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Ligia A. Vercelli (Org.) EDUCAÇÃO NÃO FORMAL CAMPOS DE ATUAÇÃO V. 11 P E D A G O G I A D E A a Z Universidade Nove de Julho – UNINOVE Rua Vergueiro, 235/249 – 11º andar 01504-001 – Liberdade - São Paulo, SP Tel.: (11) 3385-9218 – editora@uninove.br U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Pedagogia de A a Z volume 11 São Paulo 2016 Educação não-formal: campos de atuação Ligia A. Vercelli (Org.) U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O 2016 UNINOVE Direitos exclusivos no formato e-book cedidos à UNINOVE pela Paco Editorial. A reprodução desta publicação, no todo ou em parte, cons- titui violação do copyright (Lei nº 9.610/98). Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio, sem a prévia au- torização da UNINOVE. Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade do autor Conselho Editorial Eduardo Storópoli Maria Cristina Barbosa Storópoli Patricia Miranda Guimarães José Carlos de Freitas Batista Capa: UNINOVE / Big Time Serviços Editoriais Editoração eletrônica: Big Time Serviços Editoriais Catalogação na publicação (CIP) Cristiane dos Santos Monteiro – CRB/8 7474 -------------------------------------------------------------------------------------------------------- Educação não formal : campos de atuação / Ligia A. Vercelli, organizador. — São Paulo : Universidade Nove de Julho – UNINOVE, 2016. 208 p. il. — (Pedagogia de A a Z ; v. 11) Inclui bibliografia ISBN: 978-85-89852-43-2 (e-book) 1. Educação não-formal. 2. Ensino. I. Série. CDU 374 -------------------------------------------------------------------------------------------------------- U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Sumário CAPÍTULO 1 Educação não Formal e o Educador Social em Projetos Sociais....................................................................................11 Maria da Glória Gohn CAPÍTULO 2 Feio não é Bonito? Relatos de Experiências com a Pro- dução de Arte Infantil em um Espaço de Educação não Formal..............................................................................33 Zilpa Maria de Assis Magalhães CAPÍTULO 3 Educação Musical em Espaços não Formais de Ensi- no..................................................................................61 Isa Stavracas CAPÍTULO 4 Projeto Ler e Escrever - Formação de Alunos Pesquisa- dores ...............................................................................87 Ligia A. Vercelli CAPÍTULO 5 O Ceu como Espaço de Construção do Sujeito Através da Educação não Formal..............................................109 Célia Vanderlei da Silva CAPÍTULO 6 A Prática Educativa Intergeracional na Educação não Formal............................................................................127 Mônica de Ávila Todaro U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O CAPÍTULO 7 Aspectos Educativos dos Movimentos Sociais – Histo- ricidade, Problemáticas Atuais e Algumas Possibilida- des de Pesquisas.............................................................147 Carlos Bauer CAPÍTULO 8 Considerações acerca da emancipação, da educação e da música em Theodor W. Adorno..............................163 Isa Stavracas Renê Esteban Rojo CAPÍTULO 9 Relação entre Educação Formal e não Formal: A Expe- riência do Museu Casa Fritz Alt................................177 Linda Suzana Maciel Poll Maria Cecília de Barros Santiago Rúbia Stein do Nascimento Os Autores.....................................................................201 U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O 5 APrESENTAÇÃo Os discursos pedagógicos que nos acompanham desde o fi nal do século XIX até meados do século XX sempre estive- ram pautados na instituição escolar. Nessa época, a escola era reconhecida como a única responsável pela escolarização de crianças e jovens. Nos anos 1970, fatores sociais, econômicos e tecnológicos, tais como aumento da demanda de educação para os setores excluídos da escola, entre eles educação de adultos, idosos e mulheres; a formação continuada decorrente de transforma- ções no mundo do trabalho; as mudanças na estrutura familiar que necessitava de novos meios educacionais para atender as crianças enquanto as mães trabalhavam; desenvolvimento de tecnologias que favorecem o aprendizado fora do âmbito esco- lar e etc, geram necessidades educacionais que suscitam novas possibilidades pedagógicas. Todos esses fatores fi zeram com que a educação não formal se expandisse. Diante disso, foi necessário repensar novas ações pedagógicas extramuros da escola, diferentes das denominadas escolares que viessem ao encontro dessas expectativas. Porém, segundo Gohn (2008), foi nos anos 1990 que essa concepção de educação teve maior destaque. Nessa época, grande impor- tância foi dada aos processos de aprendizagem grupais e aos valores culturais que se estabelecem entre as ações dos indiví- duos, além de uma nova cultura organizacional que demanda habilidades que são adquiridas fora do âmbito escolar. Apesar das mudanças econômicas e sociais signifi cativas, a sociedade atual ainda enfrenta muitos desafi os que são impos- tos pelos fatores citados acima e a educação permanece como a porta de acessoem busca de uma vida melhor e de justiça social, principalmente, da população excluída. Dessa forma, núcleos não formais da sociedade civil e de entidades do ter- U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Ligia A. Vercelli 6 ceiro setor ganham destaque no que se refere ao processo de ensino e aprendizagem. O livro Educação não formal: campos de atuação segue nesse caminho apresentando diferentes espaços nos quais pode ocor- rer a educação não formal, uma vez que a legislação permite que o pedagogo exerça suas atividades em diversos locais além da escola. Traz resultados de pesquisas realizadas na área que apontam a importância dessa concepção de educação e sua re- lação com a educação formal. Vale lembrar que a maioria dos estudos que compõe o vo- lume é fruto de dissertações, teses e pós-doutoramento orienta- dos pela professora Dra. Maria da Glória Gohn e desenvolvidos mediante discussões no Grupo de Pesquisa em Educação Não Formal, Redes de Movimentos Sociais e Entidades do Terceiro Setor e Formação do Educador Social (GRUPERFE), perten- cente ao Programa de Mestrado e Doutorado em Educação (PPGE) da Universidade Nove de Julho (Uninove). O volume foi escrito por diferentes autores e está organizado em oito ca- pítulos aqui apresentados: No primeiro capítulo, “Educação Não Formal e o Educa- dor Social em Projetos Sociais”, Maria da Glória Gohn carac- teriza o campo da educação não formal e o Educador Social, profissional que atua neste campo. Discute a categoria educa- ção não formal, seu campo, atributos e características metodo- lógicas. Por meio da análise comparativa, busca diferenciá-la da educação formal e da informal. Também caracteriza o perfil e o papel do Educador Social, as ações e os saberes coletivos desenvolvidos nos projetos sociais em que atua. Zilpa Maria de Assis Magalhães apresenta, no segundo capítulo, “Relatos de experiências com a produção de arte infantil em um espaço de educação não formal”. O texto trata de relatos de experiências artísticas com crianças de 4 a 10 anos de idade, discutindo também sobre as tarefas do arte/ educador. Além disso evidencia o menosprezo dedicado às U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Educação não Formal: Campos de atuação 7 artes nos cursos de Pedagogia, apontando a importância de se convocar todas as educações formal, informal e não formal a participar do processo educacional das crianças. Em “Educação musical em espaços não formais de ensi- no”, terceiro capítulodo livro, Isa Stavracas faz uma análise da presença da educação musical em espaços não formais de ensino, destacando o papel das políticas públicas e do terceiro setor naconfiguração desse cenário, uma vez que visam à in- tegração social e o atendimento às necessidades formativas do sujeito. Na sequência, são abordados aspectos que permeiam a presença da educação musical nos espaços formais de ensino, a lei que a torna obrigatória e a formação do professor. No quarto capítulo, “Projeto Ler e Escrever: formação de alunos pesquisadores”, Ligia de Carvalho Abões Vercelli apre- senta o resultado de uma pesquisa realizada com alunos pes- quisadores que atuam como segundo professor nas séries ini- ciais da rede estadual de educação e que cursam Pedagogia na Universidade Nove de Julho (Uninove). O texto aponta como os encontros de formação oferecidos pela universidade favore- cem na formação acadêmica desses alunos e dados referentes de como o material fornecido pelo projeto Ler e Escrever do estado de São Paulo tem sido utilizado pelos docentes regentes nas escolas estaduais. Célia Vanderlei da Silva, no quinto capítulo, “O CEU como espaço de construção do sujeito através da educação não formal”, busca analisar se a educação não formal oferecida pelo Centro Educacional Unificado (CEU) por meio de prá- ticas pedagógicas diferenciadas auxiliam seus frequentadores a mudarem sua maneira de entender o contexto social