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Copyright © 2019 Nana Valenttine Todos os direitos reservados. Título: Tempestade de Outono Autora: Nana Valenttine Revisão: E. Oliveira Designer de capa: L.A Capas Diagramação: April Kroes Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens e acontecimentos que aqui serão descritos, são produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência. Esta obra segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa. É proibido o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte dessa obra, através de quaisquer meios, sem o consentimento escrito da autora. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido pela lei nº. 9.610. /98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal. Todos os direitos reservados. Edição Digital | Criado no Brasil. Recadinho de quem leu Aviso Dedicatória Prefácio Prólogo Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5 Capítulo 6 Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9 Capítulo 10 Capítulo 10.5 Capítulo 11 Capítulo 12 Capítulo 13 Capítulo 14 Capítulo 15 Capítulo 16 Capítulo 17 Capítulo 18 Capítulo 19 Capítulo 20 Capítulo 21 Capítulo 22 Capítulo 23 Capítulo 23.5 Capítulo 24 Capítulo 25 Capítulo 26 Epílogo Nota Nº1 Nota da Autora Agradecimentos Sobre a Autora “Esse livro acabou comigo, em todos os sentidos. História maravilhosa, bem contada, e cheia de fortes emoções. Se preparem para serem impactados de todas as formas possíveis, numa experiência magnífica e realista.” Aline Rubert, autora da série Amores Irresistíveis. “Tempestade de outono não é só mais um livro sobre amor e amizade, é também um livro sobre auto-conhecimento, superação, viver a espera e ter esperança. Me identifiquei muito com Dean e toda sua situação frente a adversidade relatada no livro. Nana escreveu esse livro com tanta propriedade que as vezes eu pensava: ela entrou na minha cabeça?! É emocionante, empolgante e envolvente. A leitura vale cada palavra!” Tatiane De Rossi – Blog Ao infinito e Além “Tempestade de Outono, à primeira vista, mesmo com os avisos iniciais, pode nos passar a impressão de ser mais uma história de amor fofa entre adolescentes e, embora essa impressão não esteja de todo equivocada, o livro trata de muito mais do que isso. A Nana Valenttine conseguiu tratar temas pesados e, de certa forma, tabus, como ansiedade, depressão, transtorno de borderline, automutilação, violência familiar e relacionamento abusivo, com muita sensibilidade e um realismo que, muitas vezes, nos deixa com um gosto ruim na boca e nos leva a refletir se não tem alguém passando por aquilo tão perto de nós, sem que tenhamos nos dado conta, ou, ainda, faz com que percebamos que não estamos sozinhos, que podemos buscar ajuda em caso de necessidade. É uma leitura absolutamente necessária e, apesar do peso que carrega, muito bela e apaixonante. Me sinto lisonjeada em tê-la lido.” Aisha andris – Blog Aishando “A escrita da Nana sempre foi sensível e tocante desde o seu primeiro trabalho. Mas em Tempestade de Outono vemos todo o seu talento ser aprimorado de uma forma ainda mais marcante. Os sentimentos rasgam as palavras transformando cada frase em um belo e vívido conjunto de emoções. Algumas histórias apenas nos comovem, mas este livro é capaz de afagar a alma.” Amy Campbell – Autora da série As irmãs Wymond “Um livro que mexe com suas estruturas, você irá surtar, se emocionar e vibrar. Nana trata de assunto sérios de uma forma delicada e sem diminuir a importância desses assuntos.” Bárbara - @vidadebibliotecaria “Tempestade de Outono é, como diz o título, uma tempestade de emoções: Felicidade, tristeza, amor, empatia pelos personagens…. Dean e sua Outono, com suas angústias e medos, são tão parecidos com muitos jovens que conhecemos, que sofrem em silêncio e nem percebemos… É uma leitura as vezes pesada, mas que nos recompensa com lições de amor, valorização à vida, amizade e recomeço. Maria Fernanda - Leitora “Mais uma vez, fui envolvida pela escrita fascinante de Nana Valenttine. Imagino não ser tarefa fácil se transformar e viajar por narrativas completamente distintas. Fui imediatamente enfeitiçada por esta história complexa, mas, ao mesmo tempo, contada de forma tão delicada que nos faz compreender e abraçar mesmo as situações mais vulneráveis. Só uma pessoa com um talento nato e tão evidente para nos apresentar um trabalho tão cru e visceral e, ainda, fazer que nos sintamos em casa, em paz, apesar de ser um livro que inquieta, incomoda, ensina e educa. Mas, no final das contas, ler Nana Valenttine é sempre uma explosão de sentimentos. É uma vontade de passar de um imediatamente para outro e, assim, adentrarmos em cada fascinante cenário que ela tão magicamente cria para nós. É sempre um presente, e não foi diferente desta vez. Só amor.” Gabriela souto - Leitora “Uma história de vidas adolescentes, relacionamentos adolescentes com problemas e superações de adultos. Tocante, motivador e delicioso de se ler.” Fernanda Boechat – Leitora Este é um aviso de gatilho (trigger warning). Este livro possui assuntos relacionados à depressão, ansiedade, agressão, automutilação, abuso familiar e suicídio. Se você se sente sensível quanto a isso, a recomendação é que pare de ler agora. Se você em algum momento se identificar com os assuntos abordados, procure ajuda. Nunca é tarde demais. Centro de valorização à vida: 188 ou https://www.cvv.org.br/ https://www.cvv.org.br/ A todos aqueles que convivem com seus monstros interiores e continuam nessa estrada chamada vida. A todos que apesar da ferida aberta, não se rendem. E também a todos que estão à beira do abismo, saibam que vocês não estão sozinhos. Continuem firmes, continuem… A Aline Rubert fez o favor de criar a playlist dessa história. Obrigada!! iTunes Spotify https://music.apple.com/br/playlist/tempestade-de-outono/pl.u-11zBJoVT8azL0d7 https://open.spotify.com/user/22xvp3zfamvmrephewdc6ktmq/playlist/75syLf3YzQn6msjfQQ7Y1y?si=1x9_Na6UR3mw6IszBPbwKw Querido leitor, A Nana me convidou para vir aqui e contar para vocês um pouquinho da minha experiência ao ler Tempestade de Outono. Primeiramente, gostaria de agradecê-la pela oportunidade de ler, mas também agradeço principalmente por ser minha amiga e porque ao longo da minha própria jornada ela foi minha Outono ou meu Dean. É isso, somos a pessoa uma da outra, e por isso, obrigada por me salvar do precipício da minha mente tantas vezes. Agora, vamos falar da jornada que é ler esse livro. Imagine-se prestes a dar um mergulho, mas não na piscina da sua casa ou naquela praia que você vai sempre. Prepare-se para saltar do alto do penhasco, daqueles em que você olha para baixo e só vê o mar, ondas e pedras. Você precisa saber que essa experiência vai transformar a sua vida. Ninguém vai de encontro a algo tão profundo e intenso e volta facilmente. Muito menos volta a ser a mesma pessoa depois de tal mergulho, então saiba que você precisará prender todo o seu fôlego, juntar suas forças e nadar de volta à superfície após essa leitura. Eis aí outro ensinamento: continue sempre nadando, andando ou correndo; use a respiração diafragmática (não sabe o que é isso? Vai aprender!). TDO nos apresenta a dura realidade de lidar com a própria mente, os desafios de aceitar a pessoa que você é, e não a pessoa que você quer ser ou que os outros desejam que você seja. É o mergulho pelo conhecimento, com uma trilha sonora fantástica. E, CLARO, um amor puro, profundo e avassalador… tão devastador como um vendaval. Pensando melhor: não prepare-se para pular do penhasco, prepare-se para atravessar um campo aberto, no meio de uma tempestade, cheiade raios, água, granizo e ao final, quando só restar a lama e a chuva branda, aproveite para sorrir. Afinal, depois daquela pequena grande jornada você terá aprendido mais sobre si, seus limites e principalmente sobre o amor… o amor próprio. Então pegue seu fone de ouvido, uma caneca da sua bebida predileta, mantenha o WhatsApp da sua pessoa favorita por perto e corra em direção à sua própria Tempestade de Outono. E esteja preparado, pois depois desta história… você nunca mais será o mesmo. “Oi, eu sou o Dean. Como James Dean. Tenho treze anos e estou apaixonado.” Essa é a primeira declaração escrita no meu diário. O primeiro relato que escrevi quando tinha treze anos. Olhando essas palavras agora, elas parecem tão distantes e ao mesmo tempo tão vivas, que tudo parece ter acontecido ontem. Ainda sou o Dean, mas não posso dizer que sigo o mesmo, afinal, já passei dos trinta. Depois de muito, muito tempo mesmo, resolvi finalmente contar aqui um pedaço da minha história. Digo um pedaço, pois minha vida teve tantos altos e baixos e tantas reviravoltas malucas, que às vezes eu me pergunto se não estava dentro de uma daquelas novelas mexicanas. Piadas a parte, muitas coisas aconteceram de lá para cá, me fazendo perceber que, às vezes, é importante termos nossas lembranças registradas. Foi justamente por isso que iniciei um diário aos treze anos, só que naquela época eu não tinha foco e muito menos paciência para relatar meus dias em um monte de papel. Pra você ver como as coisas são engraçadas. Agora escrever tornou–se quase uma necessidade e infelizmente não posso garantir que todas as páginas serão bonitas. Espero que sua estadia por aqui seja proveitosa e também espero que, ao final dessa história, você esteja sentindo o mesmo que eu senti ao viver tudo isso. Então vamos voltar alguns anos no tempo (lá na minha adolescência), para que eu possa explicar melhor o decorrer dos acontecimentos… NO BALANÇO DAS CONFUSÕES DO MEU CORAÇÃO. “Days swiftly come and go I’m