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PATTO, MHS - Psicologia e Ideologia - uma introdução crítica à Psicologia Escolar

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Prévia do material em texto

I MARIA HELENA SOUZA PATTO
PSICOLOGIA E IDEOLOGIA
(uma introduçao crítictt à psicologia escolar)
T. A. QUEIROZ, EDITOR
São Paulo
Copa:
Depto. de Arte da TAe
11 ediçâo - 198 1
l1 reimpressâo - 1987
C I P-Brusil. Cotaloeaçôo-na-Pubt icdçAo
Câdara B,atileio do Livto_ SP
Paro, Mâriâ Helcn! §ousa.
P54tp Psicoloris ê ideôlogia i una int.oduçao qíiic! À psicôlosia
lscolrr / Maris Helens Souza PÍllo. - são Prulo : T. A. Queüôz.tqa4
(Biblioreca de psicoloah e psicanálisc ! v. J)
Bibliografi!.
I Àntropolosia educscion.l 2 Pesquiso educaciôíâl L
Psicologia Brasil 4. Psicolog,a educacionâl 5. sôciôlôsi, edu
cocional 6. Sociolo3ia educ6cion0l - Brssil I Tnulo.
cDD.f7o,5
li8 ?3,
170 l909al
8l-209a 
,- ,?o 7a
ln.lices pan catúlaQ sistedátito:
I Brasil : Es.ola e sociedade 170 l909al
2 arasil : Psicolo8ia lto gal
I Educação c culiurâ 170 19
4 Edücação c dodin!ção cultural 170 te
t Escola c sociedrd. lio 19
o Pcsqur\J !Ju!a(ional r70 rb
7 Psicologia escolar 170 15
Proibida a repmdução
mesmo parclal, ê por
qualquêr procêsso, sem
autorlzaçâo oxpr€Bsa do
odltor
tsBN 85-85008-12-l
Direitos desta edição reservados
T. A. QUEIROZ, EDITOR, LTDA.
Rua foaquim Floriano, 733 - 4."04534 São Paulo, SP
\
l
!
SUMÁRIO
A psicologia entre logos cruzados (Ecléa Bosi) .. . . XI
Prelticio .
INTRODUÇÃO
I - RAÍZESr A RELAÇÃO ESCOLA-SOCTEDADE ...........1. Sociedade e educação em Durkheim: um esboço . .
2. Liberalismo e ensino
3. Sociedade e educação em Althusser: a escola como
aparelho ideológico do Estado
II - ESCOLA, SOCIEDADE E PSICOI,OGÍA ESCOLAR NOBRASIL
t. O Estado Novo e o ensino ..
2. Desenvolvimentismo, imperialismo e ensino ......
3. Convergências: história do Brasil e história da psi-
cologia no Brasil . .
I - A CONSTtTUtÇÃO DA PSICOLOGIA CrFNTÍr'rCAl. Ciência e ideologia: uma distinção fundamental . -
2. Um pouco de história
3. Um exemplo concreto: a psicologia escolar ......
1
5
16
17
22
32
55
55
59
74
77
96
IV .._ PSICOLOCIA E CLASSES SUBALTERNAS . ,....,,,.,. 113
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
A psicologia da carência çultural: psicologia da po-
breza ou pobreza da psicologia?
Os programas de educação compensatória . . .. . .
A sociologia da "marginalização" social: do princí-
pio da integração ao princípio da contradiçáo . . . .
o mito dâ deficiência de linguagem
Modarças sonoras .
Autoridade pedagógica e psicologia
Características psicológicas do oprimido: algumas
versôes alternativas :..
113 ,í
117
120
126
135
140
144
1987
Impresso no Brasil
V - DA ADESÃO À TRANSFORMAÇÃO: CAMINHOS ....,. 1601. Uma pesquisa ..... ......... 160
2. Duas propostâs alternativas: a extensão do atendi-
mento psicanalítico e a psicologia institucional . .. 187
5. Um passo além: a consciência da exclusão ...... 199
Relerências biblogrólicas ........ 211
Anexo (Roteio de Questionário - Psicólogo escolar) 217lndice de nomea . .. .. .. 225
A PSICOLOGIA ENTRE FOGOS CRUZADOS
Ecléq Bosi
Antes de mais nada, e paru lembrar o tempo todo: Maria
Helena Souza Patto é uma valenle trabalhadora intelectual que
acr€ditâ na Undécima Tesa dc Marx sobre Feuerbaoh: "Os filósofos
até agora se limitaram a interpretar o mundo; cabe-nos transfor-
má1o." Dessa proposição nascem inúmeras perguntas, das quais
a mais honesta e incontornável é esta: o que fazer?
Desta vez é a psicologia e, com maior ênfase, a psicologia es-
colar, que se empenham no grande desafio: como voltar as costas,
estrategicamente, para as teorias cinzentas do velho funcionalismo
e para as hipóteses sombrias da "carência cultural"? E como atacar
de frente os contextos vivos onde se dá (ou não se dá) historica-
mente o processo de aprendizado de valorcs antigos e novos?
A questão ético-política, que é urgentc em Maria Hclena Souza
Patto, sobredetermina cada uma dl-- suas opçõcs de pcsquisa e de
leitura teórica. A práxis move não só o primciro passo do estudioso
que vai sondar no campo os substtatos geológicos do cotidiano
pobre. como também o geslo da reílexão sobre o sentido histórico
da própria ciência.
A práxis leva pelas suas mãos duras e gcnerosas tânto a pes'
quisadora quanto a cnsaísta qüe nasceu com cla, pois ambas se
sabenr penetradas das mcsmas angústias e das mesmas precárias
esperanças.
O novo ângulo de visão altera muitas perspectiYas. A rotação
dos olhos explica o caráter demolidor dos capítulos iniciais da obra,
onde há páginas de fogo ateadas contrâ o método positivista, supos-
tamente neutro, da psicologia social francesa, ou contrã as técnicâs
reificadoras da psicologia funcional americana, cega e surda para
as condiçóes sociais concretas dos seus "sujeitos", melhor dizendo,
"vítimas". Não é por mero âcaso que os conceitos de "carência
cultural" e de "marginalização social", produzidos pela ciência
contemporânea, se tenham revelado 
- 
aliás, a curto prâzo 
- 
for-
mações verbais puramente ideológicas. Elaborados de maneira abs-
trata, "neutra" (isto é, longe e acima da práxis), esscs conceitos
confirmaram o que já alguns críticos mârxistas vêm denunciando:
a incapacidade dos métodos positiyistas e funcionalistas comPreen'
derem, por dentro, o fenômeno da contradição social.
){ll 
- 
Psicoloqfu e ideologiu
Desvendar a face ideológica nua e crua de certas doutrinas
psicológicas e educacionais é um dos alvos prediletos dâ Autora,
Lastreada às vezes pelo discurso bem travado de Altl.russer e de
Bourdieu, no qual as instâncias escolares entram como elos do
aparelho ideológico dc Estado, a tese de Maria Helena faz o pro-
cesso implacável dc toda instituição de ensino que vise a Íepro-
duzir a divisão do trabalho, viga mestra do capitalismo industrial
e da tecnocracia que o rege.
As relações de sentido, que a cultura escolar continuamente
propõe, são quase sempre uma sutil modalidade das relações de
força. E a Escola, por si mesma inculcadora de idéias e valores,
pode transformar-sÇ em órgáo controlador na medida em que toma
por auxiliar de suas funções a Psicologia Escolar, ou uma certa
Psicologia Escolar. Maria Hclena se vê diante de um monstro bié.
falo, psicopedagógico, que prctende orientar, motivar ou corrigir,
se necessário, modos de ser e modos de aparecer da criança que
estuda. A prática do psicólogo escolar pode correr todos os perigos
de uma ciência que. embora sc diga imparcial, acaba se revelando
parte interessada de um pesado sistema de conformismo social.
Traz nas suas origens (os testes psicométricos de Galton e de Simon-
Binet) o vício positivista de medir, prever, ajuizar e controlar os
gestos e os signos da criança-aluno.
Abre-sc, a esta altura, um cspaço teórico para discutir a função
"integradora" das várias terâpias educacionais no aconselhamento
do educando. E com isso está instaurado o processo à psicologia
escolar.
Nascida e crescida sob a égide oficial de uma ideologia deter-
minista e antidialética, a psicologia escolar mârcou pâsso anos a
fio, repetindo, talvez sem o saber, os chavões da ideologia burguesa
ocidental durante toda a prirleira m€tade do século XX. A sovada
noção dc Ql (Quociente de Inteligência) triunfou na academia e
daí passou a lugar-comum nas revistas do grande público e em
todas as instâncias de comunicação em que a cultura é diluída e
manipulada para uso dos incautos. Racistas c elitistas de vário
naipe ou simplcs aplicadores mecânicos do famigerado teste lan-
garam máo dessa e de outras tabelas. E lá se foram inferir a baixa
cota de talento que o destino cego teria reservado a negros e a
índios, a mestiços e a migrant s, a lavradores e a subproletários do
campo e da cidade.
