assim deixe a liberalidade da sua mão ser o ornamento da sua fé. Pelo menos em dois aspectos as boas obras são em algum senso, mais excelentes do que a fé. Porque as boas obras são de uma natureza diferente e mais nobre. Embora a fé seja mais necessária para nós mesmos, contudo as boas obras são mais benéficas a outros. A fé é uma graça que nós recebemos, mas as boas obras são para o bem de outros,e é uma coisa mais abençoada dar do que receber. 56 A fé é uma graça mais oculta. As boas obras são mais visíveis. A fé pode permanecer escondida no coração e pode não aparecer, mas quando são unidas as boas obras com a fé, a fé brilhará diante dos homens, por causa das nossas boas obras e trará glória ao Senhor. Lembremos sempre que fomos criados em Cristo Jesus para as boas obras como se afirma em Ef 2.10. Foi para este fim que fomos tornados filhos de Deus, em Cristo Jesus. E é nosso dever vivermos para atender ao propósito para o qual fomos criados. Através da misericórdia nos assemelhamos a Deus, que é um Deus de misericórdia. DEle é dito em Miqueias 7.18 que se deleita na misericórdia. Ele requer que o mal seja vencido com o bem. E exige que pratiquemos o bem como vemos em Hb 13.16: “Mas não vos esqueçais de fazer o bem e de repartir com outros, porque com tais sacrifícios Deus se agrada.” Antes de fechar este assunto eu devo dizer que tudo o que fizermos deve ser de modo livre e voluntário e devemos fazê-lo em Cristo e para Cristo, porque estão perdidas, as melhores obras que não são originadas da fé. Todo fruto aceitável a Deus deve ser produzido na Videira Verdadeira. As obras de misericórdia devem ser feitas em humildade e sem ostentação. E se a nossa ação em atender à necessidade do pobre for feita de tal forma que venha a humilhá-lo, isto será em si mesmo um mal maior do que a própria necessidade dele. Sejamos então criteriosos no exercício da misericórdia. Nós procederemos ao comentário da sexta bem-aventurança citada por Jesus em Mateus 5.8: “Bem-aventurados os puros de coração, porque eles verão a Deus.” Deus é tão puro de olhos que não pode ver o mal, e não pode contemplar a perversidade, como se afirma em Hc 1.13. Isto significa que os olhos de Deus são perfeita e puramente bons e não páram para se deleitarem na observação da maldade. Os olhos de Deus não se detêm na contemplação do mal, antes têm repugnância a toda forma de maldade. 57 Isto sucede com Deus porque a pureza é uma coisa sagrada perfeitamente refinada e que se levanta em oposição a tudo o que é sujo. Nós devemos distinguir os vários tipos de pureza. Primeiro, há uma pureza primitiva que está originalmente e essencialmente em Deus. A santidade é a glória da divindade. Deus é o padrão e protótipo de toda a santidade. Segundo, há uma pureza criada. Assim, a santidade está nos anjos eleitos e esteve no começo da criação em Adão, antes dele cair no pecado. O coração de Adão não tinha a menor mancha ou impureza. Nós chamamos isto de ouro puro que não tem qualquer escória misturada nele. Tal era a santidade de Adão. Mas tal pureza absoluta como estava em Adão antes da sua queda no pecado, não será mais achada na terra. Nós temos que buscar tal pureza no céu para poder encontrá-la, e se a encontrarmos, ela será aqui na terra, uma pureza evangélica. Nesta pureza evangélica a graça se encontra misturada com algum pecado, como a escória no ouro. Deus chama esta mistura de pureza, em sentido evangélico. Onde houver uma presença de pureza com uma repugnância por nós mesmos por causa da nossa impureza, então podemos dizer que somos puros de coração. Esta pureza evangélica é a pureza que é citada nesta bem-aventurança de que os puros de coração são aqueles que verão a Deus. Porque é somente por meio da fé no sangue de Jesus, e pela obra de regeneração e santificação do Espírito Santo, mediante a Palavra de Deus, que nós somos de fato purificados dos nossos pecados e achados dignos de estarmos em comunhão com Deus. Por isso, desde o princípio é ensinado por Deus ao Seu povo que não é por nenhuma pureza pessoal própria, segundo o modo de pensar do homem e do mundo, que alguém pode estar de fato purificado aos Seus santos olhos divinos. Toda a pureza que tivermos será operada em nós pelo Espírito Santo, com base no sangue purificador de Cristo, conforme se vê tipificado desde os dias mais remotos, mesmo de Adão, nos sacrifícios de animais exigidos por Deus para que os pecadores pudessem se aproximar dEle. 58 E esta aproximação é feita pela fé. É pela fé no valor do sangue, na expiação de Jesus, e fé na Palavra de Deus, que somos de fato purificados. Assim, a simples educação não é nenhuma pureza. Um homem pode estar cheio de virtudes morais, de prudência, e temperança e contudo, ir para o inferno. A simples profissão de fé não é também nenhuma pureza. Um homem pode ter um nome de que vive, ou seja, ser considerado um crente, e ainda estar morto, como se vê em Ap 3.1. Ele pode ter como o joio, toda a aparência com o trigo, e no entanto, o diabo ainda reside na casa. Pureza de coração não exclui pureza de vida. Mas é chamado pureza de coração, porque esta é a coisa principal da santidade, pois não pode haver nenhuma pureza de vida sem isto. O grande cuidado de um crente deveria ser portanto o de manter o seu coração puro. Deve sobretudo ter atenção para que o amor ao pecado não entre no seu coração, porque é o pecado quem mata a pureza de coração. E uma das melhores formas de se prevenir do pecado é praticar a Palavra de Deus, guardando-a no coração. Porque se a Palavra habitar no coração, este não perderá a sua pureza, por ser penetrado pelo pecado. Daí dizer o salmista, no Salmo 119.11: “Escondi a tua palavra no meu coração, para não pecar contra ti.”. A pureza é uma coisa ordenada pelo próprio Deus na Bíblia, como se vê em I Pe 1.16: “Ser-me-eis santos porque eu sou santo.”. Afinal, o que um Deus Santo pode fazer com servos profanos? Nada. Porque o pecado é uma enfermidade terrível, uma sujeira, uma imundície, uma pestilência dolorosa, é um vômito. O corpo de Cristo seria monstruoso se somente a cabeça fosse pura e não os membros também. Importa pois, na condição de membros do corpo de Cristo que sejamos achados em pureza de coração e vida, tal como o nosso Senhor, como se afirma em I Jo 3.2,3: “2 Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não é manifesto o que havemos de ser. Mas sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele; porque assim como é, o veremos. 3 E todo o que nele tem esta esperança, purifica-se a si mesmo, assim como ele é puro.”. 59 A pureza deve ser principalmente do coração porque se o coração não é puro, nossa pureza não será diferente em nada de uma pureza farisaica. A santidade do fariseu consistia principalmente em exterioridades. A pureza deles era apenas externa. Eles nunca deram atenção ao interior do coração. O coração deve ser especialmente puro, porque é o coração que santifica tudo o que nós fazemos. Se o coração for santo, tudo será, porque o coração é o altar que santifica a oferta. Se nós devemos ser então puros de coração, nós não devemos nos contentar apenas com o nosso exterior. Educação não é suficiente, porque um porco pode ser lavado, contudo é ainda um porco. A educação nada faz além de ensinar boas maneiras a um homem, mas a graça o transforma no seu interior. A santidade de coração, a sua purificação está tipificada na Lei porque se exigia de Arão que ele lavasse as entranhas dos animais que eram oferecidos em sacrifício no Velho Testamento, como se vê em Lev 9.14. Esta pureza de coração não é sentimental mas real, operada pelo lavar do Espírito Santo mediante aplicação da Palavra de Deus. Satanás pode segurar um homem através de um só pecado específico. Almas impuras brincam com o pecado. Eles sentem prazer pela injustiça, e por isso Deus permite que sejam aprisionados pelo erro, como se afirma em II Tes 2.12. Este prazer pela injustiça mostra que a vontade está presa ao pecado. As Escrituras trovejam contra o pecado mas estes pecadores não temem este trovão. Ministros que são como Boanerges, vestidos do espírito de Elias, ainda que denunciem todas as maldições de Deus contra os pecados dos homens, contudo ainda assim eles não lhes dão a devida consideração. O pecado os engana e os justifica, dizendoque Deus não pode afinal exigir uma tal pureza de coração a pecadores. No entanto é o que Ele requer de fato e o revelou de capa a capa na Bíblia. E esta resistência a crer no padrão de santidade e pureza que são exigidos por Deus em Sua Palavra é chamado pela Bíblia de coração mau de incredulidade, conforme se afirma em Hb 3.12. E este tipo de incredulidade é um tipo terrível porque chama Deus de mentiroso quando Ele afirma que devemos ser santos porque Ele é santo. 60 Aqueles que não creem nos mandamentos de Deus e que não se dispõem a honrá-los e praticá-los, nunca O amarão verdadeiramente, porque somente os que têm os mandamentos de Cristo e que os guardam são verdadeiramente aqueles que O estão amando. Não admira portanto que haja mesmo entre os filhos de Deus não poucos que não Lhe estejam amando de fato. A incredulidade endurece o coração e o torna hipócrita. E a falta de pureza do coração produzida pela incredulidade o expõe a se tornar um apóstata. Esta é a razão porque muitos que pareciam uma vez zelosos se encontram agora menosprezando os santos e justos caminhos do Senhor. Há uma antipatia entre um coração carnal e a santidade. E todo aquele que deprecia a pureza tem um coração impuro. Os carnais zombam daqueles que se esforçam para serem espirituais. Mas não é ordenado por Jesus em Mateus 5.48 que sejamos perfeitos como Deus é perfeito? Muitos tentam obter esta pureza de coração independentemente de serem batizados e andarem no Espírito Santo. No entanto, é absolutamente impossível vencer o pecado sem ser santificado pelo Espírito Santo, porque é Ele quem retira de nós não somente as impurezas como o nosso apego às coisas do mundo. Daí que se a pessoa não se consagrar inteiramente a Deus, ela nunca poderá experimentar esta pureza de coração que faz parte da santificação. Deus ama um coração quebrado, mas não um coração dividido. Porque somente um coração sincero seguirá a Deus completamente. Um homem de coração sincero nunca agirá contra a sua consciência. Um coração puro é um coração que se conduz pela verdade e sabe que é possível haver iluminação sem santificação, como bem o exemplificam Saul e Judas. Um homem pode reprimir e abandonar certos pecados, contudo não ter um coração puro, porque o coração puro detesta todos os pecados. Um homem pode reprimir o pecado pelo temor da penalidade, mas o de coração puro reprimirá o pecado por amor a Deus. Aqueles que protestam amar a Deus mas que têm ainda suas mentes aprisionadas ao prazer das impurezas que Deus condena, não têm ainda um coração puro. 61 Quando alguém chega a dizer com o salmista que odeia toda vereda de falsidade, isto é realmente excelente, porque agora o amor ao pecado foi de fato crucificado, e isto é indicativo de que se alcançou um coração puro. O salmista diz no Sl 119.104: “Pelos teus preceitos alcanço entendimento, pelo que aborreço toda vereda de falsidade.” Um coração puro evita a aparência do mal como se vê em I Tes 5.22. Um coração puro evita aquilo que pode ser interpretado como mal. Um coração puro executa deveres santos de uma maneira santa. Um coração puro terá uma vida pura, como se ordena em II Cor 7.1: “Ora, amados, visto que temos tais promessas, purifiquemo-nos de toda a imundícia da carne e do espírito, aperfeiçoando a santidade no temor de Deus.”. Onde há uma consciência boa haverá uma conversação boa. Alguns bendizem a Deus e eles têm bons corações, mas as vidas deles são más. Há uma geração que é pura aos seus próprios olhos e ainda não foi lavada da sua imundícia, como se afirma em Pv 30.12. Um coração puro está tão apaixonado por pureza que nada pode desviá- lo disto. Deixe outros reprovarem a pureza, ele continuará amando a pureza. Ele sabe que se os cegos ridicularizarem um diamante, nem por isto o diamante terá menos valor pelo fato de estar sendo desprezado pelos que são cegos. Portanto, o puro de coração amará a santidade ainda que os cegos espirituais a desprezem. Lembremos que é a pureza de coração que nos torna parecidos com Deus. A infelicidade de Adão consistiu em que ele aspirou ser como Deus em onisciência; mas nós devemos nos esforçar para sermos como Deus em santidade. Sermos à imagem de Deus consiste em termos santidade. E para aqueles que não têm esta imagem em santidade, Jesus dirá que não os conhece. O Salmo 73.1 afirma que Deus é bom para com os puros de coração. Isto significa que Ele terá prazer em manifestar a Sua bondade aos tais, como recompensa do esforço deles para agradá-lo buscando viverem em sincera santidade. Tudo cooperará para o bem destes que amam verdadeiramente a Deus; porque são de coração puro, e buscam guardar os Seus mandamentos. 62 Por isso o puro de coração verá a Deus. Mas como nós atingiremos a pureza de coração? Isto é obtido pelo exercício das graças espirituais, mas especialmente pela prática da Palavra de Deus. Por se meditar frequentemente na Palavra de Deus. Jesus disse aos seus discípulos em Jo 15.3: “Vós já estais limpos pela palavra que vos tenho falado.”. E rogou ao Pai que os santificasse na verdade, como vemos em João 17.17: “Santifica-os na verdade, a tua palavra é a verdade.”. A pureza de coração é obtida também por se orar para se ter tal pureza. Vejamos agora de que maneira os puros de coração verão a Deus. O puro de coração verá o puro Deus, e há uma visão dupla que os santos têm de Deus. Primeiro, nesta vida; quer dizer, espiritualmente pelo olho da fé. A fé vê os atributos gloriosos de Deus na Sua Palavra. A fé vê Deus através das Suas ordenações. Assim Moisés viu aquele que é invisível como se afirma em Hb 11.27. Em segundo lugar os santos verão a Deus, na vida por vir. Nós veremos Deus como Ele é, conforme prometido em I Jo 3.2, na plenitude da Sua glória, porque teremos corpos glorificados, não de carne e sangue, mas corpos celestiais apropriados para terem tal visão de Deus, que é espírito. Será portanto uma visão perfeita. Nós veremos o rei na Sua formosura como se diz em Is 33.17. Ali entenderemos o por que é devida total pureza e santidade a um Deus tão puro e glorioso. Não se trata portanto, apenas de uma promessa de que os puros de coração verão a Deus, mas nesta promessa estão embutidas todas as consequências sagradas e espirituais que acompanharão este privilégio de poder ver a Deus, como recompensa de ter se empenhado na purificação do coração contra todos os tipos de pecados. Aqueles que honraram a Deus deste modo neste mundo, serão honrados e recompensados por Ele na glória. Porque se diz que bem-aventurados são estes que são puros de coração, porque verão a Deus. Como pode então uma pessoa estar confiante e segura de que verá a Deus se não tem tido tal pureza de coração aqui neste mundo? 63 Jesus não disse que bem-aventurados são os que forem purificados dos seus corações no céu para poderem ver a Deus; mas que bem-aventurados são os que são puros de coração neste mudo, porque estes, e somente estes podem ter a certeza de que verão a Deus no céu. Nós vamos proceder ao comentário da sétima bem-aventurança citada por Jesus em Mateus 5.9, de que bem-aventurados são os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus. Este é o sétimo degrau da escada de ouro que conduz à bem-aventurança. O trabalho da paz é um trabalho abençoado, e por isso se diz que são bem- aventurados os pacificadores. A Bíblia une a pureza de coração à paz de espírito: “Mas a sabedoria que vem do alto é, primeiramente, pura, depois pacífica...” como se lê em Tg 3.17. E em Hb 12.14 nós lemos: “Segui a paz com todos, e a santificação...”. E aqui Jesus une puros de coração com pacificadores, como se não pudesse haver nenhuma pureza onde não há uma sincera busca de paz. Os que amam a paz do Senhor e que se empenham por serem achados em paz nEle são praticantes da verdadeira religião, porque é suspeita a religião que está cheia de facção e discórdia. Não se pode dizer que são bem-aventuradosaqueles que estão divididos em seus corações por disputas, invejas, iras, discórdias. Mas bem- aventurados são todos aqueles que são promotores da paz, primeiro em si mesmos, vencendo a fúria pecaminosa de seus corações, e depois no trato com os seus semelhantes. Assim, antes que um homem possa ser um promotor da paz, ele deve ser um amante da paz. A paz de espírito é a beleza visível de um santo, que expressa a pureza escondida no interior do seu coração. O ornamento de um espírito pacifico e quieto é uma joia de grande valor à vista de Deus, como se lê em I Pe 3.4. Os crentes são ovelhas de Cristo, e a ovelha é uma criatura pacífica. Embora os crentes devam ser leões em relação à coragem para enfrentar o pecado, contudo eles devem ser cordeiros em relação à paz. Deus não estava no terremoto e nem no fogo, mas no cicio suave, quando falou com Elias na caverna. Assim Deus não está no espírito do iracundo, mas no espírito do pacífico. 64 Nós temos que ter paz em família, quer nos lares, quer na igreja. Isto é chamado de laço de paz em Ef 4.3. Sem este laço o que teremos serão partes isoladas e não uma unidade. A paz é o cinto que amarra os membros unidos numa família. Não pode haver nenhum verdadeiro conforto sendo cultivado em nossos lares, caso a paz não seja entretida como um ocupante permanente em nossas casas. Há uma paz paroquial, quando há uma doce harmonia, uma afinação de afetos, quando há um só sentir e querer, como diz o apóstolo Paulo em I Cor 1.10: “Rogo-vos, porém, irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que digais todos uma mesma coisa, e que não haja entre vós dissensões; antes sejais unidos em um mesmo pensamento e num mesmo parecer.”. Uma só corda arruinada na harpa desafinará a música e impedirá a unidade harmoniosa da melodia. Um só membro ruim quer na família, quer na igreja, pode vir a prejudicar o todo. Por isso é ordenado na Palavra: “Tende paz entre vós.”, como se lê em I Tes 5.13. Há paz na igreja quando há unidade e verdade entre os seus membros. Nós devemos ser pacificadores porque nós fomos chamados à paz, conforme se afirma em I Cor 7.15. Deus nunca chamou qualquer homem à divisão. Isso é uma razão por que nós não deveríamos ser dados à discussão, porque nós não temos nenhuma chamada para isto. Mas Deus nos chamou à paz, para nos edificarmos mutuamente no corpo de Cristo. Por isso a natureza da graça no trabalho de mudar o coração é no sentido de torná-lo pacífico. Por natureza nós somos de uma disposição violenta. Quando Deus amaldiçoou a terra por causa do homem, a maldição foi a de que ela deveria produzir espinhos e cardos (Gên 3.18). O coração do homem natural está debaixo desta maldição. Produz nada mais do que os espinhos e cardos da discussão e da contenda. Mas quando a graça entra no coração ela o torna pacífico. Implantando no coração uma doçura e disposição amorosa. Assim a paz nos mostra o caráter de um verdadeiro santo. Ele é dado à paz. Ele é o guardião da paz. Ele é um filho da paz. 65 A paz que um crente busca não deve ter ligações de amizade com os que vivem no pecado. Embora nós devamos estar em paz com as pessoas deles, contudo nós devemos estar em guerra com os seus pecados. Nós devemos ter paz com as pessoas deles como sendo feitos à imagem de Deus, mas ter guerra com os pecados deles como sendo feitos à imagem do diabo. Nós devemos ter uma paz civilizada com o pior dos pecadores, mas não um laço de amizade, porque isto significa comunicar-se com as obras infrutíferas das trevas, como se afirma em Ef 5.11. O rei Josafá, embora fosse um crente devotado, foi culpado disto, em sua aliança com a casa de Acabe. Sua falta consistiu em não ter tido apenas uma paz civil com Acabe, mas ele formou laços de amizade com ele, e foi isto que despertou a ira de Deus em relação a Josafá. Assim, nós devemos ser úteis a todos os homens, aconselhá-los, aliviá-los, mas não devemos permitir ter muita familiaridade com eles, porque nós nunca devemos comprar a paz com a perda da santidade. Não devemos ter paz com outros sobre bases erradas. A verdade deve ser comprada e nunca vendida, como se afirma em Pv 23.23. A paz não deve ser comprada com a venda da verdade. A verdade é a base da fé. A verdade é a maior pedra preciosa das igrejas. A verdade é um depósito, um tesouro, que contém o que Deus nos confiou. Nós não devemos deixar nenhuma das verdades de Deus cair ao chão. Nós não devemos buscar a flor da paz quando isto implicar a perda da pérola da verdade. Alguns dizem que devemos estar unidos a todos, mas nós não devemos nos unir com o erro. Que comunhão tem a luz com a escuridão? Com se diz em II Cor 6.14?. Há muitos que têm paz com hereges que negam a Palavra, mas isto é uma paz diabólica. Amaldiçoada seja aquela paz que faz guerra contra o Príncipe da paz. Embora nós devamos ser pacíficos, contudo nós somos ordenados a defender a fé, como se ordena em Jd 3. Nós não devemos estar tão apaixonados pela coroa dourada da paz ao ponto de arrancar dela as joias da verdade. Se preciso for deixe que a paz se vá em vez da verdade. Os mártires prefeririam perder suas vidas a negarem a verdade. E é somente por este amor à verdade e sua prática que os servos de Cristo podem viver em verdadeira harmonia e paz, amando-se uns aos outros. E isto é o que Cristo espera daqueles que são seus, como se vê em Jo 13.35. 66 As tábuas do tabernáculo eram unidas pelos travessões de ouro que simbolizam o amor e a paz de Deus. De igual modo as suas cortinas eram unidas por laçadas que representavam os laços de amor e paz. Assim os corações dos crentes devem estar unidos pelos laços de unidade em amor e paz. Uma disposição pacífica é uma disposição divina. Deus Pai é chamado “o Deus de paz” em Hb 13.20. Deus Filho é chamado “o Príncipe da paz” em Is 9.6. E ele saiu do mundo deixando-nos um legado de paz, como se lê em Jo 14.27. Deus Espírito Santo é um Espírito de paz. Ele tomou a forma de uma pomba. Ele é o Consolador. Cristo orou em favor da paz entre as pessoas do Seu povo, como vemos em Jo 17.11, 21, 23. Ele orou para que os crentes fossem um, de modo que tivessem a mesma mente e coração. Cristo não somente orou pela paz, mas sangrou para isto. Ele não morreu somente para fazer paz entre Deus e os homens, mas também entre homens e homens. Discussão e contenda impedem o crescimento da graça. Quem se disporia a semear num campo repleto de espinheiros? Os espinhos sufocam a semente da graça e impedem a sua germinação e crescimento. Como a fé pode crescer num coração sem paz? Porque a fé opera pelo amor. Por isso Cristo exorta os crentes a terem paz uns com os outros, como se vê em Mc 9.50. Somente quando os corações dos crentes são uma casa espiritual adornada com a mobília da paz, então eles estão preparados para hospedarem o Príncipe da paz. Para mantermos esta mobília abençoada da paz em ordem é preciso não dar ouvidos aos fofoqueiros (Lev 16.16), que de alguma forma sempre procurarão nos exasperar e nos derrubar com os seus relatórios. E Satanás sempre procurará enviar suas correspondências a nós através destes seus mensageiros. O fofoqueiro é um incendiário. Ele ativa o carvão da contenção para nos indispor com os homens. O orgulho deve ser mortificado porque é a humildade a solda que une os crentes em paz. A inveja deve ser também mortificada porque a paz não pode habitar juntamente com este ocupante. 67 Nós não devemos somente abandonar estes pecados que são contrários à paz, como devemos nos esforçar para obter aquelas coisas que conduzem à paz, e dentre estas podemos destacar: A fé, porque ela realiza aquilo que a Palavra nos ordena. A Palavra diz em II Cor 13.11: ”vivei em paz”, e pela fé nós somos habilitados a crer e a obedecer tal ordenança. Podemos destacar também a prática da comunhão cristã que nos ajuda a vivermos em paz uns com os outros. Não devemos também nos concentrar nas falhas dos outros, mas nas graçasdeles. Não há nenhuma perfeição aqui neste mundo. Em vez de ressaltarmos as fraquezas deles devemos voltar nossa atenção para as suas virtudes. Devemos também orar para que Deus envie o Espírito da paz aos nossos corações. Oremos para que o Senhor extinga o fogo da contenda e acenda o fogo da compaixão em nossos corações. Os cristãos não devem ser apenas pacíficos, mas pacificadores, ou seja, eles devem levar outros a estarem em paz. Eles devem ser instrumentos da consolação do Espírito para trazer alívio aos corações atribulados. Eles devem ser o instrumento da reconciliação entre os pecadores e Deus, e da reconciliação entre irmãos. Esta é uma tarefa difícil mas que sempre contará com a bênção de Deus. Deus abomina os semeadores de discórdias entre irmãos, como se vê em Pv 6.19. As divisões obstruem o progresso do evangelho. Mas a obra de Deus avançará onde houver unidade e paz. Aquele que semeia paz colherá paz. O pacificador morrerá em paz porque levará uma boa consciência com ele e deixará um bom nome atrás de si. Os pacificadores serão chamados filhos de Deus e nisto está o privilégio glorioso dos santos. Aqueles que fizeram a paz deles com Deus e labutaram para fazer a paz entre seus irmãos terão esta grande honra conferida a eles, a de serem chamados filhos de Deus. Eles serão reconhecidos como sendo da mesma disposição e natureza de Deus, semelhantes a Ele, seus imitadores amados que alcançaram o testemunho de Lhe terem agradado. Pelo seu procedimento pacífico e pacificador serão reconhecidos como sendo verdadeiramente filhos de Deus. Esta é então a marca essencial de um filho de Deus, a saber, aqueles que têm paz com Ele e com seus irmãos. 68 E devemos destacar a honra do nome dos filhos de Deus, porque eles são preciosos para o Pai deles. Deus os olha como pessoas honradas. O nome deles é precioso. As orações deles são preciosas. As lágrimas deles são preciosas. Os filhos de Deus têm títulos de honra. Eles são chamados de reis em Apo 1.6. A excelência da terra no Sl 16.3. Vasos de honra em II Tim 2.21. O estado dos filhos de Deus é mais excelente e honrado do que o estado de Adão quando estava vestido de inocência no Éden, porque apesar de glorioso era mutável, e foi logo perdido, mas os filhos de Deus por adoção estão num estado inalterável, pela impossibilidade de caírem da posição de sua filiação. É prometido a eles que serão seguramente como os anjos eleitos do céu. Tal como os anjos eleitos, jamais serão lançados fora da presença de Deus por causa da eleição dos crentes, que foi conhecida por Deus antes mesmo da fundação do mundo. As correções divinas às quais eles estão submetidos não são para a confirmação da adoção deles como filhos, senão a prova do amor de Deus para com eles, que os está aperfeiçoando para poderem experimentar da Sua própria santidade, este fruto maravilhoso da árvore da vida celestial. Um dos grandes privilégios da adoção é que se nós somos filhos, então Deus será paciente com muitas fraquezas. Um pai é muito paciente com um filho que ele ama. Ele os poupará ainda que não encubra o mal que eles venham a praticar. Ele não tomará vingança contra eles, mas terá piedade. Um pai se esforça para livrar os seus filhos do mal. E Deus move o céu e os anjos para a proteção dos seus filhos, quer dos males externos, quer do mal em seus corações. E sendo filhos somos herdeiros de Deus e de todas as Suas boas promessas, como se vê em Hb 6.17. E se somos filhos, teremos sempre a bênção do nosso Pai celestial. E os filhos de Deus não podem perecer eternamente porque a justiça de Deus está satisfeita quanto aos pecados deles. O sangue de Cristo é o preço que foi pago para que a justiça ficasse completamente satisfeita. Assim, esta bênção da salvação eterna é segura para os crentes verdadeiros, por causa da eleição deles, mas um viver abençoado neste 69 mundo é sempre condicional à obediência do crente à verdade, porque Deus mesmo dispôs esta verdade para incentivar os Seus filhos à santificação das suas vidas. De maneira, que ninguém espere um viver abençoado neste mundo, caso não esteja vivendo em conformidade com a vontade de Deus. Nós vamos proceder ao comentário relativo à oitava e última bem- aventurança citada por Jesus em Mateus 5.10, de que bem-aventurados são os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus.”. Nesta última bem-aventurança Jesus nos leva a considerar o custo da vida cristã. Nós teremos lágrimas de arrependimento e o sangue da perseguição, mas nós vemos aqui um grande encorajamento para nos impedir de desfalecer no dia da adversidade, porque nos é prometida a coroação no Seu reino celestial. A verdadeira piedade será perseguida. E é por isso que entramos no reino de Deus através de muitas tribulações como se afirma em At 14.22. Lutero disse apropriadamente que Cristo morreu para tirar a maldição de nós, mas não a cruz. Os santos não têm nenhuma promessa nas Escrituras que seriam livrados das provações. Embora sejam mansos, misericordiosos, puros de coração e pacificadores, a devoção deles não os protegerá de sofrimentos. A palavra grega para perseguir significa “vexar, molestar, fazer fugir, procurar a morte”. Há vários tipos de perseguição. Ela pode ser física e espiritual. Mas a sua causa e base geralmente serão ocasionadas pela perseguição do erro à verdade. Deus tem propósitos santos e sábios nas perseguições que permite que venham sobre os seus filhos. As provações refinam a fé dos crentes e distingue os verdadeiros santos dos hipócritas, porque somente uma fé genuína não é destruída pelas tribulações. Deus permite que seus filhos passem pelo forno das provações para que os seus corações sejam purificados. Ele remove as escórias do orgulho, impaciência, amor ao mundo e tudo aquilo que é contrário à santidade. 70 Estas perseguições decorrem sobretudo do fato de que há uma inimizade entre a semente da mulher e a semente da serpente. As tempestades de perseguições caem principalmente sobre os ministros do evangelho porque eles precisam ser mais refinados do que os demais crentes por conta do ofício sagrado que lhes foi confiado de apascentarem o rebanho do Senhor. Especialmente os ministros devem destruir o reino de Satanás e ele cuspirá todo o seu veneno neles. Se nós pisamos na cabeça do diabo ele nos ferirá o calcanhar. E o trabalho dos ministros é o de tirar as pessoas de Deus das garras do diabo. Assim, um pastor fiel sempre sofrerá provações e oposições. Agora, esta perseguição e sofrimento é o que torna um homem bem- aventurado. Não a perseguição pelo fato de ser um malfeitor, mas por ser um amante da justiça divina. É quando sofremos por causa do nosso amor à justiça, na defesa e pregação da verdade, no bom combate da fé, que somos bem- aventurados. Estes guerreiros santos que defendem a causa da justiça de Cristo conquistarão o reino dos céus. Quando há fins bons em nosso sofrimento, pelos quais nós possamos glorificar a Deus, nós poderemos e daremos com isto, testemunho da verdade e mostraremos nosso amor a Cristo. Não há, neste tipo de sofrimento, no dizer do apóstolo, em I Pe 4.16, do que se envergonhar. Um amor verdadeiro não esfria e não recua por causa das aflições quanto ao ser amado. Ao contrário ele se mostra verdadeiro e fiel na sua perseverança muito mais nestas horas difíceis. O nosso relacionamento com o Senhor é da qualidade e nível de um matrimônio. E nossa união a Ele está sendo provada em todas as circunstâncias. Jesus nos deixou o legado da paz, mas também o das aflições, para que esta paz seja gloriosa, porque é dada sobrenaturalmente por Ele a nós em meio às aflições. Assim a Sua vitória triunfa sobre todas as circunstâncias difíceis que possamos experimentar. A justiça de Cristo com a qual os crentes estão vestidos, e a justiça que a graça tem implantado neles e que se manifesta nas suas boas obras darão ocasião a que sejam perseguidos poraqueles que são contrários à verdade e que não amam a luz, senão as trevas. 71 Há portanto um combate estabelecido, não propriamente contra a carne e o sangue, mas contra os poderes das trevas. E o medroso não está habilitado a lutar as guerras de Cristo. Um homem possuído de temor não consulta o que é melhor, mas o que é mais seguro. Para poder salvar a sua pele e propriedade ele agirá contra a sua própria consciência. O temor fará o pecado parecer pequeno e o sofrimento grande. O medo enfraquece e lança fora a coragem. O temor é a raiz da apostasia. Então Cristo exorta os crentes a lançarem fora o medo e estarem prontos a sofrerem por amor à justiça. A causa do evangelho deve triunfar ainda que seja necessário ser escrita a vitória com o derramamento do sangue dos crentes pelos seus perseguidores. O bom soldado de Cristo suporta o sofrimento como se afirma em II Tim 2.3; sofrimento este que lhe sobrevém no bom combate da fé. Jesus nos exorta à fidelidade mesmo em face da morte porque nos tem prometido a coroa da vida em Apo 2.10. Mas é preciso que um crente aprenda primeiro a negar-se a si mesmo, ou seja, a negar o seu ego, antes que ele possa carregar a cruz. O eu se levantará contra a cruz, mas um ego negado não poderá nos impedir de carregá-la e o eu será definitivamente crucificado por ela. O velho homem detesta a cruz, mas a nova criatura a ama e não se opõe a ela, e a carrega voluntariamente, assim como Jesus carregou a Sua cruz. Pela fé nós podemos resistir até o sangue como se vê em Hb 11.34. A fé é uma graça vitoriosa. A fé une o espírito a Cristo e é esta Cabeça santificada que dá força aos Seus membros, de modo que tudo podemos em Jesus que nos fortalece. Deus prometeu estar com os santos nos seus sofrimentos. Ele fez promessas de libertação de todas as tribulações dos justos. Ele está no controle de todas as perseguições que eles possam sofrer e nada lhes sucederá em sua fidelidade a Deus, sem que Ele o permita. Assim, em tudo o que têm que sofrer, devem aprender a ver a mão do Senhor em tudo, e a esperar nEle, enquanto devem prosseguir adiante fazendo a Sua santa vontade. Aquele que recusa sofrer perseguição nunca será livre de sofrer, pois terá sofrimentos internos de consciência, e em se tratando de incrédulos, terão que padecer um sofrimento no fogo eterno. 72 Estes sofrimentos presentes não podem impedir um homem de ser abençoado. Muitos julgam que bem-aventurados são os ricos e os que não sofrem, mas Jesus diz que bem-aventurado são os que sofrem por causa da justiça, pois isto comprova que de fato estão do Seu lado, que eles se converteram das trevas para a luz, e figuram agora entre aqueles que serão coroados no céu. Por isso Tiago diz que é bem-aventurado aquele que suporta a tentação em Tg 1.11,12. E Pedro diz em I Pe 3.14 que se alguém sofre por causa da justiça, é feliz. Não receberemos nossas coroas por causa dos nossos sofrimentos, senão por causa de Cristo e da Sua graça, mas nossos sofrimentos estabelecerão os diferentes graus de glória de nossas coroas e tronos. Os tronos mais elevados do Seu reino, Cristo tem reservado para os Seus mártires. Há pois grande recompensa em sofrer por amor ao evangelho e por Cristo. Os versos 11 e 12 são uma explicação da bem-aventurança do verso 10: “11 Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguiram e, mentindo, disserem todo mal contra vós por minha causa. 