dreaming of her She’s seeing other guys Emotions they stir The sun is gone The nights are long And I am left while the tears fall…” (Swing swing — The All Americans Rejects) Bem-vindo à Summer Creek. Uma cidadezinha do interior cheia de música boa e comida ruim. Também há árvores, muitas árvores. Os parques lotam no verão e então se pode ter algumas aventuras com seus amigos ou um piquenique em família, você escolhe. Qualquer que seja a opção, saiba que encontrará mosquitos. Muitos mosquitos. Eu moro aqui desde que nasci. Não que isso tenha muita relevância. Então, vamos lá, eu sou o Dean, mas isso você já sabe. E minha história começa basicamente assim… Acho que já faz mais de quinze anos, isso não vem exatamente ao caso, mas pense em mim como um jovenzinho magricela, um pouco tímido e muito talentoso. Treze anos, magricela, talentoso. Um feio — daqueles que é quase bonitinho. Adicione a isso o fato de que eu também estava entrando na adolescência, ou talvez ainda tropeçando nela. Enfim… Estávamos na primavera, não lembro exatamente a data, mas sei que estava terminando de lavar a louça do jantar quando minha mãe disse algo lá da sala. Foi algo do tipo: — Dean, não esquece de colocar o lixo na rua. — Não vou esquecer — eu respondi. — Então coloca agora — ela insistiu por motivos que só as mães sabem. — Mãe… — Agora. — Tô indo — eu não tive chance. Organizei o resto das coisas na cozinha e peguei o saco de lixo. Saí pelos fundos e dei a volta na casa para não correr o risco de deixar algum resíduo pela sala (o que certamente causaria a minha morte prematura). Em seguida, tomei a direção do gramado em frente à nossa casa. Era uma noite normal como qualquer outra e eu era apenas um garoto comum que estava colocando o lixo na rua. Tudo normal até aí. Exceto por ela. Eu estava lá na minha vida normal e monótona indo colocar meu lixo na rua, sabe? Foi quando eu a vi. A primeira garota pela qual me apaixonei. E cara, a menina era linda demais! Eu não só a vi, como também a absorvi e a gravei no momento em que meus olhos bateram na imagem dela. Fiquei estagnado no local enquanto a observava, sem sequer me dar conta de que não estava disfarçando nem um pouco ao fazer isso. Simplesmente fiquei ali, parado no meio da calçada olhando para aqueles cabelos loiros como um idiota que viu um alienígena. Milhões de coisas se passavam pela minha cabeça em uma fração de segundos. Coisas, suposições, perguntas do tipo: vizinha nova? Tinha observado a agitação durante o dia com pessoas entrando e saindo da casa ao lado, móveis pra lá e pra cá, mas não tinha dado muita atenção porque não costumo ser alcoviteiro ou coisas do tipo. No entanto, no momento em que vi a linda menina prestes a entrar na casa ao lado, automaticamente imaginei que fosse minha nova vizinha. Por favor seja minha vizinha! — Entra logo, April — a vi dizer para alguém, mas não cheguei a olhar quem era porque meus olhos só viam a divindade de “cabelos claros”, a coisa mais adorável que eu já tinha visto em todos os meus vastos anos de vida. Seu cabelo estava solto e era tão loiro quanto… quanto coisas loiras devem ser, saca? Eu estava tão fixado nela que na hora nem sequer pensei em alguma comparação decente. Acho que o mais perto que consigo chegar de uma boa comparação é se eu disser que o brilho daquele cabelo me remetia aos raios do sol. Lindo, tão lindo! E brega, nossa, Dean, que brega. Ela usava uma blusinha preta daquelas que as meninas usam, sabe? Com alças fininhas, um short jeans e um All Star branco. Era a coisa mais bonitinha que eu já tinha visto até então, acho que foi por isso que fiquei tão emocionado. Foi meio que uma coisa louca de amor à primeira vista. Eu fiquei emocionado, cara, não dê risada disso. Posso te chamar de cara, né? Ou prefere que eu te chame de “meu leitor”? Ou talvez, páginas do meu editor de texto? Vai pensando ai. Enfim, toda a cena acontecia como se estivesse em câmera lenta: a coisinha loira na porta de casa, segurando uma mochila rosa claro, chamando alguém que ainda estava ali fora. — Já vou — a outra pessoa respondeu, ríspida, tanto que eu sai momentaneamente do meu transe. Opa, tinha mais gente ali! Hora de prestar atenção no resto do ambiente. Duas meninas. Uma loira, com voz de anjo e cabelos aparentemente macios e sedosos como plumas de um travesseiro fofinho; e a outra, morena, aparentemente mais fechada e de pouca paciência ao que parecia. Eu não fazia ideia de quem eram aquelas duas ou de onde vinham, mas uma coisa era certa, elas estavam entrando na casa ao lado, logo após um dia de mudança. Ou seja, elas provavelmente eram minhas novas vizinhas. Com esse mistério solucionado em minha cabeça, voltei a admirar a garota de cabelos loiros. Ainda não sabia o nome dela naquela hora, mas se o universo ajudasse eu saberia em seguida. Vai universo, ajuda aí. Continuei observando-a na tentativa de não ser notado (ou ser) e segui com o que eu estava fazendo quando ela falou comigo. Ela falou comigo. — Oi! — disse ao me ver colocando o saco na lixeira. E eu… olha (estou sorrindo ao lembrar disso), eu devo ter feito uma cara de muito espanto, porque ela começou a rir. — Oi — respondi, todo errado, depois de mil anos. — Somos novas aqui, nos mudamos hoje. Você mora aí? — indagou, apontando para minha casa. — Sim — respondi, ligeiramente nervoso. Caramba, a garota era muito bonita e ela estava falando comigo, um pirralho. Tudo bem que isso não é motivo para tanto nervosismo, mas o que eu podia fazer? Em treze anos, era a menina mais linda que eu já tinha tido o prazer de ver, e ainda por cima seria minha vizinha! — Esta é minha irmã, April — “cabelos claros” apontou para “cabelos escuros”. -Oi. - Foi tudo o que eu disse. Então pude vê-las mais de perto e notar suasdiferenças. “Cabelos claros”, como eu havia nomeado-a rapidamente, era loira — eu já disse isso, mas faça de conta que eu sou um bom narrador e que você não notou nada — com um cabelo que reluzia de tão brilhante, e tinha olhos verdes. Enquanto isso “cabelos escuros” tinha — obviamente — cabelos castanhos e os olhos eu não conseguia ver, pois ela estava um pouquinho mais longe, no entanto, suspeitava que fossem castanhos também. “Cabelos escuros” se chamava April pelo que percebi, contudo, naquele instante senti certa energia negativa emanando de onde ela estava e por isso preferi continuar pensando nela como uma estranha. Então, por enquanto vamos seguir chamando-a de “cabelos escuros”. Enquanto “cabelos claros” sorria de orelha a orelha, “cabelos escuros” não mostrava nenhum dente. Usava calça jeans e tênis e, no lugar da blusa de alcinha, estava vestida em uma camiseta do KISS. Tinha um estilo diferente da “cabelos claros”. Não era feio, mas era bem diferente. Sua expressão também era diferente, não parecia brava ou irritada, apenas fechada. O que me chamou atenção nessa menina estilo “assassina gótica” foi justamente a oposição em relação a “cabelos claros”. “Cabelos escuros” parecia justamente ofuscada pelo brilho da irmã, no entanto era compreensível, dado ao fato que “cabelos claros” era o tipo de pessoa que parecia sempre se destacar aonde quer que fosse. Não sei se era seu brilho, o sorriso ou até mesmo o carisma, mas aquela loirinha me conquistou no momento em que me disse oi. — Vamos, April, mamãe está esperando a gente, e tem muita coisa pra arrumar — “cabelos claros” disse para a irmã, que permanecia calada. Achei que nosso grande encontro havia acabado, mas pouco antes de entrar, “cabelos claros” se virou e incrivelmente se despediu de mim: — Até mais, vizinho — acenou com a pequena mãozinha. — Nos vemos por aí. A propósito, meu nome é Mary. Mary… As palavras soaram como se fossem notas de uma balada romântica. — Sou o Dean. Aquele lindo raio de sol sorriu. — Tchau, Dean. — Tchau, Mary. Foi mais ou menos isso que aconteceu. Depois, lembro que subi as escadas correndo e minha mãe pensou que eu estivesse com dor de barriga, mas eu só queria chegar ao meu quarto de uma vez. Tranquei a porta e fui até a minha janela, meio sem saber o que gostaria de encontrar quando abrisse a cortina. Bom, o quarto em frente ao meu seria de alguém, só restava saber de quem. Depois disso fiquei me sentindo como Peter Parker tendo uma Mary Jane, porém só a Mary, sem a Jane. Não que tivéssemos muito a ver um com o outro (eu e Peter), mas naquela época, dos meus doze aos quinze anos, eu era bastante introspectivo e tinha meu lado nerd. Desde criança gostava de desenhar e por influência dos meus pais desenvolvi um amor enorme pela música. Aos dezesseis eu já tocava aproximadamente cinco instrumentos diferentes. Também gostava de ler, escrever e de tocar no piano da sala com o meu pai. Era um leitor assíduo e fã de As Crônicas de Nárnia e O Senhor dos Anéis. Lia muito, se comparado aos jovens da minha idade, então eu não achava que era o tipo de garoto pelo qual a Mary se interessaria. Já disse que amava (ainda amo) música? Culpa do meu pai, que me viciou desde pequeno. Aprendi a tocar piano com oito anos. Eu sempre dizia que só era bom porque ele me ensinou muito bem, porém, ele discordava e dizia que mesmo que houvesse se empenhado em me fazer ser bom, de nada adiantaria se a música não estivesse no meu coração. Eu seria apenas alguém que sabia tocar, e isso qualquer um pode ser. Incrivelmente, eu me encontrei em todo e qualquer som, passando não apenas a apreciar, mas a amar a música ao meu redor. Depois disso eu quis aprender mais e mais e conhecer um pouco de cada instrumento. Eu levava a música tão a sério que até montei uma banda de garagem com meus amigos na adolescência. Kit, Noah, Sean e eu. Os quatro