A psicologia da aprendizagem ganhava um pseudo-rigor cujo
significado real era perder em acuidade antropológica Para avaliar
diferenças sociais e culturais efetivas.
Dos pesos e medidas dos anos 40 e 50 para as noções de
carência culturql, código restrito e mareirutlizaçAo o passo não era
Aprcsentdçdo 
- 
XIII
tão grande, e os cientistas sociais da década de 60 detam-no sem
hesitar. Veja o leitor, a propósito, um dos rnomentos mais ricos
deste ensaio: o capítulo " Psicologia e classes subalternas".
Creioque a tese de Maria Helena Souza Patto vem dizet que
as coisas podem mudar e que já estão mudando. Sem dúvida, o
trabalho interrlisciplinar foi e é a maior alavanca da transformação
em tennos de pôr em crise as certczas ossilicadas das regiões cien-
tíficas particularcs. O realismo dialético de Horkheimer e Adorno
empreendeu, já nos anos 40, a gigantesca tarefa de abalar, com as
armas conjugadas de Marx e de Freud, os alicerces da psicologia
do "caráter nacional". Essa ideologia turvava as interpretâções de
tantos estudiosos alcmães e norte-americanos antes da primeira
guerra mundial. Mais recentemente, a teoria da "dependência" es-
Úutural âjudou, de fato, a virar a mesa do funcionalismo e a repor
na pauta das ciôncias humanas as rclações de força e as relações
simbólicas vigentes nos países do Tcrceiro Mundo.
E chegando rrrais perto do nosso tema: há uma pedagogia do
oprimido, de Paulo Freire; há uma psicoterapia do explorado, de
Alfredo Moffatt. Por que só a Psicologia Escolar se manteria ausente
e silenciosa? Maria Helena fez ouvir o seu nõo. Sou-lhe grata por
isso.
Maria llclena, temerária, vocô não temeu o risco dos lugates
tão disÍantes das salas da academia. Ao contrário, você foi ao en-
contro deles. E foi a partir deles que se armou a suâ visão crítica
da psicologia moderna.
Este livro é mais que uma tese, é a radiografia de uma procuta.
É a busca, às vezes insofrida, daqueJe espaço quente onde o psicó-
logo cruze com o crítico socíal, o educador se encontre com o mili-
tanto político, o terapeutâ aperte âs mãos do líder sindical ou da
animadora de comunidade.
Urna teoria nova há de nascer no corâção da encruzilhada,
pois é esse ponto vital e perigoso que a imaginação popular elege
para dispor suas flores, acender suas velas e despachar para o
incerto futuro os objetos pobres e sagrados da sua liturgia de medos
e necessidades,
I
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i
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f
PREFÁCIO
Este trabalho é, acima de tudo, um depoimento. É o rclato do
início de uma trajetória profissional difícil, quc lem suas râr7-Ês na
tradição positivista dos cursos brasileiros de lormação dc psicó-
logos: nos laboratórios de psicologia animal e de mensuração psi-
cofísica e psicológica de seres humanos, nos contextos terapôuticos
onde o objetivo, queiramos ou não, é a remoção de co,rpol tamentos
disfuncionais, nos projetos de pesquisa onde os chamados "sujeitos"
não passam de objetos, observados e medidos em situações supos-
tamente assépticas, neutras, objetivas.
A percepção de que nos formamos técnicos da coneçâo
"desvios", da harmonização de " desequilíbrios ", da resolução
"crises", da exclusão dos que resistem à norma e, portanto. d2l con-
servação de uma determinada ordem social, é igtralmentc difícil c
lenta, como o é a consciência de que esta formação só pode- ocorrer
no marco de uma determinada concepção de homcm, de socicclade
e de ciência. Os homens reais nos são apresentados como o [Io-
mem, entidade abstrata e ahistórica; as socicdades de classcs nos
chegam como Sociedade, entidade igualmente abstl'ata. harmônica,
que infelizmente passa por crises rnas quc não é conlraditór'ia cm
sua essência, que paira acima e alóm dos l.romcns c à qt:al estes
têm que se aclaptar, basicamente da mesma lorma como os lrrjmais
se adaptam aos seus ambientes naturais. Neste çontexto, àr psicolo-
gia cabe decifrar, guiada pelo princípio da identidade, as leis que
regem a adaptação humana ao seu ambiente sociaJ (leia-sc natural).
Mas, para merecer o sl«1us dc ciência faz-sc imprescindívcl que as
operações produtoras do conhecimento se baseiem na quantificação
e que o pesquisador mantenha-se afastado das questócs denominadas
políticas, supostaments fora de sua alçada. Aprendetnos quc "o
cientista é sobretudo um neutro".
Esta visão predominante dos homens, das sociedades e das
ciências humanas não sofre qualquer soluçAo de çontinuidade
quando a psicologia se vôlta pâra o estudo da mjséria e dos miç-
ráveis numa sociedade de classes. Ao contrário, quando elabora â
teoria da carência, deficiência ou marginalização cultural, a psico-
logia põe à mostra todos os seus pressupostos conservadores. Com
ela aprendemos que "o brasileiro (leia-se as classes populâres) é
sobretudo um fraco", que precisa do nosso auxílio técnico para
redimir-se. lj
de
de
!
2- Psicologia e ideologkt
Durante alguns anos fui porta-voz dessa psicologia que encon-
trou grand€ receptividade entre psicólogos. e educadores. Afinal, a
versão funcionalista norte-americana dos problemas escolares e
sociais dos setores "marginalizados " das classes trabalhadoras faz
muito sentido para quem se forma, tanto na escola como fora dela,
mergulhado nas concepções dominantes sobre o individualismo, a
democracia, as diferenças individuais, o culto e o inculto, o normal
e o patológico, a meritoiracia e o papel preponderante da escola-
rização na promoção da igualdade entre os homens.
Porque é sobretudo a sistematização do modo como a vida
social aparece às classes dominântes (e, por imposição, também às
classes dominadas, em certa medida) que a psicologia, em geral, e
a psicologia da pobreza, em particular, articulam um discurso extre-
mamente convincente e competente, como sugere Marilena Chauí.
Nelas, a visão do mundo que elaboramos durante to<lo um
processo de socialização presidido por idéias ideológicas encontra
sua legitimação; afinal de contaE é preciso não esquecer que, numa
sociedade de classes, a ciência é gerada num lugar de onde se fala
com a autoridade de quem pretensamente detém todo o saber -as universidades.
Destituídos dc um instrumental que nos permita a críliça ra-
dical de nossos pressupostos e de nossa ação, acabamos por nos
dedicar a uma prática profissional adaptativa e paternalista quando
nos voltamos para as classes subalternas. Porém, se isso é verdade,
não é a verdade total e definitiva sobre a condição do psicólogo e
da psicologia; caso contrário, estaríamos até hoje e para scmpre
disseminando a teoria da carênciâ cultural.
É impossível refazer todos os passos da transformação. Certa-
mente, a leitura árdua e paciente de autores inquietos e inquietan-
tes {izeram uma parte. Não se 1ê, não se ouve impassivelmente Karl
Marx, Henri Lefàbvre, Franco Basaglia, Louis Althusser, Paulo
Freire, fosé de Souza Martins, Ecléa Bosi, Carlos Rodrigues Bran-
dão, MaÍilena Chauí, Maria da Conceição Tavares. Não se vive,
sem marcas, anos e anos de uma conjuntura política marcada pela
repressão. Não se vive impassivelmente, alheio às desigualdades
sociais, sobretudo quando estas são flagrantes, como no caso bra-
sileiro, nem ao antagonismo que se verifica entre a "realidade" da
qual fala a psicologia da carência cultural e a realidade mesma:
quando uma criança favelada, malsucedida na escola de seu bairro,
supostamente por não ter as habilidades psicomotoras necessárias
à aprendizagem da leitura e da escrita, faz uma pipa ou joga
bolinha de gude diante de nossos olhos, nossas convicções sobre
sua incapacidade voltâm para casa irremediavelmente abaladas.
&
prelócio 3
Juntas, teoria e prática prepararam dialeticamente o momento da
dúvida.
Paytindo da crítica da psicologia ínstrumental (do conheci-
mento psicológico como dimensão da consciência necessária da
sociedade, isto é, da consciência das classes dominantes), este tra-
balho pretende colaborâr na elaboração permanente de uma psico-
logia crítica (de um conhecimento psicológico enquanto dimensão
da consciência possível da sociedade, ou seja, da consciência das
classes exploradas), capaz de situar historicâmente seu próprio co-
nhecimento, seus compromissos e suas possibilidades de transfor-
mação social. À psicologia como técnica, comprometida com uma
classe social específica 
- 
a dominante, matcrial e espiritualmente
- 
é preciso opor uma psicologia que, embora localizando especia-
lizadamente os processos psíquicos, não perca de vista a totalidade
social concreta que lhes dá sentido. Nestâ perspectiva, fazer psico-
logia bontinua sendo um ato político como sempre foi, mas agora
um ato político comprometidocom os âgentcs da transformaçào
da estrutura social e não mais com os interessados pelâ sua con-
servaÇão.