em que estão inseridos, tornando-os mais críticos. Entre as práticas pedagógicas estão: diferentes modalidades esportivas, o cine- ma, o teatro, os shows, as aulas de dança, de teatro e de música e os momentos de lazer e socialização, tais como: excursões, festas, além de eventos comemorativos e palestras. U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Ligia A. Vercelli 8 O trabalho prossegue com o capítulo de Mônica de Ávila Todaro, “A prática educativa intergeracional na educação não formal”, discutindo práticas educativas intergeracionais com o intuito de aproximar gerações e minimizar possíveis atitudes negativas de crianças em relação às pessoas idosas. Segundo a autora, existem lacunas metodológicas, teóricas e empíricas no campo das atitudes de crianças brasileiras em relação à velhice e aos idosos e, em função disso, apresenta experiências inter- nacionais na área e sugere algumas atividades que podem ser adaptadas, ampliadas e recriadas pelos educadores. No sétimo capítulo, “Aspectos educativos dos movimen- tos sociais: historicidade, problemáticas atuais e algumas pos- sibilidades de pesquisa”, Carlos Bauer traz, numa perspectiva histórica, alguns apontamentos sobre os movimentos sociais associadas à compreensão do seu caráter educativo, repercus- sões nas pesquisas educacionais e discussões pertinentes às temáticas direitos constitucionais, direitos humanos, a con- quista da cidadania e o seu papel na construção de uma so- ciedade e de um estado democrático no Brasil. Isa Stavracas e Renê Esteban Rojo, no oitavo capítulo, “Considerações acerca da emancipação, da educação e da mú- sica em Theodor W. Adorno”, apresentam o lugar que a mú- sica exerce no pensamento de Adorno, uma vez que este fora músico e compartilhou desta arte juntamente com a filosofia. Os autores discutem alguns conceitos da teoria adorniana, tais como: campo de força, indústria cultural, barbárie e emancipa- ção, fornecendo suas relações com a educação e o papel trans- formador da educação musical, da transcendência típica que a música propicia, da Pedagogia musical e da utilização da música na docência, como também sua relação com os estilos musicais. Encerrando o volume, Linda Suzana Maciel Poll, Maria Cecilia do A.C. de Barros Santiago e Rúbia Stein do Nasci- mento, no nono capítulo,“Relação entre educação formal e não formal: a experiência do museu Casa Fritz Alt”apontam o U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Educação não Formal: Campos de atuação 9 museu como articulador entre educação não formal e educa- ção formal. Ressaltam a experiência do museu Casa Fritz Alt da cidade de Joinville/SC, que nos últimos três anos tem de- senvolvido ações educativas em parceria com o ensino formal por meio de projeto de exposição itinerante, que percorre as escolas públicas e particulares da localidade divulgando a obra de Fritz Alt. Esperamos que esses textos suscitem discussões e que os leitores, principalmente, os universitários, estudantes das li- cenciaturas, possam reconhecer o importante papel da edu- cação não formal que, aliada à educação formal, contribui no desenvolvimento do sujeito, principalmente, no que se refere à formação da cidadania. Ligia A. Vercelli (Organizadora) U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O 11 CAPÍTULO 1 EDuCAÇÃo NÃo FormAL E o EDuCADor SoCiAL Em ProJEToS SoCiAiS Maria da Glória Gohn INTRODUÇÃO: EDUCAÇÃO NÃO FORMAL A BUSCA PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Um dos grandes desafi os da educação não formal tem sido defi ni-la, caracterizando-a pelo que ela é. Usualmente, ela é defi nida pela negatividade - pelo que ela não é. Para chegar ao conceito que construímos, vamos demar- car os sentidos e signifi cados que lhe têm sido atribuí- do, bem como as polêmicas que têm gerado. A posição mais usual é que a contrapõe a educação não formal à educação formal/educação escolar. Quando tratamos da educação não formal, a comparação com formal é quase que automática. O termo “não formal” também é usado por alguns investigadores como sinônimo de informal. Consideramos que é necessário distinguir e demarcar as diferenças entre estes conceitos. A princípio, podemos demarcar seus campos de desenvolvimento: a educação formal é aquela desenvolvida nas escolas, com conteú- dos previamente demarcados; a informal é aquela que os indivíduos aprendem durante seu processo de socia- lização – na família, bairro, clube, amigos, etc –, carre- gada de valores e culturas próprias, de pertencimento e sentimentos herdados; e a educação não formal é aquela que se aprende “no mundo da vida”, via os processos de compartilhamento de experiências, principalmente em espaços e ações coletivas cotidianas. U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Maria da Glória Gohn 12 A educação não formal não tem o caráter formal dos proces- sos escolares, normatizados por instituições superiores oficiais e certificadoras de titularidades. Difere da educação formal por- que esta última possui uma legislação nacional que normatiza critérios e procedimentos específicos. A educação não formal lida com outra lógica nas categorias espaço e tempo, dada pelo fato de não ter um curriculum definido a priori, seja quanto aos conteúdos, temas ou habilidades a serem trabalhadas. A educação não formal é uma área que o senso comum e a mídia usualmente não tratam como educação, porque não são processos escolarizáveis. A educação não formal designa um processo com várias dimensões, tais como: a aprendizagem política dos direitos dos indivíduos enquanto cidadãos; a ca- pacitação dos indivíduos para o trabalho, por meio da apren- dizagem de habilidades e/ou desenvolvimento de potenciali- dades; a aprendizagem e exercício de práticas que capacitam os indivíduos a se organizarem com objetivos comunitários, voltadas para a solução de problemas coletivos cotidianos; a aprendizagem de conteúdos que possibilitem que os indivídu- os façam uma leitura do mundo do ponto de vista de compre- ensão do que se passa ao seu redor; a educação desenvolvida na mídia e pela mídia, em especial a eletrônica, etc. São processos de autoaprendizagem e aprendizagem coletiva adquiridas a partir da experiência em ações coletivas, organizadas segundo eixos temáticos: questões étnico-raciais, gênero, geracionais e de idade, etc. As práticas da educação não formal se desenvolvem usual- mente extramuros escolares, nas organizações sociais, nos mo- vimentos, nos programas de formação sobre direitos humanos, cidadania, práticas identitárias, lutas contra desigualdades e ex- clusões sociais. Elas estão no centro das atividades das ONGs nos programas deinclusão social, especialmente no campo das artes, educação e cultura. A música tem sido, por sua caracte- rística de linguagem universal e por atrair a atenção de todas as faixas etárias, o grande espaço de desenvolvimento da edu- U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Educação não Formal: Campos de atuação 13 cação não formal (vide DANIEL GOHN, 2003 e 2011). E as práticas não formais desenvolvem-se também no exercício de participação, nas formas colegiadas e conselhos gestores insti- tucionalizados de representantes da sociedade civil. Em síntese, a concepção que eu tenho de educação não formal parte do suposto de que a educação propriamente dita é um conjunto, uma somatória que inclui a articulação entre educação formal – aquela recebida na escola via matérias e disciplinas, normatizadas –, a educação informal – que é aque- la que os indivíduos assimilam pelo local onde nascem, pela família, religião que professam, por meio do pertencimento, região, território e classe social da família – e a não formal, que tem um campo próprio, embora possa se articular com as duas. A não formal engloba os saberes e aprendizados gerados ao longo da vida, principalmente em experiências via a parti- cipação social, cultural ou política em determinados processos de aprendizagens, tais como em projetos sociais, movimentos sociais, etc. Há sempre uma intencionalidade nestes processos. A educação não formal contribui para a produção do saber na medida em que atua no campo no qual os indivíduos atuam como cidadãos. Ela aglutina ideias e saberes produzidos via o compartilhamento de experiências, produz conhecimento pela reflexão, faz o cruzamento entre saberes herdados e sabe- res novos adquiridos. Acho que se deve olhar para as possibilidades da educação não formal até para resolver e potencializar a educação for- mal. Às vezes, me perguntam: “as coisas que preconizo para a educação não formal, a escola formal não deveria fornecer?”