patetas. Ah, que época fodasticamente foda foi aquela. Época de amor, amigos e música… Principalmente música, afinal foi ela quem me trouxe as pessoas que mais me marcaram nessa vida, e você vai conhecer cada uma delas nas páginas a seguir. Mary e “cabelos escuros”, — April — que seja, acabaram se matriculando na mesma escola que eu, e foi inevitável que nos tornássemos, hmmm, meio amigos, apesar de eu achar que Mary me via mais como um pirralho. “Cabelos escuros” e eu tínhamos algumas aulas juntos, mas praticamente não nos falávamos. Ela estava no canto dela, e eu, no meu. Sempre me considerei um cara quieto, mas ela… “cabelos escuros” não conversava com ninguém. Eu não gostava muito de interação, mas aquela menina parecia realmente odiar falar com qualquer pessoa. Em alguns momentos parecia que estava se escondendo dentro das próprias roupas e apesar de eu não me considerar alguém muito comunicativo, era atento as coisas ao meu redor. Eu sabia quem sentava em cada lugar nas minhas aulas, sabia as manias de cada um, quem matava aula e qual aula especificamente. É algo comum quando se passa mais tempo observando do que agindo. Por ser minha vizinha e irmã da garota que eu gostava, “cabelos escuros” me despertava certa curiosidade. Aquele contraste entre as duas irmãs me intrigava. Claro que isso não era motivo pra nenhuma paranoia, era apenas algo que eu me perguntava, o porquê de “cabelos escuros” à lá “assassina gótica” agir daquele jeito. E assim seguimos, sem nada novo sob o sol, exceto o fato de que eu estava deslumbrado por “cabelos claros”, digo, Mary. E crescemos. Treze, quatorze, quinze, dezesseis… “Dias vem e vão rapidamente Eu estou sonhando com ela Ela está de olho em outros caras Emoções que deixaram marcas O sol se foi As noites são longas E estou partindo enquanto as lágrimas caem…” Enquanto eu rabiscava músicas de amor, Mary saía com os outros caras. Porque ela havia se tornado a garota mais linda da escola. E eu… bem, eu acreditava ser invisível aos olhos dela. Pensando nisso agora, me parece meio depressivo, mas não vejo como dizer de outra forma… Mary era um ano mais velha do que eu, mas parecia ser muito mais madura, seu corpo era de uma mulher bem desenvolvida e se eu disser que não estava completamente atraído pelas curvas dela eu estaria mentindo. Aos quinze anos eu pensava muito, mas não com a cabeça de cima, se é que você me entende. Pensava tanto nela e me sentia deprimido por não dizer o que sentia. Havia aquela coisa toda de eu achar que era pirralho demais, feio demais, magro demais. Eu não era nem um pouco parecido com os caras fortes e capitães de time que costumavam ser a preferência de divindades lindas como “cabelos claros”. Entre passar vergonha e ficar calado, bom, obviamente eu preferia ficar calado. Ao menos eu sabia que se essa história não me servisse de amor, ao menos me serviria de inspiração para boas canções no futuro. Desculpe se não estou sendo muito detalhista, mas quando se está apaixonado, as coisas ao seu redor ficam meio embaçadas. Eu não lembro muito do que estava ao meu redor porque, como eu disse, naquele tempo eu só tinha olhos para a Mary, e aquela menina brilhava muito, ofuscando qualquer coisa que estivesse por perto. Eu queria ter mais atitude e convidá-la para sair. Às vezes eu a via me olhar de relance e, em outras vezes, quando eu estava com meu violão na escada de casa, ela sentava do meu lado e bagunçava meu cabelo. Ela dizia que adorava meu cabelo. — Você está cada dia mais bonito, Dean — suas palavras como sempre, soaram como uma canção em meus ouvidos. Eu só pensava que ela me via como um “irmão” bonitinho. A lembrança dela ainda me causa uma estranha sensação, pois, sim, eu estava muito apaixonado. Talvez mais platonicamente, já que nãoacreditava que algum dia alguém como Mary fosse me dar algum crédito. Boa parte da minha adolescência se resumiu a sonhar com a menina de cabelos loiros que morava ao lado da minha casa sem de fato fazer nada a respeito. Eu acho que “cabelos claros” sempre soube que eu tinha uma queda por ela e, no início, levou na boa, como se fôssemos vizinhos/amigos que levavam as coisas daquela maneira estranha — duas pessoas que sabem o que sentem, mas deixam para lá, não falam sobre. Eu era muito novo quando nos conhecemos, seria um idiota se acreditasse que teria alguma chance. Mas, porém, contudo, todavia, no entanto… As coisas começaram a mudar. Eu não sei como e nem exatamente quando, só sei que mudaram. Perdoe se eu estiver sendo um pouco enrolado. Eu ainda estou tentando processar boa parte da minha vida nos últimos anos. Quando entrei na adolescência tive minha fase rock n’roll e concordo com meu pai quando ele disse certa vez que as melhores baladas românticas foram feitas por bandas de rock. More Than Words está aí para provar isso. Bom, estou apenas falando sobre minha adolescência e músicas e creio que você deva estar se perguntando o que isso tem a ver com a minha história com a Mary, não é mesmo? Calma, já vamos chegar lá. CONTINUE POR ESSAS ESTRADAS “Where joy should reign These skies restrain Shadow your love The voice trails off again” (Stay on These Roads – A-ha) Foi em um dia de inverno, não me pergunte qual dia, mas lembro que meus dedos estavam gelados. Eu estava na sala de música da escola, pois havia um período vago naquele momento. Lembro que juntei as mãos e soprei um pouco de ar quente nelas, pois o contato com as teclas do piano e com o ar frio fazia com que meus dedos ficassem rígidos. Eu estava soprando o ar quente quando a porta se abriu. Não, não era Mary. Era a April. April e sua cara de espanto, como se tivesse sido pega em flagrante. A vi congelar em frente à porta, e semicerrei os olhos, pois estava curioso, mas obviamente não falei nada. Ao que parecia, a intrusa é quem se preparava para dizer alguma coisa. — Err, Dean, oi — as três palavras saíram raspando e seu cumprimento na verdade soou como se ela estivesse se desculpando. — Oi. — respondi, em uma mistura de indiferença com um “quê” de curiosidade. A garota, “cabelos escuros”… April, parecia querer se explicar, como se ter entrado naquele lugar fosse algo inapropriado. Pude perceber apenas observando seu corpo um tanto rígido, seus ombros querendo se encolher como se ela precisasse se enfiar em algum buraco, seus lábios em uma linha reta, como se estivessem retendo ou sei lá, segurando as palavras. — Eu não sabia que você estava aqui. - por fim a ouvi dizer. Continuei apenas ali, parado em silêncio porque basicamente eu não fazia ideia de como me comunicar com aquela pessoa estranha e mesmo que eu soubesse, bom, naquele momento eu não estava a fim de papo. “Cabelos escuros” - nossa, eu ainda tinha dificuldade de associar o nome à pessoa - parecia querer se explicar, mesmo que eu não tivesse pedido explicação alguma. Analise comigo, não tinha nenhuma necessidade de explicação ali, por isso pensei que quem sabe, talvez, com muita sorte, se eu continuasse quieto, ela viraria as costas e sairia para que eu pudesse continuar meu momento, ali, quietinho. A notei se remexendo um pouco, talvez de nervoso. — Desculpe se estou atrapalhando, já vou indo. — Você não está atrapalhando — afirmei. Uma pausa aqui rapidinho para uma observação. Eu não sei porque falei aquilo. No momento em que as palavras saíram da minha boca, senti o arrependimento. Ela realmente não estava atrapalhando e sequer tinha feito alguma coisa, entretanto, lá no fundo, possivelmente, meu inconsciente estava tagarelando sobre o fato de eu não me sentir muito confortável em praticar com alguém me olhando. — Eu não achei que fosse encontrar alguém aqui nesse horário. - “cabelos escuros” mencionou. — Tenho um período vago. Costumo vir aqui nos períodos vagos. — Hmm. E isso foi nossa conversa. Promissor, não acha? Eu e minha vizinha com jeito de assassina gótica, completamente em silêncio na sala de música da escola. Para ficar ainda mais estranho só faltava um grilo no fundo fazendo “cri-cri.” -E-eu, - gaguejou — se importa se eu ficar? Alerta de assassina gótica agindo estranho. Ela estava diferente. Normalmente nós não costumávamos trocar muitas palavras, já que éramos quase antissociais. “Cabelos escuros” parecia estar sempre com as sobrancelhas franzidas, como se sempre estivesse com algum problema, e não seria eu a perguntar qual era o negócio. Mas naquele dia, ela parecia… sei lá, mais acessível. A gente até tinha trocado mais do que duas palavras! Foi a primeira vez que parei para observá-la. Nunca tinha cogitado fazer algo parecido antes, pois para mim ela era apenas minha vizinha, “cabelos escuros”, irmã da menina pela qual fui aficionado nos últimos três anos. Nunca tive interesse em saber nada a seu respeito e suponho que ela provavelmente também não estava interessada em saber nada sobre ninguém da face da terra. — Dean? — Oi. - Fui desperto de meus devaneios. — Tudo bem? Eu estava viajando de novo. Viajando sobre minha vizinha assassina gótica. — Claro — Pisquei algumas vezes, tentando disfarçar sobre meu breve passeio na outra dimensão — Pode ficar, “cabe…” err, April. — sim, me enrolei todo. — Tem certeza? — Fica na boa, não me importo — garanti, pois não queria que ela se sentisse mal com a situação. — Obrigada, prometo não atrapalhar. Eu fiz que sim com a cabeça e voltei a me concentrar no que estava fazendo antes. O que eu estava fazendo antes de viajar para a terra dos doidos? Ah, sim, eu estava tocando a música favorita da minha mãe. No início foi complicado tentar manter o foco com alguém me olhando, mas não estava em nenhum concerto internacional, sendo assim, segui em frente e em pouco tempo