Como bem o mostraram os proÍessorcs integrantes da banca
que examinou gste texto enquanto tese de doutoranentoJ apresen-
tada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo em
1981,* ele contém lacunas e mal-entendidos, carece de unidade.
O método dialético de análise e exposiÇão ficou de fora somo modo
de pensar os problemas levantados; a totalidade social nele com-
parece em sua versão não dialótica, em sua concepção estrutura-
lista; a ênfase no papel reprodutivo dos aparelhos icleológicos
de Estado, acabou por dar um peso exoessivo aos efcitos mante-
nedores das práticas cscolares e da acão da psicologia na escola
(embora não se possa minimizá-los), em detrimento dos efeitos
transformadores destas mesmas práticas; enfim, a marca althusse-
riana é nítida. Numa linguagem bastante em moda entre os teóricos
da educação no Brasil, a crítica das concepçõcs tradicionais Íuncio-
nalistas sobre as relações entre escola e sociedade dc classes talvez
tenha sido feita, mas a crítica da crítica não. Gramsci poderia ter
salvo a situação, não fosse visceral a influência positivista em nosso
modo de pensar que quase nos impossibilita de conceber dialeti-
camente a psicologia e a vida humana. Neste sentido, "o feitiço
virou contra o feiticeiro", e um tgxto que aparentemente fala de
(*) Professores doutores Ecléa Bosi (orientadora), José de Souza Martins,
Dennêval Saviani, Sylvia Lcset de Mello e Ana Maria de Almeida,
aos quais sou imensamente grata.
4 
- 
Psícologia e icleologia
fora sobre as diíiculdades com que os psicólogos se defrontam na
compreensão da realidade acabou sendo um exemplo vivo destas
dificuldades.
Mesmo assim, se as questões levantadas. sc as críticas à psi-
cologia instrumental, se a proposla de abertura do pcnsamento do
psicólogo para além do estrita e rôstritamente psicológico, se o
alerta no sentido de mostrar-lhe a importância de fundar sua ação
no saber gerado no âmbito das demais ciências humanas e na co-
participaçáo das classes populares lornadas sujcitos do conheci-
mento seryirem para sensibilizar os psicólogos para a necessidade
de repensar e reÍazet a sua ciência, esta publicação, ainda que
ambígua e a meio caminho, encontrará uma razão de ser, l,eyar
âdiante a tarefa aqui esboçada é, afinal, um desafio qrrc sc coloca
a todos que estejam tentando trazer para o centro de suas vidas as
palavras de Berthold Brecht: "a única finalidade da ciência está
em aliviar a miséria da existência humana".
'" Mario Helena Souza Pafio
Târbató, janeiro de 1982
INTRODUCÃO
Nos últimos cinco anos a psicologia escolar, cnquanto área de
aplicação do conhecimento acumulado pela oiência psicológica,
recebeu considerável impulso cm São Paulo. Portanto, se há pouco
tempo o mercado de trabalho parâ o psicólogo desejoso de tra-
balhar num contexto escolar era muito restrito ou praticamente
in€xistente, hoje sua ausênçia na rede de ensino público paulis-
tano já nâo é tão flagrantc. Assim é que, rum levantamento
que realizamos durante o ano de 1977. .junto à Scção de Psico-
logia CIínica do DepartamentD dc Assistênçia Escolar da Prefei-
tura Mr:nicipal de São Paulo. ptrdcmos verificar que cerca de 70
psicólogos foram contratados nos últimos anos para exercerem a
ftrnção de psicólogos escolarcs, busoando o cor]fexto para sua
ação não mais nas clínícas dc atendimcnto à popuJação escolar
da rede municipal de ensino, mas nas escolas que integram a rede
pública de ensino de primeiro grau. Mais do quc isto, além de sua
presença rnais significativa em te rmos quantitativos. existia uma
preocupação entre os çoordenadores deste grupo dc ptofissionais
no sentido de imprimir outro lumo à atuação do psicólogo escolar,
para além dos limites impostos pclo atcndinrento ntrrna linha tradi-
cional de diagnóstico e tratanento das dificuldades de aprcndiza-
gem. Coerente com esta preocupação, a Associação dos Psicólogos
da Prefeitura de São Paulo (entidade recém organizada) promoveu
o 1 .' Ciclo de Debates sobre o AÍerdimento Psicológico a Escola-
res, em julho dc 1978.
Embora não disponhamos de dados que confirmem nossa im-
pressão, acreditamos que o quadro diâgnóstico da profissão de
psicólogo êlaborâdo por Sylvia Leser de Mello em 1969 (Mello,
1975) provâvelmente não se mantém nas mesmas proporções re-
gistradas nâquela época. Segundo csses dados, cerca de 75o/o das
atividades profissionais dos psicólogos formados nas três facul-
dades paulistanas que ofereciam cursos de graduação em psico-
logia concentravam-se nas áreas de ensino superior e da clínica
- 
praticada principalmente em consultórios particulares. A psi-
cologia escolar estava praticamente ausente do mercado de trabalho
para o psicólogo paulista, absorvendo cerca de l5dlo das expe-
riências profissionais dos formados pela FFCL de São Bento
(N:15), 13o/o d,as experiências de trabalho dos formados pela
FFCL Sedes Sapientiae (N:9) e cerca de 60lo das ocupações exer-
cidas, depois de formados, pelos psicólogos que haviam cursado a
6 - Psicologia e icleologia
Universidade de Sáo Paulo. Estes dados levaram a autora a per-
guntar: "por que os psicólogos estão ausentes da maior rede de
pr€stação de serviços públicos à comunidade?" (p. 52).
Decorrido um espaço de tempc suficientcmcnte longo para a
ocorrência de mudanças no panorama da demanda de serviços num
país do Terceiro Mundo em rápida expansão industrial e tecnoló-
gica, a pergunta quc nos ocupa e preoÇupâ na atualidade assume
uma forma diversa daquela íornrulada por Mello há cerca de dez
anos; anirnados, sem dúvida, com ;ssa rápida expansão de uma
área da psicologia aplicada na qual acrcditamos que o psicólogo
virtualmente tem mais possibilidades rle vir a exercer um papel
social abrangedor e significativo, nossa reação diantc desse fato
é de apreensão. É esta atitude diante do crcscimento inédito desse
segmento do mercado de trabalho que nos lcva a indagar: por que
os psicólogos cotneçam a se lazer presefiles na maior rede de pres-
taçdo cle seryiços públicos à comunidade?
Os conhecedores da histoda da psicologia no Brasil, porque
dela participaram ou porquc a pesquisaram, certamente discorda-
rão da afirmação que acabarnos dc fazer, segundo a qual os psicó-
logos conrcçatn a se fazer prcsentcs na vílsta redc de ensino pú-
blico. Dados reunidos por Mello (1975) e Pcssotti (1976) atestam
quc a essôla e o ensi)]o já Iolarl crbjclo dc ir)ler.essc dos psicólogos
brasileiros; referem-se particulariltcnle irs qualro primciras décadas
deste século, quando represcntant!-s das (luírs vcrtcntes da psico-
logia 
- 
a médico-hospitalar e a çducacional 
- 
estiyeram voltados
para ptoblemas de aprcndizagem c de rc-ndiÍDcnto cscolar. É o caso.
por exemplo, da criação no llio dc faneilo, em 1906, de um labo-
ratório de Psicologia Pedagógica e da irauguração, en1 1914, do
Gabinete de Psicologia Científioa na Ilscola Normal Sooundárja de
São Paulo, sob a dircção do Prof. Ugo Pizzoii, e detlicado a "ex-
perimentos de psicologia escôlar" (c[. prrblicação da Escola Nor-
mal Secundáriâ, 1914, p. 19). É o caso, ainda, da existência, na
década de vinte, de um Serviço de Inspeção Médico-Escolar, em
Sío Paulo, junto ao qual o Dr. Durval Marcondes criou, em 1958,
a primeira Clínica de Orientação Infantil. Neste contexto, as ati-
vidades desenvolvidas no laboratório do Ins.tituto Caetano de Cam-
pos, em São Paulo, dando continrridade à linha de ação iniciada
na Escola Normal Secundária, não podeliam deixar de ser mencio-
nadas, mesmo porque continuâm vivas na memória e na ação pro-
fissional de psicólogos que nele tiveram sua formação.
Assim, é mais do que justo afirmal que os psicólogos bra-
sileiros _^ em especial os paulistas e cariocas 
- 
já detiveram na
escola seu foco de atenção; porém, é preciso indagar: em que ter-
InlroduçAo 
- 
7
mos? Fazendo realmente psiaologia escolar ou psicologia experi
mental com crianças cm idade escolar, e contribuindo, assim, para
a constituição da psicologiaeducacional mas não da psicologia
escolar em nosso meio? Fazendo psicologia escolar ou consultório
psicológico nas escolas. bascados num modelo médiço de atuaçío?
A resposta a estas pelgurltâs nos impõe duas digressões: uma,
sobre a distinção quc tradicionalmente é feita entre psicologia es-
colar e psicologia edrtcacional, e outra sobre as características dos
serviços prestados, até um passado recente, pela psicologia à edu-
cação escolar.