. E eu respondo que sim, pois formar para a cidadania está na Lei maior da educação, na LDB. Mas a educação formal tem atributos próprios e específicos – oxalá possa cuidar bem deles –, tais como, alfabetizar bem, apreender o básico sobre a arte da matemática, dar acesso aos conhecimentos historicamen- te acumulados pela humanidade, etc. Tudo isso é formar o U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Maria da Glória Gohn 14 cidadão, portanto, jamais um cidadão se forma apenas com a educação não formal. Mas, justamente a forma como está estruturada a educação formal, burocratizada e normatizada, com dificuldade de flexibilidade nas agendas, resulta em difi- culdades no processo formativo. O profissional que vai trabalhar na escola hoje é extrema- mente carente de vários recursos. Não adianta falar que tem livros na biblioteca e computador na escola se ele não sabe usá-los ou não tem tempo no calendário de atividades. Os programas e projetos da educação não formal devem se cru- zar, atuar e potencializar. Para isso, é necessário que haja uma compreensão, por parte dos gestores das políticas públicas, sobre a necessidade da articulação do formal com o não for- mal. Problemas como o da violência, bullying e drogas, como devem ser trabalhados? Nas escolas, apenas a partir das estru- turas curriculares que temos, sem trabalhar com educação não formal, eu não vejo saída. 1. ONDE SE DESENVOLVEM AS PRÁTICAS DE EDUCAÇÃO NÃO FORMAL? É interessante como hoje estamos retomando conceitos que são da geografia e que estão sendo ressignificados não mais com a perspectiva geográfica tradicional, mas em uma perspectiva quase de geopoder, no campo da geopolítica. Ter- ritório, espaço, escala, região, lugar, localização, localidades, distâncias, cartografias, mapas, polaridades, polarização, ce- nários, paisagens, ambiente, comunidades locais, etc. Essas categorias têm sido utilizadas para a compreensão de que a educação não formal poderá ocorrer tanto em espaços urba- nos como rurais; tanto em espaços institucionalizados (no in- terior de um conselho gestor, por exemplo), como no interior de um movimento social, entre aqueles que lá estão partici- pando e reivindicando, e vão aprender algo sobre um dado U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Educação não Formal: Campos de atuação 15 tema - quem são os opositores, os encaminhamentos necessá- rios; como poderá ocorrer ainda em outros espaços sociopolí- ticos, como nas ONGs, nos museus, etc. Ou seja, a educação não formal é um processo de aprendizagem, não uma estrutu- ra simbólica edificada e corporificada em um prédio ou numa instituição; ela ocorre via o diálogo tematizado. A gestão de uma política social em um espaço público, ao trabalhar com democracia deliberativa compartilhada, em que juntam-se representantes do poder público com representantes da so- ciedade civil organizada, faz-se o exercício da educação não formal o tempo todo. Os movimentos foram pioneiros na utilização dos proces- sos de educação não formal, anteriores aos programas e pro- jetos sociais das ONGs, que são dos anos de 1980 para cá. Já nos anos de 1970, quando tínhamos movimentos ligados às pastorais religiosas, ou às comunidades eclesiais de base, a educação não formal estava presente, por exemplo, na apren- dizagem para se fazer leituras do mundo. Reunia-se a comu- nidade em círculo no salão paroquial para discutir como eles recebiam os salários e como se distribuíam esses salários. O objetivo era que os participantes tivessem uma compreensão do momento histórico que viviam, do regime político vigente e do modelo econômico que apoiavam. Analisava-se se a população estava sendo explorada ou não. Isso levou à formação do famoso Movimento do Custo de Vida, que teve papel muito importante na luta contra o Regime Militar, porque chegou a colher milhares de assina- turas e entregou uma carta ao então presidente da República, aglutinando vários outros movimentos sociais. Ou seja, nessa trajetória havia uma intencionalidade, com objetivos, práticas. Naquela época, se utilizava muito de cartilhas com desenhos e ilustrações para as ações educativas, nos processos de aprendi- zagem e produção dos saberes, porque grande parte da popu- lação era analfabeta. A educação não formal operacionalizava- U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Maria da Glória Gohn 16 -se em discussões e representações teatrais. A parte da cultura entrava via áreas das artes, tais como a dança, a música de protesto. Tudo isso atuava como forma educativa, no campo da educação não formal. Hoje, com o desenvolvimento tecno- lógico, não se usa mais as cartilhas, assim como os estudantes não escrevem tanto nos muros para protestar: são os blogs e as comunicações via internet que acabam tendo esse papel de mediação e interlocução entre os movimentos sociais. Como exemplo de processo de aprendizagem via a edu- cação não formal e os movimentos sociais, citamos o movi- mento das mulheres. Muita coisa foi construída a respeito do lugar da mulher na sociedade, o respeito a seus direitos e a sua retirada da invisibilidade em que ela sempre esteve. Foi um caminho longo de lutas e conquistas. Isso se reflete em leis publicadas, como a Lei Maria da Penha, políticas públicas e também em uma nova cultura política em que há valores que, progressivamente, foram se consolidando na sociedade dentro de novas visões. Quando a Lei Maria da Penha surgiu, ninguém sabia o que era e, depois, foi se formando um acer- vo de conhecimento e material a respeito, os movimentos de mulheres passaram a trabalhar o tema da lei (de combate à violência contra as mulheres), em cartilhas, vídeos e palestras tanto em escala local como na escala nacional. Tudo isso é educação não formal. Cito o caso de movimentos das mulhe- res, mas poderia citar também outros, como o dos portadores de necessidades especiais, movimento responsável por várias conquistase políticas destinadas a tais pessoas, para que se tor- nem sujeitos e deixem de ser invisíveis, ocultos na sociedade. São todos processos sociais, construções nas quais a educação não formal é o eixo articulatório básico. Outro exemplo são as ONGs, grande celeiro das práticas de educação não formal na atualidade, especialmente aquelas voltadas para o desenvolvi- mento de projetos sociais, com grupos socioeconômicos em situação de vulnerabilidade. U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Educação não Formal: Campos de atuação 17 As câmaras, fóruns, conselhos e outras instâncias norma- tizadas também exercitam a educação não formal, porque promovem a interação entre a sociedade civil e a sociedade política, necessitando do exercício de práticas cidadãs para que a interação se realize. Uma escola, por exemplo, tem que ter o conselho para a alimentação, em que está presente a represen- tação de pais, da comunidade, dos dirigentes, etc, pois, sem conselho, a escola não vai receber as verbas para o alimento. É obrigatório. Há praticas de educação não formal neste tipo de participação. Com a globalização, as fronteiras nacionais têm limites tênues. Com o desenvolvimento dos novos meios de comuni- cação, temos as ações e mobilizações de movimentos transna- cionais, que são coisas novas deste século e que estão trazendo elementos para compreender a educação não formal. Quando se fala, por exemplo, da questão dos povos indígenas. A divi- são deles enquanto povo não se limita à divisão geográfica de um país. A educação não formal constrói no plano simbólico e ajuda a entender o alargamento das fronteiras ao introduzir a questão do transnacional. 2. CONSIDERAÇÕES SOBRE A METODOLOGIA A questão da metodologia merece um destaque porque é um dos pontos mais fracos na educação não formal, e a compa- ração com as outras modalidades educativas que utilizamos no item anterior não nos ajuda muito. De toda forma, na educa- ção formal as metodologias são, usualmente, planificadas pre- viamente segundo conteúdos prescritos nas leis. As metodolo- gias de desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem são compostas por um leque grande de modalidades, temas e problemas, mas não vamos adentrar neste debate porque não é nossa área de conhecimento. U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Maria da Glória Gohn 18 A educação informal tem como método básico a vivência e a reprodução do conhecido, a reprodução da experiência segundo os modos e as formas como foram apreendidas e codificadas. Na educação não formal, as metodologias ope- radas no processo de aprendizagem partem da cultura dos indivíduos e dos grupos. O método nasce a partir de proble- matização da vida cotidiana; os conteúdos emergem a partir dos temas que se colocam como necessidades, carências, de- safios, obstáculos ou ações empreendedoras a serem realiza- das; os conteúdos não são dados a priori. São construídos no processo. O método passa pela sistematização dos modos de agir e de pensar o mundo que circunda as pessoas. Penetra-se, portanto, no campo do simbólico, das orientações e represen- tações que conferem sentido e significado às ações humanas. Supõe a existência da motivação das pessoas que participam. Não se subordina às estruturas burocráticas. É dinâmica. Visa à formação integral dos indivíduos. Neste sentido, tem um caráter humanista. Ambiente não formal e mensagens veicu- ladas “falam ou fazem chamamentos” às pessoas e coletivos, e as motivam. Mas como há intencionalidades nos processos e espaços da educação não formal, há caminhos, percursos, metas e objetivos estratégicos que podem se alterar constan- temente. Há metodologias, em suma, que precisam ser de- senvolvidas, codificadas, ainda