12 Alegrai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus; porque assim perseguiram aos profetas que foram antes de vós.” (Mt 5.11,12). O Cristão e a Perseguição Por D. M. Lloyd Jones (traduzido e adaptado por Silvio Dutra, assim como todas as demais citações de Lloyd Jones) O texto de Mateus 5.11,12 é uma espécie de explicação da bem- aventurança do verso 10 de que bem-aventurados são os perseguidos por causa da justiça. O crente é perseguido porque é uma certa classe de pessoa e atua de uma certa forma. Esta bem-aventurança segue imediatamente à dos pacificadores. O crente é perseguido porque é pacificador. 73 Ser justo, praticar a justiça, significa na realidade ser como o Senhor Jesus Cristo. Portanto, são bem-aventurados os que são perseguidos por serem como Ele. Os que são como Ele sempre sofrem perseguição. O Senhor mesmo nos disse que deveríamos saber que o mundo Lhe havia aborrecido, antes de aborrecer a nós, seus discípulos. E se caso fôssemos do mundo, o mundo amaria o que era seu, porém não somos do mundo, porque Ele nos escolheu do mundo, e é por isso que o mundo nos aborrece. E que por não serem os servos maiores do que o seu senhor, por isso assim como Lhe haviam perseguido, também nos perseguiriam (João 15.18-20). Paulo disse que todos os que quiserem viver piedosamente em Cristo Jesus padecerão perseguição (II Tim 3.12). Este é o ensino. Vejamos como se coloca em prática em toda a Bíblia. Por exemplo, Abel foi perseguido por seu irmão Caim. Moisés foi sujeito a cruel perseguição. Vejamos a forma com que Davi foi perseguido por Saul, e a terrível perseguição que tiveram que sofrer Elias e Jeremias. Recordam a história de Daniel, e como foi perseguido? Cada um destes homens mais notáveis do Antigo Testamento referenda o ensino bíblico. Foram perseguidos, não porque foram de caráter difícil, nem por serem demasiado zelosos, senão simplesmente por serem justos. No Novo Testamento encontramos exatamente o mesmo. Pensem nos apóstolos, e na perseguição que tiveram que suportar. Me pergunto se alguém tem sofrido mais do que o apóstolo Paulo, apesar de sua amabilidade, gentileza e justiça. Leiam as descrições que faz de seus sofrimentos. Não surpreende que tenha dito que todos os que querem viver piedosamente em Cristo Jesus padecerão perseguição. Ele a conheceu e sofreu. Porém, não cabe dúvida que o exemplo supremo é o próprio Senhor. Ah! Nós o temos em toda sua perfeição absoluta, total, com toda sua amabilidade e mansidão, de quem se pôde dizer que não esmagaria a cana quebrada, e que não apagaria o pavio fumegante. Nunca ninguém foi tão amável e gentil. Porém, vejam o que lhe sucedeu e o que lhe fez o mundo. Leiam também a ampla história da Igreja Cristã e encontrarão que essa afirmação se tem cumprido sem cessar. Leiam as vidas dos mártires, de John Huss, dos pais protestantes. Leiam também a história moderna e, observem a perseguição que sofreram os líderes do avivamento evangélico do século dezoito. Não muitos têm conhecido o que é sofrer como Hudson Taylor, missionário à China, que viveu neste 74 século. Soube o que é viver submetido a violenta perseguição. É uma comprovação do que diz esta bem-aventurança. Quem persegue os justos? Quando alguém lê as Escrituras e a história da Igreja, descobre que a perseguição não somente é levada a cabo pelo mundo. Algumas perseguições mais violentas que os justos têm sofrido são das mãos da própria Igreja, das mãos de gente religiosa. Frequentemente tem sido realizada por crentes nominais. Tomemos o exemplo do próprio Senhor. Quem foram seus principais perseguidores? Os fariseus e os escribas, e os doutores da lei. Aos primeiros cristãos também, os que mais lhes perseguiram foram os judeus. Depois, leiam a história da Igreja, e verão a perseguição por parte da Igreja Católica a alguns daqueles homens da Idade Média que haviam visto a verdade e que trataram de vivê-la pacificamente. Como os perseguiram as pessoas religiosas nominais! Assim foi também com a história dos primeiros puritanos. Este é o ensino da Bíblia, e a história da Igreja a tem corroborado, que a perseguição pode chegar, não somente de fora como também de dentro. O cristianismo formal é frequentemente o maior inimigo da fé genuína. Porém vou fazer outra pergunta. Por que são perseguidos assim os justos? E sobretudo, por que são perseguidos os justos e não os bons e os nobres? A resposta, me parece, é muito simples. Aos bons e aos nobres se persegue muito poucas vezes porquea todos nos parece que são como nós mesmos em nossos melhores momentos. Pensamos: “eu também posso ser assim caso me proponha a sê-lo”, e os admiramos porque é uma maneira de acharmos a nós mesmos. Porém, os justos são perseguidos porque são diferentes. (levemos também principalmente em conta que há poderes espirituais malignos operando contra os filhos de Deus, e os demônios sabem reconhecer perfeitamente qual é a diferença essencial entre uma pessoa justificada pela fé, agora herdeira do céu, e aqueles que parecem justos aos olhos dos homens e a seus próprios olhos, e que na verdade estão ainda condenados ao inferno de fogo – nota do tradutor). Por isso os fariseus e os escribas odiaram a nosso Senhor. Não foi porque era bom, foi porque era diferente. Havia algo nEle que os condenava. Sentiam que Sua justiça lhes fazia parecer muito pouca coisa. E isto lhes desagradava. Os justos talvez, não digam nada; não condenam os ímpios por palavras, porém, ser o que são, de fato lhes condena, faz com que se sintam infelizes. Por isso os ímpios odeiam os justos e procuram encontrar faltas neles. O povo diz: “eu creio que se seja cristão, porém isso é 75 demasiado, é ir muito longe”. Esta foi a explicação para a perseguição de Daniel. Sofreu tanto porque era justo. Porém diziam: “Este homem nos condena com o que faz; temos que apanhá-lo em alguma falta”. Este é sempre o problema, e foi a explicação também no caso de nosso Senhor. Os fariseus o odiavam por sua santidade, justiça e verdade total e absoluta. É óbvio, pois, que de tudo isso se pode sacar certas conclusões. Em primeiro lugar, nos fala muito acerca de nossas ideias a respeito da Pessoa de Jesus Cristo. Se nosso conceito dEle é tal que o vejamos como alguém a quem os não cristãos têm que admirar e aplaudir, estamos equivocados. O efeito de Jesus sobre seus contemporâneos foi que muito lhe apedrejaram, lhe odiaram, e por fim decidiram matá-lo, preferindo a um assassino em vez dEle. Este é o efeito que Jesus sempre produz no mundo. Porém há outras ideias acerca dEle. Há pessoas mundanas que nos dizem que admiram a Jesus, porém é porque não o têm visto jamais. Se o tivessem visto, o odiariam como o odiaram Seus contemporâneos. Ele não muda; o homem sim, muda. Tenhamos pois, cuidado de que nossas ideias acerca de Cristo sejam tais que o homem natural não Lhe possa admirar ou aplaudir facilmente. Isto conduz à segunda conclusão. Esta bem-aventurança põe à prova nossas ideias acerca do que é o crente. O crente é como seu Senhor, e por isso o Senhor disse dele: “Ai de vós quando os homens falarem bem de vós! Porque assim fizeram seus pais com os falsos profetas” (Lc 6.26). E contudo, não é nossa ideia de que um crente perfeito é quem seja uma pessoa amável, popular, que nunca ofende aos demais, com quem é fácil de entender-se? Porém se esta bem-aventurança é verdade, esse não é o verdadeiro crente, porque o cristão de verdade é alguém ao qual nem todo mundo louva. Não louvaram a nosso Senhor, e nunca louvarão a quem é como Ele. A seguinte conclusão se refere ao homem natural, não regenerado, e é esta. A mente natural, como diz Paulo, é inimizade contra Deus. Ainda que fale de Deus, na realidade o odeia. E quando o Filho de Deus veio à terra o odiaram e crucificaram, e assim segue sendo a atitude do mundo em relação a Ele. Isto nos leva à última conclusão. O novo nascimento é uma necessidade absoluta se alguém quer chegar a ser um crente. Ser crente em última instância, é ser como Cristo, e ninguém nunca pode ser como Cristo sem mudar completamente. Devemos libertar-nos da velha natureza que 76 odeia a Cristo e à justiça; necessitamos de uma nova natureza que amará estas coisas e que O amará, e com isto, chegará a ser como Ele. Finalmente, façamos a nós esta pergunta: Sabemos o que é ser perseguido por causa da justiça? Para chegar a ser como Cristo temos que chegar a ser luz; a luz sempre dissipa as trevas, e por isso as trevas odeiam a luz. Não temos de ofender; não temos de ser néscios; não temos de ser temerários; nem sequer temos de exibir nossa fé. Não temos de fazer nada que atraia perseguição. Porém, por ser simplemente como Cristo a perseguição será inevitável. Todavia, isto é o glorioso. Alegremo-nos disso, dizem Pedro e Tiago. E nosso Senhor mesmo diz que somos bem- aventurados, felizes, se somos assim. Porque se alguém é perseguido por causa de Cristo, por causa da justiça, em certo sentido, tem conseguido uma prova final do fato de que é um cristão, cidadão do reino dos céus. Porque a vós, escreve Paulo, não somente é concedido que creiais em Cristo, mas que padeçais por Ele (Fp 1.29). E contemplo a esses primeiros cristãos aos quais as autoridades perseguiram e lhes ouço darem graças a Deus porque por fim lhes havia considerado dignos de sofrer por seu nome. Queira Deus, por meio de seu Santo Espírito, dar-nos uma grande sabedoria, discrição, conhecimento e compreensão em tudo isto, a fim de que se tivermos que chegar a sofrer, possamos estar seguros de que é por causa da justiça, e possamos ter o consolo pleno desta gloriosa bem- aventurança. Alegria na Tribulação Não há dúvida que Jesus sublinhou que o crente é diferente. Ele mesmo disse, como recordam que: “Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz à terra, mas espada” (Mt 10.34). Em outras palavras: “O efeito de meu ministério será divisão, inclusive entre pai e filho, e mãe e filha, e os inimigos do homem serão os da sua própria casa”. O evangelho de Jesus Cristo cria uma divisão bem marcada entre o que é crente e o que não é. O próprio não crente o demonstra perseguindo o crente. A forma como o persegue não importa; o fato é que seja na forma que for, vai fazê-lo. O não crente tem antagonismo ao crente. Por isso, como vimos, a última bem-aventurança é uma pedra de toque muito sutil e profunda do crente. 77 Há algo no caráter do crente, por ser semelhante a nosso Senhor, que sempre atrai perseguição. Ninguém tem sido perseguido neste mundo como foi o próprio Filho de Deus, e o servo não é maior do que o seu senhor. Por isso tem o mesmo destino. O não crente tende a perseguir e a dizer toda classe de mentiras contra o crente. Por que? Porque é basicamente diferente, e o não crente o vê. O crente não é como os demais somente com alguma mínima diferença, mas é essencialmente diferente. Tem uma natureza diferente e é um homem diferente. (Esta diferença entre o crente e o não crente não é causada por Deus, porque Ele não faz acepção de pessoas, e é Seu desejo que todos se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade. Não é portanto Deus, quem impede qualquer pessoa de vir a Cristo para ser transformada por Ele num crente. É a própria pessoa que se endurece e que resiste a se submeter ao Senhor. Não reconhecendo portanto, que o propósito da sua criação por Deus foi para que O servisse e adorasse, em plena comunhão com Ele, baseada no amor. No entanto, como Deus é luz e santo, não é possível ter tal comunhão com Ele caso não permitamos o trabalho da graça no nosso coração, lavando-nos de nossos pecados e transformando-nos à semelhança de Jesus, para que possamos ser reconciliados em amizade e amor com o nosso Criador –nota do tradutor) O segundo princípio é que a vida do crente é dominada por Jesus Cristo, pela lealdade a Jesus, pela preocupação de tudo fazer por Cristo. Por que os perseguem? Porque vivem por Cristo. O objetivo de todo crente deveria ser viver por Cristo e já não por si mesmo. As pessoas andam em desacordo e se perseguem mutuamente, inclusive quando não são crentes, porém, não é por causa de Cristo. Todavia, os crentes não devem se sentir ofendidos pelo que lhes fazem. E devemos acrescentar algo a isto, porque estas coisas são muito sutis. Se conhecemos algo da psicologia de nossa alma e da vida cristã – empregando o termo “psicologia” em seu sentido verdadeiro e não no seu sentido moderno, pervertido – devemos dar-nosconta de que há de se dar um passo além. Nunca devemos deixar que a perseguição nos deprima. Não que se sinta desprezo por quem nos persiga, mas podemos dizer: “Por que deve ser assim? Por que me trata deste modo?” Em consequência, um sentimento 78 de depressão parece se apoderar da vida espiritual e se tende a perder o rumo da vida cristã. Isto é algo que nosso Senhor também censura. Ele diz em forma positiva e clara: “Regozijai-vos. Alegrai-vos”. Temos visto no estudo das bem-aventuranças que ninguém pode fazer-se cristão com seus próprios esforços. Alegrar-se pelas perseguições sofridas é completamente impossível para o homem natural. Nem sequer pode dominar o espírito de vingança. Somente o crente pode fazê-lo, não por causa do seu próprio poder, mas pela vida de Cristo que se manifesta nele. O crente não se alegra pela perseguição propriamente dita. Ao contrário, ela é algo pelo qual lamentar. A perseguição é algo que o crente sempre deve lamentar, porque causa dores, em razão de que homens e mulheres debaixo do domínio do pecado e de Satanás, se conduzem de forma muito inumana e maligna. Por que então é ordenado pelo Senhor que o crente se alegre na perseguição? A primeira razão, como já temos dito, é porque a perseguição que é por causa de Cristo, prova de quem é e para o que é. “Alegrai-vos porque grande é o vosso galardão nos céus, porque assim perseguiram aos profetas que foram antes de vós”. Por isso, se vêm que são perseguidos e que são ditas coisas más de vocês, por causa de Cristo, saibam que são como os profetas, que foram servos de Deus, e que agora estão se regozijando na glória de Deus. Este é o motivo porque temos que nos alegrar. Esta é uma das formas em que nosso Senhor converte tudo em vitória. Em certo sentido, faz inclusive com que o próprio diabo seja causa de bênção. O diabo, por meio de seus agentes persegue ao crente e o faz infeliz. Porém se considerarmos isto numa perspectiva adequada, encontramos razão para nos alegrarmos. Então podemos dizer ao diabo: “graças a você, está sendo demonstrado que sou filho de Deus, porque se não fosse, nunca me perseguirias assim por causa de Cristo, e não haveria em mim poder para me alegrar em meio a tais perseguições.” Logo após as bem-aventuranças Jesus disse que os crentes são o sal da terra e a luz do mundo (v. 13 a 16). Para comentar este tema, continuaremos transcrevendo adaptações de sermões que traduzimos, de autoria de Lloyd Jones. 79 O SAL DA TERRA “13 Vós sois o sal da terra; mas se o sal se tornar insípido, com que se há de restaurar-lhe o sabor? para nada mais presta, senão para ser lançado fora, e ser pisado pelos homens. 14 Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte; 15 nem os que acendem uma candeia a colocam debaixo do alqueire, mas no velador, e assim ilumina a todos que estão na casa. 16 Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras, e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus.” (Mt 5.13- 16) Chegamos agora a uma nova seção do Sermão do Monte. Nos versículos 3 a 12 de Mateus 5, nosso Senhor e Salvador tem esboçado o caráter do cristão. Aqui no versículo 13 dá um passo mais além e aplica sua descrição. Uma vez visto o que é o crente, agora passamos a considerar como o crente deveria manifestar o que é. Ou, se preferem, havendo dado conta do que somos, agora devemos passar a considerar o que devemos ser. O crente não é alguém que viva isolado. Está no mundo, embora não pertença a ele, e tem relação com o mundo. Na Bíblia sempre se encontram as duas coisas juntas. É dito ao crente que não deve ser do mundo nem em ideias, nem em perspectiva, porém, isto nunca significa que se separe do mundo. Esse foi o erro do monasticismo, o qual ensinava que viver a vida cristã significava, necessariamente, separar-se da sociedade e viver uma vida de contemplação. Isto é negado constantemente na Escritura, sobretudo neste versículo que temos começado a estudar, onde nosso Senhor chega às conclusões do que havia dito anteriormente. Notem que em I Pe 2, Pedro faz exatamente o mesmo. Diz: “Mas vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido, para que anuncieis as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz;” (I Pe 2.9). Em nossa passagem diz-se exatamente o mesmo. Somos pobres de espírito, misericordiosos, mansos, temos fome e sede de justiça, a fim de que, num sentido, possamos ser o sal da terra. Passamos, pois, da contemplação do caráter do crente à consideração da função e propósito do crente neste mundo, segundo a mente e propósito de Deus. 80 Em outras palavras, nestes versículos que seguem imediatamente, nos é explicado de forma muito clara a relação do crente com o mundo em geral. Em certo sentido podemos dizer que esta questão da função do crente no mundo é hoje em dia um dos assuntos mais prementes com o qual se enfrenta tanto a igreja como cada um dos crentes dos nossos dias. É claro que trata de um tema muito vasto, e em muitos aspectos aparentemente difícil, porém a Escritura trata do mesmo com muita clareza. No versículo que estamos estudando temos uma exposição muito característica do ensino bíblico típico relativo ao mesmo. Parece-me que é importante devido à situação do mundo. Como vamos estudar os versículos 11 e 12, a muitos de nós pode muito bem parecer que seja um problema mais difícil. Vemos aí que é provável que soframos perseguição, à medida que o pecado que há no mundo, se estenda mais, e é provável que a perseguição à igreja seja incrementada. De fato, como sabem, há muitos crentes no mundo de hoje que já estão passando por isso. Sejam quais forem, pois, as circunstâncias nas que nos achemos, nos convém pensar nisto com muito cuidado, a fim de que saibamos orar adequadamente por nossos irmãos e ajudá-los com conselhos e instruções. À parte do fato da perseguição, contudo este problema é premente, porque se nos apresenta no país nesta hora. Qual deve ser a relação do crente com a sociedade e com o mundo? Estamos no mundo, não podemos sair dele, porém o problema vital é: que podemos fazer como crentes numa situação como essa? Sem dúvida estamos diante de um problema essencial, que devemos analisar. Neste versículo temos a resposta ao mesmo. Antes de tudo, consideremos o que diz o texto sobre o mundo, e logo o que diz acerca do crente no mundo. “Vós sois o sal da terra”. Isto não somente descreve o crente, descreve indiretamente o mundo no qual se acha o crente. Equivale neste lugar à humanidade em geral, aos que não são crentes. Qual, pois, é a atitude bíblica diante do mundo? Não há imprecisão nenhuma quanto ao ensino bíblico a este respeito. Chegamos, de muitas maneiras, ao problema crucial do século vinte, que é indubitavelmente um dos períodos mais interessantes que o mundo tem 81 conhecido. Não duvido em afirmar que nunca houve um século que tenha demonstrado tão bem como é atual a verdade do ensino bíblico. É um século trágico, e o é sobretudo porque a vida do mesmo tem destruído completamente a filosofia preferida que havia idealizado. Como sabem, nunca houve um período do qual se houvesse esperado tanto. É realmente patético ler os prognósticos dos pensadores (assim chamados), filósofos, poetas e líderes até finais do século dezenove. Quão triste é ver este otimismo, fácil e confiante que tiveram, tudo o que esperavam do século vinte, a época dourada que iria chegar. Tudo se baseava na teoria da evolução, não somente no sentido biológico, como também no filosófico. A ideia principal era que toda a vida progrediria, se desenvolveria, avançaria. Isto nos era dito num sentido biológico; o homem havia procedido do animal e havia chegado a uma certa fase de desenvolvimento. Porém, este progresso era enfatizado mais em função da ideologia, do modo de pensar e perspectivas do homem. Não iria mais fazer guerras, muitasenfermidades seriam vencidas, o sofrimento iria não somente diminuir, senão desaparecer. Iria ser um século surpreendente. A maior parte dos problemas seria resolvida, porque o homem havia finalmente começado a pensar. As massas, por meio da educação, não iriam mais se entregar à embriaguez e ao vício. E como as nações iriam aprender a pensar e a se reunir para conversar em vez de começar a guerrear, todo o mundo iria se converter rapidamente num paraíso. Não estou caricaturizando a situação, porque se cria em tudo isto com muita confiança. Por meio de leis parlamentares e reuniões internacionais iriam resolver todos os problemas, agora que o homem havia começado por fim a usar a cabeça. Não muitos dos que vivem no mundo de hoje, porém, creem nisto. Alguma vez ou outra, contudo, aparece algum elemento deste ensino, mas já não é algo sobre o que haja o que se discutir. Recordo que faz muitos anos quando comecei a pregar, que dizia isto mesmo em público, e frequentemente me tinham por uma pessoa rara, por ser pessimista, por ser alguém que seguia uma teologia que havia saído de moda. Porque o otimismo liberal prevalecia naquela ocasião, apesar da primeira guerra mundial, todavia já não é assim. Se tem reconhecido a falácia desse modo de pensar e aparecem livros que atacam toda essa ideia confiante do progresso inevitável. 82 A Bíblia sempre tem ensinado isto, e nosso Senhor o diz com perfeição quando afirma: “vós sois o sal da terra”. Que implica isto? Implica com clareza a corrupção da terra, implica uma tendência à contaminação a se converter em algo fétido e podre. É isto o que a Bíblia diz acerca do mundo. É um mundo caído, pecaminoso e mal. Tende ao mal e às guerras. É como a carne que tem tendência a se decompor. É algo que somente se pode conservar em bom estado com a ajuda de algum preservativo ou antisséptico. Como consequência do pecado e da queda, a vida no mundo em geral tende a se decompor. Essa, segundo a Bíblia, é a única ideia adequada que se pode ter da humanidade. Longe de haver na vida e no mundo uma tendência a ascender, o que se dá é o oposto. O mundo, por si mesmo, tende a se infectar. Há nele germes do mal, micróbios, agentes infecciosos no próprio corpo dos homens que a não ser que sejam controlados, causam enfermidades. Isto é algo obviamente básico e primordial. Nossa ideia do futuro depende disso. Se alguém tem isto diante de si, então entenderá muito bem o que tem sucedido neste século. Num sentido, portanto, nenhum crente deveria se sentir surpreendido o mínimo que seja pelo que vem ocorrendo. Se essa posição bíblica é acertada, então o surpreendente é que o mundo seja todavia bom, porque em sua vida e natureza mesmas há tendência à putrefação. A Bíblia contém muitas ilustrações disso. Sua manifestação aparece já no primeiro livro. Deus havia feito o mundo perfeito, porém devido ao pecado, este elemento pecaminoso e contaminador começou a se fazer ver. Leiam o capítulo sexto de Gênesis e verão o que Deus diz: “Não contenderá o meu Espírito com o homem para sempre”. A contaminação havia chegado a ser tão grande, que Deus teve que enviar o dilúvio. Depois dele pôde começar de novo, porém este princípio mau seguiu se manifestando até chegar a Sodoma e Gomorra com seus incríveis pecados. Isto é o que a Bíblia nos apresenta sem cessar. Esta tendência persistente à putrefação sempre se manifesta. É evidente, pois, que este fato deve dirigir nosso pensamento e nossas previsões relativas à vida neste mundo, e relativas ao futuro. O que muitos se perguntam hoje é: Que nos espera? Se não colocamos este ensino bíblico no centro do nosso pensamento, nossas profecias serão necessariamente falsas. O mundo é mau, pecador e mostrar-nos otimistas em relação ao mesmo não é somente totalmente antibíblico senão que vai contra a tudo o que a própria história nos ensina. 83 Passamos contudo, ao segundo aspecto desta afirmação porque ela é mais importante. Que se diz ao crente que está no mundo, ao tipo de mundo a que temos nos referido? Se diz que tem que ser como sal “vós, somente vós” – porque isto exige o texto – “sois o sal da terra”. Que nos diz isto? Primeiro é o que temos recordado ao estudar as bem- aventuranças. Somos distintos do mundo. Não faz falta insistir nisto, porque é perfeitamente óbvio. O sal é essencialmente diferente daquilo em que é colocado, e num sentido exercita todas suas qualidades sendo diferente. Como diz nosso Senhor – “se o sal perder o seu sabor, com que se salgará? Não serve mais para nada, senão para ser lançado fora e pisado pelos homens”. A característica mesma da condição do sal indica uma diferença, porque um pouquinho de sal é percebido imediatamente, mesmo numa grande massa. A não ser que tenhamos uma ideia clara acerca disto, nem sequer podemos começar a pensar acertadamente sobre o que seja a vida cristã. O crente é diferente dos demais. É tão diferente como o é o sal da carne na qual ele é colocado. Esta diferença externa todavia tem que ser enfatizada e sublinhada. O crente não somente tem que ser diferente, tem que se gloriar nesta diferença. Tem de ser tão diferente dos demais como o Senhor Jesus Cristo foi no mundo em que viveu em seu ministério terreno. O crente é uma classe distinta, única, notável de pessoas, tem de haver nele algo que o distinga, e que se reconheça óbvia e claramente. Que cada um, pois, se examine. Porém, continuemos a considerar mais diretamente a função do crente. Nisto o problema se apresenta um pouco mais difícil e frequentemente discutível. Parece-me que a primeira coisa que o Senhor sublinha é que uma das funções principais do crente em relação à sociedade é negativa. Qual é a função do sal? Alguns dirão que é dar saúde, que dá vida e saúde, porém me parece que isto é uma ideia muito equivocada da função do sal. Sua missão não é dar saúde, é impedir a putrefação. A função principal do sal é preservar e atuar como antisséptico. Tomemos, por exemplo um pedaço de carne. Há certos germes em sua superfície que talvez tenham penetrado na mesma, vindos do próprio animal ou da atmosfera, e corre o perigo de apodrecer. A função do sal com o qual se cobre a carne é preservá-la contra estes agentes que tende a apodrecê-la. A função principal do sal, portanto, é negativa e não positiva. Este postulado é fundamental. Não é a única função do crente no mundo, 84 porque, como veremos adiante, também temos de ser a luz do mundo, porém, em primeiro lugar isto tem de ser nosso efeito como crentes. Pergunto-me: Quantas vezes pensamos sobre nós desta forma, como agentes do mundo com a função de prevenir este processo concreto de putrefação e decomposição? Outra função subsidiária do sal é dar sabor, ou impedir que os alimentos sejam insípidos. Esta é sem dúvida outra função do sal (se adequada ou não, não me compete discuti-la) e é muito interessante observá-la. Segundo esta afirmação, portanto, a vida sem o cristianismo é insípida. Não prova isto o mundo de hoje? Observemos a obsessão com prazeres. É evidente que a pessoa acha a vida monótona e aborrecida, de maneira que deve ir passando de um prazer a outro, porém o crente não necessita destes passatempos porque tem um sabor na vida – sua fé cristã. Se isto lhe falta, é porque o seu sal está perdendo o sabor, por sua negligência quanto à sua santificação e devoção ao Senhor, que é Aquele que salga a nós mesmos. Tiremos o cristianismo da vida e do mundo, e no que a vida tão insípida se converte, sobretudo quando alguém envelhece ou se encontra no leito de morte? Carece completamente de gosto, por isso os homens têm de se drogar de diferentes maneiras, ou com narcóticos, ou com música, ou com qualquer outra coisa deste mundo. O crente, pois, primeiramente e sobretudo, deveria ter essa função, porém como consegui-la? Aqui encontramos a resposta. Vou apresentá-la primeiro no que considero como ensino positivo do Novo Testamento. Depois poderemos examinarcertas críticas. Neste caso, creio que a distinção vital é entre a igreja como tal e o crente individual. Alguns dizem que os crentes deveriam atuar como sal da terra, por meio de pronunciamentos da Igreja quanto à situação geral do mundo relativamente a problemas políticos, econômicos e internacionais ou outros semelhantes. Dizem que o crente funciona como sal da terra nesta forma geral, por meio destes comentários acerca da situação do mundo. Agora, a meu juízo, esta é uma interpretação errônea do ensino bíblico. Desafiaria a qualquer um que me mostre este ensino no Novo Testamento. “Ah, dizem, encontra-se nos profetas do Antigo Testamento”. Sim, porém a resposta é que no Antigo Testamento a Igreja era a nação de Israel e não havia distinção entre Igreja e Estado. Os profetas teriam portanto que se dirigir à nação toda e falar acerca de toda a sua vida, porém a Igreja no Novo Testamento não está identificada com 85 nenhuma nação nem nações. A consequência é que nunca se encontra o apóstolo Paulo ou nenhum outro apóstolo que faça comentários acerca do governo do Império Romano; nunca os encontramos enviando resoluções à Corte imperial para que se fizesse isso ou aquilo. Não, nunca se encontra isto na Igreja, tal com aparece no Novo Testamento. Sugiro, portanto, que o crente tenha de funcionar como o sal da terra num sentido muito mais individual. Ele o faz com sua vida e conduta individual, sendo o que é em todos os âmbitos nos quais se encontre. Por exemplo, um grupo de pessoas talvez esteja falando de uma forma indigna. De repente um crente entra a formar parte do grupo e imediatamente sua presença produz efeito. Não diz uma palavra, porém os demais começam a mudar a forma de falar. Está atuando como sal e está controlando a tendência da putrefação e decomposição. Somente por ser crente, devido à sua vida e conduta geral já está controlando esse mal que estava se manifestando, como faz em todos os âmbitos e situações. Pode fazê-lo, não somente em sua condição privada em sua casa, no trabalho, na oficina, ou em qualquer lugar em que se encontre, senão também como cidadão no país em que vive. Aí se torna importante a diferença, porque nesta matéria tendemos a ir de um erro a outro. Alguns dizem: “Sim, tem toda a razão, não compete à Igreja como tal intervir em assuntos políticos, econômicos ou sociais. O crente não tenderia a se ocupar para nenhum destes assuntos, o crente não deve votar, não tem por que intervir no controle dos negócios e da sociedade”. Isto, segundo creio, é igualmente falacioso, porque o crente como indivíduo, como cidadão de um estado, tem de se preocupar com estas coisas. Pensem em grandes homens, como o Lord Shaftesbury e outros, os quais como cristãos e cidadãos, trabalharam tanto em relação à melhoria das leis e das condições do trabalho nas fábricas. Pensem em William Wilberforce e em todos os que se empenharam na abolição da escravatura. Como cristãos, somos cidadãos de um país e temos responsabilidade como tal, e por isso devemos atuar como sal indiretamente em muitos aspectos, porém isto é muito diferente de que a Igreja o faça. Alguém poderia perguntar: “Por que faz esta distinção?”. Quero responder esta pergunta. A missão principal da igreja é evangelizar e pregar o evangelho. Pensemos nisto. Se a Igreja cristã de hoje passasse a maior parte do tempo acusando o comunismo, parece-me que a consequência principal seria que os comunistas não escutariam a pregação do evangelho. Se a Igreja sempre acusa uma parte da sociedade, 86 estará fechando a porta da evangelização a esta parte. Se pegarmos a ideia que tem o Novo Testamento destes assuntos devemos crer que o comunista tem alma que deve ser salva igual a todo mundo. É minha missão, como pregador do evangelho e representante da Igreja, evangelizar aos homens de todas as classes e condições. Quando a Igreja começa a intervir em assuntos políticos, econômicos e sociais, se põem obstáculos à tarefa evangelística que Deus lhe tem designado. Já não poderia dizer que não conheço a ninguém segundo à carne, e por isso pecaria. Que cada indivíduo desempenhe seu papel como cidadão e permaneça no partido político que escolher. Isto terá que decidir como indivíduo. A Igreja como tal não tem de se preocupar com essas coisas. Nossa missão é pregar o evangelho e levar a mensagem de salvação a todos, e, graças a Deus, os comunistas podem se converter e serem salvos. A Igreja tem que se preocupar com o pecado em todas as suas manifestações, e o pecado pode ser tão terrível num capitalista como num comunista, num rico como num pobre, pode se manifestar em todas as classes sociais, em todos os tipos e grupos. Outra forma em que funciona este princípio pode ser vista no fato que, depois de cada avivamento e reforma na Igreja, toda a sociedade tem recolhido os benefícios. Leiam o relato dos grandes avivamentos e o verão. Por exemplo, no avivamento que ocorreu sob Richard Baxter em Kiderminster, na Inglaterra, no século XVII, não somente os crentes se avivaram, senão muitos que não eram crentes se converteram e entraram na Igreja. Além disso, toda a vida da cidade sentiu os efeitos; e o mal, o pecado e o vício se reduziram. Isto ocorreu porque a Igreja censurou estas coisas, não porque a Igreja persuadiu o Governo para que promulgasse leis, senão pela simples influência dos crentes. Assim tem sido sempre. Sucedeu o mesmo nos séculos XVII e XVIII e no começo deste século no avivamento que ocorreu em 1904-5. Os crentes, sendo o que devem ser, influenciam a sociedade de forma quase automática. Prova disto se encontra na Bíblia e também na história da Igreja. No Antigo Testamento, depois de cada reforma e avivamento houve benefícios gerais para a sociedade. Recordemos também a Reforma Protestante e veremos imediatamente que afetou a vida em geral. O mesmo é verdade quanto à Reforma Puritana. Não me refiro às leis do Parlamento que os Puritanos conseguiram promulgar, senão a sua forma geral de vida. Historiadores competentes estão de acordo em dizer que o que salvou este país de uma revolução como a que sofreu a França em fins 87 do século XVIII não foi senão o avivamento evangélico. E isto ocorreu não porque fizera algo diretamente, senão porque massas de indivíduos haviam se tornado cristãos e viveram esta vida melhor com uma perspectiva mais elevada. Toda a situação política percebeu os efeitos, e as grandes leis que se promulgaram no século passado se deveram sobretudo ao fato de que havia muitos cristãos no país. Finalmente, não é por acaso o presente estado da sociedade e do mundo uma prova perfeita deste princípio? Creio que é certo que nos últimos cinquenta anos a Igreja Cristã tem prestado mais atenção direta a assuntos políticos, econômicos e sociais que nos cem anos anteriores. Todos temos ouvido falar do significado social do cristianismo. As Assembleias Gerais de Igrejas e de distintas denominações têm enviado aos governos pronunciamentos e resoluções. Todos nos temos interessado muito pela aplicação prática, porém qual é o resultado? Ninguém pode discuti-lo. O resultado é que estamos vivendo numa sociedade que é muito mais imoral que há cinquenta anos, em que cada dia vão aumentando o vício e a violação da lei. Não está claro que ninguém pode fazer estas coisas senão na forma bíblica? Embora tentemos consegui-las diretamente através da aplicação de princípios, descobrimos que não podemos alcançá-lo. O problema principal é que há poucos crentes, e os que são crentes não são suficientemente salgados. Com isto não quero dizer “agressivos”, quero dizer crentes no sentido genuíno. Devo admitir também que não se pode dizer de nós que quando entramos numa casa, os ali presentes mudam logo em seguida na forma de falar e conversar, precisamente porque temos chegado. Aí é onde fracassamos lamentavelmente. Um só homem verdadeiramente santo irradia esta influência, o grupo em que se encontra sentirá sua influênciae presença. O problema é que o sal se tem tornado insípido em tantos casos; e não influímos os demais sendo santos na forma que deveríamos. Embora a Igreja faça grandes pronunciamentos acerca da guerra, da política e de outros temas importantes, o homem comum não se sente afetado; porém se temos num tribunal a quem seja um cristão verdadeiro cuja vida tenha sido transformada pela ação do Espírito Santo, este alguém afetará aos que o rodeiam. Assim, podemos atuar como sal da terra em tempos como os nossos. Não é algo que possa fazer a Igreja em geral, é algo que deve ser feito por cada crente individualmente. É o princípio de infiltração celular. Um pouco de sal produz efeito na grande massa devido à sua qualidade essencial que 88 de uma forma ou outra penetra tudo. Parece-me que este é o grande chamamento que nos fazem tempos como estes. Contemplemos a vida e a sociedade neste mundo. Não é evidente que esteja corrompida? Contemplemos a decomposição que se tem apoderado de todas as classes de pessoas. Contemplemos tantos divórcios e separações, tantas chacotas que fazem com o que é mais santo na vida, esse aumento da embriaguez e desperdício. Estes são os problemas, e é evidente que não se pode solucionar por meio de leis. Os periódicos não parecem nem tocar nisso. De fato nada o resolverá, salvo a presença de um número cada vez maior de crentes que controlem a putrefação, a contaminação, a decomposição, o mal e o vício. Cada um de nós em nosso círculo, pode controlar este processo, e assim, toda a massa se preservará. Que Deus nos dê graça para examinarmos à luz desta ideia tão sincera. A grande esperança da sociedade de hoje está no número cada vez maior de cristãos. Crentes genuínos e que vivam a genuína vida cristã. Que a Igreja de Deus se dedique a isso e não a gastar energias e tempo em assuntos que não lhe competem. Que cada cristão se assegure de que possui esta qualidade essencial de ser sal, de que por ser o que é, constitui um controle ou antisséptico na sociedade, impedindo-lhe que se corrompa, e que volte, talvez, a uma época de trevas. Antes do avivamento Metodista, a vida em Londres, como se pode ver nos livros que se escreveram desde então, era quase incrível como havia tanta embriaguez, vícios e imoralidades. Não corremos o perigo de retornar a isto? Acaso nossa geração não está em decadência de uma forma visível? Somos vocês e eu e outros como nós, crentes, os únicos que podemos impedi-lo. Que Deus nos dê a graça de fazê-lo. Suscita em nós o dom, Senhor, e faça-nos tais que sejamos realmente como o Filho de Deus e influenciemos todos os que entrem em contato conosco. QUE VOSSA LUZ BRILHE Logo após ter concluído o discurso sobre as bem-aventuranças em Mt 5.1- 12, Jesus afirmou imediatamente em seguida que o crente é o sal da terra (v. 13) e a luz do mundo (v.14), e ao desdobrar o significado de ser o crente tal luz do mundo Ele disse o seguinte em Mt 5.14b-16: “não se pode esconder uma cidade edificada sobre um monte; nem se acende a candeia e se coloca debaixo do alqueire, mas no velador, e dá luz a todos que estão 89 na casa. Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus.”. Jesus queria que todos os crentes, de todas as épocas, vissem com clareza que nós somos o que Ele nos tem feito a fim de que façamos algo. Este é o tema que se encontra ao longo de toda a Bíblia. Isto se vê muito bem na afirmação do apóstolo Pedro: “Mas vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido, para que anuncieis as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz;” (I Pe 2.9). Este é o tema, em certo sentido, de todas as cartas do Novo Testamento, o qual nos demonstra uma vez mais que é tolo considerar o Sermão do Monte como destinado tão somente a alguns crentes que viverão numa época ou dispensação futura. A Igreja não deve aceitar o ensino que a santidade é algo para ser vivido somente no porvir mas é essencialmente necessário que o crente cumpra o propósito de Deus de que viva como sal e luz neste mundo, porque o ensino dos apóstolos, como vimos em nosso estudo, na introdução geral ao Sermão do Monte, não é somente uma elaboração do que temos aqui. Suas cartas nos dão muitos exemplos de como se põe em prática isto que estamos estudando. Em Filipenses 2.15,16, o apóstolo Paulo descreve os crentes como luzeiros no mundo, e lhes exorta por isso a reterem a Palavra da vida. Ele emprega constantemente a comparação da luz com as trevas para mostrar como o crente atua na sociedade, por ser cristão. Nosso Senhor parece muito desejoso de deixar isto bem impresso em nós. Temos que ser o sal da terra. Muito bem, porém recordemos: se o sal perde o sabor, com que será salgada? Não serve mais para nada senão para ser lançado fora e pisado pelos homens. Somos a luz do mundo. Contudo, recordemos que não se pode esconder uma cidade edificada sobre um monte. Nem se acende uma luz para ser colocada debaixo de um cesto, mas sim num candelabro, e assim ilumina todos os que estão na casa. Logo temos esta exortação final que sintetiza tudo: “Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras, e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus.” (Mt 5.16). Em razão da forma como Jesus põe isto em relevo torna-se óbvio que devemos examiná-lo. Não basta somente recordar que temos de atuar como sal na terra ou como luz no mundo. Devemos compreender também 90 o fato de que isto deve se converter no mais importante da vida, pelas razões que vamos estudar. Talvez a melhor maneira de fazê-lo é apresentá-lo em forma de afirmações ou proposições sucessivas. O que deve primeiro ser examinado é o por quê do nosso dever de sermos sal e luz como cristãos, e por que devemos desejar sê-lo. Parece-me que nosso Senhor apresenta três razões básicas. A primeira é que, por definição, temos que ser assim. As comparações que emprega sugerem esse ensino. O sal é para salgar, nada mais. A luz tem como função e propósito iluminar. Devemos começar por aí e darmo-nos conta de que estas coisas são evidentes por si mesmas e não necessitam de ilustração. Porém, quando dizemos isto, não tende a agir como uma forma de reprovação para nós? Somos muito propensos a esquecer estas funções essenciais do sal e da luz. À medida que avançarmos na exposição, creio que concordarão que necessitamos que isto nos seja recordado constantemente. A lâmpada, como diz nosso Senhor, é suspensa e fixada para que ilumine a casa. O propósito é que a luz se difunda no ambiente. Esta, portanto, é nossa primeira afirmação. Temos que dar-nos conta do que é o cristão, por definição, e esta é a definição que nosso Senhor nos deu acerca do que ele é. Portanto, desde o começo, quando partimos para descrever o crente a nosso modo, esta definição nunca deve incluir menos que isso. O essencial nele é isto: “sal e luz”. Porém passemos à segunda razão. Parece-me que é a de que nossa posição não é somente contraditória senão ridícula se não atuamos assim. Temos que ser como uma cidade edificada sobre um monte. E uma cidade edificada sobre um monte não pode ser escondida. Noutras palavras, se somos verdadeiros crentes isto não pode ser escondido. Ou dito ainda de outra maneira, o contraste entre nós e os demais tem que ser totalmente evidente e perfeitamente óbvio. Porém, nosso Senhor não se deteve aí, e foi mais além. Pede-nos, que imaginemos a alguém que acende uma luz e imediatamente a coloca debaixo de um cesto em vez de colocá-la num candelabro. 91 Certos comentaristas antigos têm dedicado muito tempo para definir o que seja alqueire, às vezes com resultados curiosos. Mas a mim, me parece que o importante é saber que se oculta a luz, e não importa muito o modo de se fazer isto. O que nosso Senhor diz é, que isto é um procedimento ridículo e contraditório. O propósito deacender uma luz é para que ilumine. E todos estaremos de acordo que é totalmente ridículo que alguém a cubra com algo que lhe impede de alcançar este propósito. Sim, mas recordemos o que nosso Senhor está falando acerca de nós, como crentes. Existe o perigo, ou pelo menos a tentação, de que o crente se comporte dessa forma ridícula e vã, e por isso isto é sublinhado deste modo. Parece dizer “não se escondam deliberadamente”, “não ocultem a luz que vocês são”, “porque devem ser como a cidade edificada num monte, que não pode ser ocultada. Como podem então ocultar esta luz deliberadamente?” Passemos à última fase de sua argumentação. Fazer isto, segundo nosso Senhor, é nos tornarmos totalmente inúteis. Isto é chocante, e não cabe dúvida de que emprega estas duas comparações para ressaltar este ponto concreto. O sal sem sabor para nada serve, tanto como uma luz que foi acesa e acabou sendo ocultada. E isto se aplica a tudo o mais. Tomemos as flores, por exemplo, quando estão vivas são muito formosas e perfumadas, porém quando morrem não se tornam completamente inúteis? Por isso são jogadas fora ou podem ser usadas como esterco. Assim ocorre com muitas outras coisas. Elas se tornam inúteis quando sua função principal já não se realiza. Todavia, servem para alguma outra função secundária. Porém o extraordinário no caso do sal é que enquanto deixa de salgar não serve para mais nada. Torna-se até difícil saber o que se possa fazer com ele nesta condição imprestável, porque não serve sequer para adubo. Deixa de ter qualquer função, e por isso é lançado fora. O mesmo ocorre com a luz. Sua característica essencial é iluminar e não tem realmente nenhuma outra função. Sua qualidade essencial é sua única qualidade, e uma vez que a perde, torna-se completamente inútil. Segundo a argumentação de nosso Senhor, isto é o que há para se dizer do crente. E isto é de uma lógica inevitável, porque não há nada no universo de Deus que seja mais inútil do que um crente puramente de aparência. 92 O apóstolo Paulo descreve isto quando fala de certas pessoas que teriam aparência de piedade, porém negavam a eficácia dela. Parecem cristãos porém não são. Desejam apresentar-se como cristãos, porém não agem como tais. São sal sem sabor, luz sem lume, se é possível se imaginar algo assim. Talvez seja possível quando pensamos na ilustração da luz escondida debaixo do cesto. Quando pensamos na experiência de observação de alguém específico, vemos o quanto isto é uma pura verdade. O crente nominal sabe bastante do cristianismo, para que o mundo lhe considere incômodo, porém não sabe o suficiente para ser útil para o mundo. Não está de acordo com o mundo porque sabe o suficiente para temer certas coisas, e os que vivem como mundanos sabem que ele deseja ser diferente e que não pode ser como aqueles que são do mundo. Por outro lado, não tem uma verdadeira comunhão com os crentes. Possui um “cristianismo” suficiente para fazer com que os demais se percam, porque ninguém se converterá com o seu testemunho e ensino, porém não o suficiente para torná-los felizes, para dar-lhes paz, alegria e abundância de vida. Parece-me que essas pessoas são as mais infelizes do mundo. Não atuam nem como mundanas, nem como cristãs. Não são nada, nem sal nem luz, nem uma coisa nem outra. E de fato, vivem como párias, párias, por assim dizer, do mundo e da Igreja. Não querem considerar-se como sendo do mundo, enquanto que por outro lado, não participam da plena vida da Igreja. Assim o sentem eles próprios e os demais. Sempre há essa barreira. São párias. Ou são mais do que isso, em certo sentido, porque o que é completamente mundano não pretende coisa alguma, porque pelo menos tem o seu grupo. Estas são pois, as pessoas mais trágicas e patéticas, e a advertência solene que temos neste versículo é a advertência de nosso Senhor contra os que vivem neste estado e condição. As parábolas de Mateus 25 referendam isto, nelas se nos diz da exclusão definitiva de tais pessoas, como sal que se lança fora. Para sua surpresa virão a achar-se do lado de fora da porta, pisoteados pelos homens. A história demonstra isto. Tem havido certas Igrejas que, havendo perdido o sabor, ou havendo deixado de irradiar a luz verdadeira, têm sido pisoteadas. Houve noutro tempo uma Igreja muito vigorosa na África do Norte, que produziu muitos crentes santos, inclusive o grande 93 Santo Agostinho. Porém perdeu o sabor e a verdadeira luz, e por isso foi pisoteada e deixou de existir. O mesmo tem sucedido noutros países. Que Deus nos dê graça para ter em conta esta solene advertência. A profissão puramente superficial do cristianismo virá a acabar assim. Talvez o possamos resumir assim. O crente verdadeiro não pode ser ocultado, não pode passar despercebido. O que vive e atua como verdadeiro crente se destacará. Será como o sal, será como uma cidade situada sobre um monte, como candeia posta num candeeiro. Porém podemos acrescentar algo. O verdadeiro crente não deseja ocultar esta luz. Vê o ridículo que é pretender ser crente e apesar disso tentar ocultá-lo. O que entende o significado de ser cristão, o que entende o que a graça de Deus tem significado para ele, e compreende o que, em última instância, Deus tem feito a fim de que influencie outros, não pode ser ocultado. Não somente isto, não deseja ocultá-lo, porque pensa assim: “o último fim e objetivo de tudo isso é que aja dessa maneira”. Estas comparações e ilustrações, têm, pois, como fim, segundo a intenção de nosso Senhor, mostrar-nos que qualquer desejo que achemos em nós de ocultar o fato de que somos crentes, não somente tem que ser considerado como ridículo e contraditório, e caso, o aceitemos e persistamos nisso, podemos ser conduzidos a uma exclusão final. Assim, se vemos em nós uma tendência a esconder a nossa luz, devemos começar a nos examinar e a tratar de nos assegurar de que é realmente “luz”, porque a luz que o Senhor conduz ao cumprimento de sua função não pode ser ocultada, senão revelada. É um fato que o sal e a luz querem manifestar a sua qualidade essencial, de modo que se há algo de incerteza quanto a isso, devemos nos examinar para descobrir a causa desta posição ilógica e contraditória. Ou para dizê- lo de uma forma mais simples. Da próxima vez que me encontrar com essa tendência de encobrir o fato de que sou crente, talvez com o fim de congraciar-me com alguém ou de evitar perseguições, tenho que pensar no que acende a luz e a oculta debaixo do cesto. Pois enquanto vejo o ridículo que há nisto, reconhecerei que a mão sutil que me oferecia este cesto para esconder a minha luz era a mão do diabo. Portanto a rechaçarei, e a luz brilhará com mais esplendor. Esta é a primeira afirmação. Passemos agora à segunda, a qual é muito prática. Como podemos nos assegurar de que atuamos realmente como sal e luz? 94 Num sentido ambas ilustrações o indicam, porém a segunda é talvez mais simples que a primeira. Os comentaristas têm se interessado muito por isto e dão o exemplo de um homem que uma vez, estando de viagem, encontrou um tipo de sal que havia perdido o sabor. Quão néscios nos tornamos ao começar a estudar a Bíblia em função de palavras e não de doutrina! E uma vez aprendida a doutrina não praticá-la, de modo que isto seja visto em testemunho pelas demais pessoas. Não faz nenhuma falta ir ao Oriente para encontrar sal sem sabor, o único propósito de nosso Senhor foi o de mostrar o ridículo de toda esta ação. A segunda ilustração é mais concreta. A lâmpada necessita somente de duas coisas – azeite e pavio, as quais sempre estão juntas. Claro que há pessoas que às vezes falam do azeite somente, enquanto outras somente mencionam o pavio. Porém, sem azeite e pavio nunca teremos luz. Ambas são absolutamente essenciais, e por isso temos que prestar atenção a ambas. A parábola das dez virgens nos ajuda a lembrar disso. O azeite é totalmente essencial e vital, nada podemos fazersem ele, e as bem- aventuranças tratam precisamente de sublinhar este fato. Temos que receber esta vida, esta vida divina. Não podemos atuar como luz sem ela. Somos somente a luz do mundo enquanto o que é a luz do mundo atua em nós e por meio de nós, a saber nosso Senhor mesmo. A primeira coisa pois, que devemos nos perguntar é: Tenho recebido esta vida divina? Sei que Cristo mora em mim? Paulo intercedia em favor dos efésios para que Cristo morasse em seus corações com abundância, pela fé, a fim de que pudessem ser enchidos de toda a plenitude de Deus. Toda a doutrina referente à ação do Espírito Santo consiste essencialmente nisto. Não consiste em se outorgar dons particulares, tais como o de línguas ou alguma das outras coisas pelas quais o povo tanto se interessa. Seu propósito é dar vida e as graças do Espírito, o qual é o caminho mais excelente. Estou seguro de que tenho o azeite, a vida, que somente o Espírito de Deus pode me dar? A primeira exortação, pois, deve ser que o busquemos sem cessar. Isto significa, desde já, oração, que é a ação para recebê-lo. Frequentemente costumamos pensar que estes convites benévolos de nosso Senhor são algo que se dá uma vez para sempre. Diz, “vinde a mim” se quereis a água da vida, “vinde a mim” se quereis o pão da vida. Porém tendemos a pensar que uma vez que temos ido a Jesus já temos para 95 sempre esta provisão. Não é assim. É uma provisão que temos que renovar, que temos que ir buscar constantemente. Temos que viver em contato com Ele, porque somente quando recebemos sem cessar esta vida podemos atuar como sal e luz. Porém, desde já, não somente significa oração constante, significa o que nosso Senhor mesmo descreve como “fome e sede de justiça”. Isto é interpretado no sentido de algo que nunca se interrompe. Somos saciados, sim, porém sempre desejamos mais. Nunca permanecemos parados, nunca descansamos nos galardões e dizemos: “recebemos de uma vez por todas”. Nunca. Seguimos tendo fome e sede, seguimos dando-nos conta da necessidade perene que temos dEle e desta provisão de vida e de tudo o que nos possa dar. Por isso seguimos lendo a Palavra de Deus para que possamos aprender muito acerca dEle e da vida que nos oferece. A provisão de azeite é essencial. Leiam as biografias daqueles que obviamente têm sido como cidades situadas sobre um monte que não se podem ocultar. Verão que não dizem: “Tenho ido a Cristo de uma vez por todas, e esta é a experiência culminante da vida que durará para sempre”. De modo nenhum, eles nos dizem que sentiram uma necessidade absoluta de passar horas em oração, de estudo da Bíblia e meditação. Nunca deixaram de ir buscar o azeite e de receber a provisão do mesmo. O segundo elemento essencial é o pavio. Devemos nos ocupar também disso. Para manter a lâmpada ardendo o azeite não é suficiente, porque tem que avivar constantemente o pavio. Foi isto que disse nosso Senhor com o fato de ser o crente luz do mundo. Muitos de nós não temos conhecido outra coisa além da eletricidade. Porém, alguns talvez recordem como se devia ter cuidado com o pavio. Quando começava a fumegar, não iluminava, de maneira que tinha que ser avivado, e isto era um processo delicado. Que significa isto na prática? Creio que significa que temos que recordar constantemente as bem- aventuranças. Deveríamos lê-las todos os dias. Temos que recordar diariamente o que é ser pobre de espírito, misericordioso, manso, pacificador, de coração limpo, e assim sucessivamente. Não há nada que sirva melhor para manter o pavio em bom funcionamento que recordar o que sou pela graça de Deus, quanto à nova natureza recebida do Espírito, e o que tenho de ser na prática como um crente. Parece-me que deveria fazer isto todas as manhãs antes de começar o dia. Em tudo o que faço e digo, tenho que ser como esse 96 homem que vejo nas bem-aventuranças. Comecemos com isso e nos concentremos nisso. Porém não somente temos de recordar as bem-aventuranças, temos de viver de acordo com elas. Que significa isto? Significa que temos de evitar tudo o que se opõe às mesmas, que temos que ser completamente diferentes do mundo. É algo trágico ver crentes que não querem ser diferentes nem sofrer perseguição, parecem viver o mais próximo que podem do mundo. Porém isto é uma contradição de termos. Não há meio termo entre luz e trevas, é uma coisa ou outra. E não há acordo possível entre elas. Ou se é luz, ou se é trevas. E o crente tem que ser assim na terra. Não somente não devemos ser como o mundo, senão que temos que esforçar-nos em ser o mais diferentes dele que possamos. Num sentido positivo, contudo, significa que deveríamos demonstrar esta diferença em nossa vida, e isto, desde logo, pode ser feito de mil maneiras. Não posso dar uma lista completa quanto ao que significa, mas, no mínimo significa viver uma vida separada. O mundo se está tornando cada vez mais grosseiro, rude, feio, estrepitoso, sujo. Creio que estamos de acordo nisso. À medida que a influência cristã vai diminuindo no país, todo o tom da sociedade se torna mais baixo, inclusive as pequenas gentilezas são cada vez mais escassas. O crente não deve viver assim. Tendemos muito a nos limitarmos a dizer: “sou crente”, ou “não é maravilhoso ser crente?”, para logo depois, sermos bruscos e desatenciosos. Recordemos que estas são as coisas que proclamam aquilo que somos. Temos que ser humildes, pacíficos em nosso falar e atuar, e sobretudo em nossas reações diante dos demais. Creio que o crente tem maiores oportunidades hoje que há um século, devido ao estado atual do mundo e da sociedade. Creio que as pessoas nos observam muito de perto por nos dizermos cristãos, e observam as reações que teremos diante dos demais, e diante do que dizem e fazem em relação a nós. Nós nos iramos? O não crente o faz, o crente não deveria fazê-lo. Deve ser como o homem das bem-aventuranças, e por isso reage de forma diferente. E quando se acha diante de acontecimentos mundiais, diante de guerras e rumores de guerras, diante de calamidades, enfermidades, e tudo o mais, não se angustia, nem fica perturbado ou se irrita. O mundo reage assim, o crente não. É essencialmente diferente. 97 O último princípio é a importância suprema de fazer tudo isto de forma adequada. Temos considerado o que é ser como sal, temos examinado porque temos de ser como luz. Temos visto como é ser assim, como nos assegurar de que o somos de fato. Porém deve ser feito da forma adequada. Assim brilhe a vossa luz diante dos homens” – a palavra importante aqui é “assim” – “para que vejam vossas boas obras, e glorifiquem vosso Pai que está nos céus”. Tem que haver uma ausência de ostentação e exibicionismo. É difícil na prática, não é verdade? Situar a linha divisória entre funcionar verdadeiramente como sal e luz, e contudo não se fazer culpado de ostentação? Porém é isto que se nos diz que façamos. Temos que viver de tal modo que os demais vejam nossas boas obras, porém que elas glorifiquem não a nós, mas a nosso Pai que está nos céus. É difícil atuar como verdadeiro crente, e contudo não cair no exibicionismo. Nisto está incluída a pregação do evangelho. Ao revelá-lo em nossa vida diária devemos recordar que o crente não atrai a atenção sobre si. Ele não pode se esquecer da pobreza de espírito, da mansidão e de todas as outras coisas. Noutras palavras, temos de fazer tudo por Deus, para Sua glória. O eu tem que estar ausente, e deve ser completamente afastado com todas as suas sutilezas, por amor a Ele e por Sua glória. Segue-se que temos que fazer todas estas coisas de tal forma que conduzamos a outros homens a glorificarem a Deus, a entregarem-se a Ele. “Assim brilhe vossa luz diante dos homens, para que vendo vossas boas obras, glorifiquem vosso Pai que está nos céus”. Sim, e vê-las de tal modo que eles por sua vez glorifiquem a seu Pai que está nos céus. Não somente temos de glorificar nosso Pai, temos de levar outras pessoas a glorificarem-nOtambém. Isto, por sua vez conduz ao fato de que, por sermos verdadeiramente crentes, temos de ter grande tristeza no coração por essas pessoas. Temos de nos dar conta de que estão em trevas, e em estado de contaminação. Noutras palavras, quanto mais aproximarmos nossas vidas do Senhor, tanto mais nos tornaremos semelhantes a Ele, e Ele teve uma grande compaixão pelas pessoas. Viu as pessoas como ovelhas que não têm pastor. Teve grande compaixão por elas, e isto determinou Seu procedimento. Não se preocupou consigo mesmo; teve compaixão da multidão. Assim temos de viver vocês e eu, assim temos de considerar estas coisas. Noutras palavras, em todas nossas ações e viver cristão estas 98 três coisas devem ocupar sempre um ponto proeminente. Fazer tudo por Ele e por Sua glória. Conduzir os homens a Ele para que o glorifiquem. Que tudo se baseie no amor e compaixão por eles em sua condição perdida. Esta é a forma em que nosso Senhor nos exorta a demonstrarmos o que tem feito por nós. Devemos viver como pessoas que têm recebido dEle vida divina. Ele coloca diante de nós este quadro maravilhoso de sermos como Ele neste mundo. Os homens começavam a pensar em Deus ao vê- lo. Temos lido nos evangelhos como era frequente que os homens dessem glória a Deus depois de tê-lo visto realizar um milagre? Diziam: “nunca vimos coisas como estas dantes” e glorificavam ao Pai. Vocês e eu temos que viver assim. Noutras palavras, temos de viver de tal modo que, quando os demais nos vejam, passemos a ser uma interrogação para eles, no sentido de que se perguntarão: “Que é isto?”. Por que esses são tão diferentes em seu comportamento e reações? E há algo neles que não podemos explicar.”. E chegarão à única explicação verdadeira, que é a de que somos o povo de Deus, filhos de Deus, herdeiros de Deus, e co- herdeiros com Cristo. Temos chegado a ser o reflexo de Jesus, aqueles nos quais a vida do Senhor tem sido reproduzida. E assim como Ele é a luz do mundo, então nós temos que ser também a luz do mundo. A LUZ DO MUNDO Em Mateus 5.14 temos uma das afirmações mais surpreendentes e extraordinárias acerca do cristão que jamais se tem feito. Se alguém tem em conta o quadro, e recorda as pessoas às quais Jesus dirigiu estas palavras, aprenderá verdades notáveis. É uma afirmação cheia de significado e de implicações profundas quanto ao entendimento da natureza da vida cristã. É uma grande característica da verdade bíblica que pode sintetizar, por assim dizer, o conteúdo de toda nossa posição num versículo sério como este. “Vocês”, disse nosso Senhor, olhando essas pessoas simples, essas pessoas completamente sem importância do ponto de vista do mundo, “vocês são a luz do mundo”. É uma dessas afirmações que sempre deveriam produzir em nós o efeito de erguer a cabeça, de fazer-nos dar conta do quão magnífico e notável é ser um cristão. Isto se converte inevitavelmente numa prova boa e completa da nossa posição e experiência. Todas estas afirmações que se fazem do crente 99 sempre conduzem a isto, e devemos ter sempre o cuidado que assim se dê de fato conosco. O “vocês” a quem se refere esta afirmação significa simplesmente nós mesmos. O perigo é sempre que leiamos uma afirmação como esta e pensemos em alguém diferente, a saber, os primeiros crentes, ou os crentes em geral. Porém se refere a nós, individualmente, se pretendemos ser crentes de verdade. É lógico, pois, que uma afirmação assim requer uma análise detalhada. Antes de intentá-lo, contudo, devemos estudá-lo em geral e tratar de retirar disso as implicações mais óbvias. Antes de tudo vejamos qual é seu significado negativo. Porque a força verdadeira da afirmação é esta: “vocês, e somente vocês, são a luz do mundo”. O “vocês” é enfático e comporta esta ideia. Imediatamente compreendemos que implicam certas coisas. A primeira é que o mundo está em trevas. Isto, de fato, é um dos pontos básicos que o evangelho cristão sempre realça. Talvez em nenhuma outra passagem da Bíblia se veja este contraste marcado entra a ideia cristã da vida e todas as outras ideias, com mais clareza, que num versículo como este. O mundo sempre fala de sua civilização. Esta é uma de suas frases favoritas, sobretudo desde o Renascimento dos séculos XV e XVI quando os homens voltaram a se interessar pelo conhecimento. Todos os pensadores consideram que esse foi o ponto decisivo na história, uma grande linha divisória, que separa a história das civilizações, e todos estão de acordo em que essa civilização moderna, tal como vocês e eu a conhecemos, começou realmente a partir de então. Houve uma espécie de novo nascimento da razão e da cultura. Voltaram a descobrir os clássicos gregos; e seu ensino e conhecimentos, num sentido puramente filosófico, e todavia mais num sentido científico, realmente começaram a dirigir e controlar a perspectiva e vidas de muitos. Logo, houve, como sabem, uma restauração parecida no século XVIII, que se chamou a si mesma “Iluminismo”. Os que se interessam pela história da Igreja Cristã e da fé cristã devem ter em conta este movimento. Foi o começo, num sentido, do ataque contra a autoridade da Bíblia, porque pôs a filosofia e pensamento humanos no 100 lugar da revelação divina e da revelação da verdade ao homem, por parte de Deus. Isso continuou até o tempo presente, e o que quero sublinhar é que sempre se apresenta como luz, e os que se interessam por este movimento sempre se referem a ele como “Iluminismo”. O conhecimento, dizem, é o que traz luz, o que brilha, e é evidente que em muitos aspectos é assim. Seria néscio negá-lo. O aumento do saber sobre os processos naturais e acerca das enfermidades físicas e de muitas outras coisas tem sido realmente fenomenal. O novo saber também tem lançado luz sobre o funcionamento do cosmos, e tem aumentado a compreensão de muitos aspectos diferentes da vida. Porém, isto, muitos costumam chamar frequentemente de “iluminação” como consequência do saber e da cultura. E contudo, apesar de tudo isto, segue de pé a afirmação bíblica. “vocês, e somente vocês, são a luz do mundo”. E esta luz conduz ao que é eterno e verdadeiro. O conhecimento médico por exemplo na prevenção de enfermidades, pode prolongar, quando é possível, o curso da vida física por apenas uns poucos anos, e depois, será inevitável ter que enfrentar a realidade da morte. Mas a luz do evangelho nos crentes revela um caminho que conduz à verdadeira vida e à eternidade. E quão frágeis e passageiros são todos os benefícios alcançados pelo mero conhecimento humano. A Escritura segue proclamando que o mundo, tal como é, está em trevas e enquanto alguém começa a contemplar as coisas seriamente pode-se demonstrar facilmente que é a pura verdade. A tragédia de nosso século tem sido que nos temos concentrado somente num aspecto do saber. Nosso conhecimento tem sido conhecimento das coisas, de coisas mecânicas, de coisas científicas, conhecimento da vida num sentido mais ou menos biológico e mecânico. Porém, nosso conhecimento dos verdadeiros fatores que fazem a vida, não tem aumentado em nada. Por isso, o mundo está em tal estado hoje em dia. Porque, como se tem indicado constantemente, apesar de haver descoberto todo esse novo saber, temos fracassado no descobrimento do mais importante de tudo, a saber, como aplicar nosso saber. 101 Esta é a essência do problema relativo à força atômica. A tragédia é que não temos conhecimentos suficientes de nós mesmos que nos permitam saber como podemos aplicar esta força, agora que a temos descoberto. E se soubéssemos, não poderíamos ultrapassar sequer os limites da existência física, que têm sido fixados pelo Senhor desde a criação, e que foram reduzidos drasticamente, porque sabemos que no princípio os homens viviam até 900 anos, sendo esta marca reduzida para o limite de 600, depois 500, 400, 200, chegando ao de 100 que tem perdurado até nossos dias, e que poucos atingem, em condições de plenovigor físico. Se não se pode, por decreto de Deus acrescentar-se um palmo ao curso da existência, quanto mais resolver definitivamente o problema do pecado que reside em todas as pessoas. Aí reside a dificuldade. Nosso saber é mecânico e científico. Porém, quando passamos aos problemas fundamentais da vida, do ser e existir, não é óbvio que a afirmação de nosso Senhor permanece sendo verdade, que o mundo está num estado de trevas horrendas? Se Ele diz que o crente é a luz do mundo, então por conseguinte Ele diz também que o mundo está todo em trevas. Pensemos nisso no campo da vida e conduta pessoais. Muitos homens de grande saber em muitos terrenos fracassam completamente em sua vida pessoal. Vejamos-lhes no campo das relações de uns com outros. Precisamente quando nos encontramos nos gloriando do quanto iluminados somos, do muito que sabemos, há essa ruptura trágica nas relações pessoais. É um dos maiores problemas morais e sociais da sociedade. Vejam como temos multiplicado nossas instituições e organizações. Temos que instruir acerca de coisas nas quais as pessoas nunca foram instruídas dantes. Por exemplo, temos que ter agora cursos de instrução matrimonial. Até este século as pessoas se casavam sem estes conselheiros que agora parecem essenciais. Todos eles dizem bem às claras que quanto aos problemas mais importantes da vida, como evitar o mal, o pecado, tudo que é baixo e indigno, com ser puros, retos, castos e íntegros, que há muitas trevas. Logo, à medida que se passa a outras esferas e se contempla as relações entre grupos, encontramos a mesma situação, e por isso temos esses grandes problemas industriais e econômicos. 102 Num nível todavia mais elevado, vejamos as relações entre nações. Este século, no qual tanto falamos do saber e da cultura, prova que o mundo está num estado de trevas completas em relação a estes problemas vitais e fundamentais. Porém devemos ir mais além. Nosso Senhor não somente afirma que o mundo está num estado de trevas; chega a dizer que ninguém senão o cristão pode dar conselho e instrução relativamente a isto. Disso nos gloriamos como cristãos. Os maiores pensadores e filósofos se sentem desconcertados diante dos tempos atuais e me seria muito fácil apresentar-lhes muitas citações de seus escritos para demonstrá-lo. Não importa que se considere no campo da pura ciência ou da filosofia quanto a estes problemas definitivos; os escritores não acertam ao tentarem explicar ou entender seu próprio século. A razão está em que sua teoria básica é que o que o homem necessita é aumentar o saber. Creem que se o homem tiver esses conhecimentos os aplicaria à solução dos seus problemas. Porém é evidente que o homem não o está fazendo. Tem os conhecimentos, porém não os aplica, e isto é o que deixa os “pensadores” perplexos. Não entendem o problema verdadeiro do homem; não são capazes de dizer-nos onde está a raiz do estado atual do mundo, e muito menos são capazes de dizer-nos o que se pode fazer para resolvê-lo. Recordo, faz uns anos, que li a crítica de um livro que tratava destes problemas, a crítica foi escrita por um conhecido professor de filosofia deste país. Expressou-se assim: “Este livro enquanto análise é muito bom, porém não vai além da análise e por isso não ajuda grande coisa. Todos sabemos analisar, porém a pergunta vital que queremos que se responda é: qual é a raiz última do problema? Que se pode fazer?”