já me sentia mais confortável. Não demorou muito para que eu ficasse completamente imerso na mágica da melodia. Tocar piano era algo natural pra mim. Desde pequeno meu pai repassava as lições, mas sempre porque eu tomava a iniciativa. Quando era criança, ficava fascinado ao ouvir ele tocar para a minha mãe, e senti que queria fazer igual. Certo dia ele me pegou tentando tocar, mas por ser muito jovem eu não entendia como aquilo tudo funcionava. Foi quando meu velho perguntou se era aquilo que eu queria mesmo naquele momento, pois, se fosse, ele não se importaria em me ensinar. Mal posso descrever minha felicidade quando o ouvi afirmar que me ensinaria. Ao lembrar disso, sempre sinto certa nostalgia. Bom, mas voltemos para a sala de música… No momento em que eu tocava a canção favorita da minha mãe, enquanto April me observava, um sentimento de pertencimento tomou conta de mim; uma coisa especial, quente e aconchegante, um som para adorar, uma coisa de louco, sem explicação. Eu amava tocar. Amava. Apesar de ter plateia naquele dia, depois de ter começado, eu simplesmente segui meu caminho através daquela suave melodia. E senti algo estranho. Continuei tocando, focado no exercício que desenvolvia, mas algo no ar me dizia que eu precisava de um momento. Ignorei isso e continuei. Continuei, até que senti que algo estava errado. Sem poder aguentar mais a curiosidade eu olhei para o lado e notei que minha espectadora estava com os olhos cheios de lágrimas. Parei imediatamente o que estava fazendo. “Cabelos escuros” me encarava com olhos marejados e eu podia perceber mesmo à certa distância, o tremor em seus lábios. O garoto indiferente dentro de mim não tinha vontade de perguntar o motivo de ela estar agindo daquela maneira e a falta de intimidade entre nós dificultava ainda mais as coisas. Mas isso não me impediade questionar interiormente: Porque ela está chorando? — Você está tocando Stay On These Roads — “cabelos escuros” constatou em voz alta, me deixando um tanto perplexo. Tão perplexo quanto ela mesma parecia estar. Quase ninguém da minha idade conhecia essa canção. Na verdade, as únicas pessoas conhecidas que sabiam dessa música eram meu pai e minha mãe. Tudo bem que era um hit famosíssimo dos anos oitenta, porém até então eu não conhecia ninguém além de mim com o mesmo gosto musical. Naquela época as músicas mais ouvidas pelas meninas que eu conhecia eram da Rihanna e Lady Gaga — hoje superfamosas — e eu aposto que se perguntasse para Mary, ela confirmaria isso. Então sim, eu estava abismado por minha vizinha supostamente assassina gótica, chorar ao me ouvir tocar uma música do A-ha. Fiquei meio boquiaberto com a constatação. Tanto que havia esquecido de responde- la, mesmo que sua afirmação não tenha sido uma pergunta. — Estou — eu ainda estava surpreso, mas lá no fundo senti uma pequena alegria, porque, poxa, ela conhecia a música! — Continua, por favor — “cabelos escuros” pediu, e apesar de eu ainda estar meio rígido com a situação e louco para questionar inúmeras coisas (meu lado “músicas velhas” estava preparando uma lista imensa de perguntas), continuei. Segui contente, pois estava tocando a música favorita da minha mãe para alguém que não só a conhecia como também apreciava. Eu adorava a sensação de ter a letra na minha cabeça e a música impregnada na minha alma. Ah, como eu adorava. Era muito fácil pra mim me perder em meio a alguma melodia. A cada nota, eu parecia ouvir o murmúrio do vento me acompanhando. Um leve sussurro. “Nota após nota, tecla após tecla…” E assim, sucessivamente, segui dedilhando. Mas espera… eu realmente estava ouvindo alguém murmurar, contudo não era o vento. “Onde a alegria deveria reinar Estes céus restringem Encobrem o seu amor A voz vai diminuindo novamente…” Olhei para a minha espectadora e a vi de uma maneira que nunca tinha visto ninguém antes. Foi uma coisa daquelas, tipo conexão automática. Cara, ela estava cantando. Cabelos escuros, quero dizer, April, estava cantando. Aquilo encheu meu peito de uma maneira que não sei se é possível explicar. Eu me senti bem com aquilo. Me senti bem com sua presença ali. Acho que ela não percebeu que havia fechado os olhos. Tampouco percebeu o quanto estava mostrando sobre si mesma. Naquele momento, foi tudo bem… bem estranho. Não é exatamente essa a palavra que eu gostaria de usar, mas, uau, foi incrível. Porque ao vê-la daquele jeito, eu também senti vontade de fechar meus olhos. E o fiz. Eu sabia onde estavam as teclas, sabia por onde deslizar meus dedos, mas apesar de amar a música, me dei conta de que incrivelmente era a primeira vez que fechava meus olhos ao tocar. Talvez fosse aquele momento, ou Stay on these roads, ou quem sabe coisa da minha cabeça, não sei. O que eu sei é que algo mágico aconteceu. No início, pensei estar ouvindo coisas ao escutar aquele murmúrio no embalo da melodia, mas ao passo que o som ficou mais forte e me dei conta de que April estava cantando e em seguida a única coisa na qual eu pensava era: Meu Deus, ela está cantando. Isso tornou todos aqueles minutos incríveis, pois eu nunca tinha feito nada parecido com ninguém. Eu não fazia ideia do quanto minha vizinha assassina gótica sabia, se só estava murmurando mesmo ou se realmente sabia cantar. Talvez nem ela soubesse que tinha esse dom, ou sequer tivesse percebido o que estava fazendo. De repente seus olhos se abriram, envergonhados ao notarem que eu a estava observando e por um segundo a vi vacilar enquanto algo dentro de mim pedia para que aquilo não terminasse. Eu não queria que ela parasse. Instintivamente a encarei e levantei o queixo, incentivando-a, pedindo que fizesse mais, que cantasse mesmo, mas April simplesmente negou, balançando a cabeça. Foquei nas teclas e segui com a música, talvez um pouco frustrado, mas eu não tinha intimidade o suficiente para insistir. E talvez mesmo que eu tivesse, não sou e nunca fui disso, se a pessoa não quer, é porque não quer e eu respeito isso nos outros, pois detesto quando não sou respeitado. Estávamos em um momento muito bacana naquela sala e eu não queria perder aquilo. Aquela música era épica demais para que eu desperdiçasse seu ápice, e no momento em que ele se aproximou eu me entreguei ainda mais, preparando-me para a emoção que eu sabia que iria me invadir em poucos segundos. “…O inverno se foi, eu estou sozinho…” Foi quando ouvi a garota de cabelos escuros cantar. Pra valer. “Continue nestas estradas Deveremos nos encontrar, eu sei Continue, meu amor Nós nos encontraremos, eu sei…” Baixinho, baixinho, ficando mais alto a cada nota, fortalecendo-se a cada palavra… E se eu suspeitava de que minha vizinha April, vulgo assassina gótica, tinha algum problema na vida, naquele momento acho que tal coisa foi completamente esquecida. Seguimos conectados daquela maneira peculiar até o fim da música, quando finalmente tomamos noção do mundo a nossa volta. Caramba, que sensação boa. — Meu Deus, foi maravilhoso, Dean! — Cabelos escuros disse em um estado que suspeitei ser de euforia, por mais que tentasse disfarçar. Isso aí, ela estava eufórica. — Foi? — Nossa, foi! Eu não sabia que você era tão bom, com o perdão da palavra. Eu sei que você toca, afinal seu quarto é em frente ao meu, e claro que já ouvi você e seu violão em frente à sua casa, mas juro que não sabia que era assim! — Assim como? — indaguei, curioso. — Extraordinário, fabuloso. Foi absurdamente incrível. Obrigada. Eu não entendia o motivo de ela estar agradecendo. — Pelo quê? — Por me deixar ficar. Assenti com a cabeça, pensando nos motivos para “cabelos escuros” ter ficado tão emocionada. — Você toca alguma coisa? — inquiri, tentando puxar algum assunto. É, eu estava tentando puxar assunto. Definitivamente o mundo estava girando ao contrário naquele dia. — Não. Eu não tenho nenhum instrumento. Eu sabia que isso não importava, pois no instante em que a vi de olhos fechados e colocando seu coração nas palavras que saíam de sua boca, eu soube que April tinha o que meu pai chamava de “música de coração.” “As pessoas nascem e morrem, Dean, assim como o sol e a lua todos os dias. Somos falhos e erramos, pois não estamos livres das provações divinas. No entanto, o que nos difere uns dos outros, é a capacidade de assimilar e lidar com as situações cotidianas. Dentro do cotidiano daqueles que amam a música assim como nós, existem dois tipos de pessoa. As normais, que aperfeiçoaram seu gosto através de estudos e técnicas por puro amor. E os presenteados com um dom. Reza a lenda que aqueles dotados com a música de coração são os capazes de transformar sentimentos em uma melodia capaz de tocar até mesmo a alma mais escura. Música de coração. Esse é seu dom, Dean.” Eu pensava nas palavras do meu pai enquanto a observava. Algo me dizia que eu não estava equivocado. April tinha um dom e naqueles poucos minutos em que nos conectamos eu pude vê— lo nitidamente. — Você pode tocar aqui, se quiser. Digo, nas horas vagas. — joguei as palavras por alto, tentando me aproximar, incerto se era isso mesmo que eu queria — Os instrumentos estão sempre disponíveis, contanto que não estrague nenhum, claro. — Ah, mas eu não sei tocar nada. — Cabelos escuros ficou na defensiva. — Isso é apenas um detalhe. Eu realmente estava tentando manter uma conversa. — Eu costumo vir aqui, às vezes. Apenas pra ficar aqui, sabe? Porque me sinto bem. Mas não sei tocar nada e nunca tinha encontrado mais ninguém aqui. Ver você foi uma surpresa. Ela estava falando. Comigo. Tipo falando. E naquele instante eu já não sabia se aquela menina era a minha vizinha rabugenta ou algum alienígena. — Entendi. Acho que nossasaulas vagas