que com alto grau de provi- soriedade, pois o dinamismo, a mudança, o movimento da realidade segundo o desenrolar dos acontecimentos, são as marcas que singularizam a educação não formal. Qualquer que seja o caminho metodológico construído ou reconstruído, é de suma importância atentar para o papel dos agentes mediadores no processo: os educadores, os mediado- res, assessores, facilitadores, monitores, referências, apoios ou qualquer outra denominação que se dê para os indivíduos que trabalham com grupos organizados ou não. Eles são funda- mentais na marcação de referenciais no ato de aprendizagem, U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Educação não Formal: Campos de atuação 19 carregam visões de mundo, projetos societários, ideologias, propostas, conhecimentos acumulados, etc. Eles se confron- tarão com os outros participantes do processo educativo, es- tabelecerão diálogos, conflitos, ações solidárias, etc. Eles se destacam no conjunto e, por meio deles, podemos conhecer o projeto socioeducativo do grupo, a visão de mundo que está sendo construída, os valores defendidos e os rejeitados. Ou seja, qual o projeto político-cultural do grupo em suma. Para finalizar a primeira parte deste texto, destacamos que também diferenciamos a educação não formal de outras ter- minologias e propostas educativas, apresentadas como educa- ção social, comunitária, popular, integral, permanente, etc. A educação integral é um conceito que tem sido utilizado nos últimos tempos. Ela se refere à aprendizagem ao longo da vida, mas sem dar o foco em um recorte do ponto de vista de cruzamentos e articulações, não havendo grande ênfase na questão da cultura. Acaba sendo um conceito muito vinculado a habilidades necessárias que devem ser adquiridas para darem conta das adversidades da vida, de modo que a ideia-chave é a capacitação permanente. Enquanto isso, a educação não formal tem outro lastro que advém de uma formação voltada para a cidadania, colocando a questão dos valores e da cultura, além de destacar a importância de pensar a inovação e a criati- vidade na medida em que se pensa novos cenários e saídas para determinadas situações, e, com isso, a temática da emancipa- ção humana retorna, tema que foi um pouco deixado de lado, como se fosse algo do passado. Então, há um repensar sobre a questão do modelo civilizatório que vivemos, muito centrado no consumo, no mercado, individualista. Coloco a educação não formal dentro desse campo mais amplo. Entendemos a educação não formal como aquela volta- da para o ser humano como um todo, cidadão do mundo, homens e mulheres. Em hipótese nenhuma ela substitui ou compete com a educação formal, escolar. Poderá ajudar na U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Maria da Glória Gohn 20 complementação desta última, via programações específicas, articulando escola e comunidade educativa localizada no terri- tório de entorno da escola. A educação não formal tem alguns de seus objetivos próximos da educação formal, como a for- mação de um cidadão pleno, mas tem também a possibilidade de desenvolver alguns objetivos que lhes são específicos, via a forma e espaços onde se desenvolvem suas práticas, a exemplo de um conselho ou a participação em uma luta social. 3. A EDUCAÇÃO NÃO FORMAL E O EDU- CADOR SOCIAL QUE ATUA EM PROJETOS SOCIAIS Definido e delimitado o campo da educação não formal, nosso próximo passo é: quem é e o que é ser um educador que atua na educação não formal? Como pensar a formação de educadores para que sua prática pedagógica inclua os valores das comunidades onde se encontram? Esta indagação pressupõe uma anterior: formar educadores para quê? Para atuarem junto às comunidades organizadas é a resposta, es- tando as práticas de educação não formal presentes. E o edu- cador que lá atua deve ser denominado como educador social? Sabemos que o meio social onde se vive é sempre revestido de significados culturais. Mas estes significados só são apreendidos com a participação e participar não é apenas estar presente em algo, comparecer, ser um número. Participar é um processo, ativo, interativo, que se constrói. O educador socialé algo mais que um animador cultural, embora também deva ser um animador do grupo. Para que ele exerça um papel ativo, propositivo e interativo, deve con- tinuamente desafiar o grupo de participantes para a descober- ta dos contextos em que estão sendo construídos os textos (es- critos, falados, gestuais, gráficos, simbólicos, etc). Por isso, os educadores sociais são importantes, para dinamizarem e cons- U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Educação não Formal: Campos de atuação 21 truírem o processo participativo com qualidade. O diálogo, tematizado, não é um simples papo ou conversa jogada fora, é sempre o fio condutor da formação. Mas há metodologias que supõem fundamentos teóricos e ações práticas - ativida- des, etapas, métodos, ferramentas, instrumentos, etc. O es- pontâneo tem lugar na criação, mas não é o elemento domi- nante no trabalho do Educador Social, que tem: princípios, métodos e metodologias. Seguindo a pedagogia de Paulo Freire, haveria três fases bem distintas na construção do trabalho do educador social, a saber: a elaboração do diagnóstico do problema e suas neces- sidades; a elaboração preliminar da proposta de trabalho pro- priamente dita; e o desenvolvimento e complementação do processo de participação de um grupo ou toda a comunidade de um dado território, na implementação da proposta. O aprendizado do Educador Social realiza-se como em uma mão-dupla - ele aprende e ensina. O diálogo é o meio de comunicação. Mas a sensibilidade para entender e captar a cultura local, do outro, do diferente, do nativo daquela região, é algo primordial. A escolha dos temas geradores dos trabalhos com uma comunidade não pode ser aleatória ou pré-selecio- nada, sendo imposta do exterior para o grupo. Os temas de- vem emergir de assuntos gerados no cotidiano daquele grupo, que tenham alguma ligação com a vida cotidiana, conside- rando a cultura local em termos de: seu modo de vida, faixas etárias, grupos de gênero, nacionalidades, religiões e crenças, hábitos de consumo, práticas coletivas, divisão do trabalho no interior das famílias, relações de parentesco, vínculos sociais e redes de solidariedade construídas no local. Ou seja, todas as capacidades e potencialidades organizativas locais devem ser consideradas, resgatadas, acionadas. O Educador Social ajuda a construir, com seu trabalho, espaços de cidadania no território onde atua. Estes espaços representam uma alternativa aos meios tradicionais de infor- U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Maria da Glória Gohn 22 mação a que os indivíduos estão expostos no cotidiano, via os meios de comunicação - principalmente a TV e o rádio. Nestes territórios, um trabalho com a comunidade poderá construir um novo tecido social em que figuras de promoção da cidadania poderão surgir e se desenvolver, tais como os “tradutores sociais e culturais”. Estes tradutores são aqueles educadores que se dedicam a buscar mecanismos de diálo- go entre setores sociais usualmente isolados, invisíveis, inco- municáveis ou simplesmente excluídos de uma vida cidadã, excluídos da vivência com dignidade. Partindo do senso co- mum, um novo sentido poderá ser construído via os educa- dores/tradutores sociais e culturais. A cogestão democrática dos trabalhos desenvolvidos com a comunidade é um suposto e um pressuposto insubstituível. Informação, indicadores socioculturais e econômicos da comunidade, contextualização da mesma no conjunto das re- des sociais e temáticas de um município, breves notícias sobre suas memórias e experiências históricas são parte do acervo de instrumentos para formar um Educador Social de e em uma dada região. Não gosto do termo capacitação, pois já tem uma conotação de negatividade. O outro é um incapaz e vamos lá capacitá-lo, levando algo. Não, vamos formar partindo de seus valores. Certamente que se leva também, há trocas, o processo é interativo. Toda comunidade tem o direto ao acesso a infor- mações e ao conhecimento historicamente acumulado. Mas não se pode levar a priori, porque achamos e selecionamos previamente como bom e necessário. Tem que ocorrer primeiro a escuta, estabelecer o diálogo, captar as matrizes articulatórias de suas práticas discursivas: só então se pode diagnosticar, o que será conveniente e apro- priado, segundo as necessidades do grupo, ser “levado” para conhecer e debater, construindo um entendimento sobre o significado daqueles fatos e dados que irão se agregar ao co- nhecimento prévio já existente. Forma-se, assim, uma espiral U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Educação não Formal: Campos de atuação 23 reflexiva que resulta em um conhecimento fruto de um saber construído, via uma investigação emancipatória, porque cons- truída a partir da cultura local, dos valores e pertencimentos da comunidade. Todas as atividades desenvolvidas pelo Educador Social devem, também, buscar desenhar cenários futuros, já que os diagnósticos servem para localizar o presente, mas, também, para