. E quanto a isto nada disse, porém deu ao livro o impressionante título de A Condição Humana. Assim é. Pode alguém procurar uma ou outra vez nos maiores filósofos e pensadores e nunca o levam a nada além da análise. São excelentes na apresentação do problema e em apresentar os diferentes fatores que atuam. Porém, quando se lhes pergunta onde está a última raiz disso, e o que pensam fazer, deixam-nos sem resposta. É evidente que não têm nada para dizer. É óbvio que neste mundo não há luz nenhuma aparte do que oferece o povo cristão e a fé cristã. E não exagero. Quero dizer que somos realistas e damo-nos conta disso, e de quanto nosso Senhor falou, faz mais de dois mil anos, não somente disse a verdade quanto ao seu próprio tempo, senão que também a disse relativamente a 103 todas as épocas subsequentes. Não esqueçamos que Platão, Sócrates, Aristóteles e todos os demais, haviam ensinado vários séculos antes de terem sido pronunciadas essas palavras de Jesus. Foi depois desse florescer surpreendente da mente e do intelecto que nosso Senhor fez esta afirmação. Contemplou esse grupo de pessoas comuns e insignificantes e disse “vocês e somente vocês são a luz do mundo”. E não fez nenhuma alusão aos filósofos que haviam vivido dantes, como Platão, Sócrates e Aristóteles porque não havia neles nenhuma luz que conduzisse à verdade. Então quando disse que somente os crentes são a luz do mundo, isto é uma afirmação tremenda e estremecedora, e eu diria que por muitas razões dou graças a Deus de estar pregando este evangelho hoje e não há cem anos atrás. Se houvesse afirmado isto cem anos antes as pessoas teriam zombado, porém hoje já não zombam porque a história mesma demonstra cada vez mais a verdade do evangelho. As trevas do mundo nunca têm sido mais evidentes que hoje, e diante delas temos esta afirmação surpreendente e profunda. Esta é a implicação negativa do texto. Consideremos agora suas implicações positivas. Diz: “vocês”. Em outras palavras afirma que o crente comum, embora talvez nunca tenha estudado filosofia, sabe mais da vida e a entende melhor que alguém grande e experiente que não seja crente. Este é um dos temas básicos do Novo Testamento. O apóstolo Paulo, ao escrever aos coríntios disse bem claramente quando afirmou “Visto como na sabedoria de Deus o mundo não conheceu a Deus pela sua sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes pela loucura da pregação.” (I Cor 1.21). Isto que parece ridículo para o mundo é sabedoria de Deus. Este é o paradoxo extraordinário que se nos apresenta. A implicação do mesmo deve ser óbvia, mostra que somos chamados a fazer algo positivo. Esta é a segunda afirmação que faz nosso Senhor relativamente à função do crente neste mundo. Uma vez descrito o crente em geral nas bem-aventuranças, a primeira coisa que diz é: “vocês são o sal da terra”. Agora diz, “vocês são a luz do mundo”, e somente vocês. Porém recordemos sempre que isto se diz dos crentes comuns, não de certos crentes somente. Aplica-se a todos os que têm o direito de receber este nome. Imediatamente surge a pergunta. Como pois, se cumprirá isto em nós? Uma vez mais se nos conduz ao ensino referente à natureza do crente. A 104 melhor maneira de entendê-lo, me parece, é esta. O Senhor que disse: “vocês são a luz do mundo”, também disse, “eu sou a luz do mundo”. Estas duas afirmações devem ser tomadas sempre juntas, já que o crente é luz do mundo, somente por sua relação com Ele que é a luz do mundo. Nosso Senhor afirmou que havia vindo trazer luz. Sua promessa é que “o que me segue não andará em trevas, senão que terá a luz da vida”. Agora, contudo, diz também: “vocês são a luz do mundo”. Consequentemente, Ele, e somente Ele nos dá esta luz vital relativa à vida. Porém não se detém aí, também nos faz luz. Recordem como o apóstolo Paulo o disse em Efésios 5, onde afirma: “porque noutro tempo éreis trevas, porém agora sois luz no Senhor”. Por isso não somente temos recebido luz, temos sido feitos luz, nos convertemos em transmissores de luz. Noutras palavras, é este extraordinário ensino da união mística entre o crente e seu Senhor. Sua natureza entra em nós a fim de que sejamos, num sentido, o que Ele é. É básico que tenhamos presentes ambos aspectos deste assunto. Como crentes no evangelho temos recebido luz, conhecimento e instrução. Porém, além disso, tem passado a fazer parte de nós, de maneira que somos também luz no Senhor. Tem-se convertido na nossa vida, a fim de que assim possamos refleti-la. O notável, portanto,é que nos é lembrado nesta passagem a nossa íntima relação com Ele. O crente tem recebido e se tem convertido em partícipe da natureza divina. A luz que é Cristo mesmo, a luz que é em último termo Deus, é a luz que tem o crente. “Deus é luz e não há nele treva nenhuma”. “Eu sou a luz do mundo”. “Vocês são a luz do mundo”. A forma de entender isto é mediante a compreensão do ensino de nosso Senhor referente ao Espírito Santo em João 14.23, onde diz: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o amará, e viremos para ele, e faremos nele morada.” De fato a consequência da sua vinda será esta. Meu Pai e Eu moraremos em vocês, estaremos em vocês e vocês estarão em nós. Deus que é o pai das luzes, é a luz que está em nós. Ele está em nós e nós estamos nEle, e por isso se pode dizer do crente: “vocês são a luz do mundo”. É interessante observar que, segundo nosso Senhor, este é o segundo grande resultado de ser a classe de crente que Ele tem descrito nas bem- aventuranças. Deveríamos também considerar a ordem em que se fazem estas afirmações. A primeira que o Senhor nos diz é: “vocês são o sal da terra”, e somente depois disto diz: “vocês são a luz do mundo”. Por que não disse isto na ordem contrária? É um ponto prático muito interessante 105 e importante. O primeiro efeito do crente no mundo é geral, em outras palavras, é mais ou menos negativo. Temos aqui um homem que se tem feito cristão, vive em sociedade, e no trabalho. Como é crente, imediatamente produz um certo efeito, um efeito de controle, que estudamos antes no comentário sobre ser sal da terra. Somente depois disto tem esta função específica e concreta de atuar como luz. Em outras palavras, a Bíblia, ao tratar do crente, sempre sublinha primeiro o que ele é, antes de começar a falar do que ele faz. Como crente, deveria sempre produzir este efeito geral nos demais, antes de produzir este efeito específico. Onde quer que me encontre, imediatamente esse algo diferente que há em mim deveria produzir efeito, e isto por sua vez deveria levar aos demais a contemplar-me e dizer: “Há algo especial neste homem”. Logo, ao observarem minha conduta, começam a me fazer perguntas. Neste ponto entra em jogo o elemento de “luz”, posso falar-lhes e ensinar- lhes. Muito frequentemente tendemos a mudar a ordem. Falamos numa forma muito iluminada, porém nem sempre vivemos como sal da terra. Tanto que se nos agrada ou não, nossa vida deveria ser sempre a primeira a falar, e se os lábios falarem mais do que a vida, pouco servirá. Com frequência a tragédia tem sido que as pessoas proclamam o evangelho de palavra, porém sua vida e comportamento é negação do mesmo. O mundo não lhes dá grande atenção. Não esqueçamos nunca esta ordem que o Senhor escolheu deliberadamente: “sal da terra” antes de “luz do mundo”. Somos algo, antes de começarmos a atuar como algo. Ambas coisas deveriam sempre caminhar juntas, porém a ordem e a sequência deveria ser a que Ele estabelece nesta passagem. Tendo isto presente, consideremos agora de modo prático como o crente deve mostrar que é realmente a luz do mundo? Isto se transforma numa pergunta simples: Qual é o efeito da luz? Que faz na realidade? Não cabe duvida de que a primeira coisa que a luz faz é manifestar as trevas e tudo o que pertence às trevas. Imaginemos uma casa escura, e quando se acende uma luz. Ou pensemos nas luzes dianteiras de um automóvel que transita numa estrada escura. Como diz a Bíblia: “Tudo o que se manifesta é luz”. Num sentido estamos conscientes das trevas até que a luz não apareça, e isto é fundamental. Falando da vinda do Senhor a este mundo, Mateus disse: “O povo que andava nas trevas viu grande luz”. 106 A vinda de Cristo e do evangelho são tão fundamentais que se pode expressar assim; e o primeiro efeito de sua vinda ao mundo é que tem manifestado as trevas da vida do mundo. Isto é algo que sempre, e inevitavelmente, faz qualquer pessoa boa ou santa. Sempre necessitamos de algo que nos mostre a diferença, e a melhor maneira de revelar uma coisa é por contraste. Isto faz o evangelho, e todo cristão o faz. Como disse o apóstolo Paulo, a luz clareia o oculto das trevas, e por isso diz: “os que se embriagam, é de noite que se embriagam”. O mundo todo se divide em “filhos da luz” e “filhos das trevas”. Grande parte da vida do mundo está debaixo de uma espécie de capa de trevas. As coisas piores sempre ocorrem sob o manto das trevas, inclusive o homem natural, degenerado e em estado de pecado, se envergonha de tais coisas à luz do dia. Por que? Porque a luz o manifesta. O crente é a luz do mundo dessa forma. É inevitável. Por ser crente mostra um estilo diferente de vida, e isto de imediato manifesta a verdadeira índole e natureza da outra forma de viver. No mundo, portanto, é como uma luz que se acende, e imediatamente as pessoas começam a pensar, a maravilhar-se e a sentir-se envergonhadas. Quanto mais santa uma pessoa, mais cedo e tanto mais claramente isto ocorrerá. Não lhe fará falta dizer uma só palavra, somente por ser o que é faz que os demais se sintam envergonhados do que fazem, e deste modo atua verdadeiramente como luz. Proporciona um modelo, mostra que há outra maneira de viver que é possível para o gênero humano. Manifesta portanto, o erro e o fracasso da forma de pensar e de viver do homem. Como vimos, ao tratar do crente como sal da terra, o mesmo se pode dizer dele como luz do mundo. Todo verdadeiro avivamento espiritual tem produzido este efeito. Uns tantos cristãos numa região ou grupo afetarão a vida de todos. E isto se dará ainda que os demais estejam ou não de acordo com seus princípios, lhes fazem sentir que depois de tudo o sistema cristão é adequado e o outro é indigno. O mundo tem descoberto que a honestidade é a melhor política. Como alguém tem dito, esta é a classe de tributo que a hipocrisia sempre rende à verdade, tem de admitir no fundo do coração que a verdade tem razão. 107 A influência que o crente tem como luz no mundo é demonstrar que estas outras cousas pertencem às trevas. Prosperam nas trevas, e seja pelo que for não podem resistir à luz. Isto se afirma em forma explícita em João 3, onde o apóstolo diz: “E a condenação é esta: Que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz, porque as suas obras eram más.” (João 3.19). Nosso Senhor acrescenta que tais homens não vêm para a luz, porque, se o fizerem, receberão reprovação por suas obras, e eles não querem isto. Essa foi, desde o princípio a causa principal do antagonismo dos escribas e fariseus contra nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Esses homens, mestres da lei, experientes, num sentido, da vida religiosa, odiaram e perseguiram ao Senhor. Por que? A única resposta adequada se encontra em sua pureza absoluta, em sua santidade total. Sem dizer nem uma só palavra contra eles no começo - porque não lhes acusou até o final – sua pureza fez que se vissem como realmente eram, e por isso o odiaram. Perseguiram-no e por fim o crucificaram, somente porque era a luz do mundo. Revelou e manifestou o oculto das trevas que havia neles. Vocês e eu temos que ser assim neste mundo, por somente viver a vida cristã temos de produzir este efeito. Demos um passo mais além e digamos que a luz não somente revela o oculto das trevas, senão que também explica a causa das trevas. Por isso é algo tão prático e importante nestes tempos. Já lhes tenho recordado que os melhores pensadores do mundo acadêmico de hoje se acham desorientados quanto à raiz do mal no mundo. Faz uns anos foram radiodifundidas duas conferências a cargo dos chamados humanistas, Dr. John Huxley e Professor Gilbert Murray. Ambos admitiram com toda franqueza que não poderiam explicar a vida como é. O dr Huxley disse que não podia encontrar um fim nem um significado para a vida. Para ele tudo era fortuito. O professor Gilbert Murray tampouco sabia explicar a segunda guerra mundial e o fracassoda Liga das Nações. Como corretivo, não teria nada que oferecer mais que a cultura que tem estado à nossa disposição durante séculos, e que tem fracassado. Aqui é onde os crentes têm a luz que explica a situação. A única causa dos problemas do mundo atual, desde o nível pessoal ao internacional, não é nada mais do que a separação do homem em relação a Deus. Esta é a luz que somente os crentes possuem, e que podem dar ao mundo. Deus tem feito de tal modo o homem que este não pode viver a verdade a não ser que tenha uma relação adequada com Deus. Assim foi feito. Deus o fez, e 108 o fez para si. E Deus tem estabelecido certas normas em sua natureza e em seu ser e existência, e a não ser que se conforme a elas irá se equivocar. Esta é a causa do problema. Todas as dificuldades que o mundo de hoje experimenta podem ser atribuídas, em última instância, ao pecado, egoísmo, e busca de proveito próprio. Todas as disputas, conflitos e mal entendidos, todas as dívidas e malícia, todas estas coisas se devem a isso e a nada mais. Assim pois, somos a luz do mundo num sentido muito real nestes tempos, porque somente nós possuímos a explicação adequada da causa do estado do mundo. Tudo se deve à queda, todos os problemas começaram ali. Quero voltar a citar João 3.19: “E a condenação é esta: Que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz, porque as suas obras eram más.”. Esta é a condenação e nada mais. Esta é a causa do problema. Que sucede pois? Se a luz tem vindo a este mundo na pessoa de Jesus Cristo, por que anda mal o mundo em pleno século vinte? O versículo que acabamos de citar dá a resposta. Apesar de todo o saber que se tem acumulado nos últimos duzentos anos, desde começos do Iluminismo até meados do século dezoito, o homem caído por natureza todavia ama mais as trevas do que a luz. A consequência é que, apesar de saber o que é justo, prefere o mal e o pratica. Tem uma consciência que lhe adverte antes de praticar o mal. Contudo o faz. Talvez o lamente, porém o pratica. Por que? Porque lhe agrada. O problema do homem não está no intelecto, está na sua natureza – as paixões e os prazeres. Este é o fator dominante. E embora se eduque nada conseguirá porque sua natureza seguirá sendo pecaminosa e caída. Esta pois é a condenação, e ninguém pode advertir ao mundo moderno exceto o cristão. O filósofo não somente não fala sobre isto, também não lhe agrada tal ensino. Não lhe agrada que lhe digam que apesar de seus vastos conhecimentos, não é mais do que um montão de argila humana comum como qualquer outro, e que é criatura de paixões, prazeres e desejos. Porém esta é a verdade. Como no caso, dos dias de nosso Senhor, muitos destes filósofos do mundo antigo, que saíram da vida pela porta do suicídio, assim sucede hoje em dia. Desconcertados, perplexos, sentindo-se frustrados, havendo intentado todos os tratamentos sociológicos, psicológicos e de outras classes, e contudo indo de mal a pior, os homens se rendem desesperados. O evangelho lhes molesta quando aponta que terão que confrontar a si mesmos, e sempre lhes diz o mesmo: “os homens amaram mais as trevas 109 do que a luz”. Este é o problema, e o evangelho é o único que o diz. Constitui uma luz no firmamento, e deveria revelar-se por nosso meio em meio aos problemas deste mundo tenebroso, miserável e infeliz dos homens. Porém, graças a Deus que não nos detemos aí. A luz não somente manifesta as trevas, mas apresenta e oferece a única saída das trevas. Aqui é onde todo crente deveria por mãos à obra. O problema do homem é o problema da natureza caída, pecaminosa, contaminada. Não se pode fazer nada? Temos provado que o conhecimento, a educação, os pactos políticos, as assembleias internacionais, não têm conseguido nada. Não resta esperança? Sim, há uma esperança abundante e perene: “tem que nascer de novo”. O que o homem necessita não é de mais luz, necessita de nova natureza que ame a luz e que odeie as trevas. O homem necessita se voltar para Deus. Não basta dizê-lo, porque, se fosse assim, o deixaríamos num estado de maior desesperança. Nunca encontrará o caminho até Deus, por mais que o tente. Porém o crente está aí para dizer- lhe que há um caminho até Deus, um caminho muito simples. É conhecer a Jesus de Nazaré. Ele é o Filho de Deus e veio do céu à terra para buscar e salvar o que se havia perdido. Veio para trazer luz às trevas, para manifestar a causa das trevas, para mostrar o novo caminho para sair delas e ir a Deus no céu. Jesus, não somente tem carregado sobre Si a culpa desta terrível condição de pecado que nos tem causado tantos problemas, senão que nos oferece uma vida e natureza novas. Não somente nos dá um ensino novo ou uma compreensão nova do problema, não somente procura perdoar os pecados passados, faz-nos homens novos com desejos novos, aspirações novas, perspectiva nova e orientação nova. Porém sobretudo nos dá essa vida nova, a vida que ama a luz e odeia as trevas, no lugar de amar as trevas e odiar a luz. Os crentes, vocês e eu, vivemos em meio de pessoas que vivem em densas trevas. Nunca encontraram luz alguma neste mundo a não ser no evangelho que nós cremos e ensinamos. Eles nos observam. Vêm algo diferente em nós? Nossas vidas são uma reprovação silenciosa das vidas de tais pessoas? Vivemos de tal modo que as induzimos a vir a nós para nos perguntarem: Por que parecem sempre tão felizes? Como se mostram sempre tão equilibrados? Como podem aceitar as coisas como o fazem? Por que não dependem como nós de ajudas e prazeres artificiais? Que têm que não temos? 110 Se o fazem assim então podemos comunicar-lhes essas novas tão maravilhosas, surpreendentes, embora tragicamente omitidas, de que Cristo Jesus veio ao mundo salvar aos pecadores, e para dar aos homens uma nova natureza e uma nova vida, e para fazê-los filhos de Deus. Somente os crentes são a luz do mundo de hoje. Vivamos e atuemos como filhos da luz. Depois de ter-se referido aos crentes como sal da terra e luz do mundo, Jesus disse o seguinte em relação à lei: “17 Não penseis que vim destruir a lei ou os profetas; não vim destruir, mas cumprir. 18 Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a terra passem, de modo nenhum passará da lei um só i ou um só til, até que tudo seja cumprido. 19 Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e assim ensinar aos homens, será chamado o menor no reino dos céus; aquele, porém, que os cumprir e ensinar será chamado grande no reino dos céus.” Cristo e o Antigo Testamento “17 Não penseis que vim destruir a lei ou os profetas; não vim destruir, mas cumprir. 18 Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a terra passem, de modo nenhum passará da lei um só i ou um só til, até que tudo seja cumprido. 19 Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e assim ensinar aos homens, será chamado o menor no reino dos céus; aquele, porém, que os cumprir e ensinar será chamado grande no reino dos céus. 20 Pois eu vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus.” (Mt 5.17-20) Nos versos anteriores a estes (13 a 16) Jesus havia dito que o crente é o sal da terra e a luz do mundo e que as suas obras devem resplandecer para que Deus seja glorificado por meio delas. 111 O Senhor disse que somos cidadãos do reino dos céus, e devido a isso, temos que manifestar as características de tal cidadania. E devemos fazê- lo para o fim de Deus ser glorificado. Suscita-se então a pergunta, como temos que fazê-lo. Este é o tema que se nos apresenta. A resposta pode ser formulada assim: temos que viver uma vida justa. Esta é a palavra que sintetiza a vida cristã: “justiça”, ou retidão. E o tema do resto do Sermão do Monte é, em muitos aspectos, este, de que o tipo de vida reta que o crente deve viver. Até Mt 7.14 é este o tema dominante. O que é esta justiça ouretidão que temos que manifestar? Qual é a índole da mesma? Os versículos 17 a 20 deste quinto capítulo são uma espécie de introdução geral ao tema. Nosso Senhor apresenta este problema global da justiça e da vida justa que tem que caracterizar o crente. Antes de entrar em detalhes, propõe certos princípios gerais. Assim, logo nos versículos 17 e 18 afirma que tudo o que vai ensinar está de acordo com o ensino da Escritura do Velho Testamento. A segunda proposição que apresenta nos versos 19 e 20 é que o seu ensino está em desacordo absoluto com o ensino dos fariseus e escribas. Jesus não se contentou em apresentar somente a Sua doutrina, como também criticou outras doutrinas. Ele criticou o ensino dos fariseus e escribas, e o desmascarou e atacou com frequência. Hoje há uma tendência em se ensinar somente aquilo que se julga positivo, e muito desagrada a muitos evangélicos terem que criticar outras posições. No entanto, é indispensável que façamos o mesmo que fizera o nosso Senhor. (Certamente não se trata de se abrir uma guerra chamada santa, ou se deixar dominar por amargura de espírito contra aqueles que andam errados doutrinariamente, mas é nosso dever desmascarar o erro onde quer que ele se encontre, quer no nosso próprio meio ou não, com vistas a manter a verdade divina entre as pessoas, para que possam achar a vida abundante que Jesus veio nos trazer – nota do tradutor). Os judeus consideravam os escribas e os fariseus como sendo os expoentes das Sagradas Escrituras. (No entanto Jesus sublinhou que eles erravam tanto na exposição das Escrituras quanto na sua prática, mas Ele não somente faria a exposição correta do ensino da verdade das Escrituras, como também cumpriria 112 perfeitamente todas as suas santas exigências. Assim, não veio destruir a revelação do Antigo Testamento, mas confirmá-la, inclusive naqueles aspectos relativos à transposição profetizada no Velho Testamento, da Antiga para a Nova Aliança. Era nEle, Jesus, que tal teria cumprimento. Jesus comprovou a validade das Escrituras do Velho Testamento na Antiga Aliança, vivendo sob os costumes dos judeus determinados pela Lei para o referido período do Antigo Testamento, como também, inaugurou uma Nova Aliança, revogando a obrigatoriedade de cumprimento das disposições cerimoniais da Lei, especialmente para que o evangelho alcançasse também as nações gentias – nota do tradutor). Com seu ensino Jesus destacou que a lei de Deus é absoluta e que não pode ser mudada, nem modificada no mínimo. É absoluta e eterna. Suas exigências são permanentes, e nunca podem ser revogadas, nem reduzidas “até que passem o céu e a terra”. Esta última expressão significa o fim dos tempos. O céu e a terra são sinal de continuidade. Enquanto permanecerem, diz nosso Senhor, nada desaparecerá, nem um jota ou til da lei. Não há nada menor que isto no alfabeto hebraico. Isto indica que a lei que Deus promulgou, e que pode ser encontrada no Antigo Testamento e em tudo o que os profetas disseram, se cumprirá até o mínimo detalhe, e permanecerá até que se tenha cumprido até a perfeição. Logo, a vinda do Senhor teve o propósito de conduzir até a perfeição tudo o que está contido na lei e nos profetas. (De fato, muito do que está profetizado no Velho Testamento teve cumprimento quando Jesus se manifestou em carne, e muito ainda do que está profetizado ainda aguarda pelo respectivo cumprimento, e as palavras de Jesus asseguram que tudo será cumprido a seu tempo, sem falhar – nota do tradutor). Cristo Cumpre a Lei e os Profetas Nunca devemos separar o Antigo Testamento do Novo. Me parece cada vez mais que é muito lamentável que se publique somente o Novo Testamento, porque tendemos a cair no erro grave de pensar que, porque somos cristãos, não necessitamos do Antigo Testamento. Foi o Espírito Santo quem guiou a Igreja Cristã, que era em grande parte gentia, a incorporar as Escrituras do Antigo Testamento com as Escrituras do Novo e a considerá-las como uma só coisa. Estão indissoluvelmente vinculadas 113 entre sí, e há muitos sentidos em que se pode dizer que não se pode entender o Novo Testamento sem a verdade e a luz que nos dá o Antigo Testamento. Por exemplo, é quase impossível sacar qualquer proveito na epístola aos Hebreus, a não ser que conheçamos as Escrituras do Antigo Testamento. Deus nunca mostrou com maior clareza a natureza inviolável e absoluta de Sua própria Lei, quando colocou seu próprio Filho debaixo da mesma. Observem quão cuidadoso foi nosso Senhor em observar a lei; Ele a obedeceu até em seus mínimos detalhes. Não somente isto, ensinou a outros a amarem a lei e a explicou confirmando-a constantemente e afirmando a necessidade absoluta de obedecê-la. Jesus cumpriu perfeitamente as exigências da Lei, até mesmo quando morreu em nosso lugar, fazendo-se pecado por nós. Ao morrer na cruz, cumpriu de forma passiva a exigência da Lei, determinando a condenação e a morte daquele que a violasse. Assim, ao morrer carregando sobre si os nossos pecados, Jesus estava cumprindo completamente a Lei, em suas santas exigências. O castigo não poderia ser anulado. Deus não poderia considerar pecadores culpados como sendo inocentes. Então a Lei teve que ser cumprida para que pudéssemos ser perdoados, por sermos considerados por Deus como tendo morrido juntamente com Cristo. Ao morrer na cruz, oferecendo-se como oferta pelos nossos pecados, Jesus deu cumprimento a todos os símbolos existentes na Lei de Moisés, quanto às ofertas e abluções pelos pecados. (Nos versos 19 e 20 do quinto capítulo Jesus afirmou: “19 Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e assim ensinar aos homens, será chamado o menor no reino dos céus; aquele, porém, que os cumprir e ensinar será chamado grande no reino dos céus. 20 Pois eu vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus.” (Mt 5.19,20). Jesus sublinha a importância dos crentes não violarem os mandamentos da Lei, e de darem a devida honra e cumprimento à Lei (v. 19). No entanto, destacou que se espera dos crentes uma justiça superior à dos escribas e fariseus, que era meramente baseada no esforço de cumprir a lei. E destacou que é por esta justiça que se entra no reino dos céus (v. 20), a saber, a justiça que é pela fé nEle, e pela qual somos justificados para sermos reconciliados eternamente com Deus. Justificação esta, que nos 114 sendo imputada, atribuída, nos capacitará a receber em nossa própria natureza a justiça evangélica que nos é implantada progressivamente pelo trabalho do Espírito Santo, com base na graça, na fé e no arrependimento, que consiste no trabalho da regeneração e da santificação do Espírito – nota do tradutor). Qual é a relação do crente com a lei? Pode-se responder assim. O crente já não está sob a lei no sentido de que a lei é um pacto de obras. Este é todo o argumento de Gálatas 3. O crente não está sob a lei nesse sentido; sua salvação não depende que cumpra a lei, porque tem sido libertado da maldição da lei; e já não está sob ela como uma relação contratual entre ele e Deus. Todavia, isto não o dispensa da lei como norma de vida. O problema se suscita porque nos confundimos quanto à relação entre a lei e a graça. Tendemos a ter uma ideia equivocada da lei e a pensar nela como se fosse algo que se opõe à graça. Porém, não é assim. A lei somente se opõe à graça, quando, em outro tempo havia um pacto de lei, e agora estamos debaixo de um pacto de graça. Tampouco, há de se pensar que a lei é idêntica à graça. Nunca foi assim. A lei nunca foi dada para salvar o homem, porque não pode salvá-lo, senão unicamente a graça. Muitos têm uma ideia equivocada em relação à graça, porque pensam que a graça é algo separado da lei. A isto se chama antinomianismo, a atitude dos que abusam da doutrina da graça para levar uma vida de pecado e indolência. Dizem: “não estou sob a lei,senão sob a graça, e portanto, não importa o que faça”. Foi por isso que Paulo escreveu o sexto capitulo de Romanos, para demonstrar como tal ideia é errônea e falsa quanto à graça. Um dos propósitos da graça, é o de capacitar-nos a cumprir a lei. Nosso problema é que temos às vezes uma ideia equivocada quanto à santidade. Não temos que considerar a santificação como uma experiência que temos que receber. Não. Santidade significa ser justo, e ser justo significa cumprir a lei. Nunca devemos separar estas duas coisas. A graça não é sentimento. A santidade não é uma experiência. Devemos ter esta mente e disposição novas que nos conduzem a amar a lei e a desejar guardá-la, e Cristo, com seu poder nos capacita para cumpri-la. 115 Justiça Maior do que a dos Escribas e Fariseus “Pois eu vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus.” (Mt 5.20). Os escribas e fariseus pareciam ao povo judeu serem pessoas muito santas. Porém, nosso Senhor demonstrou com clareza que careciam tanto de justiça quanto de santidade. Eles não amavam a Deus e ao próximo como convinha. Não tinham misericórdia pelos pecadores e não estavam em nada interessados em alcançá-los para uma vida de justiça e de santidade. Eles não interpretavam nem entendiam corretamente a lei. Os escribas e fariseus eram em muitos sentidos as pessoas mais notáveis da nação judaica. Os escribas eram homens que se dedicavam exclusivamente a explicar e a ensinar a lei, eram as grandes autoridades na lei de Deus. Dedicavam toda a sua vida ao estudo e à ilustração da mesma. Mais que qualquer outro grupo de pessoas, podiam, portanto, pretender estar preocupados com a lei. Copiavam-na com cuidado, e passavam a vida ocupados com a lei, e todos tinham grande consideração por eles por esta mesma razão. Os fariseus eram homens notáveis e famosos por sua “santidade”. A própria palavra “fariseu” significa “separado”. Eram pessoas que se consideravam aparte, porque haviam composto um código cerimonial relacionado com a lei que era mais rigoroso que a própria lei de Moisés. Haviam estabelecido regras e normas de vida e conduta que em seu rigor excediam tudo quanto se continha nas Escrituras do Antigo Testamento. (Quanto deste comportamento farisaico há no meio da própria Igreja, apesar de Jesus ter advertido quando a este fermento de hipocrisia farisaica, que acrescenta costumes rigorosos à vontade revelada de Deus, para colocar fardos pesados sobre os ombros das pessoas, para passar a imagem de uma pretensa santidade? – nota do tradutor). Por isso Jesus apresentou o exemplo do publicano e do fariseu que subiram ao templo para orarem. O fariseu disse que jejuava duas vezes por semana. Porém no Antigo Testamento não há nenhuma passagem que requeira isto. De fato pede que se jejue uma vez por ano. Porém pouco a pouco esses homens haviam elaborado o seu próprio sistema e haviam conseguido impô-lo ao povo, ao qual exortavam e mandavam que jejuassem duas vezes por semana em vez de uma vez por ano. Desse modo haviam chegado a formar seu próprio código rigoroso de moral e conduta, 116 e em consequência disso, todos teriam aos fariseus como modelos de virtude. O homem comum dizia de si mesmo: “Ah, não tenho qualquer esperança de chegar a ser tão religioso como os escribas e os fariseus. São excelentes; vivem como santos. Esta é a sua profissão; este é o seu único objetivo no sentido religioso, moral e espiritual”. Porém, aí interveio nosso Senhor, anunciando a esta gente que a não ser que sua justiça fosse maior do que a dos escribas e fariseus não poderiam jamais entrar no reino dos céus. Jesus estabelece aqui, como postulado, que a justiça do crente, do menor deles, deve exceder a dos escribas e fariseus. Devemos portanto, analisar a profissão da fé cristã, à luz desta análise de Jesus Cristo. A religião dos escribas e fariseus era completamente externa e formal em vez de ser uma religião do coração. O reino de Deus se ocupa do coração; não são minhas ações externas, senão o que há dentro de mim, o que importa. Jesus acusou os fariseus e escribas por se preocuparem mais com o cerimonial do que com o moral. Eles eram muito cuidadosos externamente; eram sumamente meticulosos em lavar as mãos quanto aos aspectos cerimoniais da lei. Porém não se preocupavam tanto dos aspectos morais da lei. E isto não continua sendo um perigo terrível? Há um tipo de religião – e, por desgraça, me parece que vai se fazendo cada vez mais comum – que vacila em ensinar, que devemos apenas ir à igreja aos domingos pela manhã, e não importa muito o que façamos no restante do dia. Muitos pensam que estão corretos diante de Deus por apenas participarem da santa ceia, e pensam que estão livres depois para fazerem o que quiserem. Então há esta tendência para se pensar, tal como os fariseus, que desde que se tenha comparecido ao culto, isto nos basta. O objetivo final dos fariseus não era o de glorificar a Deus senão a si mesmos. Quando cumpriam seus deveres religiosos pensavam em si mesmos e no seu próprio bem-estar. Este é um perigo sempre presente na Igreja de fazermos somente aquilo que consideramos ser nossa obrigação religiosa. (Quantos têm sido impulsionados pelo Espírito Santo, para serem instrumentos de Deus para abençoarem as vidas de muitos? Quando falta isto, nossa religião é vã, porque quando estamos realmente em comunhão 117 com Deus, Ele desperta em nós um grande interesse em nos esforçarmos para abençoar as pessoas, e Ele nos capacita efetivamente a isto, criando as condições para que sejamos instrumentos úteis para promover a aproximação de outros ao Seu trono de graça, para serem abençoados e guiados na verdade, tanto quanto nós. Então a nossa religiosidade será sempre medida pelo grau da nossa misericórdia e amor ao próximo – nota do tradutor). É de Vital Importância Conhecer o Espírito da Lei Além da Letra da Lei Ao usar a fórmula “ouvistes o que foi dito aos antigos, eu porém vos digo” no Sermão do Monte, nosso Senhor Jesus Cristo não estava fazendo alterações na Lei de Moisés, porque havia afirmado antes que não veio revogar a Lei, mas cumpri-la. Afinal, como Deus que é, Ele próprio havia dado a Lei a Moisés, e portanto, estava não modificando mas revelando o espírito da Lei, por uns poucos exemplos que havia tomado para apresentar em seu ensino relativo à forma de um crente se relacionar com a Lei. Ele tinha em vista combater especialmente o ensino errôneo dos escribas e fariseus quanto ao modo de se aplicar a Lei, pois eles não atentavam para o espírito da Lei, senão para a letra, e ainda assim, não faziam uma exposição adequada da letra da Lei sem alterar o modo como se encontra registrada nas Escrituras. Eles se valiam da ignorância do povo de um modo geral da língua hebraica, na qual a Lei encontrava-se escrita, porque desde que haviam sido deportados para Babilônia os judeus começaram a falar o aramaico no lugar do hebraico, e praticamente somente os escribas e fariseus detinham o conhecimento do hebraico, de maneira que tinham facilidade para ocultar o verdadeiro significado da Lei para o povo. Entretanto faltava a eles próprios, a sabedoria para entenderem o verdadeiro significado e forma de aplicação dos preceitos de Deus constantes da Sua Palavra. Então Jesus tratou de expor a verdadeira maneira de se tratar com a Lei, que como veremos adiante, era bastante diferente do modo como a mesma era apresentada ao povo pelos escribas e fariseus. A situação dos judeus nos dias de Jesus era muito semelhante à das nações nos dias da Reforma Protestante, quando as Escrituras eram lidas apenas em