nunca haviam coincidido antes, então… — Fico feliz se puder continuar vindo aqui nos períodos vagos, isso já é suficiente. Se em um desses períodos você estiver tocando aqui, acho que será incrivelmente perfeito. Eu realmente adoro este lugar e acho que se torna ainda mais especial quando alguém realmente está produzindo algo bonito aqui dentro. — Me sinto lisonjeado, “cabelos escuros.” — Cabelos escuros? Me ferrei. — Hmm, então.. - Apertei os lábios e os curvei em um sorriso amarelo. — Cabelos escuros é como eu chamava você antes de saber seu nome. Ela pareceu pensar… — Mas nos apresentamos no dia em que nos conhecemos pelo que me lembro. — Na fração de segundo que antecedeu esse momento, na minha cabeça, você já era “cabelos escuros.” — Mas eu tenho nome, sabe né? Você sabe meu nome. — Sei. — Tá okay, isso está ficando meio estranho. — Achei que só eu tinha notado. — Você se sentiria melhor se eu te chamasse de garoto despenteado? — Porque? — Porque seus cabelos estão sempre uma bagunça. Imediatamente passei a mão na cabeça, tentando ajeitar seja lá o que fosse que estivesse desajeitado. — Tudo bem, entendi, desculpe. — Por me chamar de “cabelos escuros” e não pelo meu nome? — Eu não sei se isso realmente é algo ruim, mas se for, considere um pedido de desculpas. Ela pareceu sorrir apenas com os olhos, um ar de graça se formando em sua expressão. — Okay, nesse momento vou virar as costas e sair por aquela porta e vamos fazer de conta que essa conversa mega estranha não aconteceu, pode ser? — E você não vai mais vir aqui? — Eu sempre venho aqui. Apenas nunca tinha te visto, mas se te incomodar posso evitar os dias em que você estiver praticando. — Não, claro que não, calma aí. Você cantou, isso não pode ser esquecido. Então me desculpe se eu fiquei um tanto surpreso com a interpretação da minha vizinha assassina gótica. Me ferrei de novo. Pensei que ela fosse explodir, ter um ataque de raiva, dar um grito ou sair batendo a porta, sei lá. Estava esperando alguma reação negativa, contudo, depois de alguns segundos em silêncio, tudo o que ouvi foi um riso. — Assassina gótica… é assim que me retrata? — as palavras saíram por entre sua risada. — Eu não tenho uma explicação para isso. - Respondi, gelado. — Tudo bem, eu acho que você tem probleminhas. — seu dedo apontou para a cabeça — Aqui, sabe? Probleminhas mentais. — E voltou a rir. Que humilhação. E tudo porque não consegui segurar a língua. Certamente foi a surpresa e a emoção do momento que me deixaram abobado daquele jeito, não tem outra explicação. April deu as costas e abriu a porta. — Ei, espera. — Hm? — Se você puder não absorver o que minha boca idiota disse, bom, eu não me importaria em ver você por aqui de novo. Ela ainda parecia se divertir. — Certo. — Sei, tudo bem, então. Talvez nos encontremos mais vezes. — Quem sabe. Valeu, Dean. Despedimo-nos, e eu fiquei com aquela sensação curiosa de que a vizinha assassina gótica que eu conhecia tinha mais facetas do que eu imaginava. E claro, a sensação de que fui completamente idiota. Mas, apesar de tudo, a sensação que a presença dela deixou ali era completamente acolhedora. E puta merda, ela conhecia Stay on These Roads. Depois disso, foi inevitável que nos encontrássemos mais vezes. Parecia até mesmo que criávamos situações em que pudéssemos inevitavelmente nos encontrar. Na sala de música, claro. Nos demais lugares, mal nos falávamos. Ela ainda sentava sozinha no refeitório, parecendo novamente uma assassina gótica, enquanto eu sentava com meus amigos da banda. E Mary, bom… ela sentava no colo do capitão do time. Ah, Mary. Eu sabia que nada nunca aconteceria entre nós e que o que eu sentia era basicamente uma paixonite, mas não podia negar que me incomodava ver “cabelos claros” daquela maneira. O sorriso gentil não combinava em nada com a garota promíscua que frequentava a mesma escola que eu. Às vezes, quando uma cena dela acontecia, fosse gargalhando com suas amigas ou se agarrando com alguém, meus olhos cruzavam com o de “cabelos escuros”, e rapidamente eu desviava, porque não queria que April soubesse que eu me importava com a Mary. Eu não queria que ninguém soubesse disso. Quanto a April, vulgo cabelos escuros e vizinha assassina gótica, acho que passamos quase o ano todo nos encontrando daquela maneira esporádica, e, aos poucos, ela começou a se render ao que meu pai chamava de “poder da música”. A garota tinha um dom, mas tinha receio de usá-lo, e levou bastante tempo até que cedesse e começasse a pôr em prática seu sonho, que, a propósito, era bem parecido com o meu. Apenas tocar, ao ponto de sentir-se tocado, como se nada existisse. Apenas o som. Bom, eu tinha um violão disponível para troca em casa e, como ganhara um novo no meu aniversário, resolvi dar aquele para April. Ela ficou brava. Daquele jeito dela, toda irritada porque eu tinha feito aquilo. — É um presente, sua mal-agradecida. Lembro que eu já estava ficando bravo com aquele chilique. — Eu não pedi um presente! — Presente a gente dá de bom grado! E aí eu percebi que ela estava prestes a chorar, mas estava se segurando. — Que droga, April, só aceita a porcaria do presente. — Você não entende… O que eu vou dizer em casa? O que eu vou dizer? — Que eu te dei. — As pessoas não dão coisas assim. — As pessoas dão. — Não as que eu conheço. — Precisa conhecer pessoas melhores, então. Eu estava sem saber o que dizer naquela hora, porque não entendia seus motivos para ficar tão maluca. — Olha só, assassina gótica… Vai pra casa, leve meu violão com você e, qualquer coisa, você me devolve, tá bem? Pode ser assim? — E se algo acontecer com ele? — Coisas acontecem todos os dias. É apenas um instrumento, não se preocupe. Se ela me ouviu ou não, eu não sei. Mas levou o violão. Fiquei a observando ir embora, me perguntando o que havia de errado. Eu sabia que a estranheza tomava conta daquele corpo, mas era difícil lidar as vezes. April parecia se abrir somente quando estava tocando comigo, sozinhos, sem ninguém nos ver e, ao que parecia, ela tentava manter a pose de durona, mas por baixo daquela casca dura era completamente sensível. Aos poucos fui me desfazendo de sua imagem sombria e passei a vê-la como uma menina normal, porém retraída e receosa. Não sei porque a chamava de gótica se nunca a vi de maquiagem, mas suponho que tenha sido a primeira impressão. Eu era muito impressionável aos treze anos. Já prestes a fazer dezessete, eu enxergava as coisas de maneira bem diferente. — Eu não sabia que vocês eram tão íntimos. Quando me dei por conta, Mary estava atrás de mim. Eu não estava preparado para aquela intimação e, como sempre, fiquei quieto. No momento em questão, eu tinha mais intimidade com a April, mesmo ela sendo completamente distante, do que com a Mary, que ao meu ver ainda me considerava um pirralho. Só que, bem, eu já não era mais um pirralho. Acho que só eu não tinha me ligado nisso. — Não perca tempo com ela, Dean, April nunca vai sair do mundinho em que vive. — O que quer dizer? — Pra não se preocupar ou se questionar. Minha irmãzinha é assim mesmo, arisca e mal-agradecida. Nada nunca está bom o suficiente pra ela. — Não estou me preocupando. — Não? Uau, você pareceu bem preocupado. — Foi impressão sua. — Aquele violão era seu? — Era. — E por que deu para ela? — Qual o motivo do interesse? Mary se aproximou, e só então percebi que eu era bem maior que ela. Não lembrava de ter crescido tanto, ou talvez não lembrasse de alguma ocasião em que ela tenha se aproximado de mim daquele jeito. — April é minha irmãzinha querida. Tenho direito de me interessar. — Então você pode perguntar a ela. Ouvi ela bufar. — Desmancha essa carranca, Dean. Vem, o que acha de me acompanhar até em casa? Hein? Eu arqueei a sobrancelha, porqueaquilo foi completamente inesperado. Cheguei a olhar para os lados, para ver se ela estava realmente falando comigo. — Estou falando com você mesmo, seu bobo. Vamos, não vai cair nenhum pedaço. E aí eu fui. Em silêncio. Porque não sabia como iniciar uma conversa entre nós dois. Não sabíamos nada sobre o outro e não havia qualquer intimidade ali a ser explorada. No entanto, uma coisa que você deve saber sobre Mary, é que ela tinha o dom de cativar qualquer um à sua volta em poucos minutos. Não foi difícil fazer com que eu começasse a falar. Em algumas quadras, estávamos conversando abertamente, e ela inclusive perguntou sobre a minha banda, nossas músicas e me indicou um lugar que considerava ótimo para uma apresentação independente. Eu ainda falava pouco, mas não tinha vergonha de conversar com minha vizinha loira. Mary era muito doce, tão doce, que eu quase podia sentir o açúcar escorrendo dos seus lábios. Eu queria beijá-la havia anos, então não me culpe por pensar essas baboseiras. Só que durante aquela caminhada, para mim realmente parecia que alguma coisa não estava se encaixando. Aquilo não era algo costumeiro. Eu sentia que, possivelmente, aquela menina de cabelos claros radiantes queria algo de mim, porém não conseguia imaginar o que poderia ser. Eu não tinha nada a oferecer para alguém como ela. — Chegamos — eu disse quando paramos em frente à sua casa. Mary deu dois passos em minha direção. Eu fiquei ali, parado, porque se ela estava esperando algo, eu não fazia ideia do que era. Se fosse uma situação normal, talvez eu até soubesse, mas quando uma coisa inusitada acontece sem mais nem menos, é difícil saber como agir. — Obrigada pela sua companhia. Eu adorei conversar com você — afirmou, sorrindo. E que sorriso era aquele? — De nada. — Tchau, Dean. O meu nome parecia muito mais bonito quando pronunciado através dos seus lábios. Eu até achei