estimular imagens e representações sobre o futuro. O fu- turo como possibilidade é uma força que alavanca mentes e corações, impulsiona para a busca de mudanças. A esperança fundamental aos seres humanos reaviva-se quando trabalha- mos com cenários do imaginário desejado, com os sonhos e os desejos de um grupo. O Educador Social também atua junto aos diferentes mo- vimentos sociais contemporâneos, tais como: os movimentos populares, que reivindicam melhores condições de vida e tra- balho, no meio rural e/ou urbano; os movimentos identitá- rios, que lutam por direitos socioculturais mais específicos; e os movimentos globalizantes, como o Fórum Social Mundial, A Via Campesina, etc, que atuam enquanto mediadores e Educadores Sociais. Em síntese, o Educador Social que participa de projetos sociais em uma comunidade, nos marcos de uma proposta socioeducativa, participa do processo de produção de sabe- res a partir da tradução de culturas locais existentes, e da reconstrução e ressignificação de alguns eixos valorativos, tematizados segundo o que existe, em confronto com sabe- res novos que se incorporam. Um grupo que conta com o trabalho de Educadores Sociais poderá desenvolver práticas de educação não formal significativa, qualificada. Neste sen- tido, eles estarão aptos a participarem de processos sociais que envolvem a gestão da coisa pública, tais como os conse- lhos gestores e os colegiados escolares, pois participaram de exercícios de construção da cidadania. U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Maria da Glória Gohn 24 4. QUAL É O PERFIL/PAPEL DO PROFIS- SIONAL (EDUCADOR SOCIAL) QUE ATUA NESSE CAMPO? ESTÃO SENDO FORMADOS PARA ATUAREM? Existem poucas pesquisas sobre o perfil do profissional. De 222 projetos que concorreram ao Prêmio do Itaú Cultural em 2007, havia um perfil que trabalhava com educação não for- mal: majoritariamente mulheres com ensino superior, não per- tencentes á comunidade, em uma faixa etária por volta dos 30 anos, com formação predominante em pedagogia, psicologia e serviço social. O papel desses profissionais é extremamente importante, porque sem a existência deles, os projetos simplesmente não existem, já que muitas vezes não existe uma programação e or- ganização nos projetos como há na escola, que tem horários e estruturas disciplinadas por lei. Então, o projeto estabelece muitas vezes uma determinação que acontece segundo o tempo em que existe, podendo depois ser avaliado e continuar a existir. O papel profissional mudou um pouco com relação ao que tínhamos antes, que era a filantropia, o voluntariado assisten- cialista, o trabalho ocasional mais ligado às mães ou a quem já se aposentou. Agora, temos uma parcela grande que atua profissionalmente, contratada para atuar. Quando se fala no campo de formação, há uma grande polêmica, Os gestores têm uma formação de ensino superior, já os que ainda atuamna base, que implementam, poderão ou não ser formados, dependendo de que projeto, região social e classe social estão atendendo. Há uma polêmica com relação ao Educador Social, porque estão em debate propostas para formar o profissional para atuar nessa área via cursos de Peda- gogia Social (o profissional seria o Pedagogo Social). Esse é um modelo que vem da Alemanha e Espanha e que encontra forte U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Educação não Formal: Campos de atuação 25 resistência aqui, porque criar pedagogia social significa dividir faculdades de pedagogia que formam o pedagogo para atuar na escola (educação formal) e o para atuar em projetos. Isto é, você pode criar uma barreira de dois tipos, quando a ideia é que uma não substitua a outra, mas que elas se articulem. E nesse modelo em que se forma o Pedagogo Social, o Educador Social acaba sendo reduzido ao mero técnico, porque não precisa quase de formação, não necessitando de uma carreira universitária. A questão da formação, nesse mo- mento, está em debate. Há propostas tanto nas universidades quanto no campo da tramitação de leis. Em minha opinião, deveria ser formado tanto quem vai trabalhar com educação formal quanto não formal nas faculdades de educação, tra- tando as interações e possibilidades que uma poderia com- plementar na outra. 5. QUAL É O CENÁRIO DA EDUCAÇÃO NÃO FORMAL NO BRASIL? ONDE ESTÁ SENDO DESENVOLVIDA? O interessante é como entidades assumiram essa termino- logia. O sistema S trabalha com educação não formal, está lá nas práticas, nos programas, bem como no Instituto Itaú Cul- tural. Determinadas empresas - mais relacionadas ao o tercei- ro setor -, que desenvolveram toda uma programação para o social, também trabalham com educação não formal. Há uma aceitação grande dentre aqueles que estão na prática. Quando você vê na questão dos projetos sociais, o público é formado por jovens e adolescentes que também estão na escola formal, mas não têm horário e nem condição de dar conta de desen- volver uma série de projetos, como na área de informática, da música e do esporte. Assim as entidades, via convênios e par- cerias, acabam desenvolvendo em conjunto com essas escolas. U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Maria da Glória Gohn 26 CONSIDERAÇÕES FINAIS A educação não formal é fundamental na atualidade em vários campos e setores. Por exemplo, na questão dos afro- descendentes, ela está presente em projetos como Prouni, de inclusão social de afro ou indígenas. Também na economia, a exemplo da economia solidária e a questão dos projetos educa- tivos nas iniciativas de produção e sustentabilidade da comu- nidade. Essa microeconomia é vista, usualmente, como estra- tégia de sobrevivência e as coisas não se articulam bem porque os aspectos educativos nunca são mencionados. Acredito que eles possam dar uma ressonância maior, uma compreensão maior das relações e processos envolvidos. No plano da sociedade, nos meios de comunicação, quan- do um canal de TV ou um jornal, por exemplo, apresentam projetos sociais, vemos um recorte que dá ênfase ao indivíduo isolado, como um herói que venceu na vida. O caráter edu- cativo, do processo social implícito, fica diminuído à medida que, ao invés de contar processos, como um grupo que se articulou para implementar algo, relata-se a história de per- sonagens individuais, caindo nessa banalização que a mídia faz hoje ao só focar os “pop stars” e suas banalidades, não interessando o conjunto da população. A mídia podia traba- lhar a questão da conscientização para a cidadania, mas não o faz. Na sociedade mais ampla, se você tem a oportunidade de explicar, as pessoas concordam que educação não formal é muito importante, mas não existe uma consciência sobre o assunto, um reconhecimento. Ela é relativamente nova, na sua dimensão educativa, para ser pensada como algo que se relaciona com a educação. Até hoje, há pessoas e escolas que têm muita resistência à educação não formal, que acham que é coisa das ONGs, e que são projetos que viriam para aca- bar e diminuir com o poder das escolas, da educação formal. Não tencionamos vê-la em contraponto à escola ou ao sistema U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Educação não Formal: Campos de atuação 27 escolar; tampouco vê-la como simples complemento/reforço das atividades escolares. A educação não formal tem natureza, campo e especificidade próprios. Creio que no Brasil não se constrói políticas públicas para fincar raízes como políticas de Estado. Usualmente, são sempre políticas de governo, e não de Estado. Assim, uma experiência deu certo na gestão x, mas vem a gestão y e apaga, substitui ou borra a experiência anterior. Para que se delineie um progra- ma de articulação da educação não formal com a formal, sob a perspectiva emancipatória e com uma amplitude maior, ele não pode ser pontual ou experimental, só para algumas esco- las; deve ter diretrizes mais gerais. Se não for assim, acaba cain- do no aspecto que tratei acima, o de uma educação para suprir algumas coisas que o ensino formal não está fazendo. Quan- do fica-se nesse parâmetro de simplesmente complementar, é um arranjo apenas. O caminho para a educação não formal se consolidar é, primeiro, ter reconhecimento, ultrapassando essa ideia de complementação, de ser um ajuste – embora, na situação atual da conjuntura brasileira, já fosse um avanço realizar bem essa complementação. A educação não formal tem um espaço próprio, a questão da formação da cidadania, de uma cultura cidadã, da eman- cipação, da humanização. A questão da cidadania não se res- tringe ao ato de votar. A educação não formal ultrapassa os processos de escolarização, tem a ver com o comportamento dos indivíduos em diferentes espaços da vida. Para se transfor- mar em programa e ter resultados, ainda falta muito, quando atingirá efetivamente seus objetivos. A educação não formal ainda não está bem consolida- da, não é um conceito, mas todas as categorias e conceitos se estabelecem em um campo de disputas pelo significado e de- marcação do campo de atuação. Hoje, observamos no Brasil o discurso da “educação permanente” e da “educação integral”. Ou seja, por detrás de cada uma dessas