Latim pela Igreja Romana. E para terem acesso às Escrituras as pessoas tinham que recorrer aos padres supondo que eles poderiam dar-lhes as 118 explicações que buscavam de maneira conveniente e verdadeira. O que a Reforma Protestante fez foi colocar a Bíblia nas mãosdo povo, permitindo que fosse lida na própria língua deles, e comprovarem o falso ensino e as explicações errôneas do evangelho que lhes haviam sido dadas. Assim, como os judeus dependiam nos dias de Jesus dos escribas e fariseus para ter acesso às Escrituras, o que lhes foi ensinado como sendo a lei, não o era em absoluto. Consistia sobretudo em interpretações e tradições que eles haviam acrescentado à lei ao longo dos séculos. De tal maneira haviam acrescentado suas próprias interpretações que era quase impossível naquele tempo dizer o que era de fato a Lei e qual era a sua interpretação. Então quando Jesus disse “ouvistes o que foi dito aos antigos, eu porém vos digo” Ele certamente estava pretendendo afirmar senão que tudo o que eles vinham ouvindo desde há muito da parte dos escribas e fariseus deveria ser entendido à luz da interpretação correta que Ele apresentaria agora quanto à forma de se honrar e aplicar a Lei de Deus à vida, pelos exemplos que seriam destacados por Ele (homicídio, adultério, amor ao próximo etc – Mt 5.27-43) para ilustrar o quanto erroneamente eles haviam sido ensinados quanto ao modo de se considerar a Lei. Ele não estava portanto dizendo: “a lei de Moisés dizia, eu porém vos digo”. Lembremos que Ele havia confirmado e não revogado a Lei. Senão que estava afirmando: “vocês têm sido ensinados assim quanto à Lei, eu porém vos digo...”, afirmando a Sua própria autoridade como quem tinha a interpretação autêntica da Lei, por ter sido Ele próprio o Seu autor. Como Jesus queria ensinar-nos o espírito da lei, os princípios da Lei, se tomarmos estas ilustrações do Sermão do Monte, particularmente as de Mateus 5.27-43, e as convertermos em lei, estaremos negando o que Ele quis fazer. Jesus fez isto porque conhece bem a natureza humana e sabe que é dada a se apegar mais a dogmas do que a princípios. Esta é a causa do sucesso de várias seitas em obterem adeptos. O homem natural gosta de uma lista concreta de ordenanças. Porém isto não é possível no caso do evangelho, não é possível de modo algum no reino de Deus. Se na dispensação da Antiga Aliança havia espaço para uma postura legalista, ainda que não fosse este o objetivo de Deus com a doação da Lei, entretanto não há nenhum espaço para tal legalismo na dispensação da Nova Aliança. Mas mesmo na Nova Aliança, como é também ao homem que se destina o mandamento, este sempre achará mais fácil ser legalista do que viver 119 em função de princípios, que apontem para uma santidade de toda a vida, quer do corpo, quer da alma, quer do espírito. Em vez de se buscar o espírito da lei, será comum ver a busca da letra da lei. No entanto a lei não é tanto um código ético, mas um esboço de um estilo de vida, que aponta o modo pelo qual devemos viver neste mundo. Se tomarmos as seis afirmações que Jesus fez em Mt 5.27-43 em função da fórmula “ouvistes o que foi dito, eu porém vos digo”, veremos que o princípio que Ele utiliza é o mesmo em cada caso. Num trata da moralidade sexual, no seguinte do homicídio, e noutro do divórcio. Porém o princípio é sempre o mesmo. Nosso Senhor, como Mestre sabia que é importante ilustrar um princípio, e por isso deu seis exemplos de uma verdade. Vejamos agora este princípio comum que se encontra nos seis exemplos, de modo que quando passemos a estudar cada um dos exemplos, possamos ter bem presente que o desejo básico do Senhor era mostrar o significado e intenção verdadeiros da lei. E corrigir as conclusões errôneas que os escribas e fariseus haviam tirado dela e todas as noções falsas que haviam baseado nela. Estes são portanto os princípios a que nos referimos: primeiro, o que sobretudo conta é o espírito da lei, e não somente a letra. A lei teria que ser algo vivo, aplicável à vida e não mecânico. O problema dos fariseus e dos escribas era que não somente se concentravam na letra, como também excluíam o espírito. O homem sempre se fixa mais na forma do que no conteúdo, mais na letra do que no espírito. Por isso Paulo disse que a letra mata, mas o espírito vivifica (II Cor 3.6), e o pensamento principal de Paulo neste capítulo de Coríntios é que Israel tinha se concentrado tanto na letra da lei, que havia perdido o espírito da lei. O propósito específico da letra é dar corpo ao espírito, e o espírito é o que realmente importa, não a simples letra. Tomemos por exemplo, a questão do homicídio. Os escribas e fariseus criam que haviam cumprido a lei com perfeição se não matassem de fato a ninguém. Porém, com isso não entendiam nada do espírito da lei, e que este não diz respeito que não tenho somente que não matar literalmente a ninguém, mas que minha atitude em relação aos outros tem que ser justa e amorosa. Pode-se dizer o mesmo das demais ilustrações que Jesus fez, de maneira que Ele e os apóstolos resumem toda a Lei no amor ao próximo, afirmando que aquele que ama tem cumprido a Lei. É evidente pois, que se confiamos somente na letra entenderemos mal a lei. 120 Tomemos agora o segundo princípio, que não é senão uma outra maneira de expressar o primeiro. A conformidade à lei não tem que ser considerada somente em função de atos. Os pensamentos, motivos e desejos são igualmente importantes. A lei de Deus se ocupa tanto do que conduz aos atos como dos atos propriamente ditos. Isto não quer dizer que os atos não importam, quer dizer que não importam somente os atos, porque Deus leva em consideração o que os motiva. Assim não é somente o ato consumado do homicídio ou do adultério que contam para Deus mas os desejos da mente e do coração do homem que o conduz a praticar tais atos ou a pensar em praticá-los,. Como os maus pensamentos e as más ações procedem do coração o que importa é o coração do homem. Por isso não se deve pensar na lei de Deus, em agradar a Deus somente em função do que fazemos ou deixemos de fazer, porque é a atitude interna que Deus sempre leva em conta. O estado de nossa alma e coração. Um outro princípio é que se deve pensar na lei não somente de forma negativa, mas também de forma positiva. O propósito último da lei não é somente impedir que façamos certas coisas que são más, seu verdadeiro objetivo é nos guiar de forma positiva, não somente para que façamos o que é bom, como também para amá-lo. Há quem pense na santidade e na santificação de maneira puramente mecânica. Pensam que desde que não se embriaguem, que deixem de ir ao teatro, etc, tudo vai bem. Sua atitude é puramente negativa. Não parece importar que alguém seja invejoso, ciumento, rancoroso. O fato de que esteja cheio de orgulho parece não importar contanto que não se faça certas coisas. O quarto princípio é que o propósito da lei tal como Cristo o propõe, não é manter-nos num estado de obediência a normas opressoras, senão fomentar o livre desenvolvimento de nossa vida espiritual. Isto é de importância vital. Não devemos pensar na vida santa, no caminho da santificação, como algo áspero e penoso que nos coloca num estado de escravidão. De maneira alguma, porque há a possibilidade gloriosa que nos é oferecida no evangelho de Cristo para que nos desenvolvamos como filhos de Deus, crescendo à medida da estatura da plenitude de Cristo. O apóstolo João nos diz em sua primeira carta que os mandamentos do Senhor não são penosos, de maneira que se você e eu consideramos o ensino ético do Novo Testamento como algo que nos paralisa, se pensamos nele como algo que nos restringe totalmente, significa que não 121 temos entendido o propósito do evangelho de nos conduzir à liberdade gloriosa dos filhos de Deus, e estes preceitos específicos não são mais do que exemplos concretos de como podemos chegar a isso e a desfrutá-lo. Isto, por seu turno, nos conduz ao quinto princípio que é a lei de Deus, e todas estas instruções éticas da Bíblia, nunca devem ser consideradas como um fim em si mesmas. Nunca devemos pensar nelas como algo que temos que colocar na parede e dizer, como faziam os escribas e fariseus:“Bem, não sou réu de nada disso, e portanto tudo vai bem. Sou justo e tudo vai bem entre Deus e eu.”. Isto porque consideravam a lei como algo em si mesma. A codificaram deste modo, e contanto que cumprissem este código diziam que tudo estava bem. Segundo nosso Senhor, esta é uma ideia falsa sobre a lei. Porque não é à lei que temos que dirigir nossas perguntas, mas a uma pessoa, ao próprio Deus. Como está minha relação com Deus? Tenho lhe agradado? Noutras palavras, a pergunta que tenho que fazer não é somente se tenho cometido homicídio ou adultério, se sou culpado desta ou daquela coisa, e caso contrário dar graças a Deus porque tudo vai bem. Não. Uma abordagem correta seria perguntar se tenho colocado Deus como o primeiro em minha vida, se tenho vivido para Sua honra e glória, se o tenho conhecido melhor a cada dia, se tenho zelo por Sua honra e glória, e se há algo em mim que não se assemelha a Cristo, em pensamentos, imaginações, desejos e impulsos. Esta é a forma correta de se perguntar em relação aos princípios revelados na Lei. Ela nos foi dada para os conduzir a isto. Assim o legalista se examina à luz de um código mecânico de normas e regras, mas o que vive em santidade verdadeira pelo poder do Espírito se examina à luz de uma Pessoa viva. E assim como não temos que considerar a lei como um fim em si mesma, de igual modo não temos que considerar assim o Sermão do Monte. São instrumentos que têm como finalidade nos conduzir a uma relação autêntica e viva com Deus. Devemos ter sempre cuidado portanto para não fazer do Sermão do Monte o que os escribas e fariseus fizeram com a Lei de Moisés. Não podemos viver a vida cristã aparte de uma relação direta, viva e genuína com Deus. Não Matarás “21 Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; e, quem matar será réu de juízo. 122 22 Eu, porém, vos digo que todo aquele que se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo; e quem disser a seu irmão: Raca, será réu diante do sinédrio; e quem lhe disser: Tolo, será réu do fogo do inferno. 23 Portanto, se estiveres apresentando a tua oferta no altar, e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, 24 deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai conciliar-te primeiro com teu irmão, e depois vem apresentar a tua oferta. 25 Concilia-te depressa com o teu adversário, enquanto estás no caminho com ele; para que não aconteça que o adversário te entregue ao guarda, e sejas lançado na prisão. 26 Em verdade te digo que de maneira nenhuma sairás dali enquanto não pagares o último ceitil.” (Mt 5.21-26) Para detalhar em que consistia a justiça que deveria exceder em muito a dos escribas e fariseus, conforme havia citado no verso precedente a estes (v. 20), Jesus começou a ilustrá-la com o ensino destes versos 21 a 26. Este é o primeiro dos seis exemplos que Jesus apresentou para sua interpretação da lei de Deus em contraposição à dos escribas e fariseus. Os escribas e fariseus eram culpados de terem restringido o sentido e aplicação da lei. Ao terem agregado ao mandamento não matarás das tábuas da lei de Moisés, o de que o assassino se faria réu de juízo, os escribas e fariseus reduziram e confinaram as sanções divinas que acompanhavam o mandamento “não matarás” a um simples castigo da parte das mãos dos magistrados civis. A consequência é que ensinavam simplesmente: “Não deves matar porque se o fizeres correrás o perigo de que o magistrado civil te condene”. Esta era a interpretação total e completa deles, do grande mandamento que diz: “Não matarás”. Em outras palavras, haviam esvaziado o mandamento de seu grande conteúdo e o haviam reduzido a uma simples questão de homicídio. Além disso, não mencionavam nada relativamente ao juízo de Deus. Parece que importava-lhes somente o juízo da corte local. Haviam convertido o mandamento em algo puramente legal, e somente da letra da lei que dizia: “se cometeres homicídio, se seguirão certas consequências”. 123 Assim, para os escribas e fariseus, desde que não se cometessem homicídios, tudo estava bem diante de Deus, porque davam o mandamento não matarás por cumprido. Mas Jesus disse: Não. Não. Nisto se vê precisamente como o conceito geral de justiça e de lei, do ensino dos escribas e fariseus se converteu numa farsa completa. Tem restringido de tal modo a lei, a têm limitado tanto que de fato já não é a lei de Deus. Não transmite a exigência que Deus tinha em mente quando a promulgou. Vejamos como nosso Senhor colocou a descoberto essa falácia dos escribas e fariseus e como nos mostra que se a consideramos assim, entendemos mal o significado da santa lei de Deus. Apresenta sua ideia e exposição em três princípios que passamos a analisar. O primeiro princípio é que o que importa não é a letra senão o espírito. A lei diz: “Não matarás”, porém isto não significa tão somente “Não cometerás homicídio”. Interpretá-la assim é definir a lei com uma forma que nos permita pensar que podemos cumpri-la. (Por exemplo, se não matamos alguém, podemos pensar que temos cumprido a lei, apesar de odiar a muitos e de ofendê-los e prejudicá-los, quando sabemos que isto não é verdadeiro – nota do tradutor). Assim, podemos muito bem ser culpados de violar esta mesma lei numa forma sumamente grave. Nosso Senhor passa a explicá-lo. Este mandamento diz, inclui não somente o ato físico de matar, senão também a ira contra um irmão. A verdadeira forma de entender o “Não matarás” é esta: ”Qualquer que se enfureça contra seu irmão, será culpado de juízo”. Agora começamos a ver algo do verdadeiro conteúdo espiritual da lei. Nessa antiga lei dada por meio de Moisés estava todo esse conteúdo espiritual. Não imaginemos, portanto, que já não temos nada a ver como cristãos, com a lei de Moisés. Segundo nosso Senhor Jesus Cristo, abrigar inimizade no coração, é ser culpado de algo que, diante de Deus, é homicídio. Odiar, enfurecer-se, abrigar esse sentimento desagradável e odioso de ressentimento contra uma pessoa é homicídio. Porém isto não é tudo. Não somente não devemos nos irar; nunca devemos sequer mostrar desprezo. Porque qualquer que chamar seu irmão de raka será culpado ante o concílio. Desprezar a um irmão 124 chamando-o de raka, é, segundo nosso Senhor, algo que, diante de Deus, é terrível. Desprezo, sentimentos de burla e mofa, nascem do espírito que em última instância, conduz ao homicídio. Por várias razões, talvez não deixemos que se expresse em verdadeiro homicídio. Porém, por desgraça, frequentemente nos temos matado uns aos outros no pensamento e no coração, não é certo? Temos fomentado pensamentos contra pessoas, e esses pensamentos são tão maus como o homicídio. Podemos destruir a reputação de alguém, podemos quebrar a confiança de alguém em si mesmo por meio de críticas. Isto indica nosso Senhor nesta passagem, e o propósito que o guia é mostrar que tudo isto está incluído no mandamento, “Não matarás”. Matar não significa somente destruir a vida fisicamente, significa também tratar de destruir o espírito e a alma, destruir a pessoa na forma que seja. Nosso Senhor logo passa ao terceiro ponto: ”qualquer que lhe diga: Tolo, será exposto ao inferno de fogo”. Isto significa expressão ofensiva, difamação. Significa o ódio e inimizade de coração que se manifestam por meio de palavras. Estamos sem dúvida, diante de uma afirmação muito importante. “Quer dizer”, pergunta alguém, “que a ira é sempre má? Que sempre é proibida?” “Acaso não há exemplos”, pergunta outro, “no próprio Novo Testamento em que nosso Senhor falou desses fariseus em termos fortes; quando por exemplo se referiu a eles como sendo cegos e hipócritas, ou quando se voltou ao povo para dizer-lhes: “Oh insensatos e tardos de coração para crer”, e “insensatos e cegos”? Como pode proibir então que empreguemos os mesmos termos? Como reconciliar este ensino com Mateus 23 onde maldiz aos fariseus? Estas perguntas não são difíceis de responder. Quando nosso Senhor lançouas maldições, o fez com caráter judicial. O fez como quem tem recebido autoridade de Deus. Nosso Senhor pronuncia sentença final sobre os fariseus e escribas. Como Messias, tem autoridade para fazê-lo. Lhes havia oferecido o evangelho, lhes havia brindado com todas as oportunidades. Porém eles as haviam rechaçado. Não somente isto, devemos recordar que nosso Senhor sempre diz tais coisas contra a religião falsa e a hipocrisia. O que na realidade censura é a justiça própria que repudia a graça de Deus e inclusive se justificaria a si mesma diante de Deus e o rechaçaria. É judicial, e se vocês e eu podemos 125 dizer que empregamos tais expressões nesse sentido, então não caímos nesse pecado. O mesmo ocorre com os Salmos imprecatórios, que turbam a tanta gente. O salmista, sob inspiração do Espírito Santo, pronuncia sentença não somente contra seus próprios inimigos, senão contra os inimigos de Deus e contra aqueles que ultrajam a Igreja e o Reino de Deus, tal como aparecem nele e na nação. Em outras palavras, nossa ira deve se dirigir somente contra o pecado; nunca devemos nos irar com o pecador, senão somente sentir pesar e compaixão. Diante do pecado, da hipocrisia, da injustiça e de todo tipo de mal, deveríamos sentir ira. Assim, se cumpre a exortação de Paulo aos efésios: “Irai-vos e não pequeis”. As duas coisas não são incompatíveis. A ira de nosso Senhor sempre foi uma indignação justa, ira santa, expressão da ira de Deus mesmo. Recordemos que “a ira de Deus se revela desde o céu contra toda impiedade e injustiça dos homens que detêm com injustiça a verdade” (Rom 1.18). Nosso Deus, contra o pecado, é fogo consumidor. Não cabe dúvida disso. Deus odeia o mal. A ira de Deus se desencadeia contra ele e se derrama sobre ele. Isto é parte essencial do ensino bíblico. Quanto mais nos santificamos, maior ira sentimos contra o pecado. Porém, nunca devemos, repito, irar-nos contra o pecador. Nunca devemos irar-nos com uma pessoa como tal; devemos distinguir entre a pessoa e o que ela faz. Nunca devemos ser culpados de sentir desprezo e nem de ofender. Passemos agora à segunda afirmação: “Nossa atitude não deve ser negativa, senão positiva.”. Nosso Senhor o disse assim. Depois de haver sublinhado o aspecto negativo passa a formulá-lo de forma positiva, assim: ” 23 Portanto, se estiveres apresentando a tua oferta no altar, e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, 24 deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai conciliar-te primeiro com teu irmão, e depois vem apresentar a tua oferta.” Estamos diante de algo muito importante e significativo. Não somente não há que se abrigar pensamentos maus e homicidas no coração contra alguém; o mandamento de não matar significa realmente que deveríamos tomar medidas para reconciliar-nos com nosso irmão. O perigo é que não detenhamos o negativo, e creiamos que, como não temos cometido homicídio, então tudo vai bem. Porém, há um segundo passo que temos 126 esquecido, a saber: devemos chegar ao ponto que não haja nenhum mal entendido sequer, em espírito, entre nosso irmão e nós. Tentamos expiar os fracassos morais tratando de compensar o mal com o bem. Trata-se do perigo de oferecer certos sacrifícios rituais para cobrir os fracassos morais. Os fariseus eram experientes nisso. Iam ao templo com regularidade, eram sempre meticulosos nestas matérias de detalhes e minúcias da lei. Porém julgavam e condenavam constantemente aos demais com desprezo. Evitavam que a consciência lhes acusasse dizendo: “Depois de tudo dou culto a Deus; levo minha oferta ao altar”. Compensamos uma coisa com outra, pensando que este bem compensa aquele mal. Não, não, diz nosso Senhor. Deus não é assim. Isto é tão importante, que, inclusive se me encontrar diante do altar com uma oferta para Deus, e de repente recordar algo que tenho dito ou feito, algo que faz que outra pessoa tropece ou erre; se descobrisse que em meu coração há pensamentos ofensivos e indignos contra ele ou que criem obstáculos, então nosso Senhor nos diz que deveríamos, em certo sentido, inclusive deixar Deus esperando em lugar de seguir adiante com a oferta. Devemos nos reconciliar primeiro com o irmão e somente depois votar para fazer a oferta. Diante de Deus de nada vale o ato de culto se aceitamos um pecado conhecido. Finalmente, Jesus ensinou acerca deste princípio:” 25 Concilia-te depressa com o teu adversário, enquanto estás no caminho com ele; para que não aconteça que o adversário te entregue ao guarda, e sejas lançado na prisão. 26 Em verdade te digo que de maneira nenhuma sairás dali enquanto não pagares o último ceitil.” Jesus diz que não devemos demorar para acertar a situação. Não somente devemos pensar em função de nosso irmão que temos agravado, ou pelo qual sentimos inimizade, devemos sempre pensar em nós mesmos diante de Deus. Deus é o Juiz. Deus é o Justificador. Sempre nos exige estas coisas, e tem poder sobre todos os tribunais do céu e da terra. É o Juiz, e suas leis são absolutas. Tem direito a exigir até o último centavo. Que vamos fazer, pois? Você e eu estamos em viagem neste mundo, e aí está a lei com suas exigências. É a lei de Deus. Diz: “Que ocorre com tua relação com o irmão, que ocorre com isso que há em teu coração? Não tens lhe dado a devida atenção? Aja rápido, diz Cristo. Talvez não estejas aqui amanhã e irás para a eternidade como estás. Ponha-te logo em acordo com o teu adversário enquanto estás caminhando neste mundo. 127 A Pecaminosidade Extraordinária do Pecado “27 Ouvistes que foi dito: Não adulterarás. 28 Eu, porém, vos digo que todo aquele que olhar para uma mulher para a cobiçar, já em seu coração cometeu adultério com ela. 29 Se o teu olho direito te faz tropeçar, arranca-o e lança-o de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno. 30 E, se a tua mão direita te faz tropeçar, corta-a e lança-a de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que vá todo o teu corpo para o inferno.” (Mt 5.27-30) Os escribas e fariseus haviam reduzido o mandamento que proíbe o adultério ao simples ato físico de adulterar; e pensavam que desde que não cometessem o ato propriamente dito, o mandamento estaria perfeitamente cumprido. Eles haviam esquecido todo o espírito da lei. Como temos visto, isto é algo muito vital para uma verdadeira compreensão do evangelho do Novo Testamento: “a letra mata, porém o espírito vivifica.” Os dez mandamentos não podem ser tomados separadamente. Por exemplo, o décimo diz que não se deve desejar a mulher do próximo, e isto, obviamente, deveria ser tomado com relação a este mandamento de não cometer adultério. O apóstolo Paulo, nesta afirmação vigorosa de Romanos 7, confessa que ele próprio havia caído nesse erro. Diz que foi quando se deu conta de que a lei dizia: “Não cobiçarás”, que começou a entender o significado da concupiscência. Antes disso havia pensado na lei em função de atos somente. Porém, a lei de Deus não se limita às ações, diz: “Não cobiçarás”. A lei sempre havia insistido na importância do coração, e essa parte, com suas ideias ritualísticas do culto a Deus e seu conceito puramente mecânico da obediência, ele havia esquecido completamente. Nosso Senhor, portanto, quer sublinhar essa importante verdade para deixá-la bem gravada em seus seguidores. Os que pensam que podem adorar a Deus e conseguir a salvação com suas próprias ações são réus de tal erro. Por isso nunca entendem o caminho cristão da salvação. Nunca têm chegado a ver que em última instância é uma questão do coração; 128 senão que pensam que, enquanto não façam certas coisas e façam certas boas obras, estão justificados diante de Deus. Assim, às pessoas que diziam, “contanto que alguém não cometa adultério já têm cumprido esta lei”, Jesus Cristo diz: “todo aquele que olhar para uma mulher para a cobiçar, já em seu coração cometeu adultério com ela.”Tornamos a encontrar pois, o ensino de nosso Senhor relativo à natureza do pecado. Todo o propósito da lei, como Paulo nos recorda, era mostrar a malícia extraordinária do pecado. Porém, ao interpretá-lo mal desta forma, os fariseus o haviam debilitado. Talvez em nenhuma outra parte tenhamos uma acusação tão terrível do pecado tal como realmente é, do que nas palavras de nosso Senhor neste caso. Claro que sei que a doutrina do pecado não goza de boa reputação hoje em dia. O povo não gosta da ideia, e trata de explicá-la de forma sociológica, em função de processo e temperamento. O homem procede por evolução de seres inferiores, dizem, e pouco a pouco vão sacudindo estas relíquias de seu passado e natureza inferiores. Deste modo negam por completo a doutrina do pecado. Porém está claro que se pensamos assim, as Escrituras tornam-se sem significado, porque no Novo Testamento e também no Antigo, essas ideias são básicas. Por isso devemos analisá-las, porque nos tempos atuais nada há tão premente e necessário como entender bem a doutrina bíblica relativa ao pecado. Todos estamos debaixo da influência do idealismo, que tem predominado nos últimos cem anos, essa ideia de que o homem vai se aperfeiçoando, e de que a educação e a cultura vão melhorar a humanidade. Assim, a maior parte dos nossos problemas procedem daí. Não há evangelismo verdadeiro sem a doutrina do pecado, e sem entender o que é o pecado. Portanto, o evangelismo deve começar pela santidade de Deus, a condição pecadora do homem, as exigências da lei, o castigo a que a lei condena e as consequências eternas do mal e de praticar o mal. Somente o homem que chega a ver a sua maldade e culpa desta forma, recorre a Jesus Cristo para achar libertação e redenção. A fé no Senhor que não se baseia nisto, não é fé genuína. Pode-se ter inclusive fé sociológica no Senhor Jesus Cristo; porém a fé genuína O vê como quem nos liberta da maldição da lei. O verdadeiro evangelismo começa assim, e obviamente é 129 um chamamento ao arrependimento, arrependimento diante de Deus e fé em nosso Senhor Jesus Cristo. Jesus ensina claramente nesta passagem do Sermão do Monte, que o pecado não é somente uma questão de ações e de obras; é algo dentro do coração que conduz à ação. Em outras palavras, o que aqui se ensina é o que aparece ao largo da Bíblia acerca deste tema, a saber, que não quer se ocupar tanto dos pecados como do pecado. Os pecados não são senão sintomas de uma enfermidade chamada pecado e não são os sintomas que importam senão a enfermidade, porque o que mata é a enfermidade e não os sintomas. Finalmente o pecado é destruidor: “29 Se o teu olho direito te faz tropeçar, arranca-o e lança-o de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno. 30 E, se a tua mão direita te faz tropeçar, corta-a e lança-a de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que vá todo o teu corpo para o inferno.” O pecado destrói o homem; introduziu a morte na vida do homem e no mundo. Sempre conduz à morte, e finalmente ao inferno, ao sofrimento e castigo. Assim, se neste momento não nos sentimos manchados, que Deus tenha misericórdia de nós. Se nos sentimos satisfeitos com nossa vida porque não temos cometido a ação do adultério, ou do homicídio, afirmo que não nos conhecemos, que não conhecemos a negrura e sujidade de nosso coração. Devemos escutar o ensino do bendito Filho de Deus e examinarmos nossos pensamentos, desejos, imaginação. E a não ser que sintamos que somos vis e sujos, e que necessitamos que Jesus nos purifique e limpe, a não ser que nos sintamos impotentes com uma total pobreza de espírito, e a não ser que sintamos fome e sede de justiça, lhes digo que oxalá Deus tenha misericórdia de nós. Dou graças a Deus, por ter o evangelho que me diz que Outro que é imaculado, puro e completamente santo tem tomado sobre Si meu pecado e minha culpa. Tenho sido lavado em Seu precioso sangue, e me tem dado Sua própria natureza. Quando me dei conta de que necessitava de um coração novo, achei que, graças a Deus, Ele havia vindo para dá-lo a mim. 130 Mortificação do Pecado “27Ouvistes que foi dito: Não adulterarás. 28 Eu, porém, vos digo que todo aquele que olhar para uma mulher para a cobiçar, já em seu coração cometeu adultério com ela. 29 Se o teu olho direito te faz tropeçar, arranca-o e lança-o de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno. 30 E, se a tua mão direita te faz tropeçar, corta-a e lança-a de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que vá todo o teu corpo para o inferno.” (Mt 5.27-30). Nosso Senhor quis ensinar ao mesmo tempo a natureza verdadeira e horrível do pecado, o perigo terrível que o pecado significa para nós, e a importância de fazer frente ao mesmo e de repudiá-lo. Por isso o expressa deliberadamente desta maneira. Fala de membros valiosíssimos, o olho e a mão, e especifica o olho direito e a mão direita. Por que? Nós cremos que o olho e a mão, e especialmente o olho direito e a mão direitos são mais importantes que os esquerdos. Nosso Senhor quis dizer portanto que se aquilo mais precioso que temos, for a causa de pecarmos, devemos nos livrar disso. Tal é a importância do pecado para nos privar da verdadeira vida que Jesus expressou esta importância de tal maneira. Como enfrentaremos pois este problema do pecado? Gostaria de frisar que não se trata simplesmente de não cometer certos atos. Inclui isto mas é muito mais do que isso. A contaminação do pecado deve ser enfrentada no coração porque Jesus diz que aquele que olhar para uma mulher para cobiçá-la, cometeu adultério com ela em seu coração. Não cabe a menor dúvida que um conceito inadequado do pecado é a causa principal da falta de santidade e de santificação, e isto é resultante em grande parte de um ensino errôneo sobre a natureza da santificação. Devemos captar a ideia de pecado, como algo distinto dos pecados. Temos que saber que o Filho de Deus teve que vir dos céus para passar por tudo o que passou, inclusive morrer na cruz. Em nenhuma outra parte se manifesta a natureza do pecado com cores mais terríveis do que na morte do Filho de Deus. A segunda coisa que devemos ter em conta é a importância da alma e o seu destino eterno. “Melhor é que se perca um dos teus membros do que 131 todo o teu corpo ser lançado no inferno”. Adverte-nos nosso Senhor, e o repete duas vezes para colocá-lo em relevo. A alma é tão importante que se o olho direito é causa de queda no pecado, é melhor arrancá-lo, livrar- se dele, não num sentido físico. Há muitas coisas na vida e no mundo que, em si mesmas, são muito boas e proveitosas. Porém nosso Senhor nos diz aqui que se inclusive estas coisas nos fazem tropeçar devemos repudiá- las, ainda que sejam tão importantes como um dos membros valiosos do nosso próprio corpo. Se minhas faculdades, tendências, sentimentos, emoções, habilidades, me conduzem ao pecado, então devo repudiá-las. Devo levar estas coisas à morte da cruz, inclusive o afeto natural pelos meus familiares (Lc 14.26), caso eles venham a se tornar causa de tropeço para a minha santificação. Tal é a importância do destino eterno da alma que tudo o mais deve estar- lhe subordinado. Tudo o mais é secundário quando ela está em jogo. Não devemos permitir que nada se interponha entre nós e o destino eterno da nossa alma. Temos que nos dar conta de que tudo o que temos de fazer neste mundo é preparar-nos para a eternidade. O terceiro ponto é que devemos odiar o pecado e fazer tudo o que possamos para destruí-lo seja ao custo do que for. Devemos nos esforçar em odiar o pecado. Os puritanos sabiam analisar o pecado e denunciá-lo, e muitos se riam deles e os chamavam de especialistas em pecados. Que se ria o mundo que quiser, porém está a maneira de se santificar. Estudemos os puritanos, leiamos o que a Bíblia diz do pecado,e quanto mais o fizermos nós mais o odiaremos e faremos todo o possível para livrar-nos dele. O quarto ponto é que devemos ter um coração puro e limpo, um coração livre de cobiças e desejos. A ideia não é que estejamos livres de certas ações, senão que nosso coração seja purificado. “Bem aventurados os de coração puro porque eles verão a Deus.”. Nunca devemos pensar na santidade somente como não fazer algo errado, mas principalmente em cultivarmos um coração puro. Quando temos um conceito puramente negativo relativo à santidade, podemos ficar autosatisfeitos. Mas se examinarmos o nosso coração, e chegarmos a conhecer o que os puritanos sempre chamavam de “a corrupção de nosso coração” nos ajudaria na santificação. Porém não agrada a muitos examinarem seus corações. Geralmente nos orgulhamos do nome de evangélicos e nos sentimos muito felizes porque somos ortodoxos e porque não somos como os 132 liberais ou modernistas e outros grupos da igreja que estão obviamente equivocados. Ficamos satisfeitos com a posição em que estamos e pensamos erradamente que devemos apenas manter esta posição. Porém isto significa que não conhecemos nosso coração, e nosso Senhor exige um coração limpo. Pode-se cometer pecado no coração, Ele diz, sem que ninguém o veja. Porém Deus o vê, e diante de Deus é horrível, repugnante, feio, sujo. Pecado do coração! O último ponto é a importância da mortificação do pecado. O puritano John Owen escreveu um grande tratado sobre este assunto. O conceito genuíno da mortificação do pecado se encontra em muitas passagens do Novo Testamento como Rom 8.13; 13.14 e I Cor 9.27, por exemplo. Nestas passagens nós vemos que a natureza terrena, o velho homem, a carne, o homem exterior devem ser crucificados para que sejam mortos. Nunca devemos fazer provisão para os desejos da carne (Rom 13.14) diz- nos o apóstolo. Isto demonstra que há um sentido prático nesta mortificação na qual está incluído portanto o ato de repudiarmos tudo aquilo que possamos tocar, ou ver, ou fazer e que nos leve a contaminar o nosso coração. Todo tipo de imagem virtual ou real que sejam sugestivas para o pecado devem ser repudiadas. Tudo o que se ler, tudo que se ouvir, tudo o que se ver. Devemos evitar a todo custo. Ainda que isto nos traga o sentimento de estar cortando algum órgão nobre do nosso corpo. A carne gosta destas coisas, portanto tenhamos cuidado e privemo-nos delas, contrariando a nossa vontade. Estas coisas são fontes de tentação, e quando lhes dedicamos o nosso tempo nós estamos fazendo provisão para os desejos da carne. Nós estamos colocando combustível na chama do pecado que opera no nosso corpo. Mas argumentam conosco que muitas destas coisas são de autores brilhantes, que elas são educativas, que elas servem para nos manter atualizados com o mundo; mas nosso Senhor diz que devemos arrancar o olho e a mão. Ainda que me tenham na conta de ignorante por evitar estas coisas é melhor ser ignorante para o bem da minha alma, do que prejudicá-la por manter contato com estas coisas. Isto também significa evitar as conversações néscias e as estórias que são insinuantes e sujas. Digamos que não queremos ouvi-lo, que não nos interessa. 