sexy. Poderia passar mais algumas horas ouvindo Mary me chamar de Dean. — Tchau, Mary. A gente se vê. Eu acho que minha vizinha percebeu que eu não tinha entendido qual era a proposta naquela situação, porque se despediu com um beijo. Bem no canto da minha boca. Ela fez isso e sorriu, sem dizer mais nada. Em seguida, deu as costas e entrou na casa. Eu, como o bom homem que sou, também fui para a minha casa. Completamente atordoado e sem entender absolutamente nada. Sério, que porra foi aquela? Entrei em casa e já estava subindo as escadas quando vi minha mãe no corredor. Voltei. — Mãe. — Oi. — Eu sou bonito? — Oi?! — Isso que você ouviu. Eu sou bonito? Ela se aproximou e colocou a mão na minha testa. — Não estou doente, mãe. — Mas então que raio de pergunta esquisita foi essa? — Mãe… — É claro que você é bonito. — Não como filho. Quero saber se eu. Sou. Bonito? Minha mãe me encarou como se eu estivesse doente. Prestes a dar à luz ao mais novo bebê da casa, ela andava emotiva e amorosa demais. — Eu acho que você devia se olhar no espelho. Dean, você é lindo. Como não percebeu isso ainda? Seu corpo melhorou muito depois que começou a correr, admito. Mas não muda o fato de que você é e sempre foi uma coisa linda. — Mãe… veja bem. Se você me visse na rua, assim, do nada, o que você diria? — Gato, bem gato. Fechei os olhos tentando não rir. — Tá bom, mãe, chega, já entendi. Não precisa entrar em detalhes. Voltei às escadas e tomei o rumo do meu quarto. Deitei na cama e pensei: que loucura. Eu precisava ser mais esperto com relação aos sinais das mulheres. OH, DONNA… DIGO, MARY. “I had a girl Donna was her name Since she left me I’ve never been the same ‘cause I love my girl Donna, where can you be? Where can you be?” (Donna — Los Lobos) Depois daquilo, as coisas são um borrão para mim, porque tudo aconteceu tão rápido, que minha mente foi incapaz de absorver. Eu continuei com a mesma rotina de sempre. Tudo continuava igual. Exceto que April deixou de aparecer nos períodos vagos, e eu me perguntava o que ela estava fazendo. Não sabia o que tinha acontecido logo após ela chegar em casa com o meu violão. Eu sentia sua falta, mas assim como eu evitava perguntar à April sobre a irmã, com a Mary, eu fazia a mesma coisa. Por mais que tivesse vontade de saber se estava tudo bem, eu não perguntava. Não achava isso legal, por mais que as duas fossem irmãs. Parecia que não existia conexão entre as elas. Na semana seguinte, a vi através da minha janela e sei que ela também me viu. Ficamos um bom tempo nos olhando sem dizer nada, e eu estava começando a ficar preocupado. Observei enquanto ela parecia procurar por alguma coisa e em seguida a vi escrever sobre uma folha na escrivaninha, mostrando-me em seguida: “DESCULPE.” Eu não entendia. Talvez ela estivesse doente. Peguei uma folha e também rabisquei algo. “DOENTE?” — perguntei, mostrando o papel da mesma forma que a vira fazendo pouco antes. “SIM” — foi a resposta Então era isso. Talvez ela estivesse com algo contagioso. “FICA BEM” “VOCÊ TAMBÉM.” April era tão fechada. Eu queria descobrir o que a perturbava. Mesmo sendo vizinhos e mesmo tendo me aproximado dela nos últimos tempos, de certa forma, era como se houvesse um muro enorme entre a gente. Não, não exatamente entre a gente, deixe-me corrigir. Era como se o muro estivesse todo ao redor dela, separando-a do resto do mundo. Agora, se ela estava confortável dentro daquelas paredes, isso eu ainda não tinha como saber. Às vezes, sua cortina estava aberta e conversávamos através de nossas folhas, que serviam como plaquinhas. Era sempre tudo muito rápido, e isso me deixava querendo um pouco mais de tempo com minha suposta nova amiga. Mas April parecia sempre sem tempo. Em compensação, Mary e eu estávamos cada vez mais próximos, se é que você me entende. Na segunda vez em que fui “convidado” a leváala em casa, nos beijamos. Eu já tinha percebido que seu comportamento, seu jeito, estava diferente, mas ainda não tinha compreendido o motivo. Eu acordava todos os dias às seis da manhã e corria pelo quarteirão. Tomei esse hábito aos dezesseis, justamente porque queria impressionar a minha vizinha. E nunca a vi me notando. Porém, o hábito ficou e incrivelmente eu me sentia muito bem enquanto corria. Eu tinha muita energia que precisava ser gasta e correr provou ser algo ideal para mim. Foi em um desses dias — em que devido a chuva eu não pude sair de manhã — que decidi correr no fim de tarde, que encontrei Mary com algumas amigas. Eu pretendia passar reto, mas quando ouvi meu nome sendo chamado, achei que seria falta de educação não parar e falar com ela. Eu estava com minha bermuda de corrida e devido ao sol, que milagrosamente tinha aparecido, eu resolvi tirar a camiseta pouco antes de topar com o grupo das meninas. Foi a primeira vez que realmente pude notar que algo estava diferente nos olhos que me examinavam. Algo que não estava ali antes. Conversamos normalmente, mas sabe quando você sente? Eu sentia que ela me olhava diferente. No dia seguinte a encontrei correndo na minha rua. Usando uma roupa bem… atrativa, podemos dizer. Uma legging colada e camiseta justinha. — Você correndo? — Perguntei, curioso. — Claro! Eu sempre corro. Sério? Ela achava que eu iria acreditar nisso? — Eu nunca vi você correndo. — Isso significa que não presta atenção em mim? A encarei, metade fascinado e metade achando aquilo engraçado. — Porque está fazendo isso, Mary? Você não precisa disso. — Me senti inspirada por você. Você parece muito saudável. — Onde quer chegar com isso tudo? — Cruzei os braços e arqueei a sobrancelha esperando uma resposta. — Eu espero que você me acompanhe até em casa. — disparou. Em parte eu não entendia. Apesar de ser deslumbrado por aquela menina há anos, eu não via uma forma de algo acontecer. Não podianegar que me sentia completamente atraído por ela, mas minha consciência dizia que aquilo não era para mim. Ao mesmo tempo, eu me questionava se não estava pensando demais a respeito de algo tão simples. Caramba, era só leva-la em casa. A casa que ficava do lado da minha, mas que por algum motivo o destino fazia com que nos esbarrassemos sempre há algumas quadras dali, sempre fazendo com que eu sentisse vontade de acompanha-la. Bem, ela não me notava antes, mas algo me dizia que notava agora. — Tudo bem, vamos lá. Caminhamos até a frente da sua casa, tudo nos conformes, eu sempre não sabendo exatamente o que dizer com medo de falar alguma idiotice, etc. Ela sempre espontânea e à vontade, como se o mundo fosse seu parque de diversões. E aí foi a hora do beijo. Foi tudo bem parecido com a primeira vez, só que, dessa vez, teve beijo. — Tchau, Dean — As palavras saíram de seus lábios, doces como um chocolate. Me perdi em seus olhos verdes, tentando não confundir as coisas, mas se não arriscasse, jamais saberia. E por isso naquela ocasião, fui eu quem deu o primeiro passo ao me aproximar. E não estava enganado. Pude perceber isso através do brilho em seu olhar, cheio de expectativa. Um sorriso se escondendo atrás dos lábios, os quais sonhei por tanto tempo. Levei o polegar e o indicador ao queixo dela, trazendo-o para mim, sem nenhum receio. Por incrível que pareça, naquele momento, eu não tive medo. Eu fiz o que queria fazer e, ao mesmo tempo, fiz o que ela queria que eu fizesse. — Tchau, Mary — respondi baixinho e a beijei. E foi… uau. Foi como conquistar um sonho. Um sonho que eu sonhava há muito tempo. Senti sua boca, úmida, se abrindo de encontro à minha. Senti os braços, que me puxavam em direção ao céu, e não tive medo de ir em frente. Minha mão a tomou pela nuca, e meus dedos mergulharam nas ondas dos seus cabelos, tão macios. Ela era toda macia. Não a beijei como um garoto, nada disso. Eu sabia muito bem o que estava fazendo e estava gostando. Verdade seja dita, eu estava adorando. Os dedos dela faziam cócegas na minha nuca, roçando aquela área sensível, ora devagar, ora intensa. Em poucos minutos eu estava… eu estava… bom, não tem outra maneira de dizer isso. Eu estava duro. E Mary gostou disso. Gostou de saber que tinha algum poder sobre mim, um tipo de poder luxurioso e atraente. Ela gostou da reação do meu corpo em relação a seu toque, gostou quando a apertei contra mim e me deu liberdade para tocá-la, para percorrer suas costas, sua cintura, para escorregar as mãos sobre a sua bunda como se nossos corpos se conhecessem há muito tempo e estivessem apenas esperando para se fundirem novamente. E estávamos conectados, ah se estávamos. Não sei dizer por quanto tempo nos beijamos. Mas, no final, sua expressão parecia ser de surpresa. — Dean… — ela arfava, passando a língua sobre os lábios como se tivesse acabado de provar algo muito saboroso. — Até mais. — disse, se afastando devagar. Eu não disse nada, apenas acenei com a cabeça enquanto tentava controlar o tremor que se instalava nas minhas pernas. Meus olhos não conseguiam parar de olhá-la enquanto ela retrocedia com a mão sobre os lábios. De repente, me pegando de surpresa, ela voltou correndo e saltou para o meu colo, tomando meu rosto entre as mãos e me abocanhando fervorosamente. — Você, e minha irmã, hein? — Minha amiga assassina gótica mencionou, mais como uma tirada sarcástica do que como uma pergunta em si, enquanto organizávamos os instrumentos na sala de música. — Não estamos juntos, não exatamente. — Ah eu sei, pode acreditar. — Ela riu baixo. Aquilo de certa forma me incomodou, pois apesar de estarmos mais próximos, ainda não existia, digamos, uma intimidade intensa para que pudéssemos falar sobre isso sem que eu me sentisse um tanto invadido. Timidez é uma merda. — Eu sei o que está pensando. — Ah