terminologias, certa- U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Maria da Glória Gohn 28 mente há autores referenciais, há uma forma de ver o mundo, uma forma de conceber o processo de mudança e transforma- ção social, de como a educação se insere. À medida que ficam mais claras essas construções, serão mais saudáveis o debate e o embate sobre essas formulações. Infelizmente, certos autores têm concepções místicas ou ortodoxas, defendem determinada forma e não querem saber de outra. É preciso um debate mais aberto, com os pensamentos da educação não formal, as dire- trizes, as possibilidades e operacionalidades. U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Educação não Formal: Campos de atuação 29 REFERÊNCIAS AFONSO, A. J. Sociologia da educação não formal. Reactua- lizar um objeto ou construir uma nova problemática? In: A. J. Esteves; S. R. Stoer. A Sociologia na escola. Porto: Afronta- mento, 1989. ARAÚJO, Helena Maria Marques. Memória e produção de sa- beres em espaços educativos não formais. Usos do Passado. In: XII ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA – ANPUH, 2006, Rio de Janeiro. ARMANI, D. Como elaborar projetos? Guia prático para ela- boração e gestão de projetos sociais. Porto Alegre: Tomo Edit., 2009. ARROYO, Miguel. Ofício de mestre: imagens e auto imagens. Petrópolis: Vozes, 2009. BAUMAN, Z. Community. Cambridge: Polity, 2001. 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Vivekinha: espaço de arte voltado para crianças de 4 a 10 anos de idade. Na atualidade, os encontros são oferecidos no segundo sábado de cada mês, das 9h30 às 12h30. U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Zilpa Maria de Assis Magalhães 34 Nosso objetivo apontará, portanto, para os lugares onde essas fronteiras perdem definição, ou seja, em obras como Pele, de 2010, da artista contemporânea brasileira Rochelle Cos- ti (Rio Grande do Sul, 1961), ou em A traição das imagens (Isto não é um cachimbo) (1928-29), de René Magritte (1898- 1967). Também as crianças costumam embaralhar esses limi- tes em suas produções e, portanto, algumas experiências com a produção de arte infantil serão relatadas. Assim, nossa per- gunta crucial poderá ser: “por que, afinal, o feio não é bonito”? Crianças costumam divertir-se com associações como es- sas apontadas na epígrafe acima. Ambiguidades e inversões de sentido fazem parte da infinita capacidade que elas têm de relacionar pensamentos e de criar ideias novas2. Para elas, o co- tidiano mais banal é repleto de fantasia e imaginação, “em que os odores criam cores, as texturas outros amores”. Nossa pará- frase parece poética? É porque, talvez, seja a poesia o melhor jeito de entrar na brincadeira, de experimentar caminhos que possam revelar a nós, adultos, um pouquinho desse universo mágico. “Somente para o indivíduo insensível a experiência é carente de sentido e imaginação”, diz Walter Benjamin (1984, p. 24), para quem “brincar significa sempre libertação”. Recorremos aqui à liberdade de expressar palavras pouco convencionais, raramente aceitas, socialmente consideradas feias, deselegantes ou mesmo vulgares. E não seriam a poe- sia, as artes e as brincadeiras campos propícios para confun- dir fronteiras e desestabilizar os lugares do certo e do errado, do bonito e do feio? Muitas vezes, esses conceitos surgem de forma associada: o bonito como certo; o feio como errado. A “Beleza”, diz Humberto Eco (2004, p. 14), “jamais foi algo de absoluto e imutável, mas assumiu faces diferentes” através dos tempos. 2. Ideias novas como estas da epígrafe, que foram apropriadas por nós, vindas de expressões plásticas e verbais das crianças durante as aulas na Vivekinha. U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Educação nãoFormal: Campos de atuação 35 Diz ainda o autor que existe o Feio, que nos repugna em estado natural, mas que se torna aceitável e até agradável na arte, que expri- me e denuncia “belamente” a feiúra do Feio, entendido em sentido físico e moral. Mas até que ponto uma bela representação do feio (e do monstruoso) não o torna fas- cinante? (ECO, 2007, p. 133) Frente ao mundo globalizado em que vivemos, porém, pode-se dizer que esses valores, historicamente colocados em oposição na civilização ocidental, necessitam ser mudados. “O feio hoje pode ser tão desejado quanto a beleza”, ajudando-nos a “experimentar um olhar menos preconceituoso”, diz Marize Malta (2011, p. 5). O pensador Edgar Morin (2010, p. 59) adverte: “co- nhecer e pensar não é chegar a uma verdade absolutamente certa, mas dialogar com a incerteza”. Ele complementa: “a condição humana está marcada por duas grandes in- certezas: a incerteza cognitiva e a incerteza histórica”. Da primeira, ele destaca três princípios: (...) o primeiro como cerebral: o conhecimento nunca é reflexo do real, mas sempre tradução e construção, isto é, comporta risco e erro; o segundo como físico: o co- nhecimento dos fatos é sempre tributário da interpre- tação; o terceiro é epistemológico: decorre da crise dos fundamentos da certeza, em filosofia (a partir de Nietzs- che), depois em ciência (a partir de Bachelard e Popper). (MORIN, 2010, p. 59) “A incerteza histórica”, diz Morin (2010, p. 59), “está li- gada ao caráter intrinsecamente caótico da história humana”. Segundo esse autor, a nossa “aventura histórica” “foi marcada por criações fabulosas e destruições irremediáveis”, sendo que, U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Zilpa Maria de Assis Magalhães 36 em nossa era planetária, “desgarrou-se da órbita do tempo rei- terativo das civilizações tradicionais, para entrar, não na via garantida do Progresso, mas em uma incerteza insondável”. “É preciso, portanto,” conclui o autor, “prepararmo-nos para o nosso mundo incerto e aguardar o inesperado”. Ao tentarmos nos equilibrar nessa “corda bamba”, pode- ríamos perguntar: por que, afinal, “o feio não é bonito?” É justamente para esse lugar de incertezas que gostaríamos de migrar, para que as criações da infância sejam possíveis de ou- tro jeito. Diferentes das usuais definições preconcebidas, das quais falaremos mais adiante, nossa proposição, longe das ver- dades absolutas, inclina-se ao estranhamento, tentando, como fazem os artistas e as crianças, embaralhar limites e questionar velhos hábitos. Pode-se dizer que a artista brasileira Rochelle Costi3 gos- ta de perturbar modelos estabelecidos ao fotografar. Alguns de seus papéis de parede, da série denominada “Toalhas”, de 1996/1997, têm como referência toalhas de mesa popula- res, que se desdobraram em cinco estampas compostas por sobras de mesa, tais como vegetais mofados, frutas podres, flores murchas, cinzeiros sujos e pés de galinha reutilizados em Pele (figura 1). 3. Rochelle Costi, artista plástica nascida em Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, em 1961, vive e trabalha em São Paulo. U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Educação não Formal: Campos de atuação 37 Figura 1 Rochelle Costi. Pele, 2010 Impressão jato de tinta sobre vinil adesivo, dimensões variáveis. Coleção da artista. Cortesia Galeria Luciana Brito, São Paulo. Ao observarmos a imagem de relance, poderemos associar as formas a rendas, talvez estrelas? Mas, ao nos aproximarmos, desvendamos o elemento incômodo: pés de galinha! O conforto da estética doméstica dá lugar ao incômo- do pela utilização da matéria orgânica repugnante como elemento gráfico, explorado em multiplicações fractais. Assim como a memória, que por vezes nos transporta a espaços particulares de deslumbramento e noutras nos arremessa a ocorrências pessoais violentas e doloridas, a percepção de “Pele” se dá a partir da sensação de atração e repulsa, identidade e estranhamento (MAM/SP, 2010). U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Zilpa Maria de Assis Magalhães 38 Como em um jogo inquietante, simultaneamente grotes- co e gracioso, a artista discute modelos, valores e conceitos. Pés de galinha como sobras desqualificadas; dor e morte; o lixo! Por outro lado, as formas circulares geometricamente or- ganizadas podem nos remeter a várias outras imagens, como as populares toalhinhas de crochê carinhosamente trabalha- das para a família ou, talvez, estrelas girando em sua dança cósmica. O que pensa o leitor? Para onde essas imagens pode- rão transportá-lo? “Aquilo que cada um de nós vê depende da história individual de cada um e do modo como cada subjeti- vidade foi construída” (CRIMP, 2005, p. 5). Utilizando-se da fotografia como recurso “comprovador” da realidade visível e material, a artista nos surpreende, brinca também com o invisível e misterioso campo das incertezas. A “Pele”, tecido orgânico que delimita e separa o dentro e o fora dos corpos, também envelhecerá e morrerá. O que deu forma à aparência dos seres será, então, apenas lixo? “A declaração desiludida de nossa finitude”, diz Luc Ferry (2007, p. 57), ao lembrar os estoicos em Aprender a Viver, poderá conservar “um laço tão estreito quanto possível com a eternidade”. Ao observar esta “Pele”, poderemos entender que não há respostas certas e definitivas, mas poderemos despertar outras questões, mergulhar em incertezas, pois