Quanto à maneira mais usual de definir a psicologia da edu-
cação e contrapô-la à psicologia escolar, Mello (1975) nos informa
que "a Psicologia oferece à educação duas qualidades de contri-
buição: uma cientíiica, que consiste nos conhecimentos sobre pro-
blemas que interessam à educação; a outra, que chamaríamos "pro-
fissional", e que consiste na introdução do psicólogo na escola,
como técnico intercssado no dcsenrolar do processo educacional.
À primeira reoebe, co,rumentL- e nomc de psicologia educacional,
mas não se trata de uma clisciplina psicológica com objeto e pro-
blemas próprios. Essa é uma designação gcnórica que teúne aque-
les campos especiais dc investigacão da ciência psicológica. taís
como os estudos do desclrvolvillrento mental, das diferenças indi-
viduais, da aprendizagem, etc., isto é, todos os conhecimentos PSi-
cológicos quc, de alguma forma, possam trazcr qualgusr contribui-
çáo para a eficiícia do proccsso cducativo. À segunda chamamos
psicologia escolar porque é uma área de aplicação da Psicologia
voltada para a solução de problemas cscolarcs concretos, que Pos-
sam perturbar os objeÍjvos educacionais." (p. 53-54) Bardon e Ben-
nett (1975) tambóm colocam csta distinção nos mesmos termos:
"ConÍunde-se amiúde PsicoJogia da Educação com Psicologia Esco-
lar pelo fato de ambas dirigirem scus interesses para a escola, o
seu pessoal e os seus alunos. Entrctanto, a Psicologia da Educa-
ção, pelo menos nos Estados Unidos, não é uma Psicologia Apli-
cada no mesmo sentido da Psicologia Escolar ou da Clinica. O
objeto de estudo da Psicologia da Educação refere-se às caracterís-
ticas de estudantes e professores e explora tópicos como a aprendi-
zagem, a motivação, o reforço e a transferência, assim como as
condições que afetam todos esses fatores. Tipicamente, o Psicólogo
educacional realiza pesquisas sobre as inúmeras variáveis suscetí-
veis de influenciar a aprendizagem, com o rigoroso controle de
elementos estranhos às variáveis que estiverem sendo investiga-
das. . . . A pesquisa em Psicologia da Educação pode ser realizada
muito mais cuidadosâmente no laboratório que na escola."
(p. 18-19)
8 
- 
Psícologia e ideologia
Embora não concordemos com a clássica e nefasta separaçào
entre teoria e prática, entre pcnsamcnto e ação, entre ciênciá e
técnica, entre os que produzem conheeirnento ê os que meramente
o aplicam, contida nestas deÍinições, ncm com a' definição de
psicologia escolar que veiculam, é a ela que estamos nos reÍerindo
quando perguntamos sobre a natureza do trabalho a que se dedi-
caram os primeiros psicólogos voltados para o ensino. Voltaremos
à definição da psicologia escolar quando nos detivermos na análise
rnais- aprofundada do papel real e do pâpel possível do psicólogo
escolar numa sociedade de classes.
Em busca de elementos que nos permitam caracterizar os
tipos dc contribuição da psicologia à escola, no Brasil, tomemos
três momentos significativos da hjstória da psicologia em São paulo,
nos quais os psicólogos estiyeram voltados para a educação for-
mal: a instalação e funcionamcnto do Laboratório de psicologia
Pedagógica, em 1914, junro à Esccla Normal Secundária de São
Paulo; a criação, em 1938, da Clínica de Oricntação Infantil junto
à Seção de Higiene Mer.rtal do"antigo Scrviço dc Saúde Escolar, c
o surgimento do Setor dc Psicologia Clínica cla Seção -fécnico-Edu_
cacional do Departamento dc Educação, Assistência e Recrcio da
Secretaria de Educação da Prefeitura Municipal de São paulo,
em 1954.
1. O Lqboratórío de Pedag<.tgiu Experimental da EscoLa Normo!
Secunddria de São Paulo.
A análise de uma publicacão prcciosa leita pela Esc<.:la Normal
Secundária de São Paulo, datar-la de I914, nos permite perceber,
dc imediato, o tipo dc psicologia pcdagógica ou "psicologia esco-
lar" que se desenvolvia ncssa insliLuicão. Iti no plimeirõ artigo,"O futuro da pedagogia ó cientíÍico", de autoria do então clireiorl
da Escola Normal, Dr. Oscar Thompson, f ica nítid:,r a conccpção
de ciências humanas vigenlc c norteadora da prática cientí[ica, na
época, quando ele exalta "uma bela fasc da pcdagogia, que toma
o nome de científica pela organizaçâo que, pouco a pouco, se lhe
vai imprimindo" (p.3) c "tudo quanto há de grande na ciência
pedagógica e o subsídio valioso que lhe pode prestar a psicologia.,,
(P. 5) A importância dada à mêtodologia positivista é clara: "O
progrssso das ciências naturais repercute sobre a psicologia e lhe
imprime um vigoroso impulsc-,, [avorccendo desdc lôgo o úscimen-
to de conceitos anúlogos e mérodos semelhantes aos que se pratica-
Yam com êxito, segundo o pensamento científico de Bacon, no
campo das coisas de ordem marerial. Era o primeiro sopro dc vida
oa,psrcologia experimental, cujo pleno desenvolvimento, por umacolarloraçào mais imediata das ciéncias naturais, estava reservado
lntrodução 
- 
9
para o século XIX, em que às categorias mecânicas sucedem as
categorias biológícas e a psioologia de livresca que era, encontra
nos laboratórios, a partir de Wundt, um novo ambiente e um novo
método de trabalho." (p. 5, gÍifos nossos) Ao lado da menção a
Wundt, comparece Binet e seu gabinete de estudo cientifico da
criança. Valendo-se dos ensinamentos fundamentais não só da bio-
logia, mas também da sociologia e da psicologia, a pedagogia deve
voltar-se, segundo Thompson, para a consecução de uma pedagogia
científica que, em oposição à pedagogia dogmática do passado, co-
loque nas mãos dos professores recursos das ciências positivas e
lhe permita conhecer o edr-rcando sob o ponto de vista científico.
A sociologia é concebida como "a ciência que estuda a vida
dos animais, das crianças e dos selvagens, a história geral da hu-
manidade, os poemas e as biografias. Assim concebida, não passa
dc uma psicologia sociológica, que cstuda a psicologia da criança,
do animal, dos povos, das multidõcs, da linguagem, da literatura,
etc., mostrando como elas assumenr formas diversas na vida social
correspondentcs a diversos 'cstados da civilizaçáo'. A educaçào , . .
respeita em seus vários momÇntos c nír slla dinâmica as condiçõcs
especiais da civilização." (p. 14)
À psicologia, por sua vcz, cabc fornecct métodos e princípios
sobre os quais sc apóia a "arlc da educação"; o psicólogo forne-
cerá ao professcrr condições para rcalizar uma "análise anatômica"
da vida psíquica. A esÍq basta conhecer as "formações mais sim-
ples da existência psicológica; scnsâçõcs, idéias, sentimentos, ins-
tintos e atos voluntários"; e as "lcis fundamentais da atividade
psíquica, as suas quatro atitudes cssenciais: atenção e mcmória,
hábito c fadiga. Estas nocões seryir-lhe-ão de base para o conheci-
mento da vida psíquica complcxa: reprcsentativa, sentimental e
ativa. " (p. 12)
Para melhor cumprir com suas finalidades, a pedagogia neces-
sita de instrumentos dc medição que lhe permitam assimilar e apli-
car uma psicologia racional, positiva, científica. É em consonância
com este espírito que a 17 de setembro de 1914 inaugura-se o Ga-
binete de Psicologia Científica, montado e organizado, na Escola
Normal, sob a direção do professor itâliano Ugo Pizzoli, especial-
mente convidado para esse fim. São Paulo passava a contar, assim,
à maneira das principais escolas normais do mundo, com um ga-
binete para o estudo científico da criança, cquipado com signifi-
cativâ aparelhagem, desde a destinada à avaliagão somato-antropo-
lógica, estesiométrica, estesioscópica, até os materiais construídos
para permitir o exame psicológíco das funções mentais superiores.
10 
- 
Psicologia e i(leologia
É nesta linha psícoÍísica e psicométrica que sedesenvolvem os
trabalhos de pesquisa e as publicaçôes dos discípulos do Prof. Ugo
Pizzoli; atestam-no os trabalhos reunidos na publicação a que esta-
mos nos reportando. São alguns de seus títulos: "Contribuição para
os métodos de estudo do raciocínio nas crianças", "Notas sobre o
grafismo inlantil", " Expcriências sobre a memória cinética nas
crianças", "Subsídjos para o cstudo da memória", "O raciocínio
nas crianças", "Contribuição experinental à classificação dos tipos
intelectuais", "Notas sobre a associação das idéias". Estamos diante,
portanto, de uma prática de laboratório e dc gabinete inspirada
em Wundt e Binet, que corresponde, com precisão, às caracterís-
ticas da clássica psicologia cducacional.l
Estes dados vêm mostrar que a dependência cultural brasileira
em rclação aos países "oivilizados" é um fato inconteste. Mudam
os modclos, permaneoe o fato: nessa época, o modelo é o europeu.