133 Devemos ter cuidado com quem nos reunimos. Em outras palavras, devemos ter cuidado de evitar tudo aquilo que tende a manchar ou impedir a nossa santificação. Devemos também nos abster de toda aparência de mal, isto é, de qualquer forma de pecado. Não importa que forma assuma. Tudo o que sei que me prejudica, e tudo o que me perturba, transtorna e excita, seja o que for, devo evitá-lo. Devo colocar como o apóstolo, o meu corpo em servidão ao Espírito de Deus. Devo fazer morrer a natureza terrena. Alguém poderá dizer que isto é um escrúpulo mórbido que me deixará atormentado e triste. Bem, há pessoas que se tornam mórbidas. Mas se há morbidez é porque a pessoa está relacionando a santidade consigo mesma, porque os escrúpulos mórbidos se concentram nas pessoas. Mas a verdadeira santidade se preocupa sempre em agradar a Deus. Em glorificá-lo e honrá-lo. Se isto estiver presente nunca há o risco de se tornar mórbido, e a santificação traz o fruto da paz e da alegria do Espírito Santo que é contrário a toda forma de morbidez. Devemos por fim vigiar e orar para fazer frente a todas as insinuações do mal. Para o verdadeiro crente não há maior estímulo e incentivo na luta para fazer morrer as obras da carne do que isto. O objetivo de nosso Senhor ao vir a este mundo e suportar toda sorte de sofrimentos até a morte na cruz foi para livrar-nos do presente século mau, para redimir-nos de toda iniquidade, e para escolher um povo exclusivo Seu, zeloso de boas obras. O propósito de tudo é que fôssemos santos e sem mancha diante dEle. Se seu amor e sofrimentos significam algo para nós, nos conduziriam inevitavelmente a estar de acordo com esse amor que exige em troca toda minha vida, toda minha alma, tudo o que tenho. Finalmente, estas reflexões devem nos conduzir a ver a necessidade absoluta que temos do Espírito Santo. Vocês e eu temos que fazer estas coisas. Porém, necessitamos de poder e da ajuda que somente o Espírito Santo pode nos dar. É pelo Espírito que fazemos morrer as obras da carne. Se nos entregarmos a este trabalho de mortificação do pecado, o Espírito nos dará do Seu poder. Portanto não devemos fazer o que sabemos que é mau. Vivamos no poder do Espírito. Desenvolvamos nossa salvação com temor e tremor. 134 Conhecendo a natureza terrível do pecado nós não tentaremos mortificá- los com nossas próprias forças mas com o poder do Espírito, sabendo que é Deus quem realiza em nós o querer e o efetuar. Sobre o Divórcio “31 Também foi dito: Quem repudiar sua mulher, dê-lhe carta de divórcio. 32 Eu, porém, vos digo que todo aquele que repudia sua mulher, a não ser por causa de infidelidade, a faz adúltera; e quem casar com a repudiada, comete adultério.” (Mt 5.31,32). Nós analisaremos esta passagem do Sermão do Monte em conjunto com o texto de Mt 19.3-12: “3 Então chegaram ao pé dele os fariseus, tentando-o, e dizendo-lhe: É lícito ao homem repudiar sua mulher por qualquer motivo? 4 Ele, porém, respondendo, disse-lhes: Não tendes lido que aquele que os fez no princípio macho e fêmea os fez, 5 E disse: Portanto, deixará o homem pai e mãe, e se unirá a sua mulher, e serão dois numa só carne? 6 Assim não são mais dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem. 7 Disseram-lhe eles: Então, por que mandou Moisés dar-lhe carta de divórcio, e repudiá-la? 8 Disse-lhes ele: Moisés, por causa da dureza dos vossos corações, vos permitiu repudiar vossas mulheres; mas ao princípio não foi assim. 9 Eu vos digo, porém, que qualquer que repudiar sua mulher, não sendo por causa de fornicação, e casar com outra, comete adultério; e o que casar com a repudiada também comete adultério. 10 Disseram-lhe seus discípulos: Se assim é a condição do homem relativamente à mulher, não convém casar. 11 Ele, porém, lhes disse: Nem todos podem receber esta palavra, mas só aqueles a quem foi concedido. 12 Porque há eunucos que assim nasceram do ventre da mãe; e há eunucos que foram castrados pelos homens; e há eunucos que se castraram a si mesmos, por causa do reino dos céus. Quem pode receber isto, receba-o.” (Mt 19.3-12). Nós temos aqui a lei de Cristo para o caso de divórcio, oriunda de uma discussão com os fariseus. Tão pacientemente Ele suportou as 135 contradições dos pecadores, que as transformou em instruções para os seus próprios discípulos. Nós vemos nestes versículos: O caso proposto pelos fariseus (v.3). Eles lhes perguntaram se era lícito um homem se divorciar da sua mulher, sem que estivessem desejando realmente serem ensinados por Ele. Algum tempo atrás na Galileia Ele havia também se pronunciado contra o divórcio no Sermão do Monte (Mt 5.31,32). Eles pensavam que ele se prenderia aos afetos das pessoas em vez de aosSeus preceitos. Ou pensavam que ele diria que os divórcios não eram legais, e assim teriam ocasião para dizer que ele estava negando a Lei de Moisés, que os permitia. Apesar de a Lei de Moisés prever que os divórcios somente poderiam ser admitidos por causas justas, eles estavam tentando ao Senhor com a insinuação de divórcios por quaisquer motivos. Qualquer motivo, especialmente o desgosto no matrimônio em relação ao cônjuge foi descartado por Jesus, porque o matrimônio é uma instituição universal para crentes e descrentes, para temperamentos brandos ou fortes, enfim, para quaisquer condições pessoais, então, nada há que justifique a dissolução do laço senão a única razão apresentada por Jesus de fornicação. Evidentemente, não era a ocasião para Ele declarar, como o apóstolo Paulo viria a fazer depois, que há a parte inocente, e livre para contrair novas núpcias, quando a outra parte decide desfazer o laço por qualquer outro motivo. As Escrituras do Velho Testamento estão repletas de princípios que revelam o quanto Deus detesta o divórcio, o repúdio, o adultério, mas como os fariseus não faziam um uso correto das Escrituras, eles desconsideravam completamente o que nelas estava contido a tal respeito, e seguiam a tradição que eles próprios inventaram para justificarem o divórcio, com base no único preceito de que Deus havia permitido através de Moisés que fosse dada carta de divórcio caso alguém pretendesse desfazer o laço matrimonial. No entanto, eles desconsideravam também o contexto em que tal permissão havia sido concedida, e conforme se encontra registrado no Pentateuco (Dt 24.1). Citamos apenas a título de exemplo que Deus realmente não aprova o divórcio, a afirmação que consta em Malaquias 2.16: “Porque o Senhor, o Deus de Israel diz que odeia o repúdio...”. Os fariseus sempre consideravam tudo pelo ângulo simplesmente jurídico-legal, e as Escrituras, e Cristo, o autor delas, sempre enfatizam o 136 ângulo espiritual, e os princípios espirituais que se encontram por detrás do preceito legal. A letra da Lei é apenas um corpo do espírito que há na Lei. Mas os fariseus não conseguiam ver o espírito, senão apenas a letra, e assim erravam duplamente tanto por desconhecerem o poder de Deus quanto o verdadeiro significado das Escrituras. Então Jesus os levou a considerar o propósito de Deus na criação do homem e da mulher, e quanto à instituição do matrimônio. Ele remontou até ao primeiro casal no Éden, que se encontrava em perfeição antes da queda no pecado, formando uma perfeita unidade diante de Deus e com Ele. Como poderia então Deus aprovar a separação daquilo que Ele havia unido para durar perpetuamente? Não seria por um simples ato legal, isto é, baseado no comprimento da Lei, sem levar em conta as condições previstas na própria Lei, e ainda que estas fossem consideradas, que aos olhos de Deus seria aprovada qualquer separação baseada em motivos injustificados. Na verdade, aos olhos do Senhor não há nada que justifique a separação, e até mesmo o ato de adultério seria uma concessão para liberar a parte inocente da continuidade do laço, no caso de apesar de perdoar a parte culpada, não se sentisse encorajada a continuar confiando na mesma. Assim, estaria liberada até mesmo para contrair novas núpcias sem achar-se com culpa diante de Deus. Por isso Jesus citou aos fariseus a lei fundamental do matrimônio conforme consta nas Escrituras: “Portanto, deixará o homem pai e mãe, e se unirá a sua mulher, e serão dois numa só carne. Assim não são mais dois, mas uma só carne.” (v. 5, 6). E concluiu: “Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem.” (v. 6b). Ele afirmou assim o princípio de que o matrimônio aos olhos de Deus é uma instituição que Ele criou para durar e não para ser considerada pusilanimemente, por quem quer que seja. O princípio que norteia a união matrimonial não é se me sinto ou não feliz na mesma. Se sou de temperamento compatível ou não com o meu cônjuge, mas que uma vez consumada a conjunção carnal, passo a ser um com aquele com o qual me ajuntei sexualmente. Por isso Paulo considera um ato de adultério o de quem se relaciona com uma meretriz, porque fazendo-se um só corpo com ela através do ato sexual, peca contra Cristo, com quem está unido pela fé. Fazendo-se uma só carne com a meretriz, ele é visto aos olhos de Deus tão prostituído quanto a prostituída à qual se uniu. 137 “15 Não sabeis vós que os vossos corpos são membros de Cristo? Tomarei, pois, os membros de Cristo, e fá-los-ei membros de uma meretriz? Não, por certo. 16 Ou não sabeis que o que se ajunta com a meretriz, faz-se um corpo com ela? Porque serão, disse, dois numa só carne.” (I Cor 6.15,16). Isto tudo porque a relação matrimonial, para Deus, é mais íntima e próxima do que a existente entre pais e filhos, e se a relação filial não pode ser violada tão facilmente, quanto mais a matrimonial. Um filho pode abandonar seus pais, ou os pais abandonarem seus filhos senão pelo motivo do casamento destes? Veja então o peso que Deus colocou na instituição do matrimônio que Ele próprio criou. Quantos ignoram isto, e pecam grosseiramente a este respeito? Entretanto, a par da sua ignorância, são achados em culpa perante Deus, porque a própria natureza ensina que a família possui um caráter sagrado para o Criador. Os filhos trazem a herança genética comum de seus pais, e isto é um grande argumento para que vejam que são realmente marido e esposa, uma só carne diante de Deus. É pela união de ambos que outros seres humanos chegam ao mundo, e não com as características genéticas de outras pessoas, senão somente daqueles que os geraram. Deus poderia gerar as pessoas por outro caminho escolhido por Ele, mas determinou fazê-lo pelo matrimônio para atender a vários propósitos específicos, como o do aprendizado do amor não interesseiro, da submissão, dentre tantos outros revelados na Palavra (vide especialmente Efésios 5.22-33). Então a unidade dos filhos com seus pais, está diretamente dependente da unidade entre os próprios pais. E unidade sobretudo espiritual, em amor, baseada na verdade, conforme Deus havia intentado desde o princípio. Um casamento assim constituído depois que o pecado entrou no mundo, seria portanto o que melhor responderia ao propósito original de Deus. No entanto, nada justifica a separação, mesmo nos múltiplos casos em que casais têm se unido, onde há por exemplo parte crente, e parte não crente, parte santificada (crente fiel) e não santificada (crente infiel) etc. Porque, pelo poder de Deus, é possível até mesmo que as partes que impedem o cumprimento do Seu propósito original, sejam trazidas à referida condição, pelo arrependimento ou conversão. Não há impossíveis para o Senhor, e Ele sempre honrará de uma forma ou de outra aqueles que O honram. Caso haja relutância da parte ofensora da Sua vontade em consertar-se, Ele cuidará da parte que se manter fiel a 138 Ele. Tudo coopera para o bem dos que amam a Deus. Isto nunca deve ser esquecido, mesmo no caso de uma união conjugal aparentemente desafortunada. Aquele que tem o Senhor por Seu ajudador não tem nada e ninguém a temer neste mundo. E pode aprender, tal como o apóstolo Paulo a viver contente em toda e qualquer circunstância, inclusive nesta de um jugo desigual imposto por um dos consortes que insista caminhar contrariamente à vontade de Deus. Isto é possível porque o amor de Deus que é derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo, nos leva a suportar todas as coisas mediante o poder do Senhor que nos fortalece nas circunstâncias difíceis. E este amor sobrenatural, conforme definido em I Cor 13, tudo suporta, tudo sofre, tudo espera, porque é paciente, benigno, longânimo e em nada é egoísta. E tudo fará para agradar e honrar a Deus, cumprindo tudo o que Ele nos tem ordenado em Sua Palavra, e dentre estes mandamentos, o de permanecer casado fazendo todas as coisas por amor, não como para homens, mas para Elemesmo, e pelo desejo de ser-Lhe obediente em tudo. A edificação de um lar verdadeiro depende na verdade mais da operação de Deus do que dos próprios cônjuges, conforme se afirma nas Escrituras (Sl 127.1). Realmente há poderes terríveis que operam contra a unidade do casal, especialmente os espíritos malignos, que somente o poder do Senhor pode repreender. Especialmente casais cristãos ficarão sujeitos a estes ataques em razão do ódio que o diabo tem contra Deus, e tudo fará para tentar frustrar o plano que Ele determinou para o casamento desde antes da fundação do mundo. Se não houver então um caminhar em fidelidade de ambos os cônjuges com Deus, dificilmente haverá uma comunhão plena entre eles, porque sem levar em conta o próprio pecado deles que ainda opera na carne, há estes espíritos que somente podem ser vencidos quando estamos revestidos com toda a armadura de Deus. Entretanto, para que não houvesse uma desesperança numa das partes que pretenda edificar a sua casa, enquanto a outra permanece infiel à vontade de Deus, Ele estabeleceu o princípio da parte crente santificar a não crente (I Cor 7.14), isto é, eles estarão indiretamente debaixo da proteção de Deus prevista para o matrimônio por causa da fidelidade da parte crente a Ele. Então vale a pena esforçarmo-nos para buscar a face do Senhor e a Sua vontade, para termos paz em casa, pela retribuição da honra que Lhe devotarmos, pela repreensão que Ele fará aos espíritos que se levantam contra nós. 139 Esta união matrimonial somente deve ser desfeita pela vontade de Deus, pela morte de um dos cônjuges, mas nunca pela própria vontade do homem, nem mesmo dos magistrados, porque afinal, não foi o homem que planejou a instituição do matrimônio, senão Deus. Por isso Jesus disse que o que Deus ajuntou não o separe o homem. O profeta Malaquias declarou ao povo de Israel qual havia sido um dos principais motivos de Deus não estar mais se agradando deles, apesar de estarem banhando os seus altares com lágrimas, não porém de arrependimento, mas pela dura condição de vida em que eles se encontravam: “14 E dizeis: Por quê? Porque o Senhor foi testemunha entre ti e a mulher da tua mocidade, com a qual tu foste desleal, sendo ela a tua companheira, e a mulher da tua aliança. 15 E não fez ele somente um, ainda que lhe sobrava o espírito? E por que somente um? Ele buscava uma descendência para Deus. Portanto guardai- vos em vosso espírito, e ninguém seja infiel para com a mulher da sua mocidade.” (Mal 2.14,15). Os israelitas estavam endurecidos em seus pecados, e esta foi a mesma razão de Jesus ter dito aos fariseus porque Moisés havia permitido que dessem carta de divórcio às suas esposas debaixo do Antigo Pacto. Como eles não viam o matrimônio como uma instituição divina, e não cumpriam os propósitos fixados por Deus para ela, o Senhor havia permitido o divórcio, mas não consentido com isto, porque nunca foi da vontade dEle que fosse separado o que Ele uniu. Então se um homem trataria severa e duramente a sua esposa, sem qualquer consideração para com ela, ficando muito longe do amor que deveria devotar a ela, como o que Cristo tem pela Igreja, e se na dureza de seu coração, nada melhor poderia ser esperado desta pessoa, melhor seria então que se separasse, mas não sem deixar de atender às necessidades legais da repudiada, daí a razão da carta oficial de divórcio que deveria ser passada pelas autoridades, para garantir o direito daquela que tivesse sido deixada sem causa pelo seu marido. Deus não somente vê, mas prevê a dureza dos corações dos homens, e por isso vestiu os mandamentos do Velho Testamento ajustando-os ao caráter das pessoas, que ele sabia previamente, viveriam entregues à dureza de seus corações, sem arrependimento, por causa do pecado que há no mundo. 140 Mas um crente que conhece a vontade de Deus a respeito do matrimônio, não deve seguir esta norma concessiva que Ele havia dado desde Moisés, mas seguir o mandamento de amar a esposa assim como Cristo amou a Igreja, e a esposa amar e respeitar o marido sendo submissa a ele. E mesmo no caso de alguém ser crente e estando em jugo desigual, há a possibilidade de se contar com o favor e proteção de Deus, conforme comentamos antes, por um viver fiel a Ele. Se a lei de Moisés considerou a dureza dos corações dos homens, a graça de Cristo no evangelho a cura, e pode transformar corações de pedra em corações de carne. Se pela lei vem o pleno conhecimento do pecado, pelo evangelho, este é dominado e vencido. É interessante observar que se por uma lado a Lei procurava mitigar a dureza de coração permitindo o divórcio, por outro lado condenava o crime de adultério com a punição de morte (Dt 22.22). Mas o evangelho de Jesus Cristo mitiga o rigor da pena do adultério, e prescreve o divórcio como uma possível penalidade se a parte ofendida assim o desejar. É importante também observar que a palavra usada por Jesus em nosso texto, no original grego, não é adultério, mas fornicação (de porneia), designando provavelmente uma impureza cometida antes do matrimônio, e que viesse a ser descoberta posteriormente. A lei de Cristo tende a restaurar o homem na sua integridade primitiva, tal como estava no Éden, antes da entrada do pecado no mundo. E a lei do amor e perpetuidade conjugal não é nenhum novo mandamento, porque foi instituída por Deus desde o princípio. Então esta lei, conforme reafirmada por Cristo é para o nosso próprio bem e de toda a sociedade, inclusive para o próprio mundo secular, haja vista que na maior parte dos casos não serão apenas os cônjuges as partes afetadas por um divórcio, mas também os filhos oriundos do seu casamento. Os próprios discípulos de Jesus não haviam entendido ainda o princípio sábio e bom que há na lei do amor e da perpetuidade do matrimônio, e se precipitaram concluindo que se um homem não podia, aos olhos de Deus se separar da sua esposa quando bem lhe agradasse, sabendo eles, que se o fizessem, a consequência seria a de terem que prestar contas com Deus no futuro tribunal de Cristo, então, segundo eles seria melhor não casar nunca e permanecerem solteiros. 141 Entretanto, desde o princípio, quando nenhum divórcio foi permitido, Deus disse que não é bom que o homem esteja só, e os abençoou, o homem e sua esposa, em sua união conjugal. E apesar de o casamento trazer consigo muitas cruzes, não é apenas nele que acharemos cruzes neste mundo, mas em todas as áreas de atividade e de relacionamentos. Estas cruzes, num mundo de pecado, nos ajudarão no nosso aperfeiçoamento em santidade, especialmente, em ensinar-nos a orar a Deus sem cessar e a depender dEle, conforme sempre foi da Sua vontade. Assim aquilo que parece ser contra nós, é a nosso favor, na modelagem do nosso caráter à semelhança ao de Cristo. E o modo de carregar estas cruzes é com paciência e gratidão a Deus em nossos corações. É nosso dever carregar nossa cruz depois de termos nos auto negado perante o Senhor. Não importa o que sintamos ou qual seja a nossa vontade, senão a vontade de Deus para nossa vida. O matrimônio é um laço, um jugo que voluntariamente tomamos, e que segundo a vontade de Deus, devemos continuar carregando com amor, paciência, mansidão e voluntariamente, isto é, de livre e boa vontade. Entretanto, o Senhor afirmou que há realmente casos em que as pessoas permanecerão solteiras, não pela mera vontade delas, mas por ter sido esta a vocação escolhida por Deus para elas, para atender a propósitos específicos, tal como foi o caso do profeta Jeremias e do apóstolo Paulo. Nestes casos excepcionais dirigidos pela vontade de Deus é de se supor que é melhor o aumento da graça do que o aumento da família, e o relacionamento com o Pai e seu Filho Jesus Cristo será preferido antes de qualquer outro tipo de companheirismo. Mas Jesus desaprovou totalmente como sendo danoso, proibir matrimônios, porque nem todos estão vocacionados para permanecerem solteiros, edevem portanto suportar o jugo do estado de casado, sem estar debaixo da tentação de evitar ou fugir do jugo que é imposto pela vocação recebida de Deus neste mundo. Assim, aqueles que sofreram a calamidade de terem sido feito eunucos pelos homens, ou por um defeito de nascença, sendo impossibilitados fisicamente de contraírem núpcias, não deveriam de fato se casarem, mas recorrerem à providência de Deus para superarem a condição que lhes foi imposta, independentemente da vontade deles. Apesar desta calamidade, há a oportunidade de servirem melhor e desimpedidamente a Deus no estado de solteiros. 142 De maneira que é uma virtude e graça divina aqueles que se fizeram eunucos por amor ao reino de Deus, atendendo à vocação recebida do próprio Deus para servi-lo em tal estado de solteiro. Estes que foram capacitados a terem uma indiferença santa a todos os prazeres do estado de casado, serão honrados pelo Senhor no voto de celibato que fizeram, em obediência à vontade de Deus, que correspondeu à própria vontade deles. Por isso Jesus disse que este estado de solteiro é uma condição que pode ser suportada somente por aqueles a quem é dada tal capacitação pelo próprio Deus. Finalmente, gostaríamos de registrar um fato real para ilustrar a possibilidade de alguém ser feliz apesar de não ter um casamento nos moldes que Deus planejou para esta instituição desde o princípio. Trata- se de uma esposa que chamaremos de “J” cujo marido chamaremos de “M”. Eles se encontram casados há mais de trinta e cinco anos, tendo dois filhos com cerca de trinta anos de idade. “J” se converteu a Jesus depois de alguns anos de casada, tendo seu esposo “M” permanecido incrédulo até o presente. Ele se opôs duramente a ela quanto ao fato de ter que deixá-lo em casa, ainda que uma só vez aos domingos, para ir à igreja. Ela ficou por um bom tempo em oração para que Deus trabalhasse no coração de “M” porque não queria agir de forma insubmissa. Ela tanto orou que ele consentiu que assistisse somente os cultos das noites de domingo. Isto foi uma grande alegria e vitória para ela. Sabemos que continua orando para que ele aceite a sua participação nas demais programações de sua igreja. Mas o que é digno de registro é o fato de que ao exigir que ela permaneça em casa no domingo pela manhã, ele não fica em casa porque sempre se reúne com um grupo de companheiros para ficarem bebendo num bar da esquina onde residem. Você perguntará qual é o perfil de crente de “J”: uma mulher infeliz? Desgostosa da vida e com o seu Deus? Ao contrário, ela se esforça para ser uma boa esposa, apesar de tudo, conforme ordenado pela Bíblia, e é uma mulher feliz, cheia de fé e a alegria no Senhor Jesus. Ela conta o modo sobrenatural como Deus exerce governo sobre o seu marido, de maneira que ele tem sido, apesar de suas fraquezas, cada vez mais atencioso para com ela, e suas idas para o bar estão ficando menos frequentes. Ela sabe que é por amor a ela, que Deus não permite que os espíritos malignos tenham livre acesso ao seu lar, e assim ela sempre tem desfrutado em casa a paz de Jesus em sua vida. Sempre apegada à Palavra de Deus é uma fonte de inspiração e socorro 143 para muitas vidas, sempre compartilhando com seus irmãos em Cristo porções da Palavra de Deus com fé e alegria no Espírito. Estas joias são exemplos que Deus nos dá para seguirmos e para que nos consolemos nas aflições que teremos que experimentar enquanto neste mundo. O Crente e os Juramentos “33 Outrossim, ouvistes que foi dito aos antigos: Não jurarás falso, mas cumprirás para com o Senhor os teus juramentos. 34 Eu, porém, vos digo que de maneira nenhuma jureis; nem pelo céu, porque é o trono de Deus; 35 nem pela terra, porque é o escabelo de seus pés; nem por Jerusalém, porque é a cidade do grande Rei; 36 nem jures pela tua cabeça, porque não podes tornar um só cabelo branco ou preto. 37 Seja, porém, o vosso falar: Sim, sim; não, não; pois o que passa daí, vem do Maligno.” (Mt 5.33-37) Um dos principais propósitos da lei de Moisés relativa ao cumprimento dos juramentos era o de restringir a prática da mentira. Havia a tendência do povo de fazer juramentos pelas coisas mais triviais e não cumpri-los. Com o menor pretexto juravam em nome de Deus. O objetivo da lei foi, pois, acabar com esses juramentos volúveis e feitos às pressas, de demonstrar que fazer um juramento era algo muito grave, algo que havia que se reservar somente para as causas e condições e levavam algo de grave e excepcional importância especial para o indivíduo ou para a nação. O povo de Israel deveria recordar que tudo o que faziam era importante porque eram o povo de Jeová que é santo. Eram o povo de Deus, e se lhes recordava que inclusive seu falar e conversação, e sobretudos nos juramentos, tudo deveria ser feito de tal forma que refletissem que Deus lhes estava contemplando. É necessário analisar com cuidado a proibição de Jesus relativa a juramentos neste texto, porque Ele mesmo disse que não veio revogar a lei e os profetas, mas cumprir. E se Deus fosse contrário a todo tipo de juramento, Ele não teria apresentado mandamentos relativos à prática de 144 juramento na lei de Moisés. É dito nas Escrituras que o próprio Deus jurou por si mesmo quando fez a promessa da Nova Aliança a Abraão. A conclusão a que chegamos, baseados na Bíblia, é que, ainda que haja que se restringir o jurar, há certas ocasiões solenes e vitais quando é lícito jurar. Está bastante claro que ao proibir juramentos vãos, nosso Senhor queria proibir o uso do nome sagrado de Deus para blasfemar ou maldizer. O nome de Deus e de Cristo nunca devem ser usados deste modo. Por isso Jesus condena tal prática de maneira absoluta e total. Além de proibir o jurar pelo nome de Deus, também proibiu juramento por alguma criatura, porque tudo pertence a Deus. Toda palavra proferida deve ser digna de crédito, inclusive na conversação comum. É nisto que consiste o sim, sim, não, não proferido por Jesus. Deus é verdadeiro, e portanto, tudo o que procede de nossa boca deve ser verdadeiro. Para nós o jurar falso é terrível. Nunca pensaríamos em cair nele. Porém, dizer mentiras é tão mal como jurar falso, porque, como crentes, sempre deveríamos falar na presença de Deus. Somos seu povo, e uma mentira que digamos alguém pode se interpor entre sua alma e sua salvação em Jesus. Tudo o que fazemos tem suma importância. Não devemos exagerar nem permitir que os demais exagerem ao falarem conosco, porque o exagero se converte em mentira. Produz uma impressão falsa nos ouvintes. Tudo isto está incluído neste texto. Uma vez mais, examinemo-nos. Deus tenha misericórdia de nós, porquanto somos como os escribas e fariseus, tratando de distinguir entre mentiras grandes e pequenas, mentiras e coisas que não são propriamente mentiras. Somente há uma maneira de resolver isto. Não lhes estou exortando a que sejam mórbidos, nem a que caiam em escrúpulos enfermiços, porém, devemos dar-nos conta de que estamos sempre na presença de Deus. Dizemos que andamos neste mundo em intimidade com Ele e com seu Filho, e que o Espírito Santo habita em nós. Muito bem: “Não entristeçais o Espírito Santo de Deus”, diz Paulo. Ele tudo vê e ouve – todo exagero, toda mentira insinuada. E por que se entristece? Porque é Espírito da verdade, e perto dEle não pode haver mentira. 145 Olho por Olho e Dente por Dente “38 Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. 39 Eu, porém, vos digo que não resistais ao homem mau; mas a qualquer que te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; 40 e ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa; 41 e, se qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas. 42 Dá a quem te pedir, e não voltes as costas ao que quiser que lhe emprestes.” (Mt 5.38-42) A frase “olho por olho e dente por dente” encontra-se em Ex 21.24, e como todas as sanções da Lei mosaicatinha por alvo controlar os excessos, e neste caso o que se pretendia controlar era a ira, a violência e o desejo de vingança. E não é sem razão que há tal dispositivo na Lei, porque por natureza somos dados a nos vingarmos daqueles que nos prejudicam. Então Deus colocou este dispositivo na Lei para que os que viessem a usar de violência soubessem que não ficariam impunes e que receberiam a justa retribuição do próprio ato que praticaram contra outrem, em si mesmos. A expressão olho por olho, dente por dente era uma forma de se dizer que a punição não deveria ficar aquém e nem ir além da transgressão praticada. Assim, a Lei ajustou o castigo à transgressão de modo que não ficasse aquém da mesma, e nem mesmo que a excedesse. E a Lei foi dada com o fim preventivo principalmente de se evitar os excessos na aplicação das penas pelas autoridades encarregadas de fazer justiça. Era portanto, uma norma que não foi dada para ser executada pelo povo de Israel, mas pelos seus juízes. Mas os escribas e fariseus dos dias de Jesus haviam deturpado esta aplicação preventiva da Lei, dando-lhe um sentido negativo para atender aos próprios interesses deles em insistir na aplicação da Lei de forma legalista, pensando somente nos seus direitos. Em vez de desencorajarem a prática de atos de vingança pela aplicação judiciosa do princípio legal, eles acabavam por estimulá-la com o próprio sentimento de vingança que habitava em seus corações e que podemos ver bem exemplificado na maneira como conduziram Jesus para ser julgado e condenado à morte de 146 cruz pelos romanos, quando o próprio Pilatos havia reconhecido que não havia nenhuma culpa em Jesus, que lhe tornasse digno de morte. Para bem entendermos o ensino de Jesus devemos ter sempre presente que Ele não proferiu o Sermão do Monte como um código legal, ou como um conjunto de regras para abranger toda a nossa conduta em todos os aspectos da vida. Ele não é uma nova lei para substituir a lei mosaica, mas foi proferido para enfatizar o espírito da lei, especialmente contra o ensino errôneo dos escribas e fariseus. Para revelar que a lei é muito mais do que simples letra, e que tendo um espírito somente pode ser entendida e vivida por aqueles que são capacitados pela graça de Deus para tal. O Senhor disse que não devemos resistir ao homem mau. É o que está escrito mas se o aplicarmos de forma estrita e rigorosa chegaremos a interpretações ridículas e até mesmo impossíveis. Leão Tolstoy, usando este texto influenciou a muitos ensinando que tais palavras deveriam ser aplicadas de maneira literal, e assim não deveria haver exército, polícia e juízes porque seria anti-cristão. E afirmava isto com base nas palavras de Jesus de que o mau não deve ser resistido. E se a polícia resiste ao mau, então deve ser abolida. Mas devemos levar em conta alguns princípios básicos para uma correta interpretação das palavras de Jesus. O primeiro deles é que este ensino não é para nações ou para o mundo. Ele se aplica exclusivamente aos cristãos, particularmente no cumprimento da missão deles de pregarem o evangelho a toda criatura. É ao crente que Jesus dirige este ensino e não ao homem natural, vítima do pecado e de Satanás, e que de modo algum pode viver uma tal vida como esta. É preciso ter nascido de novo para viver de tal modo. Consequentemente, pegar este ensino e transformá-lo numa política de países e nações é uma heresia. Deus tem instituído as autoridades, que trazem a espada para castigo dos malfeitores, e o crente deve crer na lei e na ordem, e nunca deve ser negligente nos seus deveres de cidadão de um Estado, porque Deus lhe tem imposto este dever. As autoridades devem controlar a ilegalidade, restringir o crime e o vício e para isto devem usar o principio de justiça com equidade, conforme ensinado no ”olho por olho, dente por dente”. É algo para ser usado portanto, pelas autoridades com a promulgação e aplicação de leis justas, e não por indivíduos, conforme ensinavam os escribas e fariseus, e muito menos no caso de crentes que estão debaixo de algo muito mais elevado que é o respeito e acatamento das leis por amor a Deus e pela capacitação 147 da Sua graça, e não pelo simples temor da punição, conforme é o caso da maioria daqueles que são do mundo. Vemos então que o ensino de Jesus de que não se deve resistir ao homem mau nada tem a ver com as nações ou com o chamado pacifismo cristão, nem com o socialismo cristão ou outras coisas semelhantes a estas. O fato de ser ordenado ao crente que não resista ao homem mau não significa que deve sujeitar-se a ele praticando o mal tal como ele, mas que não deve tentar vencê-lo com a energia de seus próprios poderes e capacidade, senão entregar-se a Deus, pela fé, que é justo Juiz. E isto o levará a dar um passo mais adiante, que é o de orar pelos seus perseguidores e pelos que lhes maldizem na expectativa que se arrependam de seus pecados e se convertam a Deus. Sem tal disposição será praticamente impossível pregar o evangelho, porque é fato notório que os pecadores resistem a vir a Cristo e não raro, costumam infamar aqueles que são os instrumentos usados por Ele para trazê-los a Si. Assim, este ensino de Jesus se aplica somente ao crente em suas relações pessoais, e não enquanto cidadão de seu país. A relação do crente com o Estado é descrita em várias outras passagens da Bíblia, mas não nesta passagem do Sermão do Monte (Rom, I Pe 2 etc). O verso 42, que faz parte do conjunto deste ensino, inclui a questão de dar e emprestar a quem nos pede, sem lhe virar as costas. Ora, alguém diria, o que isto tem a ver com olho por olho, com não resistir ao mau, com oferecer a outra face, com dar a capa a quem nos leva a túnica pleiteando por ela em juízo, com caminhar duas milhas com quem nos obriga a caminhar uma? Parece que não deveria estar inserido aqui. Mas é justamente esta inclusão do verso 42 que nos ajuda a entender melhor o ensino de Jesus nesta passagem. Isto nos leva a entender que o Senhor queria enfocar o problema do eu e da nossa atitude para conosco mesmo. Ele está dizendo que se pretendemos ser cristãos, devemos morrer para o eu. Não está sendo enfocado se devemos ou não servir o Exército, ou qualquer outra coisa, mas o modo como penso de mim mesmo e de minha atitude para comigo mesmo. É um ensino muito espiritual que ilustra de maneira prática a atitude adequada que devo ter para comigo mesmo em relação ao espírito de auto defesa que se coloca imediatamente em movimento quando me fazem algo mau (ser atacado pelo homem mau) ou que me seja incômodo (dar e emprestar). 148 Devo também examinar o desejo de vingança e o espírito de represália que é tão inerente ao eu natural. Deste modo, esta atitude do eu diz respeito às injustiças que sofremos quanto às exigências da comunidade e do Estado, e por fim da atitude quanto às posses pessoais. Nosso Senhor põe por descoberto esta coisa horrível que controla o homem natural – o eu, essa herança terrível que provém do homem caído e que faz que o homem se glorifique a si mesmo e se tenha por deus. O erro dos escribas e fariseus portanto, foi que interpretaram “olho por olho, dente por dente”, numa perspectiva puramente legal, ou como algo físico e material. Assim seguem atuando os homens. Reduzem este ensino surpreendente à questão da pena de morte ou se têm que participar ou não das guerras. Não, diz Cristo, “é uma questão espiritual, é questão de toda a tua atitude, sobretudo da tua atitude para contigo mesmo e se queres ser meu discípulo, deves morrer para ti mesmo.”