há tanto ainda por pensar. Acreditamos que, como os artistas, as crianças também têm grande facilidade para embaralhar limites e quebrar pa- drões estabelecidos. Vejamos a descrição de uma experiência mediada pela autora desse artigo, desenvolvida com autorre- tratos na Vivekinha (2006),4 (figuras 2, 3 e 4): 4. Encontro realizado na Vivekinha, em aulas semanais de agosto a dezembro de 2006. Descrevemos aqui apenas uma pequena parte deste relato. O trabalho completo foi publicado na Revista Avisalá, n. 35, de julho de 2008, com o título: “A Cara das Crianças” (p. 38-42). U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Educação não Formal: Campos de atuação 39 FIGURAS 2 E 3 (figura 2) Iago, 8 anos de idade: “Coisa Estranha”. (figura 3) Júnior, 7 anos de idade. “Nariz que não é nariz”. FIGURA 4 (figura 4) Laura, 6 anos de idade. “Sol queimante”. (...) Nossa pesquisa percorreu vários caminhos, desde como nos vemos no espelho, aos jeitos que queremos que nos vejam. Resolvemos tirar fotos um do outro. De mão em mão, a máquina fotográfica rodou para que todos ti- vessem a chance de atuar como fotógrafos e modelos. Os machucados tornaram-se interessantes como marcas pes- soais, quando a Laura sugeriu que fotografasse uma afta que doía na boca. Rimos muito da ideia dela e então ex- perimentamos alguns cliques dessas partes mais esquisitas. Depois de descarregarmos os arquivos digitais no com- putador e de colocá-los em pastas específicas, observamos que algumas fotos ficaram inteiramente estranhas, en- U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Zilpa Maria de Assis Magalhães 40 quanto outras nem tanto. Resolvemos editá-las no Photo Studio5, com a intenção de deixar as imagens totalmente estranhas, para que os monstros aparecessem mesmo (figu- ras 2, 3 e 4). Esse processo foi totalmente compartilhado. Juntos nós cortamos, nomeamos e salvamos as produções nas devidas pastas. E essa etapa foi bem demorada, princi- palmente porque a Laurinha estava em fase de alfabetiza- ção. (ARQUIVO VIVEKINHA, 2006) Entendemos que a fotografia, com seu alto poder des- critivo, ajudou a gerar reflexões e atestar como essas marcas no corpo das crianças diferenciavam-nas, criando peculia- ridades. Distorcendo as imagens, no entanto, com rapidez elas adentraram no exagero das formas, beiraram à caricatu- ra, distanciaram-se das imagens referenciais. O leitor poderá, então, perguntar se foi abandonado, nesse ponto, o projeto de construção dosautorretratos das crianças. Douglas Crimp (2005, p. 109) explica que “o desejo da representação só exis- te na medida em que nunca consegue se realizar, na medida em que o original se encontra sempre mais além. É só na ausência do original que a representação pode acontecer”. Provavelmente fascinadas com o humor e o mistério causa- do pela “feiura” das imagens editadas, lembrando Humberto Eco (2004, p. 14), acreditamos que as crianças, ao contrário, construíram seus autorretratos de um modo muito diferente, pois, “denunciando” e “desejando” a “feiura do feio”, amplia- ram possibilidades expressivas. O exercício de leituras de imagens pode ser uma das pos- sibilidades para refletirmos sobre o “pensamento que une”, como diz Morin (2000, p. 58), que poderá nos ajudar a en- tender esse caminho. Utilizando-se do termo latino complexus, ele designa “o que é tecido junto”, inter-relacionando todos os aspectos da vida humana, valorizando a coexistência do pensa- 5. Arc Soft Photo Studio: trata-se de um programa digital para edição de fotos, desenvolvido pela Microsoft. U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Educação não Formal: Campos de atuação 41 mento lógico/científico e do simbólico/mágico. Indica, assim, como esses conhecimentos, ao invés de se anularem, convivem simultaneamente em unidade e dualidade: O homem da racionalidade é também o da afetividade, do mito e do delírio (demens). O homem do trabalho é também o homem do jogo (ludens). O homem empírico é também o homem imaginário (imaginarius). O homem da economia é também o do consumismo (consumans). O homem prosaico é também o da poesia, isto é, do fer- vor, da participação, do amor, do êxtase. O amor é poesia. Um amor nascente inunda o mundo de poesia, um amor duradouro irriga de poesia a vida cotidiana, o fim de um amor devolve-nos à prosa. (MORIN, 2000, p. 58) Bernadete Gatti (2001, p. 5) completa a ideia, mostrando que, ao cotidiano, cabe a face ordinária e também a extraordi- nária. A primeira é ordenadora das atividades mais rotineiras, “com padrões, repetições, reproduções”, ajudando-nos a im- primir ritmos à vida. A outra face é a “da criação, do inusitado, do incomum, dos acontecimentos, ambas compondo-se em uma unidade paradoxal”. Nessa trama tensionada, resta-nos cuidar para não desequilibrar. Na quantidade de tarefas do dia a dia, cronometradas à estafa, costumamos perder em quali- dade, arriscando-nos à alienação. Os artistas e as crianças, em contrapartida, podem nos dar pistas, abrir clareiras, ensinar a ouvir e a ver de outros jeitos, mais poéticos e profundos. Vejamos outra experiência retirada de um relatório de aulas6 (figura 5): (...) Meu objetivo era que experimentássemos a tinta com os próprios dedos, imprimindo marcas e compondo desenhos com elas. Ocultados os pincéis, as crianças tive- ram uma ideia. Propuseram que pintássemos um com o dedo do outro, simplesmente substituindo a ferramenta 6. Encontro mediado pela autora deste artigo e realizado em 19 de maio de 2006, sendo que a idade das crianças variava entre 6 e 7 anos. U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Zilpa Maria de Assis Magalhães 42 de trabalho. Brincamos de marcar e pintar, um com o dedo do outro e também com o próprio dedo, o tempo inteiro. Até que o Iago exclamou atônito, enquanto ana- lisávamos os registros: “cada marca é única, nunca mais vou conseguir fazer outra igualzinha!” E instalou-se no grupo um momento filosófico, comparando com a vida as várias situações em que repetimos coisas como tomar banho, ir para a escola, escovar os dentes e dormir to- dos os dias; contra as situações únicas, como “o dia que eu ganhei a Loirinha” (a gatinha da Ana); “a viagem de férias na casa da vovó” (do Iago); “o bolo que a mamãe fez no domingo” (para o Henrique); e por aí foi (...). (ARQUIVO VIVEKINHA, 2006) FIGURA 5 (figura 5) Iago, pintura e impressão utilizando-se dos próprios dedos (ARQUIVO VIVEKINHA, 2006). Observamos que o Iago operou um retorno a si mesmo em plena ação. Pode-se dizer que ele não viu apenas os regis- U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Educação não Formal: Campos de atuação 43 tros daquelas marcas, mas que viveu aquelas marcas! (MA- TURANA, 1995). No desenvolvimento dessas percepções, essa súbita tomada de consciência contagiou o grupo, ajudou a ampliar caminhos. Presente no processo estava a arte/educadora, para orientar e aprender junto. Longe da visão confortável das concepções de arte preestabelecidas, como as que sacralizam o “desenho perfeito” e isolam o “artista inspirado”, precisa estar aten- ta para não se perder no movimento. Seu objetivo consiste em agir como facilitadora da alfabetização visual das crian- ças, levando-as a refletir sobre suas produções. Sua formação específica é pautada na Abordagem Triangular, de Ana Mae Barbosa, que alia as três ações básicas – ler, fazer, contextua- lizar – às quatro ações decorrentes: decodificar, experimentar, refletir e informar (RIZZI, 2008, p. 345). Pressupõe, portanto, o domínio das linguagens visuais e seus contextos histórico-econômico-culturais, interligados a outras redes de conhecimento. Assim, as estruturas de pensamento, e não somente as informações, precisam comunicar-se em campo aberto, integrando-se, para articular os saberes em novas orde- nações. Morin (2000, p. 40) alerta: O enfraquecimento da percepção do global pode condu- zir ao enfraquecimento da responsabilidade (cada qual tende a ser responsável apenas por sua tarefa especializa- da), assim como ao enfraquecimento da solidariedade. Falando de outro modo, aos nossos saberes construídos no ateliê, juntamos os de outros lugares: heranças culturais da vida familiar, escolar, social. É na diversidade que enriquece- mos o trabalho. O contrário fecha, engessa. No meio escolar, é muito comum encontrarmos professo- res e professoras trocando receitas para serem praticadas nas aulas de arte. Dos desenhos prontos, aqueles com contornos bem definidos para as crianças pintarem dentro, aos objetos U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Zilpa Maria de Assis Magalhães 44 decorativos, ensinam de tudo, desde que tenham um resulta- do considerado bonito. Afora os profissionais que, por vários motivos, sequer deixam as crianças realmente seguirem o pas- so a passo das receitas (e, muitas vezes, os motivos são mesmo de entristecer, como “evitar a sujeira”, “elas ainda não sabem fazer isso ‘perfeitamente’ certo” ou “como vamos mostrar coi- sas feias” – ou seja, a verdadeira produção das crianças – “aos pais?”, etc), o que gostaríamos de questionar em primeira ins- tância é a falta de liberdade para o desenvolvimento desses