Mais tarde, será o norte-americano, nstalado solidamente cm nosso
presente. E a psicologia e a e{rcação não fugiram à regra.
2. As clínicas de orientação ülanlíl da Secrelctriq da Eclucaçiro do
Estado de São Paulo e us clínícas psícológicas da Secretarict de
Educação clo Município dc São Paulo.
Integrânte do grupo de módicos-psicólogos que constituíram a
vertente médico-l.rospi talar da psicologia (segundo terninologia usa-
da por Pessotti (1975)), Durval Marcc.rndcs criott, ent 1938, r pri-
meira Clínica de Orientaçâo lrrfantil junto ao Sewiço de tnspeçao
Médioo-Escolar do Instituto dc Higicne dc São Paulo. Dilusor das
idéias de Freud em nosso rr.rcio,,iMe rcondcs imprimiu à sua acão
e à de seus colaboÍadorcs .lunto a essa instituição de prestação de
serviços à clientela infantil cscolar: uma linha nitidamer.rte clínica,
norteada sobretudo pelas aplicaçÓes diagnósticas e curalivas da dou-
trina freudiana.'Assim, ao contrário do que acontecia na Escola
Normal Secundária 
- 
onde PredoninaYam procedimentos psico-
técnicos conduzidos no Laboratório de Pedagogia ExPerimentâl -ao diagnóstico, baseado em testes do inteligência e técnicas proje-
tivas de personâlidade, seguia-se um atendimento psicoterapêutico
individualizado ao aprendiz, visto como portador de características
pessoais incompatíveis com a aprendizagem e o ajustamento es-
(1) É interessante registrar, a respeito das caractcrísticas da "psicologia es-
colar" nessa época, a referéncia dc O. Thompson aos "humildes e deser-
dados", para ieferir-se às crianças provenientes do povo (p. 6), anteci-
pqndo, assim, a preocupação otual com os "desprivilegiados" or, "caren-
tes culturais".
Introduçao 
- 
1l
colar. Assim, valendo-se dos ensinamentos da psicanálise de ma-
neira mais restrita do que as aplicações atuais do enfoque psicana-
lítico num âmbito escolar 
- 
das quais as propostas desenvolvidas
por Bleger (1966, 1975) c Bohoslavsky (i977) são exemplos signi-
ficativos as clínicas de orientação detinham-se sobretudo na in-
yestigação de problemas situados nos alunos (neurológicos, psico-
lógicos, fonoarrdiológicos, psiquiátricos), o que permite caracteri-
zálas como consultórios clínicos baseados num modelo médico de
atuação. A dinâmica institucional, a relação professor-aluno, os
métodos e conteúdos do ensino, enquanto dimensões inscritas num
todo social marcado por relações de poder, náo eram levados em
conta em suas atividades e reflexõcs. Em outras palavras, a escola,
seus proccdimentos e objetivos não eram objeto de questionamen-
to, nem mesmo enquanto variáveis que poderiam gerar problemas
de aprendizagem e de ajustamento. Cabia aos serviços terapêuticos
nas várias áreas levar a criança a adquirir condições de adequar-se
a exigências escolares não qucstionadas ou trabalhadas. A orienta-
ção dos professores cra feita com a finalidade precípua de obter sua
colaboração junlo às crianças-problema, Somente muitos anos mais
tarde 
- 
já na década de setenta 
- 
é que esse serviço, já reestru-
turado administrativamen te em outras bases, se dispõe a abandonar
a linha de atendimcnto esscncialmentc clínica, por não conseguir
atender à dcrnanda crcscsntc dc diagnóstico e lrâtamento de crian-
ças com problcrnas cle rendimcnto escolar. Portanto, durante cerca
de trinta anos os tócnicos quc atuaram nesse serviço 
- 
inicial-
mente não-psicólogos, dada a inexistência de cursos de graduação
em psicologia até 1958 
- 
se restringiram ao atendimento clínico;
nem por isso clcixaram de sentir, cada yez mais, a precariedade
dcssa forma de atcrdimento, definida principalmente em termos de
diíiculdade de acompanhamento dos professores c de atendimento
simultâneo a um grandc númcro de escolares.
A história das clínicas psicológicas da Prefcitura do Municí-
pio dc Sáo Paulo tem muitos pontos em comum com a das clínicas
de orientação do Estado. Em 1954, três educadoras de parques
infantis (Ruth Alvim, Maria lgnes Longhin e Ivone Khouri), duas
das quais educadoras sanitárias e uma recreacionista, preocupadas
com muitas crianças que freqüentavam os parques da capital e que
não recebiam o atendimento de que necessitavam e não se ajusta-
vam à escola, deram início a um trabalho visando a atender este
problema. Complementadas em sua formação pelo curso de espe-
cialização em Psicologia Clínica da PUC, começaram a atender âs
crianças com dificuldadcs escolares 
- 
quer a nível de aprendizagem,
quer a nivel de ajustamcnto 
- 
atrayés de psicodiagnóstico e ludo-
12 Psicolc.tgia e icleologia
terâpia. O Serviço de Higiene Mental do Estado, através de suas
clínicas de orientação infantil, já não podia absorver essas crian-
ças, pois enfrentava o problcma de superlotação. Assim, estas edu-
cadotas passaram a dcsenvolver suas atividades na própria sede do
Departamento de Assistência c Rccreio, mais tarde desmembrado
em dois: o Departamento de Educação lnlantil, encarregado dos
problemas educacionais dos parques infantis e o Departamento de
Assistência Escolar. Em 1956 este Departâmento foi ampliado para
poder atender às escolas municipais em suas oito séries de primeiro
grau. Diante da grande demanda, a Prefeitura construiu duas cli
nicas psicológicas: uma no Itaim e outra na Moóca, cujas ativida-
des principais giravam em torno de diagnóstico e tratamento de
distúrbios fonoaudiológicos, psicomotores e emocionais. Um traba-
tho realizado predominantemcnte nas escolas só começou a con-
cretizar-se a partir de 1975, o que motivou a ampliação da de-
manda de psicólogos a qr-le nos referimos.
lstes dados lcfet'cntcs às caraclerísticas d(j três serviços de
psicologia voltados para a cscõla c para o ensino nos permitem
ooncluir que até rcccntcmcntc a psicologin escolar, cnquanto psi-
cologia aplicada à çducacão cscolar, incxistiu na redc de ensino
público no Estado dÇ São Paulo,/A históriâ da psicologia escolar,
senso estrito, comcÇa a ser escrita a partir do início da década de
setenla, quando contcçaln a articular'-sc pcsquisas e debates que
preparariarr o surgimento clos projctos dc psicologia escolar pro-
priamente ditos, a nível cstadual c runicipal. O qul: tivemos até
entáo {oi, dc um laclo, o dcscnvolvinento da psicologia educacio-
nal 
- 
numa linha francanrentc cxperimental e psicofísica ini
ciado Çm 1914 c continuado a partir dc 1956 no laboratório de
psicologia da Cadcira cic Psicologia Dducacional da FFCL, no qual
podiam scr encontrados muitos dos aparelhos da antiga Escola
Normal Secundária dc São Paulo;r de outro, encontramos o que
poderíamos chamar de instalação de gabinetes de psicologia clínica
integrados por equipes multidisciplinares, com alguns poucos psi-
cólogos, que atuavam junto à rede de escolas públiqas da capital
paulistâ partindo do pressuposto básico de que os problemas de
aprendizagem c de ajustamento escolar se encontravam predomi-
nantemente ruo aprendiz.
(2) Nole-se que muitos dos atuais profcssores do Institüto de Psicologia da
USP, princip.rlmente do Departamcnto dc Psicologia da Aprendizagem,
do Desenvolvilücnto e da Personalidndc, pcrtenciam a essa Cadeira,
lTerdeira, via lnstituto Lle EducaÇão Caetano dc Campos, da ântigaEs-
cola Notmal de São Paulo, falo quc se reflete direiamente llos temas
e na nretodologiâ de suá prodlição científicâ. Veja, por exemplo, Àn-
gelini (1951, 1955); Aguirrc (1951): Almeida (1965).
IntroduÇão 
- 
73
A partir desta visita rápida ao passado da psicologia aplicada
à educação, algumas perguntas se nos impõem, em nome de sua
compreensão mais ampla enquânto fenômeno que ocorre numa so-
ciedade determinada, num momcnto determinado de sua história.
Em outras palavras, para que nosso objeto de estudo 
- 
a psicologia
esoolar possa ser conhecido, faz-se necessário mergulháJo em
suas determinações econômicas, sociais e políticas, na busca de
respostas às seguintes questões: por que os psicólogos começam a
lazer-se maís presentes na maior rede de servíços públicos à comu-
nidade? A que Jins ou a quem estarão servindo? Através de que
tipo de concepção de cíência e de que tttividades instrumentais
amattudcís .lestq concelJcão? Suas prólicqs e concepções e$tAo em
continuíd<tde ou em ruptura com a dos psicótogos que, no passado,
atu.tram sobre a população escolar?