. Nós vemos isto em Mt 16.24: “Então disse Jesus aos seus discípulos: Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, e siga-me;”. A Capa e a Segunda Milha “40 e ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa; 41 e, se qualquer te obrigar a caminhar mil passos, vai com ele dois mil.” (Mt 5.40,41) O conjunto dos mandamentos dosversos 38 a 42 significa isto: não devemos nos preocupar com as ofensas e agravos pessoais que recebamos, sejam de ordem física ou de qualquer outra. Ser golpeado na face é humilhante ofensivo. Porém, se pode ofender de muitas maneiras. Pode-se ofender com a língua ou com o olhar. Nosso Senhor deseja criar em nós um espírito que não se ofenda facilmente por essas coisas, e que não busquemos represálias imediatas. Deseja que cheguemos a um estado no qual nos sintamos indiferentes quanto ao ego e ao apreço próprio. O ensino de nosso Senhor nesta passagem não quer dizer que não devemos nos preocupar com a defesa da lei e da ordem. Oferecer a outra face não quer dizer que não importa nada o que possa ocorrer no âmbito nacional, que haja ordem ou caos. De nenhum modo. Este foi o erro de 149 Tolstoy, que dizia que não deveria haver polícia, nem soldados ou magistrados, por causa de uma compreensão incorreta destes mandamentos de Jesus. O que nosso Senhor diz é que não tenho que me preocupar comigo mesmo, por minha honra pessoal e assim sucessivamente. Porém isto é muito diferente de não se preocupar com as leis e com a ordem, ou com a defesa dos fracos e indefesos. A ilustração relativa a este assunto que nosso Senhor utiliza quanto à túnica e a capa significa que não devemos nos fixar na tendência de fazer valer os nossos direitos legais. Para tanto deu o exemplo do homem que levanta um pleito diante de um tribunal judaico do passado para ficar com minha túnica. Segundo a lei judaica não se podia levantar pleito contra ninguém para tirar-lhe a capa, ainda que fosse legal fazê-lo em relação à túnica. Porém nosso Senhor diz: “ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa”. Esta é também uma questão difícil, e a única forma de resolver o problema é fixar-se bem no princípio, que é esta tendência de exigir sempre os direitos legais. Vemos isto frequentemente nos tempos atuais. Há quem não se canse de dizer que o verdadeiro problema do mundo de hoje é que todo mundo fala de seus direitos e não de seus deveres. Nosso Senhor se ocupa desta tendência nesta passagem. Os homens sempre pensam em seus direitos e dizem: “todo mundo deve respeitá-los”. Este é o espírito do mundo e do homem natural que deve conseguir o que é seu e insiste nisso. Este, nosso Senhor quer demonstrar, não é o espírito cristão. Diz que não devemos insistir em nossos direitos legais, inclusive se às vezes podemos sofrer injustiças como resultado disso. Agora, é importante colocar ao lado deste princípio, outros mandamentos de Jesus, como por exemplo o de Mt 18.15-17, no qual diz: “15 Ora, se teu irmão pecar, vai, e repreende-o entre ti e ele só; se te ouvir, terás ganho teu irmão; 16 mas se não te ouvir, leva ainda contigo um ou dois, para que pela boca de duas ou três testemunhas toda palavra seja confirmada. 17 Se recusar ouvi-los, dize-o à igreja; e, se também recusar ouvir a igreja, considera-o como gentio e publicano.” (Mt 18.15-17) Em outras palavras, não parece que nos está dizendo que devemos apresentar a outra face ou que demos a capa além da túnica. 150 Lemos também em João 18.22,23 a quem lhe havia dado uma bofetada: “22 E, havendo ele dito isso, um dos guardas que ali estavam deu uma bofetada em Jesus, dizendo: É assim que respondes ao sumo sacerdote? 23 Respondeu-lhe Jesus: Se falei mal, dá testemunho do mal; mas, se bem, por que me feres?” Protestou como veem, contra quem lhe havia ferido injustamente. Como podemos explicar estas aparentes contradições? Nosso Senhor, no Sermão do Monte parece dizer-nos que sempre temos que apresentar a outra face, e que se alguém nos põe em pleito para tirar-nos a túnica que devemos dar-lhe também a capa. Porém, Ele próprio, quando foi golpeado na face, não apresentou a outra, senão que protestou. E o apóstolo Paulo insistiu em Filipos, depois de ter sido surrado com varas, sem um julgamento formal, que seus agressores se retratassem pública e formalmente. Se aceitamos o princípio original, não é difícil harmonizar os dois tipos de afirmações. Pode ser compreendido assim. Esses casos não são exemplos de nosso Senhor ou de Paulo insistindo em seus direitos pessoais. O que nosso Senhor fez foi censurar a violação da lei e fez o protesto para defender a lei. Disse àqueles homens de fato o seguinte, em outras palavras: “Não sabeis, que golpeando-me assim violais a lei?”. Não disse: “Por que me ofendeis?” E o apóstolo Paulo fez exatamente o mesmo. Não protestou porque lhe haviam encarcerado. O que lhe preocupou foi que os magistrados vissem que ao prendê-lo haviam feito algo ilegal e haviam violado a lei que teriam o dever de aplicar. De maneira que lhes recordou a dignidade e a honra devidas à lei. Quanto a andar a segunda milha, era um costume muito comum no mundo antigo, por meio do qual o governo teria o direito de mandar a um homem quanto a uma questão de transporte. Teria que transportar uma carga, de modo que as autoridades tinham o direito de mandar-lhe a qualquer parte, e de levar a dita carga desde o lugar designado até a seguinte etapa. Este direito era exercido por um país que tivesse conquistado a outro, e naquele tempo os romanos haviam conquistado a Palestina. O exército romano controlava a vida dos judeus, e com frequência faziam isso. Talvez alguém se achava ocupado em algo pessoal, quando de repente se apresentava um pelotão de soldados e lhe diziam que deveria levar uma carga até um certo ponto. Se fosse uma milha de distância, a isto se refere 151 nosso Senhor dizendo que deveria se dispor a caminhar mais uma milha além da exigida. Estamos de novo diante de algo muito importante e prático. O princípio é que, não somente temos que fazer o que nos é pedido, senão ir mais além no espírito do ensino de nosso Senhor nesta passagem. Nela se destaca o desgosto pessoal que o homem natural tem diante das exigências que lhe faz o governo. Se refere ao ódio que sentimos pelas leis que não nos agradam, às que nos temos oposto. Tomemos por exemplo a questão do pagamento de impostos. Talvez não gostemos disso e o odiemos, porém, o princípio que se aplica é exatamente o mesmo que o do caso das duas milhas. Nosso Senhor diz que não somente não devemos ficar aborrecidos com estas coisas, mas que devemos fazê-las voluntariamente, e estar inclusive dispostos a ir mais além do que nos é exigido. Nosso Senhor condena todo ressentimento que possamos sentir contra o governo legítimo de nosso pais. O governo que está no poder tem o direito de fazer estas coisas, e nosso dever é cumprir a lei. E devemos fazê-lo ainda que estejamos completamente em desacordo com o que se faz, e ainda que o consideremos injusto. Se tem autoridade legal e sanção legítima, nosso dever é fazê-lo. Negar-se a Si Mesmo e Seguir a Cristo “38 Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. 39 Eu, porém, vos digo que não resistais ao homem mau; mas a qualquer que te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; 40 e ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa; 41 e, se qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas. 42 Dá a quem te pedir, e não voltes as costas ao que quiser que lhe emprestes.” (Mt 5.38-42). Ninguém pode praticar o que nosso Senhor ilustra aqui nesta passagem a não ser que tenha subjugado o eu, com seu direito relativo a si mesmo, o direito de decidir o que tem de fazer, e sobretudo deve subjugar o que costumamos chamar de “direitos do eu”. Em outras palavras, não devemos nos preocupar com nada que se refira a nós mesmos. Todo o problema da vida consiste em última instância nessa preocupação com o 152 eu; e assim o que Jesus ensina nesta passagem é que devemos nos livrar do eu completamente. Devemos livrar-nos desta tendência constante de velar pelos interesses do eu, de estar tão atento a agravos e ofensas, sempre na defensiva. Tudo deve desaparecer, e isto significa quedevemos deixar de ser tão sensíveis quanto ao eu. Esta sensibilidade mórbida, esta situação em que o eu sempre se encontra, em tão delicado equilíbrio, que a mínima perturbação pode alterar esse equilíbrio, deve ser descartada. O apóstolo Paulo diz o seguinte de si mesmo em I Cor 4.3: “Todavia, a mim mui pouco se me dá de ser julgado por vós, ou por qualquer tribunal humano; nem eu tampouco a mim mesmo me julgo.”. Ele havia colocado nas mãos de Deus o problema de julgar, e desta maneira, havia chegado a um estado em que nada poderia feri-lo. Este é o ideal que deve ser buscado – esta indiferença ao eu e aos seus interesses. Uma afirmação que o grande George Muller fez em certa ocasião acerca de si mesmo parece ilustrar isto muito claramente. Ele assim escreveu: “Houve um dia em que morri, morri completamente, morreu George Muller e as suas opiniões, preferências, gostos e vontade; morri para o mundo, para a sua aprovação ou crítica; morri para a aprovação ou censura, inclusive de meus irmãos e amigos, e desde então tenho procurado somente apresentar-me como aprovado para Deus.”. Esta é uma afirmação que deve ser ponderada a fundo. Não posso imaginar uma síntese mais perfeita e adequada do ensino de Jesus nessa passagem, do que esta. Muller pôde morrer para o mundo e para a sua aprovação e censura, morrer inclusive para a aprovação ou censura de seus amigos e companheiros mais íntimos. Veja a sequência que Muller apresenta: Primeiro o mundo, depois os amigos e companheiros. Porém, o mais difícil é morrer para si mesmo, para a própria aprovação ou censura de si mesmo. Há muitos grandes artistas que mostram desdém pela opinião do mundo. Se o mundo não aprovar as suas obras, pior para o mundo, diz o grande artista. Mas podem ser sensíveis à opinião das pessoas que lhes são mais achegadas. Porém o cristão deve alcançar a fase em que supere inclusive isto e dar-se conta que não deve deixar que seja dominado por isso. E então deve passar à fase final, isto é, ao que pensa de si mesmo – à aprovação ou censura de si mesmo, à forma em que não julga mais a si mesmo, tal como o apóstolo Paulo. 153 Enquanto estivermos preocupados com isto, não estaremos a salvo das outras duas formas. De maneira que a chave de tudo, como nos recorda George Muller, é que devemos morrer para nós mesmos. George Muller havia morrido para si mesmo, para sua opinião, para suas preferências, para seus gostos, para a sua vontade. Sua única preocupação , sua única ideia era mostrar-se aprovado para Deus. E é exatamente isto que Jesus ensinou aqui, isto é, que o crente deve chegar a uma situação e estado em que possa dizer isto. É certo que o mundo despreza a quem é assim e admira a pessoa agressiva, a pessoa que luta por seus direitos, e que está sempre disposta para defender-se e defender a sua honra. Assim, somente o cristão pode colocar em prática este ensino do Senhor. Com isto, Ele nos diz que devemos ser completamente diferentes, que temos que mudar por completo, e que temos que chegar a ser um novo ser. E somente quem nasceu de novo do Espírito pode aprender a viver de tal forma. Agora, como se pode viver este tipo de vida na prática? Primeiro devemos enfocar o problema do eu de uma maneira honesta. Devemos deixar de apresentar desculpas, e examiná-lo de uma forma honesta, direta e concreta. Como nos comportamos quando estamos sofrendo uma injustiça? Quando somos incomodados e ofendidos? Quando o mecanismo natural de autodefesa entra em operação devo me perguntar o seguinte: Qual é a minha verdadeira preocupação em relação a isto? Preocupo-me verdadeiramente com algum princípio geral de justiça? Devemos escutar a voz que fala dentro de nós e diz: “Sabes perfeitamente bem que é o teu eu, esse orgulho horrível, essa preocupação por ti mesmo, por tua reputação, por tua grandeza” – sim, é isso, devemos admiti-lo e confessá- lo. Será sumamente doloroso, e contudo, se queremos elevar-nos até o ensino de nosso Senhor, temos que passar por este processo da negaçäo do eu. Nós vemos por este ensino do Sermão do Monte, que quando Jesus ensinou que devemos nos auto negar para segui-lo, tomando a nossa cruz, Ele estava se referindo muito mais do que a uma simples mudança de algo de natureza nocional, intelectual, ou filosófica. Devemos considerar de modo prático até que ponto o eu controla a nossa vida. Examinem suas vidas, seu trabalho diário, as coisas que fazem, os contatos que têm que estabelecer com as pessoas. Pensem por um 154 momento até que ponto o eu entra em tudo isto. É uma descoberta surpreendente e terrível ver até que extremo o interesse próprio e a preocupação por si mesmo estão implicados, inclusive na pregação do evangelho. É uma descoberta horrível. Mas queremos mudar, e por que? Por causa da glória de Deus, ou pela própria glória? Tudo o que dizemos e fazemos, a impressão que produzimos nas pessoas, o quê nos preocupa na realidade? Se analisarem toda sua vida, não somente suas ações e conduta, senão sua roupa, seu aspecto, tudo, se surpreenderão por descobrir até que ponto esta atitude insana relativa ao eu entra em todas as coisas. Alguma vez temos nos dado conta de até que ponto a infelicidade, os problemas, os fracassos de nossas vidas se devem a uma só coisa, a saber, ao eu. Recordemos os períodos tristes, de tensão, de irritabilidade, o mau caráter, as coisas feitas e ditas das quais nos envergonhamos, as coisas que nos turbaram, e que nos desequilibraram. Examinemos uma por uma, e nos surpreenderemos em descobrir que quase todas elas têm relação com este problema do eu, da sensibilidade, do buscar sempre o eu. Essa vida da alma deve ser negada. Ela deve morrer, não a alma propriamente dita, mas o estarmos sob o controle dela. Por isso Jesus falou da necessidade de perdermos a nossa vida (alma – psiquê) para acharmos a verdadeira vida do céu, que procede de Deus. Foi o eu o responsável pela queda no Éden. O eu sempre significa desafiar a Deus, e por isso é sempre algo que nos separa dele. Todos os momentos de infelicidade na vida se devem em última instância a esta separação de Deus. Uma pessoa que está em verdadeira comunhão com Deus é feliz. Não importa que esteja na prisão, que tenha os pés amarrados ao tronco, que esteja queimando numa fogueira; é feliz em sua comunhão com Deus. Não tem sido esta a experiência dos santos ao longo dos séculos? E a causa da separação de Deus é o eu. Quantas vezes nos sentimos infelizes, isto é, de uma forma ou de outra buscamos a nós mesmos e pensamos em nós mesmos, em vez de buscar a comunhão com Deus. O homem, segundo a Bíblia, foi criado para viver completamente para a glória de Deus. Foi criado para amar ao Senhor com todo o seu coração, com toda a sua alma, e com toda a sua mente e com todas as suas forças. Todo o ser do homem (espírito, alma e corpo) foi criado para glorificar a Deus. 155 Por conseguinte, todo o desejo de glorificar a si mesmo ou de proteger os próprios interesses é necessariamente pecaminoso, porque almejo a mim mesmo em vez de almejar a Deus e de buscar a sua honra e glória. E é exatamente isto o que Deus tem condenado no homem. É isto que o coloca debaixo da maldição e da ira de Deus. Assim, a santidade significa a libertação desta vida centrada no eu. Daí ser importante estudar sobre a separação de alma e espírito operada pela Palavra, quando tratamos do assunto da santificação. Deste modo, a santificação não é para ser concebida primordialmente em função de atos, senão em função de uma atitude em relação a si mesmo. Não significa basicamente que não se faça certas coisas e que se faça outras. Há pessoas que nunca fazem certas coisas que são consideradas pecaminosas, porém estão cheias de orgulho. Por isto devemos considerar a santidade em função do eu e de nossa relação para com nós mesmos, e devemos dar- nos conta de que a essência da santidade é que possamos dizer com George Mulller que temos morrido, morrido completamente,para este eu que tem causado tanta ruína na nossa vida. Finalmente, passemos ao nível mais elevado e examinemos o problema do eu à luz de Cristo. Por que o Senhor veio a este mundo? Veio em última instância para livrar os homens do eu. Nós vemos nEle perfeitamente esta vida desinteressada. Pensemos da sua vinda da glória do céu ao estábulo de Belém. Por que veio? Há uma só resposta para a pergunta. Não pensou em si mesmo. Este é o cerne da afirmação que Paulo faz em Filipenses 2, de que Jesus sendo igual a Deus, não pensou nisto; não se aferrou a isso, ao direito que tinha de manifestar sempre a sua infinita glória. Humilhou- se, e negou a si mesmo. Nunca haveria uma encarnação se o Filho de Deus não colocasse o eu, por assim dizer, de lado. Depois, vemos essa Sua vida desinteressada na terra. Frequentemente repetiu que as palavras que proferia não as falava de Si mesmo, e as ações que realizava não eram suas, mas do Pai, que lhas havia dado. Assim entendo o ensino de Paulo acerca da humilhação voluntária da cruz. Significa que, ao se tornar semelhante ao homem, se fez voluntariamente dependente de Deus; não pensou nada em si mesmo. Disse que veio fazer a vontade de Deus, e dependeu completamente de Deus para tudo, nas palavras que pronunciou e em tudo o que fez. Não viveu o mínimo para si mesmo. E Paulo diz que devemos ter o mesmo sentimento que houve em Cristo Jesus. 156 Ele era inocente e sem culpa, e contudo, quando lhe maldiziam, não respondia com maldição; quando padecia, não ameaçava, senão se entregava ao Pai que julga retamente (I Pe 2.23). A cruz de Cristo é o exemplo supremo, e a argumentação do Novo Testamento é esta, que se dizemos que cremos em Cristo e cremos que Ele morreu por nossos pecados, significa que nosso maior desejo deveria ser morrer para o eu. Este é o propósito último da Sua morte, não somente que pudéssemos receber perdão, ou que pudéssemos ser salvos do inferno. Foi mais para que pudesse constituir um novo povo, uma nova humanidade, uma nova criação, e que constituísse um novo reino com Ele. Ele é o primogênito entre muitos irmãos, é o modelo. Deus nos fez como Paulo diz aos efésios, “sua feitura, criados em Cristo Jesus” (Ef 2.10). Temos de ser feitos conforme à imagem do seu Filho. Assim afirma a Bïblia. De maneira que podemos dizer que a razão da sua morte na cruz foi que nós pudéssemos ser salvos e livrados da vida do eu. “Um morreu por todos, logo todos morreram;” diz o apóstolo Paulo. E por que? Ele mesmo dá a resposta logo em seguida: “e ele morreu por todos, para que os que vivem não vivam mais para si, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou.” (II Cor 5.14,15). Esta é a vida para qual Deus nos tem chamado. Não a vida de autodefesa ou de sensibilidade, senão uma vida tal que, inclusive se nos ofendem, não agiremos em represália; se recebermos uma bofetada na face direita estaremos dispostos a apresentar a outra; se alguém nos tomar a túnica estaremos dispostos a dar-lhe também a capa; se nos obrigarem a levar uma carga por uma milha, iremos duas; se alguém vier nos pedir algo, não diremos que temos direito de estar apegados ao que nos pertence, mas que se houver real necessidade, estaremos prontos a ajudar e a dar. Tenho acabado com o eu, tenho morrido para mim mesmo, e minha única preocupação é a glória e honra de Deus. Esta é a vida para a qual nos chama o Senhor Jesus Cristo. Ele morreu para que possamos vivê-la. Graças a Deus que o evangelho nos diz também que Jesus ressuscitou e que tem enviado à Igreja, e a cada um dos que creem nEle, o Espírito Santo com todo seu poder renovador e fortalecedor. Se tentarmos viver este tipo de vida por nós mesmos, estaremos condenados ao fracasso. Mas com a bendita promessa do Espírito Santo de vir morar e atuar em nós, temos esperança. Deus tem feito possível esta vida e se George Muller pôde morrer para o eu, por que não deveríamos cada um de nós, que 157 somos cristãos, morrer do mesmo modo para o eu que é tão pecador, que conduz a tanta calamidade, desdita e dor, e que em última instância é uma grande negação da obra bendita do Filho de Deus, na cruz, no monte Calvário. Amar aos Inimigos “43 Ouvistes que foi dito: Amarás ao teu próximo, e odiarás ao teu inimigo. 44 Eu, porém, vos digo: Amai aos vossos inimigos, e orai pelos que vos perseguem; 45 para que vos torneis filhos do vosso Pai que está nos céus; porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons, e faz chover sobre justos e injustos. 46 Pois, se amardes aos que vos amam, que recompensa tereis? não fazem os publicanos também o mesmo? 47 E, se saudardes somente os vossos irmãos, que fazeis demais? não fazem os gentios também o mesmo? 48 Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai celestial.” (Mt 6.43-48) Nestes versículos 43-48 temos a última das seis ilustrações que nosso Senhor utilizou para explicar seu ensino relativo à lei de Deus para o homem, em contraposição com a interpretação pervertida dos escribas e fariseus. (Não era portanto, nenhum acerto na lei que Jesus estava fazendo nestas passagens, mas dando a correta interpretação da lei, contra o ensino errôneo que vinha sendo ministrado aos judeus. De igual modo, há tal necessidade ainda em nossos dias na Igreja, porque há muitos que não interpretam a Palavra de Deus corretamente, apesar de alegarem serem os autênticos guardiões da Palavra, tal como os escribas e fariseus se tinham em tal conta. É importante pois, à luz do que temos aprendido que não devemos ser crédulos, isto é, não darmos crédito simplesmente ao que nos é ensinado relativamente à Bíblia, pela mera alegação de que devemos nos submeter à autoridade daqueles que nos ensinam. Se o ensino for correto amém. Mas, caso contrário, devemos nos submeter à verdade revelada, e não à suposta verdade, que é resultante de uma interpretação incorreta das Escrituras – nota do tradutor). 158 Por exemplo, nosso Senhor utilizou para explicar seu ensino relativo à lei de Deus para o homem, em contraposição com a interpretação pervertida dos escribas e fariseus, a afirmação que estes faziam que se deveria amar o próximo e que se deveria odiar os inimigos. Imediatamente alguém pergunta: onde encontraram isto no Antigo Testamento? Há nele alguma afirmação que diga isto? A resposta é, desde pronto: Não. Porém, era isto que ensinavam os escribas e fariseus e o interpretavam assim. Diziam que o próximo era somente um israelita; ensinavam pois os judeus a amarem os judeus, porém lhes diziam também que os demais teriam que considerá-los não somente como estranhos senão como inimigos. De fato chegaram inclusive a indicar que era quase um direito, um dever, odiar aos estrangeiros. Sabemos pela história do ódio e ressentimento que dividia o mundo antigo. Os judeus consideravam a todos os demais com cães e muitos gentios depreciavam os judeus. Havia esse horrível muro de separação que dividia o mundo e que produzia com isso uma intensa animosidade. Havia, portanto, muitos entre os zelosos escribas e fariseus que pensavam que honravam a Deus depreciando a todos os que não eram judeus. Pensavam que deveriam odiar a seus inimigos. Porém essas duas afirmações não podem ser achadas juntas em nenhuma passagem do Antigo Testamento. (Disto os crentes devem aprender que não estão honrando a Deus quando desprezam aqueles que não são crentes. Deus não faz acepção de pessoas e lhes ordena que amem a seu próximo como a si mesmos. Não importa o quanto sejam perseguidos ou desprezados. Devem amar seus inimigos, conforme Jesus nos ensinou. Este amor aos inimigos não significa contudo em estar em acordo com eles e concordar com tudo o que fazem. Ao contrário, nós vemos o próprio Senhor advertindo seriamente os escribas e fariseus. Não se deve negociar a paz com a venda da verdade. Dizer a verdade. Repreender o errado. São formas de se expressar amor pelo próximo, porque com isto estamos zelando pelo destino eterno de suaalma. A pregação densa e forte do evangelho, chamando as pessoas ao arrependimento, tal como havia feito por exemplo, João, o Batista, em relação aos escribas e fariseus era uma grande prova de amor, e não o contrário, porque todo aquele que lhe desse ouvido e se arrependesse, seria livrado da condenação eterna. O crente pode ser amaldiçoado por seus inimigos, mas é seu dever esforçar-se para que eles cheguem a alcançar a bênção da salvação em Jesus Cristo, que deve ser oferecida a todos sem exceção – nota do tradutor). 159 Nosso padrão de tratamento das pessoas deve ser o mesmo com o qual são tratadas por Deus. Ele é completamente longânimo e não busca fazer mal a ninguém por causa das ofensas que recebe dos pecadores. Ele é perfeito em misericórdia e somos chamados a seguir o Seu exemplo. Assim, a forma de tratar as demais pessoas nunca deve depender do que são, ou do que nos tenham feito. (É importante observar de modo prático, que Deus abençoa os ímpios dando-lhes chuvas, o calor do sol, colheitas, saúde e tantos outros bens que não podemos enumerar, provando assim a Sua completa bondade. Por outro lado, não deixa o homem, por causa da condenação eterna que lhe aguarda por causa do pecado, sem as aflições que lhe acompanham neste mundo, tanto internas, quanto externas, que provam que realmente, apesar de toda a bondade de Deus, e de ter criado tudo muito bom, como afirmou no princípio da criação, no entanto, esta se corrompeu por causa do pecado, e necessita da redenção e restauração que são operadas somente por Jesus. Então, este inferno que pode ser sentido na alma, por causa do pecado, que se traduz em desarmonia em relacionamentos, em depressões e tantas outras enfermidades da alma, são indicações misericordiosas da parte de Deus para nos alertar que há um inferno eterno aguardando por todo aquele que não se arrepender de seus pecados e se voltar para Ele. Então, quando se vive na paz e no amor que há em Cristo Jesus, comprova-se também, por outro lado, que há também um céu de bênção e glória eternas, que são acessados por meio da comunhão com Jesus, e que aguarda por todos aqueles que amam verdadeiramente ao Senhor – nota do tradutor). Deus contempla o mundo e vê nele tanto pecado e miséria, porém o vê como algo que provem da atividade de Satanás. Porém há um sentido em que vê ao homem injusto de um modo diferente. Preocupa-se por ele, por seu bem-estar, e por isso faz que o sol venha para ele, e que a chuva desça sobre ele. Nós devemos aprender a fazer isto. Devemos aprender a olhar os outros e dizer: “Se fazem isto contra mim, por que o fazem?” Porque são vítimas de Satanás; porque lhes governa o deus deste mundo e são suas vítimas indefesas. Não devo chatear-me. Vejo-lhes como pecadores abocanhados pelo inferno. Devo fazer todo o possível para salvá-los porque é assim que Deus opera, que deseja que todos se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade, e que não tem prazer na morte espiritual e eterna de ninguém. 160 Foi por amar o homem perdido no pecado que Deus enviou seu Filho unigênito ao mundo para salvá-lo. Este amor aos inimigos nada tem a ver com sentimentalismo. Há uma grande dose de sentimentalismo em relação a isto. Há quem diz que tem que fazê-lo para que todos se tornem nossos amigos. Esta é por vezes a base do pacifismo. Pensam que as pessoas mudarão desde que as tratemos com amabilidade. Há quem pense assim, porém devemos ser realistas e não sentimentalistas, porque sabemos que isto não é correto e que não é eficaz. Não, nossa ação não tem como objetivo fazer com que se tornem nossos amigos. Outros pensam que o amor aos inimigos significa não lhes impor qualquer forma de disciplina. Esta é a ideia sociológica moderna em relação ao problema. Pensam erroneamente que sem castigos e sem disciplina as pessoas se tornam melhores. Pensam que apenas devemos ser amáveis. Como pois, podemos manifestar o amor de Deus nos contatos com outras pessoas? Deste modo: “Bendizei aos que vos maldizem. Orai pelos que vos perseguem.” Isto pode ser dito com outras palavras da seguinte forma: “Respondam com palavras amáveis aos que lhes dirigem palavras ofensivas”. Quando ouvimos palavras duras temos a tendência de responder do mesmo modo. Porém nossa norma deve ser de palavras amáveis em vez de ásperas. Em segundo lugar: “façam o bem aos que vos odeiam”, quer dizer atos de benevolência em vez de atos malévolos. Quando alguém se tem mostrado realmente malévolo e cruel para conosco, não devemos responder com a mesma moeda. Devemos orar pelas pessoas que nos perseguem. Devemos cair de joelhos e falar conosco mesmo antes de fazê-lo com Deus. Em lugar de nos mostrarmos amargurados e duros, em lugar de reagir em função do ego e com o desejo de cobrarmos o fato, devemos recordar que tudo o que fizermos deve estar debaixo de Deus e diante de Deus. Devemos entender a diferença entre amar e agradar. Cristo disse: “Amai os vossos inimigos” e não que “Agradem seus inimigos”, Agradar é algo muito mais natural que amar. Não somos chamados a agradar a todo mundo. Não é possível. Porém nos é ordenado amar. É ridículo mandar que alguém agrade outra pessoa. Depende da constituição física, de temperamento e de mil e uma coisas mais. Isto não importa. O que importa é que oremos pela pessoa que não nos agrada. Isto não é agrado, senão amor. 161 O amor é mais que sentimento. O amor no Novo Testamento é muito prático, porque este é o amor de Deus, que guardemos os seus mandamentos. O amor é ativo. Que Fazeis Demais? “E, se saudardes somente os vossos irmãos, que fazeis demais? não fazem os gentios também o mesmo?” (Mt 5.47) Nesta expressão temos, uma vez mais, uma das definições perfeitas quanto ao que constitui o crente. Apresenta-se o aspecto dual: desalento e alento; a queda e o levantamento. Aqui está: “Que fazeis demais?” Nosso Senhor começou dizendo: “Porque lhes digo que se vossa justiça não for maior que a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos céus”. Os escribas e fariseus tinham normas elevadas, porém a justiça à qual nosso Senhor se refere é mais que essa justiça; há algo especial nela. Nosso Senhor nos diz nesta passagem que o caráter único do crente é duplo. Antes de tudo é um caráter único que lhes separa de tudo o que não é cristão. “Porque se amais aos que lhes amam, que recompensa tereis? Não fazem o mesmo os publicanos?”. Eles podem fazê-lo, porém vocês são diferentes. O crente é diferente dos demais. Faz o que fazem os demais, é certo, porém faz algo mais. É isto que nosso Senhor vem colocando em todo o tempo, em relevo. Qualquer um pode levar uma carga por uma milha, mas o crente é quem vai a segunda. Sempre faz mais do que os demais. Isto é, sem dúvida, tremendamente importante. O crente, segundo a definição de nosso Senhor, não é somente alguém que dá mais do que os demais; faz o que os outros não podem fazer. (Como por exemplo amar os inimigos e fazer o bem aos que lhe perseguem. O homem natural não pode fazer isto, senão apenas amar os que lhe amam –nota do tradutor). “Sede pois, vós perfeitos, como vosso Pai que está nos céus é perfeito”. Isto é estupendo, porém é a definição essencial do crente. O crente tem de ser como Deus, tem de manifestar em sua vida diária neste mundo cruel, algo das características do próprio Deus. Tem que viver como viveu o Senhor Jesus Cristo, seguir suas normas e imitar seu exemplo. Não somente será distinto dos demais. Tem que ser como Cristo. O que temos que nos perguntar, se queremos saber com certeza se somos ou não verdadeiros cristãos, é isto: “Há isso em mim que não se pode explicar em 162 termos naturais? Há algo especial e único em mim e em minha vida que nunca será encontrado em um não cristão? Que é o cristão? Não é alguém que lê o Sermão do Monte e diz: “Vou viver assim, vou seguir a Cristo e imitar seu exemplo. Essa é a vida que vou viver com minha grande força e vontade”.Nada disso. Lhes direi o que é o cristão. É alguém que se tem convertido em filho de Deus e que possui uma relação única com Deus. Isto o faz especial. “Que fazeis demais?” Deveria ser especial, vocês deveriam ser especiais, porque são pessoas especiais. Deus se tem convertido no Pai dos crentes. Não é o Pai do não cristão; para eles é Deus e nada mais, o grande Legislador e Juiz. Porém, para o crente, Deus é Pai. Como pode um homem que nunca tem tido o amor de Deus derramado em seu coração amar os seus inimigos e fazer todas estas coisas? É impossível. Não pode fazê-lo; e além disso não o faz. Nunca tem havido um homem fora de Cristo que o tenha podido fazer. Concluo, pois, com esta penetrante pergunta. É a pergunta mais profunda que um homem pode fazer para responder nesta vida. Há algo especial em mim? Não pergunto se vivemos uma vida moral, reta, boa. Não pergunto se oramos, se vamos à igreja com regularidade. Não pergunto nada disso. Há pessoas que fazem todas estas coisas e contudo não são crentes. Se isto é tudo, que fazemos mais que os demais, que há em mim que seja especial? Há em nós algo desta qualidade especial? Há algo de nosso Pai em nós? Esta é a pedra de toque. Se Deus é nosso pai, de uma forma ou de outra, o parentesco familiar estará aí, os laços de nosso parentesco inevitavelmente se manifestarão. Que há de especial em nós? Deus nos conceda que ao examinarmos a nós mesmos, possamos descobrir algo desse caráter único e dessa separação que não somente nos divide dos demais, senão que proclama que somos filhos de nosso Pai que está nos céus. Mateus 5.1 Jesus, pois, vendo as multidões, subiu ao monte; e, tendo se assentado, aproximaram-se os seus discípulos, Mateus 5.2 e ele se pôs a ensiná-los, dizendo: Mateus 5.3 Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus. Mateus 5.4 Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados. 163 Mateus 5.5 Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra. Mateus 5.6 Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque eles serão fartos. Mateus 5.7 Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia. Mateus 5.8 Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus. Mateus 5.9 Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus. Mateus 5.10 Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus. Mateus 5.11 Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguiram e, mentindo, disserem todo mal contra vós por minha causa. Mateus 5.12 Alegrai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus; porque assim perseguiram aos profetas que foram antes de vós. Mateus 5.13 Vós sois o sal da terra; mas se o sal se tornar insípido, com que se há de restaurar-lhe o sabor? para nada mais presta, senão para ser lançado fora, e ser pisado pelos homens. Mateus 5.14 Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte; Mateus 5.15 nem os que acendem uma candeia a colocam debaixo do alqueire, mas no velador, e assim ilumina a todos que estão na casa. Mateus 5.16 Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras, e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus. Mateus 5.17 Não penseis que vim destruir a lei ou os profetas; não vim destruir, mas cumprir. Mateus 5.18 Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a terra passem, de modo nenhum passará da lei um só i ou um só til, até que tudo seja cumprido. Mateus 5.19 Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e assim ensinar aos homens, será chamado o menor no reino dos céus; aquele, porém, que os cumprir e ensinar será chamado grande no reino dos céus. Mateus 5.20 Pois eu vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus. Mateus 5.21 Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; e, Quem matar será réu de juízo. 