trabalhos e, portanto, das crianças, já que os resultados, para ficarem “tão bonitos quanto os modelos”, como costumam di- zer, precisam ser seguidos à risca. Atenção, caro leitor, porque apesar de vermos essas atitu- des como um dos dilemas educacionais praticados em muitas escolas, não tratamos aqui de simplesmente desqualificá-las, senão de problematizá-las, encarando-as como um desafio a ser enfrentado, na esperança de acionar o espírito crítico (KONESKI, 2009). Para esclarecer essa questão, citamos o exemplo das “tarta- rugas feitas com o fundo de garrafas pet”, cujo modo de fazer está amplamente divulgado na internet7, sendo apresentados moldes e indicações para personalizar o objeto. Como conse- quência, parece fácil constatar a quantidade deles chegando às casas das crianças, que, senão iguais, provavelmente terão pequenos sinais que os diferenciam, como a cor ou a posição de um laço de fita! “Ideia inteligente!”, disse certa vez um bió- logo, analisando o objeto trazido pelo filho de 7 anos de idade. Ele corrigiu: “não se trata de uma tartaruga, que tem nadadei- ras, mas de um jabuti, que tem patas grossas para andar sobre a terra. Por outro lado”, continuou ele, “esse objeto parece um bomexemplo para a educação ambiental, já que os jabutis 7. Para ver essas imagens, o leitor poderá digitar no Google “tartarugas feitas com o fundo de garrafas pet” e depois clicar em “imagens”. U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Educação não Formal: Campos de atuação 45 vivem muito tempo e o plástico pode levar mais do que esse tempo de vida para se degradar”8. Tal comentário tirou-nos do torpor causado pela visão das inumeráveis imagens repetidas, impulsionando-nos a fazer as seguintes perguntas: “será que esses profissionais estão cons- cientes do uso desses materiais como instrumento de sensibili- zação para a educação ambiental?”, “de que maneira ensinam isso às crianças?” ou, o que infelizmente parece mais provável, “será que as crianças apenas repetem indefinidamente as for- mas, o jeito de fazer (quando realmente fazem), para levar para casa o bonito objeto?”. Diante do que foi descrito acima, poderemos entender como o ensino de arte na educação formal torna-se facilmente uma prática redutora, voltada unicamente ao treinamento das habilidades (mesmo que, como vimos, muitas crianças sequer tenham essa chance). Os professores terminam por alienar-se completamente das potencialidades de significados e significa- ções contidos nos processos artísticos (o que nos faz pensar nas inúmeras possibilidades que as crianças teriam para pesquisar animais como as “tartarugas” e os “jabutis”, por exemplo, ou, ainda, de buscarem alternativas aos materiais plásticos, como possibilidade de ampliarem as pesquisas para outros cami- nhos), assim como se distanciam dos contextos onde a arte emerge (ou seja, realmente ensinar a importância da educação ambiental em nosso contexto atual). As tradicionais relações entre o feio e o bonito, certo e er- rado, retornam assim em constantes repetições, que parecem desenvolver uma espécie de “cultura de cassino”, ou seja, estão sempre em busca da “recompensa instantânea”, como diz Cos- ta (2010, p. 48). O conhecimento, tomado como simples re- flexo do mundo real (ou seja, a simples representação da “tar- 8. Para verificar o tempo aproximado de decomposição de materiais, ver: <http://www.lixo.com.br/>. Acesso em: 28 mar. 2012. U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Zilpa Maria de Assis Magalhães 46 taruga”), deixou de ser traduzido e construído, passou longe das possibilidades interpretativas, como disse Morin (2010). As dúvidas dos profissionais de educação quanto à produ- ção artística infantil parecem-nos rotineiras, sendo que a maio- ria deles justifica-se dizendo nada conhecer de arte. Mas antes de procedermos ao relato de outra experiência, que poderá nos ajudar a compreender melhor esse caminho, convidaremos o leitor a nos acompanhar pelo pensamento de outro artista. O artista surrealista René Magritte9 pintou naturalistica- mente10 um cachimbo na tela e escreveu embaixo: “Isto não é um cachimbo” (figura 6). Diante dessa aparente contradição (pois, afinal, não se trata mesmo de um cachimbo, mas da representação pictórica de um cachimbo), o artista propôs um enigma, desestabilizando nossa percepção da realidade. Fiona Bradley (1999, p. 41) explica: Nem a imagem nem a legenda estão mentindo para o espectador. A pintura, no entanto, chama a atenção para a advertência levantada pelo título: a imagem é tão ilu- sionística que chega a ser traiçoeira, levando-nos a “ver” algo (um cachimbo real) que na verdade não está ali. Tal- vez mesmo os cachimbos reais sejam traiçoeiros. A pin- tura nos leva a duvidar de nossa própria percepção das coisas. (BRADLEY, 1999, p. 41) Magritte propõe, na construção dessa imagem, um verdadeiro mistério, que é evocado pelas formas visíveis e/ou invisíveis, iluminado “pelo pensamento que une as coisas”, como ele mesmo dizia (MAGRITTE apud FOU- CAULT, 1988, p. 83). 9. O pintor belga René Magritte (1898-1967) foi um dos grandes expoentes do movimento surrealista. Movimento este que se originou na França e flores- ceu ao longo das décadas de 1920 e 1930. 10. A palavra “naturalismo” é, normalmente, associada às imagens reproduzi- das com fidelidade. U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Educação não Formal: Campos de atuação 47 FIGURA 6 A traição das imagens (Isto não é um cachimbo), 1928-1929 Óleo sobre tela 64,5 X 94 cm Los Angeles County Museum of Art, EUA Vejamos, agora, o relato da experiência com a professora11, que mencionamos acima: Certa vez uma professora de educação infantil trouxe a pintura de uma garotinha de quatro anos de idade. Con- tou que havia acomodado algumas frutas sobre a mesa, pedindo que as crianças fizessem escolhas, podendo dese- nhar e pintar sobre o papel qualquer uma delas. A figura mencionada apresentava a representação de uma melan- cia na cor azul; abaixo do desenho a professora escreveu 11. Encontro ocorrido em outubro de 2009, entre a autora desse artigo e a professora S.M., da Rede Estadual de Ensino e aluna do curso de pintura da Ziarte-Viveka. U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Zilpa Maria de Assis Magalhães 48 a palavra “melancia”.12 Sua dúvida era simples: “será que essa criança não aprendeu a identificar as cores?” Ques- tionei se ela havia proposto de fato outras situações para investigar o caso, como perguntar diretamente à criança as cores de objetos presentes na sala de aula? Ela mos- trou-se incomodada, dizendo que “não tinha pensado nisso”. Conversamos um bom tempo sobre os possíveis significados de conceitos como “realidade”, “cópia” e “re- presentação”. Depois apresentei algumas obras do livro do Magritte. (ARQUIVO ZIARTE-VIVEKA, 2009) Julgando estarmos emocionalmente livres enquanto ma- nipulamos os materiais ditos artísticos, nos esquecemos dos condicionamentos. Possivelmente, as outras crianças desse grupo “acertaram” o alvo proposto pela professora, construin- do as imagens que ela esperava. Da exceção veio a dúvida, a possibilidade de crescimento. Pois o “pensamento que une”, lembrando Magritte, pode acionar a razão para evitar equí- vocos, muitas vezes desnecessários. Afinal, as melancias que comemos não costumam ser azuis, mas suas representações podem ser de qualquer cor! Na base dessa experiência, a professora parece ter vivido uma contradição: • De um lado, a postura é de espectadora, testemunha ocular que protege a “liberdade expressiva” da infân- cia, que confirma a suposta “espontaneidade” ao uti- lizar o texto como legenda a partir do que foi ditado verbalmente pelas crianças, sem nunca contestar. Em- baixo da pintura que representa uma melancia, escre- veu: “melancia”! 12. Infelizmente, não foi possível fazer registros fotográficos desse encontro. Os conteúdos desenvolvidos aqui, no entanto, poderão ser facilmente verifica- dos nas “famosas pastas”, que guardam os registros de desenhos e pinturas das crianças dessa mesma faixa etária, encontradas na grande maioria de escolas de educação formal da cidade de São Paulo. U N IN O VE - U SO E XC LU SI VO P AR A AL U N O Educação não Formal: Campos de atuação 49 • De outro lado, a aparência de tranquilidade muda de humor, transformando-se em ansiedade, quase medo. As fronteiras que separavam o lugar da realidade e da imagi- nação foram abaladas: “melancia azul?” Ainda são dominantes em nossa cultura os valores neo- classicistas, que foram gerados no século XIX, importados ao Brasil por D. João VI e orientados para o aprendizado do de- senho naturalista (algumas gravuras e aquarelas de Debret13 são testemunhas magníficas desse estilo). Nesse sentido, é comum, na cultura escolar, o incentivo aos desenhos “colados” à aparência do real, ao mundo exterior, sendo um veículo fácil para os ideais de “dom” e de “habilidade” artísticos. “Um bom desenho”, dizem muitos, “é aquele que se parece com uma fotografia!” Frases como esta são apelativas, sinalizando rarís- simas possibilidades de leituras simbólicas
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