O esclarccimcnto destas questões implica várias tarefas:
I Por sc tr.rtal de unra área de aplicação da psicologia vol-
tada cspecificamentc pala a educação fomal e exercida, na maioria
das vezes, em insti(uicõe:s escolares, não poderíamos deixar de nos
lcfelir :]s relaçócs entre cscola e sociedade, bem como à forma
qLrc assumem na sociedadc brasileira atual, pano de fundo neces-
siírio ii comprcensão clo papel desempenhado pelo psicólogo r.ra
escola.
2. Atravós dc trm trabalho de dissccoão dcssa área, tal como
ela se constituiu no decorrer de sua história, faz-se necessário pro-
curar definir seu sl.ll&s enquar.rto crência, Em termos mais concre-
tos, procurar caraoterizar, por meio desta análise, a natureza de
seu discurso teór'ico, tócnico e dc pesquisa. Em que medida esta-
mos diantc de um discurso ideológico ou pseudocientífico? Em
que medida se valc de conccitos, de dicotomias e dc classificações
do real que obscurecen-r, mais do que esclarecem, os fenômenos
por ela abrangidos?
3. Além da necessidade de nos determos na realidade esco-
lar, nossa experiência nesta área nos mostrou que o principal objeto
de estudo da psicologia educacional e de intervenção da psicologia
escolar tem sido, nos últimos quinze anos nos Estados Unidos, e
na última década, no llrasil, a chamada "carência cultural" e suas
implicações educacionais. Por isso, uma revisão das principais pu-
blicações sobre este tema torna-se imperativa, bem como seu con-
fronto oom um corpo conceitual e explicativo mais amplo, forne-
cido pela sociologia histórica e concreta das populações "marg!
nâis".
Esta leitura contextual do discurso da psicologia escolar nos
pei'nritirá caractcrizar o nível de consciência que o permeia e a
14 
- 
PsicoLogia e ideoLogíu
maneira ci.rmo essa consciência determina a ação do psicólogo es-
colar. Em suma, tal análise poderá fornecer dados que permitam
verificar a hipótese de quc os psicólo61os escolares, tal como os
profcsscres primários, mas num nívcl de sofisticaçáo cientificista
maior, têm sido veículos da ideologia dominante, estando, por-
tanto, en6lajados num processo de colaboração com a mânutençâo
do sistema social onde se inserem.
Os paralelismos possíveis entre a constituição da sociologia e
da psicologia cmpiristas não serão casuais se considerarmos que
ambas sÍo oiêrroias produzidas no bojo de uma mesma sociedade.
Portanto, muitas críticas atualmente feitas à sociologia possivel-
mente vall.ram para a psicologia. A psicologia escolar ó uma área
especializrda dc sonhecimcnto, na psicologia, tal como a sociologia
rural, por cxemplo, o é na sociologia. Assim, a análise crítica a que
Martins (1978) submcte a sociologia tural, trazendo à luz suas
arnbigüidades, podc oferecar um mapa à tarefa de identificar os
andaimcs que susttntam a psicologia çscolar.3
A análise da psicologia escolar propriamente dita, fazendo in-
cidir sobrc ela nossa reflexáo, [ar-se-á em dois níveis distintos mas
complcmentarcs:
a) o da bibliografia disponível em nosso meio relativa a esta área,
espccialmente dc uma publicação recente, ocorrida exatamente
no momento em quc a psicologia escolar começa a assumir uma
posiçllo dc mais dcstaque no mcrsado de trabalho; ncsta attá-
lise, buscaremos não só no dito mas no não dito, nos silênsios
(l) No ccntro da sociologia rural, Martils víti encontrar a noçiro de comu-
nidadc, unra catcgoria sociológica Ielevanle para â explicação do mundo
pré capilalista nras não para dar conta dos proce§sos no mtÍrdo capita-
lislâ P()riaDlo- iDst.rlada no cerne de sua tcoria encontra-se um conceito
pré-capitalista, mas dcvidamente secularizado e racionalizado, de mo-
do a satisfazer a uma necessidade de uma nova ordem social se auto_ex_
plicar de forma â se prcservar e perpetuâr. O conceito de anomia, por
êxemplo. base de una sociologia na qual "as incongruências e as ten-
sõcs, como as Ialências e as greYes, trâduzem_se no nível teórico
como allomaliâs" (Martins, 1978, p. 56), .< dcrivado deste conceito ambí'
guo dc comunidade. Henri Lefêbvrc (1970, cf. Maflins. 1978 p. 47)
õaracteriza este processo como resultado da necessidade que a sociedade
capitâlista tem de definir e redefinir categorias, através das quais
prôcura auto-interpretar-sc c nas quais busca fundamentos pala um
progri,ma polírico-de ordenaçáo social c de neutrâlizaçâo dfls tensóes
io.úi". A cstas redefinições Letàbvre dá o nome de "râptos ideológi-
cos", que scriam "a trâdlução de umâ noção segundo significaç6es quc
são esiranhas à sua extrâção original" (1970, cf. Marrins, op cir.,
p. 59). Quc raplos ideológicos â p'sicologic perpetrou? Que tepercus'
iões tiveram elcs nâ psicologia aplicada à escola?
Introdução 
- 
15
e nos'"ocos" desse discurso, os elementos qr.Íe permitam ca
racterizá-los;
b) o do discurso produzido por psicólogos escolares, ao responde-
rem a um qucstionário aberto (anexo 1). O grupo de sujeitos
constitui-se dc yinte psicólogos que atuam em escolas primá-
rias das rcdcs estadual e municipal de ensino, na cidade de
São Paulo.
Transformar a psicologia escolar em objeto de estudo pare-
ce-nos, portanto, um primeiro passo para instaurar enl seu âmbito
um exercício dc crítica que permita identificá-1a como psicologia
instrumental, dimensão da sonsciência necessária da sociedadc, e
transformír-la numa psicologia crítica, dimensão da consciência pos-
sível desta sociedade.
i
CAPÍTULO I
RAíZES: A RELACÃO ESCOLA-SOCIEDADE
À decisão de iniciar um ttabalho de psicologia com a lemá-
tica dc uma área da sociologia 
- 
a sociologia da educaçào 
-dcçorrc da impossibilidade de se discutir critiçamente a psicologia
escolar e o papel social do psicólogo fora do marco de uma con-
cepçao, igualnrenter crítica, das relações que se estabelecem entre
a educação escolar e a estrutura da sociedade na qual se insere a
prática cducativa.
A mancira de conceber as rolaçóes entre o processo educacio-
nal formal c a sociedade de classes não é coesa no pensamento
sociológico. Gouveia (1976), revendo a literatura recente a respeito
do papcl social da cscolâ nas sociedades indr.rstriais capitalistas, lo-
calizou basicanreDle duas concepções oposta§: segundo a primeira
dcstírs vcrsões, os rqsultados tlo processo educacional, especial-
mente os cognitivos (valores e atitudes), são humanamente positi-
vos c politicanenlc neutros c, portanto, desejáveis enquanto pro-
dutos do ensino. Assim, a escola é considerada uma instituicão
voltadur para a socialização dos inraturos. entendendo-se por esse
tcrmo ora um processo que crpõe o indivírluo ao pensamento
cicrrtíÍico, cnriquecc-lhc o acervo de informações e o leva assim,
a unra visão mais modcrna, mais racional ilo mundo", ora
como um processo de preparação "para a difícil transição do
círculo protegido da família para a esfera efetivamente mais neutra
do ttabalho c da profissão" (p. 16). Implícita nesta concepçáo do
pape) da escola enconÍra-se o crcnça na igualdâde de oportunida-
des, real ou possíve), nassociedades capitalistas. No outro extremo,
Gouvcia localiza os teóricos que denunciam resultados conclená-
veis do processo educativo; segundo eles, a escola cumpre um
papel ideologizantÇ, ou seja, através de uma imposição sutil, leva
os cducandos a adquirirem uma visão de mundo compatível conr
a manutenção da sociedade de classes; assim, ela está a servÍço dos
inlelesses dos grupos que, nesta formação social, monopolizam o
poder econôrnico, social, político e cultural.
Subjacentes â estas duas formas extremas de conceber o papel
social da educação escolar encontram-se as duas t€ndências teóri-
cas mais representativas do pensamento sociológico: de um lado,
o funcionalismo, que tem em Durkheim seu representante mais
importânte e como principio constitutivo a integraçAot de outro, o
matariolismo histórico formulado por Marx e continuado por outros
pensadores marxistâs e que tem como princípio constitutivo o prin-
A relação escola-socied.ads 
- 
17
cípio da controdiçdo (cf. Martins, 1977, ín Foracchi e Martins, op.
cil.. Introdução). Uma breve apresentação destas duas perspectivas,
"prodtrzidas por diferentes visões do mundo" (Martins, 1977. idem,
p. l) faz-se fundamental, neste momento, por duas razõcs: pri-
meiro, porque o psicólogo, dada a formação que, via de regra,
recebe nos cursos de psicologiâ, não suspeita da presença destas
duas versões do social no pensamento sociológico nem da impor-
tância de conhecê-las e contrapô-las; em segundo lugar, porque a
anrilisc crítica da ação do psicólogo escolar só poderá ser realizada
se rcfelida a estes quadros teóricos. Sem pretender aplesentâr uma
síntese que faça justiça à complexidade e à amplitude da obra
durkhciniiana e urarxista, ficaremos limitados àqueles aspectos
dcssas tcorias que mais diretamente digam respeito à relação es-
çola-sociedade.