164 Mateus 5.22 Eu, porém, vos digo que todo aquele que se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo; e quem disser a seu irmão: Raca, será réu diante do sinédrio; e quem lhe disser: Tolo, será réu do fogo do inferno. Mateus 5.23 Portanto, se estiveres apresentando a tua oferta no altar, e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, Mateus 5.24 deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai conciliar-te primeiro com teu irmão, e depois vem apresentar a tua oferta. Mateus 5.25 Concilia-te depressa com o teu adversário, enquanto estás no caminho com ele; para que não aconteça que o adversário te entregue ao guarda, e sejas lançado na prisão. Mateus 5.26 Em verdade te digo que de maneira nenhuma sairás dali enquanto não pagares o último ceitil. Mateus 5.27 Ouvistes que foi dito: Não adulterarás. Mateus 5.28 Eu, porém, vos digo que todo aquele que olhar para uma mulher para a cobiçar, já em seu coração cometeu adultério com ela. Mateus 5.29 Se o teu olho direito te faz tropeçar, arranca-o e lança-o de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno. Mateus 5.30 E, se a tua mão direita te faz tropeçar, corta-a e lança-a de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que vá todo o teu corpo para o inferno. Mateus 5.31 Também foi dito: Quem repudiar sua mulher, dê-lhe carta de divórcio. Mateus 5.32 Eu, porém, vos digo que todo aquele que repudia sua mulher, a não ser por causa de infidelidade, a faz adúltera; e quem casar com a repudiada, comete adultério. Mateus 5.33 Outrossim, ouvistes que foi dito aos antigos: Não jurarás falso, mas cumprirás para com o Senhor os teus juramentos. Mateus 5.34 Eu, porém, vos digo que de maneira nenhuma jureis; nem pelo céu, porque é o trono de Deus; Mateus 5.35 nem pela terra, porque é o escabelo de seus pés; nem por Jerusalém, porque é a cidade do grande Rei; Mateus 5.36 nem jures pela tua cabeça, porque não podes tornar um só cabelo branco ou preto. Mateus 5.37 Seja, porém, o vosso falar: Sim, sim; não, não; pois o que passa daí, vem do Maligno. Mateus 5.38 Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. 165 Mateus 5.39 Eu, porém, vos digo que não resistais ao homem mau; mas a qualquer que te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; Mateus 5.40 e ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa; Mateus 5.41 e, se qualquer te obrigar a caminhar mil passos, vai com ele dois mil. Mateus 5.42 Dá a quem te pedir, e não voltes as costas ao que quiser que lhe emprestes. Mateus 5.43 Ouvistes que foi dito: Amarás ao teu próximo, e odiarás ao teu inimigo. Mateus 5.44 Eu, porém, vos digo: Amai aos vossos inimigos, e orai pelos que vos perseguem; Mateus 5.45 para que vos torneis filhos do vosso Pai que está nos céus; porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons, e faz chover sobre justos e injustos. Mateus 5.46 Pois, se amardes aos que vos amam, que recompensa tereis? não fazem os publicanos também o mesmo? Mateus 5.47 E, se saudardes somente os vossos irmãos, que fazeis demais? não fazem os gentios também o mesmo? Mateus 5.48 Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai celestial. Mateus 6 “1 Guardai-vos de fazer as vossas boas obras diante dos homens, para serdes vistos por eles; de outra sorte não tereis recompensa junto de vosso Pai, que está nos céus. 2 Quando, pois, deres esmola, não faças tocar trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam a sua recompensa. 3 Mas, quando tu deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita; 4 para que a tua esmola fique em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará.” (Mt 6.1-4) 166 Chegamos agora a uma seção completamente nova do Sermão do Monte, que engloba todo este sexto capítulo. Estamos diante do que poderíamoschamar de descrição do cristão que vive sua vida neste mundo na presença de Deus, em submissão ativa a Deus, e em dependência total dEle. Não existe maior falácia do que imaginar que no momento em que alguém se converte e que se torna cristão, que todos seus problemas são resolvidos e que todas as suas dificuldades desaparecem. A vida cristã está cheia de dificuldades, cheia de dores e de insídias. Por isso necessitamos da Bíblia. Das instruções detalhadas que nos são dadas por Cristo e pelos apóstolos, porque a vida do crente neste mundo é uma vida cheia de problemas. Há perigos latentes na própria prática da vida cristã, e também em nossas relações com outras pessoas neste mundo. Ao examinarem sua própria experiência, e também, ao lerem as biografias dos servos de Deus, descobrirão que muitos têm passado por dificuldades, e muitos têm sido encontrados por um tempo cheios de amargura, e têm perdido sua experiência de alegria e felicidade da vida cristã, porque têm se esquecido destes aspectos. Como veremos, há pessoas que estão equivocadas em sua vida religiosa, e há outras que parecem andar bem neste sentido, porém, devido a tentações muito sutis no aspecto mais prático, tendem a andar mal. Por isso, temos que examinar ambos aspectos. Convém portanto, advertir desde o começo, que este sexto capítulo é muito penetrante, de fato, poderíamos inclusive dizer que é muito doloroso. Às vezes, me parece que é um dos capítulos mais incômodos de toda a Bíblia. Move e examina e nos põe um espelho frente aos olhos, e não nos permite escapar. Não há outro capítulo que sirva melhor que este para estimular a própria humilhação e humildade. Porém devemos dar graças a Deus por isso, porque o cristão deveria estar sempre desejoso em conhecer a si mesmo. Somente o homem que tem visto verdadeiramente a si mesmo, tal como é, tem a probabilidade de recorrer a Cristo, e buscar a plenitude do Espírito de Deus, que é o único que pode consumir os vestígios do ego e tudo o que tende a fazer com que se perca o viver cristão. Como no capítulo anterior, neste também se ensina, em certo sentido, o contraste com o ensino dos escribas e fariseus. Agora, não se enfatiza 167 tanto o ensino, senão a vida prática, incluindo aí, a piedade e toda nossa conduta religiosa. O primeiro versículo (“Guardai-vos de fazer as vossas boas obras diante dos homens, para serdes vistos por eles; de outra sorte não tereis recompensa junto de vosso Pai, que está nos céus.”) é a introdução da mensagem dos versículos 2 a 18. Depois, o Senhor dá três exemplos ou ilustrações do princípio geral do primeiro versículo, relativos à esmola, à oração e ao jejum. A vida cristã é sempre um assunto de equilíbrio, porque é uma vida que dá a impressão de ser contraditória, porque ao mesmo tempo que Jesus ordena que façamos nossas obras diante dos homens para que o Pai seja glorificado, Ele também ordena que nos guardemos de fazer as nossas obras diante dos homens para sermos vistos por eles. Contudo, é apenas uma aparente contradição, porque o que se proíbe não é o fazer as obras diante dos homens, mas o motivo errado, a saber, para a nossa própria glória, em vez de fazê-lo exclusivamente para a glória de Deus. Portanto os extremos de conduta em relação às obras que fazemos para Deus devem ser evitados, a saber: recolhermo-nos como eremitas ou em mosteiros para não sermos vistos pelos homens, e por outro lado, exibirmo-nos por motivo de ostentação e autoglorificação. É necessário buscar o equilíbrio. (Tem-se confundido portanto, nesta questão de equilíbrio, quanto às acusações que são dirigidas contra os pentecostais, chamando-os de exagerados e desequilibrados em sua adoração no culto público. Ora, se os motivos são corretos, a saber, para a exclusiva glória de Deus, então, tal como não se podia acusar os primeiros 120 cristãos que foram revestidos do poder do Espírito falando em línguas e glorificando a Deus a plenos pulmões, a ponto de terem sido infamados por muitos que diziam que estavam embriagados, de igual modo não se pode acusar de desequilibrados aqueles que adoram a Deus na liberdade do Espírito. A este respeito, vale lembrar que Jesus não repreendeu, a pedido dos fariseus, os seus discípulos que gritavam “Hosana” quando entrou triunfalmente montado num jumento em Jerusalém, dizendo, que caso eles se calassem, as pedras clamariam – nota do tradutor). Se compreendermos que o que importa é o grande princípio, o espírito que guia a nossa ação, então não cairemos no erro, e não nos desviaremos nem para a direita, nem para a esquerda. 168 Além disso, não deixaremos de receber a recompensa divina que é prometida àqueles que não fazem suas obras com o propósito da autoglorificação. O desejo da recompensa é legítimo e o Novo Testamento inclusive o incentiva. O Novo Testamento nos ensina que haverá um juízo de recompensa. Haverá quem receberá muitos açoites, e quem receba poucos. Todas as ações dos homens serão julgadas, porque é necessário que todos compareçamos diante do tribunal de Cristo, para que cada um receba segundo o que tenha feito enquanto no corpo, seja o bem ou seja o mal. Deveríamos portanto, nos interessarmos por esta assunto da recompensa. Não há nada mau nisso, contanto que o que se deseje seja a recompensa da santidade, a recompensa de estar com Deus. Quanto à recompensa devemos saber que não recebem recompensa de Deus, os que a buscam dos homens. Este pensamento é aterrador, porém é uma afirmação absoluta, porque Jesus diz: “Guardai-vos de fazer as vossas boas obras diante dos homens, para serdes vistos por eles; de outra sorte não tereis recompensa junto de vosso Pai, que está nos céus.” Se temos recebido a recompensa dos homens, em qualquer aspecto, não se receberá nada de Deus. Se ao pregar o evangelho o que me preocupa é o que os outros pensem de minha pregação, neste caso, esta será a única coisa que vou receber, e nada de Deus. É algo absoluto. Vejamos agora, o que nosso Senhor diz acerca deste assunto concreto com respeito ao dar esmolas. Jesus diz que não se deve tocar trombeta diante de nós quando damos esmola, e que não saiba a nossa mão esquerda o que faz a direita. É evidente que isto é uma metáfora que foi usada pelo Senhor, porque não se tocava trombeta quando os judeus davam esmolas, especialmente os escribas e fariseus. Não é que sempre haja um pregoeiro óbvio que vá adiante de nós anunciando as nossas esmolas. Porém, quando examinamos realmente nosso coração, vemos que há formas sutis de fazer a mesma coisa. (O modo justo de ajudar o próximo é fazê-lo secretamente, e é a isso que o Senhor quer se referir ao dizer que não saiba a nossa mão esquerda o que faz a direita. Este é um modo de dizer que se possível deveria ser um segredo até para nós mesmos, algo para não ficarmos nos lembrando para o nosso próprio louvor e glória. 169 Fazê-lo assim também não expõe o ajudado a nenhum tipo de humilhação, quer da nossa própria parte, quer da parte de outros. De modo que seria uma boa norma, manter o anonimato quando prestamos auxílio, especialmente financeiro, a alguém – nota do tradutor) Nosso Senhor nos ordena a fazer todas essas coisas movidos por Deus, e guiados pelo Espírito Santo, e logo esqueceremos de qualquer mérito próprio em fazê-las. Quando tudo fazemos por amor a Deus, esquecidos de nós mesmos, receberemos recompensa de Deus. Nada do que tivermos feito para o bem do nosso próximo, cairá no esquecimento. Deus tudo tem registrado em seus livros contábeis. Nada esquecerá de lançar na nossa conta para recompensar-nos. Ainda que não nos recompense abertamente neste mundo, certamente nos recompensará abertamente no grande dia quando os segredos de todos os homens serão manifestos, ao se abrir o grande Livro, quando se anunciará diante de todos a sentença final. Todos os detalhes do que tivermos feito para glória de Deus serão anunciados e proclamados e se atribuirá o mérito, a honrae a glória. Quando Orares “E, quando orardes, não sejais como os hipócritas; pois gostam de orar em pé nas sinagogas, e às esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam a sua recompensa.” (Mt 6.5) O Senhor nos advertiu para que não sejamos como os hipócritas, que oram de pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas para serem vistos pelos homens. Tem dito que as vãs repetições de nada valem em si mesmas e por si mesmas, e que a simples quantidade de orações não produz benefícios especiais. Também tem dito que se deve orar em secreto, e que nunca se deve preocupar acerca dos homens e nem acerca do que os homens possam pensar. A oração é sem dúvida, a atividade mais elevada da alma humana. O homem nunca é maior do que quando se encontra de joelhos diante de Deus. E não é incomum que aqueles que têm muito para falar na oração na presença de outros, pouco tenham a dizer a Deus, quando em privado. No entanto, não deveria ser assim. 170 A característica mais destacada de todas as pessoas santas que o mundo tem conhecido tem sido que não somente tenham dedicado muito tempo à oração em privado, senão que têm achado uma grande satisfação nisso. Quanto mais santa é a pessoa, mais tempo dedica à conversação com Deus. Assim, pois, é um assunto de importância vital e absoluta. João, o Batista, havia ensinado seus discípulos a orar. Os discípulos de nosso Senhor sentiram a mesma necessidade quando Lhe pediram que lhes ensinasse a orar. Não há dúvida de que esta é nossa maior necessidade. Perdemos as bênçãos mais importantes da vida cristã porque não sabemos orar bem. Necessitamos de instrução em todos os sentidos sobre esta questão. Necessitamos que nos seja ensinado a orar, e pelo que orar. Precisamos dedicar algum tempo para estudar o Pai Nosso, porque envolve todas estas duas coisas de forma surpreendente e maravilhosa. (A oração modelar do Pai Nosso contém tudo, de forma resumida, que é necessário à oração. Nós veremos cada uma destas instruções do Senhor quanto à forma que devemos orar, mais adiante, valendo-nos do comentário de Thomas Watson relativo ao assunto – nota do tradutor). Como Orar “5 E, quando orardes, não sejais como os hipócritas; pois gostam de orar em pé nas sinagogas, e às esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam a sua recompensa. 6 Mas tu, quando orares, entra no teu quarto e, fechando a porta, ora a teu Pai que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará. 7 E, orando, não useis de vãs repetições, como os gentios; porque pensam que pelo seu muito falar serão ouvidos. 8 Não vos assemelheis, pois, a eles; porque vosso Pai sabe o que vos é necessário, antes de vós lho pedirdes.” (Mt 6.5-8) Há uma forma equivocada e outra genuína, de orar. Nosso Senhor se ocupa de ambas. O erro essencial da forma equivocada é que se concentra em si mesma. É o ato de centrar a atenção naquele que está orando em vez de centrá-la nAquele a quem se oferece a oração. Esse é o problema, e nosso Senhor o mostra nesta passagem numa forma muito gráfica e pertinente, pois diz: 171 “Quando orardes, não sejais como os hipócritas, pois gostam de orar em pé nas sinagogas, e às esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens.” Colocam-se de pé, nas sinagogas, numa posição proeminente. Recordemos da parábola de nosso Senhor acerca do fariseu e do publicano que foram ao templo orar. Aqui indica exatamente o mesmo. Nos diz que o fariseu se colocou o mais adiante que pôde, no lugar mais proeminente, para orar. O publicano, por outro lado, estava tão envergonhado e cheio de contrição que se inclinou o mais que pôde sem levantar a cabeça ao céu, senão tão somente exclamando: “Oh Deus, tenha misericórdia de mim, pecador!”. Também aqui nos diz nosso Senhor que os fariseus se colocam de pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas, nos lugares mais visíveis, e oram para que os homens lhes vejam. “Certamente lhes digo que já receberam sua recompensa.” Segundo nosso Senhor, a razão para que orem nas esquinas das ruas é mais o menos a seguinte. O homem que se dirige ao templo para orar está desejoso de produzir a impressão de que é uma alma tão devota que nem sequer pode esperar chegar ao templo. De modo que se detém a orar na esquina da rua. Por esta mesma razão, quando entra no templo, passa adiante ao lugar mais visível possível. A segunda forma equivocada de orar se encontra nas seguintes palavras: “E, orando, não useis de vãs repetições, como os gentios; porque pensam que pelo seu muito falar serão ouvidos.” Se tomamos estes dois quadros juntamente, veremos que há dois erros básicos na raiz desta forma de orar a Deus. O primeiro é que meu interesse, se sou como o fariseu, está em mim mesmo, que sou o que ora. O segundo é que creio que a eficácia de minha oração depende do muito que ore, ou da forma particular em que ore. Examinemos estes dois pontos separadamente. O primeiro problema, pois, é o perigo de se interessar por si mesmo. Isto se manifesta de diferentes formas. O primeiro problema básico é que essa pessoa está desejosa de que os demais vejam que ela está orando. Esta é a causa de tudo. Está desejoso de desfrutar de uma reputação de homem de oração; está desejoso disto e o ambiciona, o que, por si só, já é mau. Ninguém deveria estar interessado em si mesmo, como nosso Senhor explica. O seguinte passo neste processo é que o desejo de que os outros nos vejam em oração, se converte em desejo positivo e real. O anterior, por 172 sua vez, conduz ao seguinte: a fazer coisas que garantam que os outros nos vejam. Isto é algo muito sutil. Nem sempre é evidente, como o que vimos no caso de dar esmola. Há um tipo de pessoa que se exibe constantemente se coloca numa posição proeminente, de forma que sempre atrai a atenção sobre si mesma. O que nosso Senhor diz acerca disto é: “Em verdade vos digo que já receberam a sua recompensa.” Que desejavam? Desejavam o louvor dos homens, e o conseguiram. E também hoje em dia se fala deles como grandes homens de oração, se fala deles como de pessoas que faziam orações belas, maravilhosas. Sim, obtêm tudo isso. Porém, pobres almas, é tudo o que conseguirão. Ao morrer se falará deles como gente maravilhosa neste assunto da oração; não obstante, creia-me, pobre alma humilde que não pode completar uma frase, porém que tem clamado a Deus em angústia, o tem alcançado de algum modo, e obterá recompensa, o que o outro nunca conseguirá. Porque desejavam o louvor dos homens, e foi apenas isso o que alcançaram. Passemos agora à forma correta de orar. “6 Mas tu, quando orares, entra no teu quarto e, fechando a porta, ora a teu Pai que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará. 7 E, orando, não useis de vãs repetições, como os gentios; porque pensam que pelo seu muito falar serão ouvidos. 8 Não vos assemelheis, pois, a eles; porque vosso Pai sabe o que vos é necessário, antes de vós lho pedirdes.” O que quer dizer? A única coisa importante ao orar em qualquer lugar é que devemos nos dar conta que estamos nos aproximando de Deus. Isto é a única coisa que importa. Porém, necessitamos de um pouco mais de instrução, e nosso Senhor nos dá tais instruções. Primeiro nos ordena que oremos em secreto, em nosso aposento, com a porta fechada. Isto não significa que as reuniões de oração estão sendo proibidas pelo Senhor, porque Ele também as recomenda. O princípio é que há certas coisas que devemos excluir, seja orando em público ou secretamente. Temos que excluir e esquecer os outros. Inclusive devemos esquecer de nós mesmos. Isto é o que significa entrar no aposento. É possível estar neste aposento quando se caminha numa rua muito movimentada. É um ato de retiro espiritual e não físico. Entramos neste aposento quando estamos em comunhão com Deus, e 173 ninguém sabe o que estamos fazendo. O mesmo princípio se aplica à oração pública,até mesmo quando oramos do púlpito, porque não estamos nos dirigindo à congregação, senão a Deus. Estou falando com Deus, estou dirigindo a oração a Deus, de modo que tenho que excluir e esquecer-me dos demais. (E se intercedermos em favor de alguém, isto será movido pelo Espírito, pelo fato de estar concentrado no Senhor – nota do tradutor). De nada serve entrar no aposento e fechar a porta se todo o tempo estou cheio de mim mesmo e pensando em mim mesmo, e me orgulhando de minha oração. Não, tenho que excluir tanto a mim mesmo quanto aos demais. Meu coração deve estar aberto única e totalmente a Deus. A Oração do Pai Nosso Tradução e adaptação de Sivlio Dutra do texto em domínio público, de autoria de Thomas Watson (1620-1686). Prefácio à Oração do Senhor “Pai nosso que estás nos céus,” Nesta Escritura duas coisas são observáveis: a introdução para a oração, e a própria oração A introdução para a Oração do Senhor é: ”Portanto vós orareis assim”. Nosso Senhor Jesus Cristo, nestas palavras, deu aos seus discípulos e a nós uma diretriz para a oração. Os dez mandamentos são a regra da nossa vida, o credo é o resumo da nossa fé, e a Oração do Senhor é o padrão de nossa oração. Como Deus prescreveu a Moisés um padrão do tabernáculo (Êxodo 25.9), assim Jesus prescreveu aqui um padrão de oração para nós: ”Portanto vós orareis assim”. O significado é, faça disto a regra e o modelo pelo qual você deverá moldar as suas orações. Calvino dizia que nós devíamos examinar nossas orações por esta regra. Não que nós estejamos amarrados às palavras da Oração do Senhor. Porque Jesus não disse: “com estas palavras”, mas “desta maneira”. E “desta maneira” significa deixar que todos as nossas petições concordem com as coisas contidas na Oração do Senhor. Tertuliano chamava esta oração padrão de “breviário e compêndio do evangelho”. A exatidão desta oração aparece na dignidade do Autor. A exatidão da oração aparece na excelência do assunto. É como prata provada num forno, purificada sete vezes - Salmo 12: 6. Nunca 174 houve uma oração tão admiravelmente composto como esta. O assunto da oração é admirável, por causa da sua compreensão. É curto e expressivo, E por sua clareza. É clara e inteligível a todas as capacidades. Clareza é a graça da fala. E finalmente por sua perfeição, porque contém as principais coisas que nós temos que pedir, ou que Deus tenha que dar. Assim, devemos ter uma grande estima à Oração do Senhor; e deixar que ela seja o modelo e padrão de todas as nossas orações. Há um benefício duplo que surge em moldar nossas petições adequadamente a esta oração. Por este meio o erro em oração é prevenido. Não é fácil de escrever injustiça depois deste modelo; nós não podemos errar facilmente quando nós tivermos nosso padrão diante de nós. Por este meio são obtidas misericórdias pedidas; porque o apóstolo nos assegura que Deus nos ouvirá quando nós orarmos em conformidade com a vontade dEle - 1 João 5.14. E seguramente nós oramos de acordo com a vontade dele quando nós orarmos de acordo com o padrão que ele nos deu. A oração propriamente dita consiste em três partes. 1. Um Prefácio. 2. Petições. 3. A Conclusão. O Prefácio à oração inclui: “Pai nosso que estás nos céus”. I. A primeira parte do Prefácio é “Pai nosso”. A palavra Pai é aplicada às vezes, pessoalmente: “Meu Pai é maior que eu” (João 14.28); mas Pai no texto é aplicado essencialmente à Divindade total. Este título, Pai, nos ensina que nós temos que nos endereçar em oração somente a Deus. Em que ordem temos que dirigir nossas orações a Deus? Aqui somente o Pai é nomeado. Mas nós podemos também dirigir nossas orações ao Filho e ao Espírito Santo? Embora somente o Pai seja nomeado na Oração do Senhor, contudo as outras duas Pessoas não são excluídas. O Pai é mencionado porque ele é o primeiro em ordem; mas são incluídos o Filho e o Espírito Santo porque eles são o mesmo em essência. Como todas as três Pessoas subsistem na Divindade, assim, embora em nossas orações, nomeemos uma Pessoa, nós temos que orar a todas. No prefácio, em vez de Pai Nosso, Jesus poderia ter usado Deus Altíssimo, Deus Todo Poderoso, Deus Nosso Rei, Deus Nosso Juiz, mas ele usou Pai Nosso por ser uma expressão de amor, de laço familiar, de indicação da filiação efetiva que os crentes têm com a Divindade, por causa da eleição deles; e também para servir de encorajamento para que seus filhos orem a ele. 175 Nenhuma pessoa pode dizer “Pai nosso que estás nos céus” além dos que são regenerados e santificados pelo Espírito Santo, porque é destes que se diz que receberam o poder de serem feitos filhos de Deus (João 1.12). Deus é o melhor Pai, porque ele é perfeito. Seu Pai que está no céu é perfeito. Ele é perfeitamente bom (Mt 5.48). Pais terrenos estão sujeitos a fraquezas. Elias, embora um profeta, era um homem sujeito a paixões como nós (Tiago 5: 17); mas Deus é perfeitamente bom. Toda a perfeição que nós podemos chegar a ter nesta vida é sinceridade. Nós podemos nos assemelhar um pouco a Deus, mas não igualá-lo; pois ele é infinitamente perfeito. E é infinitamente perfeito em sabedoria, e isto implica que Ele sempre sabe o que é melhor para nós. E pode fazer com que todas as coisas trabalhem para o bem dos seus filhos (Rom 8.28). Ele é também um Pai perfeitamente amoroso (I Jo 4.16). Ele é um Pai infinitamente rico que fará com que todos os seus filhos entrem na posse de uma riquíssima herança eterna, na condição de co- herdeiros com Cristo, e isto significa que todas as coisas designadas para serem herdadas por Cristo também serão herdadas por eles. Cristo tem um trono? Então eles também terão. Cristo tem uma coroa? Então eles também terão. E assim por diante. Deus é um Pai perfeitamente educador e pode reformar os seus filhos quando eles tomarem cursos ruins. Deus pode mudar os corações dos seus filhos.pelo Seu próprio poder. Assim, a honra daqueles que têm a Deus por Pai é maior que a que é conferida aos príncipes da terra, pois são preciosos para Deus. Eles são guiados e protegidos por Deus, sendo guardados como um tesouro precioso (Mal 3.17). Os nomes dos filhos de Deus estão escritos no Livro da Vida (Fp 4.3) e jamais serão retirados dali (Apo 3.5). Deus faz de seus filhos por adoção mais achegados do que os anjos, porque os anjos são amigos de Cristo, mas os crentes são os membros do Seu corpo. E que consolo é isto para os santos, porque os filhos de Deus são menosprezados neste mundo, e injuriados e caluniados, mas Deus porá honra nos seus filhos no último dia e os coroará com felicidades imortais, para inveja dos adversários deles. Mas estes membros de Cristo são filhos por adoção por causa da grande misericórdia de Deus. Por meio dela obtiveram acesso a todas estas graças e à maior delas que é a salvação de suas almas da condenação eterna. Por isso é um ato de grande ingratidão, um grande abuso do amor de Deus, 176 apanhar as joias das Suas misericórdias, e fazer uso delas para pecar. Deus faz infinitamente mais por Seus filhos do que pelos outros, pois plantou a Sua graça neles, e deu somente a eles poderem participarem da Sua intimidade e favor, então pecar deliberadamente contra a Sua bondade paterna é um ato de traição e rebeldia. Somente os crentes podem pecar contra o sangue precioso de Cristo, porque foi somente a eles que o Seu sangue purificou. E portanto, isto é uma grande ingratidão para com o grande favor que recebemos de nosso Pai divino. Assim, é um sinal de filiação a Deus quando podemos lamentar pela odiosidade dos nossos pecados, porque certamente o Espírito Santo nos convencerá disto. Somente os verdadeiros filhos de Deus podem ter um temor santo dEle, especialmente de entristecerem o Espírito Santo com os seus pecados. Eles também terão um santo temor pela Sua Palavra e a honrarão esforçando-se para pô-la em prática em suas próprias vidas. Estes filhos de Deus confiam inteiramente que foi por causa da eleiçãopela graça e misericórdia de Deus que foram feitos Seus filhos, e não por qualquer coisa boa que existisse neles próprios. Eles sabem que é por pura graça e misericórdia que irão para o céu. Mas os hipócritas pensam que fingindo grande reverência aos santos do passado irão para o céu, confiando em sua própria justiça e bondade, pois eles canonizam os santos mortos, para fingirem temor a Deus, mas perseguem os santos que estão vivos. Destes, podemos dizer juntamente com o apóstolo em Hb 12.8: que são bastardos e não filhos. Se nós amarmos nosso Pai divino, nós seremos defensores para ele, pois nos levantaremos na defesa da Sua verdade. Somente os filhos de Deus não podem ouvir o Seu nome sendo desonrado e permanecerem calados. Cristo tem confirmado o nosso nome no céu e nós nos envergonharemos de confirmar o nome dele na terra? Um filho de Deus o amará acima de todas as demais coisas: sejam propriedades, honrarias, fama etc. Um filho de Deus procurará acima de tudo honrar o Seu Pai divino (Mal 1.6). E a melhor maneira de demonstrar esta honra ao Senhor é tendo um temor reverente dEle. E isto consiste basicamente em não ousarmos fazer qualquer coisa que ele tenha proibido na Sua Palavra. Aquele que é filho de Deus se assemelha a Ele. Ele traz a imagem do Seu Pai celestial e busca renovar-se e crescer diariamente nesta imagem dia a dia (Col 3.10). Ele busca se assemelhar mais e mais em santidade que é a glória da divindade. A santidade de Deus é a pureza intrínseca da Sua 177 essência. Aqueles que têm a Deus por Seu Pai participam da natureza divina, entretanto não da Sua essência divina, contudo trazem a semelhança divina, e assim como o selo deixa a sua impressão na cera, os crentes têm a santidade de Deus estampada e impressa neles. Nós sabemos que Deus é nosso Pai porque nós temos o Espírito Santo habitando em nós. E o Espírito intercede por nós e testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. Os filhos de Deus são aqueles que foram renovados pelo Espírito Santo, e esta renovação é efetuada sobretudo na regeneração, que é chamada de um nascimento do Espírito (João 3.5). Esta regeneração é uma transformação ou mudança de natureza, a que Paulo chama de renovação da mente (Rom 12.2). Aquele que nasce de Deus tem um coração novo, não em substância, mas em qualidades. As cordas do violão podem ser as mesmas, mas a melodia é alterada. Esta regeneração é também chamada de circuncisão do coração (Col 2.11). E como na circuncisão do prepúcio havia uma dor na carne, assim na circuncisão espiritual há uma dor no coração, há uma tristeza que surge de um senso de culpa pessoal por causa do nosso pecado, e da ira de Deus contra o pecado. A regeneração afeta a pessoa toda (espírito, alma e corpo – I Tes 5.23). E é a regeneração a fonte de toda a verdadeira alegria, porque faz com que Deus seja agora nosso Pai. E então podemos dizer: “Pai nosso que estás nos céus”. Dizemos Pai nosso porque pela regeneração fomos adotados numa grande família de muitos irmãos, que tal como nós, também foram regenerados pelo Espírito. Nós sabemos que Deus é nosso Pai porque somos guiados pelo Espírito (Rom 8.14), e este é mais um sinal dos que são filhos de Deus: eles são dirigidos pelo Espírito. Não basta que um recém-nascido viva e chegue ao mundo, ele deve ser devidamente cuidado pelos seus pais. E não ocorre algo diferente disso em relação aos novos convertidos. Ninguém que não permita ser conduzido pelo Espírito Santo tem o direito de chamar a Deus de Pai. Aqueles que são conduzidos pelo espírito de Satanás podem sim dizer: Pai nosso que estás no inferno. Aqueles que promovem divisões e escândalos no corpo de Cristo, por ensinarem de modo contrário à sã doutrina, não têm o direito de dizer Pai nosso que estás nos céus, porque não agem como devem agir os que são verdadeiramente filhos de Deus: Assim, todo crente autêntico fará bem em se afastar deles. 178 “Rogo-vos, irmãos, que noteis os que promovem dissensões e escândalos contra a doutrina que aprendestes; desviai-vos deles.” (Rom 16.17). Estes, como diz Paulo, não conhecem o caminho da paz (Rom 3.17). O diabo produziu a primeira grande divisão no céu. Assim, aqueles que criam divisões têm por Pai ao diabo. Se o que está sendo pregado e ensinado é a sã doutrina, se há paz entre os crentes na comunhão do Espírito, e alguém dizendo-se ser também filho de Deus levanta-se contra isto, na verdade seu verdadeiro pai é o diabo que é o pai de contendas e divisões contra a verdade. O reino de Satanás cresce fazendo divisões. Crisóstomo citou que quando ocorreram muitas conversões na igreja de Corinto, Satanás se apressou em represar a corrente de conversões, lançando a semente da discórdia e da divisão entre eles. E o diabo sabe muito bem que Cristo não pode ter o corpo dele dividido, pois sendo corpo, deve ser achado em unidade. Se Deus é um Pai, então podemos deduzir que tudo o que ele dá aos seus filhos é por amor. Se lhes dá prosperidade é por amor. E este amor não exclui o fato dEle nos disciplinar e corrigir (Apo 3.19). Gregório de Nanziazeno dizia que as aflições são setas afiadas, mas que elas são atiradas pela mão de um Pai amoroso. A correção é a escola do caráter. Deus humilha com amor para poder nos purificar. E a correção é tão necessária quanto o pão diário. E por meio das aflições Deus pode acelerar o nosso crescimento em graça. Quando a luz for retirada nós podemos ainda ver um arco-íris no céu. A fé como a estrela, brilha mais forte na noite escura das aflições. E tal como José falou rudemente aos seus irmãos, contudo havia nele um coração cheio de amor por eles, de igual modo ainda que o olhar de Deus não seja amistoso por causa das nossas transgressões, ainda há nEle um coração de Pai cheio de amor. Por isso, por maior que seja a prosperidade dos ímpios neste mundo, quão triste é o caso deles porque não têm a Deus como Pai. Eles não podem dizer Pai nosso que está no céu. Eles podem dizer nosso Juiz, mas não nosso Pai. Deus não é o Pai deles. Ele afirma que nunca os conheceu (Mt 7.23), e é por isso que o ímpio quando morre em seus pecados não pode esperar nenhuma misericórdia de Deus como um Pai. . Então todos aqueles que ainda são estranhos para Deus devem se esforçar para entrarem nesta família divina, até que possam dizer Pai nosso que estás no céu, em seus corações. 179 Assim como o mar cobre grandes rochas, o mar da compaixão de Deus pode cobrir grandes pecados, e assim ninguém deve ser desencorajado de ir à presença de Deus rogando-Lhe por misericórdia e perdão dos seus pecados. E nós devemos ser humildes para que o Espírito Santo nos transforme e ensine a sermos verdadeiros filhos de Deus. Nós podemos ler muitas verdades na Bíblia, mas nós não as podemos conhecer salvo se Deus, pelo Seu Espírito as aplicar às nossas almas. Deus não somente ensina nossos ouvidos, mas nossos corações, e ele não informa somente nossa mente, mas nossas vontades e inclinações. Nós nunca aprendemos até que Deus nos ensine. Se Ele é nosso Pai, Ele nos ensinará como ordenar nossos negócios com discrição (Sl 112.5) e como nos conduzir sabiamente. Ele nos ensinará o que responder quando nós estivermos diante de governadores e Ele porá palavras em nossas bocas (Mt 10.18-20). Deus repreenderá os grandes do mundo para não prejudicarem os Seus filhos, porque eles são sagrados para Ele, e não permitirá que lhes façam injustiças sem o Seu consentimento e que não seja para o próprio aproveitamento e correção deles. Ele dirá em relação a eles: “Não toqueis nos meus ungidos” (Sl 104.14,15). E por ungidos devemos entender os filhos de Deus que têm a unção do Espírito Santo. Deus se encanta na companhia de seus filhos e Ele ama ver o semblante deles e ouvir a sua voz (Cantares 2.14). Se dois ou três de seus filhos se reunirem, Ele estará entre eles. E assim como um pai se compadece das fraquezas de seus filhos, Deus também se compadece das nossas