é? — April me encarou, com aquele olhar inquisidor. — O que eu estou pensando, Dean? Respirei fundo e torci o lábio, não querendo responder, mas já respondendo. — Você acha que não vai dar certo. — Eu nunca disse isso. — Mas é o que está pensando. Te conheço. Ela parou no lugar. — Aí é que você se engana. — Refutou — Você não me conhece. Não sei se você já percebeu, mas, eu sou quieto. Sou na minha. Se tem uma coisa que eu não fiz foi ficar correndo atrás da Mary como um cachorrinho. Tínhamos nos beijado uma vez, okay, nada demais. Nada mesmo, além da garota dos meus sonhos ter me beijado, me deixado meio ensandecido e depois disso ter sumido. Eu não esperava nada diferente. Nossos mundos eram diferentes e por mais que ela tenha gostado e eu sei que gostou, isso não quer dizer nada. Continuei com minha rotina, continuei correndo. As vezes a encontrava, as vezes não. April medonha não disse mais nada a respeito. Depois da nossa conversa ela trancou a língua com uns cinco cadeados diferentes e realmente não pronunciou uma única palavra a respeito. Se eu fiquei mais platonicamente apaixonado? Certamente. Pois, dessa vez não era algo tão inalcançável, era tão palpável que eu ainda era capaz de sentir o gosto dos lábios doces. Certa noite cheguei em casa e encontrei Mary nas escadas da frente, como se estivesse me esperando. Ela levantou rapidamente assim que me viu e limpou as mãos na legging preta como se estivesse tentando afastar a… vergonha? Timidez? Eu sei lá o que era, mas era possível notar seu nervosismo. — Olha só, eu sei que te devo uma explicação… — iniciou, mas a cortei de imediato. — Você não me deve nada. — Não, eu devo sim. Você sabe disso, sabe que aquele dia não foi um dia qualquer, sabe que nos conectamos. — Ah é? E qual sua desculpa para ter ignorado essa suposta “conexão” nos últimos dias? — Eu estava com medo! Me poupe, se poupe, nos poupe. — Eu te juro que só a minha cara parece ser de trouxa, Mary Anne Sanders, porque eu não sou. Invente outra desculpa, soa menos falso. Dei as costas indo em direção a porta de casa, mas ela segurou meu braço fazendo com que voltasse a encará-la. — Dean, eu estou falando sério. Desculpe se o magoei, mas não estou acostumada a ser tratada assim e isso me assusta em você. — Assim? Assim como? — Como se eu fosse preciosa, importante. Você não me olha como um objeto que quer pegar e provar, você me olha de uma maneira que não sei explicar. Quando nos beijamos aquele dia… eu… eu não paro de pensar nisso. Aquilo de certa forma me pegou de surpresa e o garoto apaixonado dentro de mim estava tremelicando ao ouvir aquelas palavras. Eu não sabia o que dizer. — Me desculpe. — Pedi — Isso é novo pra mim, Mary. — Exalei — Confesso que também adorei, afinal eu te adoro há muito tempo, mas não há como negar que somos diferentes. — Você está me rejeitando? — Sua expressão parecia desapontada. — Eu nunca rejeitaria você, mas acho que talvez você mesma não faça ideia do que quer. — E você faz? — Eu sempre tive certa ideia do que queria. — E eu estava incluída? Ri baixo. — É, pode-se dizer que sim. Ela desviou o olhar como se pensasse em algo pra dizer. — Acho que se tem alguém aqui que precisa avaliar escolhas, esse alguém é você, Dean. Eu pensei por muitos dias antes de finalmente vir até você e o que você faz? Me joga fora. — Não é bem assim… — É assim. Me senti especial estando com você, mas como você mesmo disse, nossos mundos são diferentes, não é mesmo? E pelo que posso ver, você não está com vontade alguma de fazer algo a respeito disso. — Mary… Ela já começava a retroceder, descendo as escadas. — Não. Você não quer o que tenho aqui — Apontou para o peito, no lado onde o coração batia — Então o deixarei em paz. Aquilo disparou um pequeno alarme dentro de mim. Eu a queria mas, mas… mas o quê? Ela havia conseguido me desestruturar e me fazer sentir culpado com apenas algumas palavras e então eu nãovia uma maneira de fazê-la ficar quando a vi se afastando. — Mary! — a chamei completamente em vão. Ela havia me deixado em frente a porta com um peso nos ombros e uma leve dor no coração. Precisava esquecer aquilo, afinal, eu é quem iniciei dando as cartas. Apesar de ela ter me procurado, minha ideia inicial não estava de todo errada. Não parecíamos certos um para o outro e eu não fazia ideia de que a coisa poderia ser tão recíproca assim. Caramba! Quem iria imaginar? Logo eu, por que eu? “Você me olha diferente.” Por que ela não podia falar as coisas de forma mais exata? Agora mais do que nunca eu não conseguia parar de pensar nela e de me sentir mal por a ter julgado superficial. Sim, foi o que fiz. A considerei diferente de mim, justamente por ela ser mais especial e interativa. Por rir, por fazer amigos, por se divertir, por sair com outros caras. O que eu esperava? Uma virgem? Santo Deus, não estamos mais no século passado. Eu estava pensando, pensando, pensando. Queria parar de pensar, mas, por ventura, meus pais estavam naquele final de semana fazendo sua costumeira maratona de filmes antigos. E que merda, eles tinham escolhido La Bamba e eu adorava esse filme. Inevitavelmente, parei na escada quando estava voltando da cozinha e assisti um pedaço, pois eu gostava de cada maldita música daquele filme. E Donna, a paixão de Ritchie Valens no filme, naquele momento me lembrou tanto da minha própria paixão de cabelos loiros, que me senti ainda mais estúpido por estar pensando sem parar no que eu havia deixado escapar. Donna estava para Ritchie assim como Dean estava para “fracassado.” Subi para o meu quarto, cheio daquela inspiração melodramática que faz os artistas escreverem músicas maravilhosas, no entanto, não tive vontade de criar nada. A única música que embalava meus pensamentos era a que Ritchie cantou para Donna em uma cabine de telefone, quando estavam separados. “Eu tinha uma garota Donna era o nome dela Desde de que ela me deixou Eu nunca mais fui o mesmo Porque eu amo a minha garota Donna, onde você pode estar? Onde você pode estar?” É… é isso mesmo que você está pensando. Patético. FAÇA OS VAGALUMES DANÇAREM “Kiss me Beneath the milky twilight Lead me Out on the moonlit floor Lift your open hand Strike up the band and Make the fireflies dance Silver moon sparkling So, kiss me” (Kiss me — Sixpence None the Richer) Seguindo em frente… Depois de muito, muito tempo mesmo, April finalmente me deu seu número de telefone. Um telefone que eu nunca havia visto e que só poderia enviar mensagens quando ela me enviasse primeiro, pois, as vezes “por algum motivo estranhamente bizarro”, o negócio não funcionava. Era a condição. — Você é algum tipo de agente secreta? — Brinquei. Ela levou a mão a peito. — Oh meu Deus! Como você descobriu?! Comecei a rir da tamanha cara de pau e, apesar disso, ela ainda não me contava nada além do que acreditava que eu precisasse saber. De certa forma ainda éramos como estranhos, eu, um ser humano normal tentando me aproximar de um gato arisco. — Você vai ir no baile dos ex-alunos? — indaguei Ela me encarou com uma expressão de tédio. — Olha minha cara. — apontou o dedo para o próprio rosto — Essa cara parece a de alguém que gosta de bailes? Analisei o que ela disse enquanto a examinava por completo. É, “assassina gótica” não parecia alguém que gostava de qualquer coisa em especial além de música e filmes velhos. — Vai ter música. — Provoquei. — E daí? — Você pode dançar. — Eu passo. Sou completamente dura, tão dura quanto um violão empenado. — Um violão empenado pode ser consertado. — Dependendo do estrago, não vale a pena. — piscou. — Então não tenho com quem ir. — Vai com sua diva loira, oras. — Ah eu iria, mas dei mancada, agora ela está brava comigo. — Faz charme, todo mundo adora um charme. — Eu não sei fazer isso. — Então faça ciúmes, sei lá, pega alguém na frente dela, essas coisas idiotas que as pessoas fazem. — Err.. não. Prefiro ficar em casa do que me humilhar publicamente por algo que nem sei se vai dar certo. — Qual é, Dean. Você gosta dela desde sempre, a quem está querendo enganar? A encarei um tanto surpreso. — Quem é você, garota otimista e o que fez com a menina pessimista assassina gótica que mora nesse corpo? — Questionei brincando. Ela cruzou os braços. Estava pensando, eu podia perceber por sua expressão. A questão era: No quê? Fazendo uma careta, April me olhou com uma cara que não pude identificar como assassina ou coisa parecida. — Vai ficar me devendo. — Foi tudo o que a ouvi dizer enquanto apontava o indicador acusadoramente em minha direção. Aquilo me despertou de certa forma, afinal, o que aquela cabecinha estava maquinando? Quando a vi saindo pela janela, na noite do baile, tive que me conter para não gritar compulsivamente… de tanto rir. Dado o conjunto da roupa de freira com aquele óculos incomparável, April parecia uma noviça assassina, agora nem tão gótica e talvez um pouco hippie. Mas vindo dela, eu sabia exatamente a quem aquela fantasia fazia referência… — Eu não acredito que você se fantasiou de Deloris! — Porque? Humpf, sou original, e ninguém pensaria em se fantasiar de Deloris. Eu estava surpreso, e com muita vontade de rir. — Quantas vezes você assistiu Mudança de Hábito? Ela pareceu pensar. — Você diz nessa semana? — Na vida! — Essa é uma coisa que não pode ser colocada em números. — Encolheu os ombros. — Apesar de amar Mudança de Hábito, preciso dizer que Deloris dá de dez a zero em você com essa roupa, minha nossa, April, você está tenebrosa! E meu Deus, por que está saindo pela janela? — Estou de castigo. — Respondeu com um aceno de mão, como se aquilo não fosse nada. — Tenho até medo de perguntar o que você fez para estar de