1 Sociedaclc e educaçoo ern Durkheint: unt esboço
Nascido na França, Emile Durkheim (1858-1917) recebeu, se-
gundo cstudiosos de sua vida e obra, podeÍosas influências das
idóias de Herbert Spencer, filósofo inglês fundador da {ilosofia
evolucionista (1820-1g0i). Na leitura detida da obra de Spencer
plasrrou sua adesâo aos modclos biológicos que aplicou. mais tarde,
ntr análise das sociedades hunranas (cf. Gianotti, 1978). Teudo de-
dicado toda a sua vida ao desenvolvimento da sociologia cicr.rtífica,
Durkheim inscreveu profundas marcas nos rumos tomados pelo
pcnsamcnto sociológico ao justificar e realizar a sooiologia como
oiência objetiva e indutiva que tem como objeto de estudo uma
dimcnsão irrcdutível a outras e que transcende o individual c o
psicológico 
- 
a dimensão dos fatos sociais. Partindo do pressn-
posto de qui: as oiências humanas são da mesma natureza das
ciêDcias físicas e biológicas, enfâtizou a necessidade de utilizar, nr.r
estudo dos fatos sooiais, a mesma metodologia científica prescnte
ncssas ciências: a investigação das leis que regem os fatos, en-
quantc expressões precisas de relações estabelecidas empiricamente.
Instalou, assinr. a versão positivista de ciência no seio dos estudos
do homem em suas relações com os outros homens.
Através do conceito de solidariedâde, Durkheim estabelece
uma distinção básica entre dois tipos de agrupamentos sociais;
aliás, é na elaboração deste conceito que o modelo biológico, apren-
dido com Spencer, ingressa em sua concepção da vida social. Para
ele, a integração dos elementos que compõem um todo social pode
ser de dois tipos: a integração que resulta da solidariedade mecâ-
nica entre as partes e a que é produto da solidariedade orgânica
(Durkheim, 1895). A primeira caracteriza a coesão nos agrupâmen-
:l
I
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I
18 
- 
Psicologia e ideologia
tos sociais onde existe pouca diferenciação entre os participantes,
onde a se:lelhança eirtre eles, mais do que a diferença, leva-os a
constituit unra sociedade. Dois exemplos típicos de sociedades desta
natuÍeza seriam a horda e o clã. Neles está ausente a diferenciação
de funções, não existe a divisâo social do trabalho que ocorrerá,
mais tarde, na história da civilização.
Nas sociedades mais complexas, a integlação sc dá através da
complcmentaridade de diferentes funções, exercidas por diferentcs
jntegrantcs do todo social. Tais sociedades complexas funcionam,
scgundo Durkheim, como um complexo organismo onde as dife-
rcntes lunções são exercidas por dlferentes órgãos ou conjuntos
espccializados de cólulas, funções estâs em estreita inter-relação e
equilíbrio e que garantem o bom funcionamento do organismo como
um todo; oste funcionamento sadio do todo, por sua vez, é a ga-
rantia dc que as difcrentes partes terão condição de um bom funcio-
narrento. Da mesma forma, nos agrupamentos sociais complexos,
onde o (rabalho se especializa e se divide, as várias partes dcsem-
pcnhanr. scgundo suas aptidões, diferentes fungões complementa-
res. todas clas necessárias ao bom funcionamento do todo, à orderlr
e ao cquilíbrio social; cm outras palavras, o princípio que rege a
coesão do todo social é agora o da solidaríeclade orgitnica.
O cluc caractcliza as sociedades complexas e as distinguc das
sociedadcs mais sirnples é a cliyisdo social clo trabalho. Qual a ori-
Elcln deslér divisão? Em A clivisão sociul d.o trabalho, publicado
originalmento em 1893, e com partes traduzidas para o português
(1977. 1978), l)urkheim âpresenta sua explicação para cslc fenô-
rrcne: sr!a ori61eÍn cs(aria na condensação progressiva das socieda
des, isfo ó, no auntcnto da densidade meteríal dos agmpamentos
hunranos 
- 
scu crescimento quantitâtivo ou demogri'rfico 
- 
e no
iru[rcnt.] Llc sua den::ídade moral 
- 
o aumento da freqüência dos
relacionamentos entre seus integrantes. A concentração progressiva
das populaçóes rurais nas cidades, o desenyolvimento das vias de
comunicação respondem por esse aumento da densidade material e
moral; ao condensar-se, a sociedade gera a necessidade da divisão
social do trabalho. Portanto, esta divisão, seEÍundo Durkheim, cor'-
responde a uma necessidade, vem preencher uma determinada fun
.cão no organismo social - 
daí o termo funcionalismo para designar
esta teoria. Nesta linha de raciocínio, a divisão social do trabalho
tem c:omo função auntentar a força produtiva e a habilidade do
trabalhador: sua existênciâ é condição necessária ao desenvolvi-
mcnto intelectual c material das sociedades, é um fato social posi-
tivo e benéfico que vem integrar o corpo social, assegurar sua
unidade e seu íuncionamento sadio.
A relação escola-socie dqde 
- 
19
Porém, argumenta Durkheim, parâ que haja solidariedade enre
as partes, para que se estabeleça unra efetiva colaboração em torno
dc unl .projeto social que visa o bem cornum. é preciso quc a açào
dos indivíduos seja regulada, controlada. coagidã nesta àireçao, ja
quc o scr humano é basicamente guiado peio egoísnro. Assim, a
cada um dos tipos de solidariedadé correiponde-um ron.iunto de
regras jurídicas, expressão obscrvável e mLnsurável da soliclaric_
dade vigcntc. A solidariedade mecânica exprime-se pelo díreito rc_
pressivo. Para Durkheim, a função da pena é mantôr a integração
do todo social,-é proteger a.sociedade- As regras da moraie do
direito são estabelecidas a partir da semelhan-ça das consciências
dc scus intcgrantcs (a consciência coletiva), *u", ,r,.,u vez insrituí-
das, passam a ser imperativas.
Durkheim argumenta que, embora um mínimo de semclhanca
cntre os t'ndivíduos seja necessário à sobrevivência de uma socie_
dade complexa, a solidariedade que a divisão do trabalho procluz
§upõe quc os indivíduos difiram entre sit quanto maior a àiversi-
fioaoão das personalidades, mais o trabalho será diversificado, es_
pccializado e, conseqüentemente, mais cada membro clcpenclerá cs_
traitamentc da sociedade. A partir dcste ârgumento, Duikhcirn afir_
n.ra que nas sociedadcs complexas há muito mais liber.tlade jndivi-
dual do que nas socieclades mais simples, coesas grnças à solida_
riedade nrccánica. A respeito da consciência, diz eli: '; lá clissenros
quc cm nossâ corrsoiência há duas oonsciências: uma que ó comurn
a todo o grupoe, por conseguinte. não é a gente mesnto, mas a so_
ciedade vivcndo e agindo em nós: a outra. io contrário. l-qpresenta
apcras nós mcsmos. naquilo que temos de pessoal c distinto, 11â.
quilo que faz de nós um indivíduo" (189j; em Foracchi e Martins.
1977, p. 29). Nas socicdades onde prcdomina a solidariedacle rne,
cânica, a consciência coletiva toma conta de toda a consciôncia, nao
havcndo, assim, espaco para a consciência individual. Nas socie_
dades -cm que predornina a solidariedade produzida pcla divisão
do_trabalho, pela especializaçáo de tarefas ê papéis, ai dif"."r,çu.
individuais úo imprescindíveis; "é necessário, éntáo, que a cons_
çiência coleliva deixe uma parte da consciência indiviàual desco_
belta, para que aí se estabeleçam as ftrnções especiais que ela não
pode regulamentar; c quânto mais esta regiáó se estcnde, mais
forte. é a coesão que resulta desta solidariedaãe,, (Durkheim, 1g93;
em Foracchi c Martins, 1977, p.31).
À educação cabe a função de constituir um ser social sotidário
em cada novo indivíduo. Nas palavras do próprio Durkheinr, ,,edu_
cação 
_é 
a ação exercida pelas geraçóes adulias sobre as gerações
que não se encontram ainda preparadas para a vida social; iem
por objeto suscitar e desenvolver, na criança, certo número de es-
20 Psícologia e ideologia
tados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade polí-
tica no seu Donjunto e pclo meio especial a que a criança, pârti-
cularmente, se destine" (1922t em Pereira e Foracchi, 1974, p. 42).