castigo. — Fiz uma tatuagem. — Tatuagem?! Com autorização de quem? — Você já foi mais esperto, Dean, porque acha que estou de castigo, idiota? Vamos logo, não posso demorar. Ela me chamou de idiota e eu achei demais. Devo ser o único ser humano que se contenta com uma ofensa, mas é que depois de entrar na sala de música pela primeira vez e me ouvir tocar, essa foi a única vez em que pude ver um pouco mais dessa pessoa chamada April, que convive comigo de maneira estranha e misteriosa e por vezes… engraçada. Chegamos ao baile lá pelas 22:30 e logo nos embolamos na multidão que havia dentro do ginásio. Mencionei que o tema do baile era sobre filmes que marcaram uma geração? O slogan dizia: Qual filme marcou sua adolescência? Acho quase impossível escolher apenas um. E, enquanto April estava vestida de Deloris Van Cartier, eu usava a roupa característica de Ferris Bueller em Curtindo a vida Adoidado. E isso incluía o óculos e o corte de cabelo. — E aí irmã Mary Clarence, o que fazemos agora? — Eu disse para minha irmã que você pretendia fazer algo especial hoje e meio que dei a entender que esperava que ela viesse ao baile para ver o seu fiasco, já que eu não poderia testemunhar essa humilhação pessoalmente. — O quê?! — Foi o que eu disse. — Estou me sentindo humilhado. — Minha irmã adora um homem se humilhando, vai por mim. — Me recuso. — Bobo, eu dizer algo não quer dizer que você vai fazer. — Então poderia me explicar que raio se passa nessa cabeça? O que planejou? — Na verdade eu não planejei nada, mas pelo que pude atestar, Mary Anne realmente gosta de você. — Ela… gosta? — Gosta. Não sei o quanto ou de que maneira e nem porque se interessou por você, ou talvez eu saiba, mas isso não vem ao caso, mas, de alguma forma, ela gosta Dean. Mary gosta de você. — E o que devo fazer a respeito disso? — Faça os vagalumes dançarem. — piscou um olho. Ela me deixou no meio da pista sem entender porcaria nenhuma. Meus olhos a seguiram e a vi apontara cabeça em outra direção. A direção que me levava a garota dos meus sonhos. Quando a vi, não pensei em mais nada. Lá estava eu, sério, no meio do ginásio encarando a menina pela qual era apaixonado desde os treze anos. E ela me olhava de volta. Os cabelos loiros em um penteado inesquecível, o vestido branco adornando suas curvas e o batom vermelho preenchendo os lábios. Marilyn Monroe. Eu não fazia ideia… Tudo ainda parecia uma visão para mim e meu coração batia um pouco acelerado. Depois da última vez em que nos falamos, não fui capaz de encarar o rosto dela, de dizer que fui um idiota. Fiquei parado, vendo-a suspirar, talvez em decepção, já que meu corpo não se mexia. — Senhoras e senhores! — Uma voz nasalada emergiu do palco. — A próxima canção é dedicada a uma garota muito especial. A mais bonita do salão, diga-se de passagem. Um presente do garoto de jaqueta de couro e suéter estranho para a belíssima Marilyn Monroe! Ao ouvir isso, olhei para o palco e vi a maldita Deloris e sua roupa de freira usando a máscara do filme Pânico. Meu Deus. Alerta de assassina a solta! — Senhoras e senhores, — ela dizia com a mão sobre o nariz, por baixo da máscara, fazendo com que o som de sua voz soasse completamente fanho — garotos e garotas, peguem seus pares. É hora de fazermos os vagalumes dançarem! A introdução de “Kiss me” começou e no mesmo instante observei Mary me encarando com uma expressão de surpresa e emoção. Me vi andando até ela como se meus pés flutuassem. — Você… como sabia da música? — seus olhos brilhavam. Olhei para o palco, enquanto a freira maluca cantava algo que havia dedicado para a garota a minha frente e foi então que liguei os pontos. — Um serial killer me contou. — respondi Mary ficou confusa e só então me dei conta da asneira que havia dito. O bom é que ela mal prestava atenção em algo ao redor naquele minuto. Seu rosto demonstrava que estava amolecida, e como April havia dito, pude perceber que aquela menina de cabelos claros realmente não era indiferente a mim, pelo contrário. Nos olhamos por algum tempo antes de finalmente cortarmos toda a distância e aproximarmos nossos rostos um do outro. Afaguei sua bochecha e vi um sorriso nascer em seus lábios antes de beijá-la. E tudo isso enquanto os vagalumes dançavam. “Beije— me Sob o crepúsculo enevoado Conduza— me Pelo chão enluarado Tire— me para dançar Comece o baile e faça Os vaga— lumes dançarem Como faíscas de lua prateada Então, beije— me” Depois daquela noite, as coisas mudaram entre Mary e eu. Eu estava dando uma chance não apenas a ela, mas a mim mesmo e, francamente, eu era jovem demais para estar tão preocupado com meu futuro amoroso. Fazíamos coisas, apesar de nossas diferenças. Íamos ao cinema por mais que não gostássemos dos mesmos filmes. Também não gostávamos das mesmas músicas, mas era interessante o modo que minha “namorada” me olhava quando eu estava divagando sobre algo. Ela me observava, como se estivesse me admirando. Gostava de me apresentar para as pessoas que conhecia quando esbarrávamos em alguém. Ela agia como se eu fosse alguém extrovertido e acostumado a estar sendo visto por todo mundo. Era algo com o qual eu não estava adaptado, pois sempre tive certa vergonha de ser notado. Cara quieto, eu disse. No entanto, era isso, fazer um mero esforcinho ou não poder andar ao lado da minha “namorada…” Estávamos namorando mesmo, caramba. Me sentia por vezes deslocado, mas aos poucos comecei a conhecer o pessoal e até fiz alguns novos amigos. Até que ponto essa amizade era verdadeira nunca poderei afirmar. Enquanto isso, April e eu continuávamos nos encontrando da mesma maneira, mas confesso que infelizmente isso começou a diminuir com o passar do tempo. Ao passo que eu estava mais próximo da garota dos meus sonhos, ia me distanciando da minha antiga nova melhor amiga. Queria buscá-la, contar coisas, dizer que estava tudo bem e que sempre poderíamos continuar fazendo música. Contudo, não aconteceu dessa forma. A senhorita “cabelos escuros” nunca foi de facilitar as coisas. Era possível que nossa suposta amizade, inclusive, fosse algo inexistente para ela, algo que existia somente na minha cabeça. As vezes ela sumia e ficava dias sem aparecer na escola ou até mesmo em sua janela. Em outras vezes, tudo parecia nos conformes, só que diferente de alguma maneira. Eu já sabia que essa conduta, essa forma de agir, era algo dela. Entretanto, ainda assim, o cara que a tinha conhecido na sala de música no ano anterior tinha vontade de questionar o que fazia as coisas serem tão estranhas. Quando ela retornou depois do último sumiço, fui obrigado a questionar. — Seis dias. Quem morreu nesse período? — Minha alma, bú! — ela rebateu minha pergunta com um sorriso sarcástico. As vezes April era completamente divertida, até mesmo se o assunto fosse alguma desgraça. Humor negro, aquele corpo tinha de sobra. — Alma… sei. Vendeu ao diabo? — Não se vende o que não se tem, queridinho. — Tá ficando estranho. — O quê? — Esse papo. Você sempre transforma coisas coloridas e fofas em coisas obscuras. — Uh, eu posso ser uma bruxa disfarçada. — De agente secreta e assassina gótica para bruxa… boa. Me lembre de não acreditar em nada do que você diz. Ela riu. — Agora falando sério… — continuei — o que houve nesses dias? Ela desviou o olhar momentaneamente, como se soubesse o que responder, mas ao mesmo tempo não quisesse fazê-lo. A expressão pensativa, o cenho franzido, tudo indicando que ela estava decidindo o que dizer. — Estava doente, Dean. — Doente? — É. — Que tipo de doença? — Ah, nada demais. Doença normal, daquelas sem cura, saca? Arregalei meus olhos sentindo uma palpitação dentro de mim. Então a cretina riu de novo. — Não estou achando engraçado. — adverti — Vai por mim, ria enquanto podemos. — Que merda é essa? Tá falando sério? O que você tem? — Eu não posso te contar. — Seu semblante passou de divertido a consolador. — Não se preocupe, Dean, eu não vou morrer. Minha doença não está no corpo, ela mora aqui — apontou o indicador para a cabeça — e aqui. — Então apontou para o coração. — Você é maluca — Me vi dizendo em voz alta. — Eu nunca disse que não era. — Piscou em resposta. Depois disso acho que insisti pelo resto do dia, ou melhor, da semana, para saber o que estava acontecendo, mas sua resposta era sempre a mesma. Silêncio. Um silêncio tão profundo que chegava a ser perturbador. Sequer podia perguntar a Mary, pois sempre brigávamos quando o nome de April vinha à tona. Mary tinha um ciúme doentio da irmã e isso estava mais intenso naquela época, pois minha namorada havia reprovado nas provas e teria que repetir o ano. Algo não estava bem com ela e isso a deixava irritada, mas o bom é que agora estaríamos no mesmo ano, o que facilitava tudo, pois estaríamos mais perto e teríamos mais tempo juntos — mesmo que esse tempo fosse invadido pelas aulas que compartilhávamos com April. Realmente tinha algo estranho entre as duas e para que Mary e eu pudéssemos conviver de maneira tranquila, eu não falava mais do que o necessário a respeito de April. Meus questionamentos foram guardados para mim mesmo, esperando que algum dia minha vizinha assassina gótica os esclarecesse. Voltando a parte romântica da minha vida, eu e minha namorada (Marylinda) estávamos cada dia melhores. Eu estava me sentindo bem, de verdade. Era um adolescente fazendo coisas que adolescentes devem fazer, como se divertir e aproveitar as coisas. Lembrando que ficar em casa quando se deve sair não ajuda em nada. Essa parte foi um tanto difícil para mim, já que sempre fui um pouco introvertido com relação aos outros, principalmente se
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