Esse ser social não nasce com o indivíduo; é preciso que a educa-
cão, enquanto socialização metódica, "agregue ao ser egoístÍr c
a social, que acaba de nascer, uma natureza de vida moral e social"
(itlcm, p. 4i). Esta inculcação não deve ser entendida, segundcr
Durkheim, como insuportável tirania que a sociedade cxcrce sobre
o indivíduo, mas como uma ação que interessa ao próprio inclivi
duo, uma vcz que ó através de sua submissão a certas exigências
sociais quc os homcns adquirem sua real dimensão humana, ou
scja, human izam-se.
Nas sociedades complexas, onde se verifica a multiplicação dc
papéis, a educação tem um caráter ao mesmo tempo uno e múltiplo.
Sua dinensão unjficadora garante a criação de un'ra base comum
a todos, ind.pendentementc da catcgoria social a quc pcrtençam:
"nâo há povo em quc não exiúa certo número de idéias, de scnti-
mcntos c dc práticas que a cducacão deve inculcar a todas as erian-
ças" (idcnt, ibídent, p.4l). De outro lado, a diversidade eduerejo
nal justifica-se inteiramente numa sociedâde na qual é inrperalivo
formar indivíduos diferentes para o exercício de funçõcs difcrcntcs.
Argumenta Durkhein: "A socjedade não poderia existir sem quc
houvcssc cnl sclrs trleml]los certa homogcncidade; a educação per
pcttta c lclorca csta honrogclejdadc, Iixando dc antcn-rão na allr-ra
da criança cDrtas similitudes essenciais, recktmadus pela vida colc
lira. Pot outro lado, sem uma tal ou qual diversificação, toda co-
opcracão seria impossíveJ: a educação asscgura a pcrsistôncia dcsta
divcrsicladc ncccssária, d iversi ficando-se ela mesma e permitindo
as cs peciaJizaçóe s" (idem, p. 42, grifo nosso).
Flmbora defenda a necessidade da heterogeneidadc cducativa,
Du|khcim rcssalta que esta diversidade não podc tcr como base
injustas dcsigualdades sociais; não se podc, por exemplo, dcstinar
uma criança às profissões manuais somente em função de seu
local de nascimento ou de sua origem social. Mas, se a origem
social do educando não é válida como critério para destinála a
esta ou aquela educação, qual seria esse critério, no pensâmento
durkl.rcimiano? As aptidões individuais. "Não podcmos nem de-
vemos nos dedicar todos ao mesmo gênero de vida; temos, segundo
nossas aptidóes, diferentes funções a preencher e será preciso qui:
nos coloquenos em harmonia com o trabalho que nos incumbe
Nem todos somos feitos para refletir; e será preciso que haja s€mpr:
hor.nens cle sensibilidadé e homens de ação. Inversamente, há u'.'
cessidade de homens que tenham, como ideal de vida, o exercíci'J
A relaçao escolq-sociedade 
- 
2l
da cultula e do pensamento. Ora, o pensamento não pode ser de-
senvolvido scnão isolado do movimento, scnão quando o indivíduo
se curva sobre si mesmo, desyiando-sc da ação exterior" (itlem,
ibidem, p. 35). Portanto, a educação, enquanto instituição sociali-
zadora, tem um duplo papcl a desempenhar nas socicdadcs com-
plexas: a homogeneização e a diferenciação dc seus integrantcs.
A(é aqui acompanhamos o pensamento durkheimiano no ciue
se refere à descrição e explicação do que ele chama de "socicdades
complexas" genéricas, isto é, todos sociais integrados, articulados,
harmoniosos, saudávcis, normais. No entanto, quando volta scu ins,
trumental organicista para a análise da vida social nas grandcs c
conturbadas cidades industriais europóias do fim do sóculo XÍX,
Durkheim ,não encontrâ a integração, a solidariedade orgânica, a
colaboração por ele preconizadas. Defronta-sc, pelo contrário, eom
greves, falôncias, confrontos entre operários e patrões, concorrôn-
cia desmedida entre os vários grupos en.rpresariais, enfirn, cxplo
raqão, dominaÇão, competição, arbitrariedade. Está-sc, scgundo clc,
diante de um organismo docnte.
Coerente com o modelo olgânico de explicação do social, Dur--
kheim diagnostica esta situaÇão como anômala, patológica, nr cluul
a prcscnça de disfunções impede a articulação harmoniosa do todo.
O cstudo das sociedades complexas levou-o aos conceitos clc nor-
malidade e de patologia social. Mais do que isso, Dulkhcim obsclva
que quanto n.rais a civilizaçáo progride, mais diminui o nívcl dc
rroralidadc (quc podc ser quantificado pelo número de suicídios c
de crimes dc todos os tipos). A causa da patologia social çstaria,
cntão, na divisão social do trabalho? Segundo cle, não. É na dc-
sintegração das normas sociais, na falência da regulamcnta(-ao, lir
inoperância dos mecanismos sociais de controlc, eficientes qrranclcr
as socicdades não haviam atingido um tal grau de complcxidacle,
que se encontram âs or;gens da situação vigentc. A estc cstado dc
falência da legislação Durkheim chamou de anomia.
No prefácio à segunda edição de A clivisão social clo trabqlho
(em Gianotti, 197a, p. 3-21), Durkheim faz um diagnóstico da si.
tuaçáo em que se encontra a organização social dos povos conten
porâneos, qualificando-a d.e lenômeno mórbido, estodo de desregra-
mento, estado de imoralídade coleÍivq, estado de anomia jurídica e
moral. Detecta uma debilidade aguda na regulamentação das rela-
ções entre empregador e empregado, trabalhador e empreiteiro,
industriais entre si, industriais e público consumidor. Toda esta
esfera da vida coletiva encontrâ-se, de acordo com sua anállse, sub-
Íraída à aÇao moderadora da regra, entendi.da como uma maneira
dc agir obrigatória, imposta e, portanto, fora do alcance do arbítrio
individual. A desordem que se verifica no mundo moderno repousa
22 - Psícologia e ideologia
na falência das instituições encarregadas da regulamentacão das re-
laçõcs entre as partes. ". ..como nada contém as forças litigantes
c não lhes dcsigna os limites que devem respeitar, elas tendem a sc
desenvolvcr scnr limites e acabam por se chocar umas contra as
outras para se reçalcarem e reduzirem mutuamente. Sem dúvida, as
fltais irttertsas cor'rseguem muito bem aniquilar ds ütaís lrdcas e s[-
bordiná las . . . IMas] as tréguas impostas pela violôncia são sem-
prc aperlrs provisórias c não paciÍicam os espíritos, As paixões
humanas ni-lo cessam senão diante de ttura potênoia moral que
rcspcitcm" (í(lem, p.4, grifos nossos).
A úr.rica rnedida que poderá reinstaurar a ordem e o equilíbrio
perdiclos ser1r, para Durkheim, a criação de corporações proííssio
r?ais, representativas das várias atividades profissionais, dotadas de
auloridade legal e de poder regulanentar. Somente assim as rela-
côDs cntre as partes, entre os "mais fortes" e os "mais fracos",
deixarão de sc-r opressivas e os direitos e deveres de cada grup<r
se irnporão Lrns aos outros colfra mgsma autoridade.
Paraevjtar os erros do passado, quando as corporaçõcs aca-
baram, no final do século XVIII, por transformat-se em engrena-
gcns da administração. fortemente dependeDtcs do Estado, I)ur-
khcirrr cnlatiza a ncccssidade cle quc as colporações seiaru instirui-
çocs ptiblicas, cuja função seria, nâo a prestação de scr.viços cccr-
nôrniccrs. nras o cxcrcício de um podel mor.al de regulamentação
das rclaçôes sociais. Constituiriam uma das bases da organizoção
po1ítica, a divisão elcmentar do Estado, a unidade política funda
mcntal.
Se, para Durkheim, a soluçào para o que elc <lcfiniu como
cstado anômico em que se encontravam as sociedades Çomplexas,
no final do sóculo, estava na criaçáo de um órgão neoessário à
instituição de um novo direito, para outros sociólogos, também fun-
cionalislas e igualmente críticos em lelação aos l'rrmos lomados pcla
vida social, â função transformadora, a caminho de uma sociedade
democráticâ, deyelia ser exercida pela educação escolar. Este é c)
temâ central da sociologia educacional desenvolvida por Johr
l)cwey e por Karl Mannheim, ambos represetrtantes, no pensamento
educacional, da doutrina social e política conhecida como libera- -
1ismo, onde se cncontram as raízes profundas do pensamento edu-
cacional brasileiro.
2. Liberalisnto e ensino
O liberalismo, enquanto doutrina econômica dos que defen-
dem o livre desenvolvimento dos interesses índividuais, sem limi-
A relação escola-socieclade 
- 23
tação estatal, como sistema.para- atingir o bem-estar social e pri_vado, tem como corolário o individuallsmo, uma das 
-cara-cieríst 
icasdistintivas do noyo estilo de vida que ." a".""uãiu" 
"o 
1e.ço docapitalismo, as comunidades urbanai européia, _ o. Àu.io, _ 
"gye, po_r isso, passou a ser designado como gênero de vi<Ja íurguês.
Nas palavras-de Cox (1974, p. ZOl1, ,, proí^velmente a caractcrís,
tica crucial de um sistema dé classes sãciais é o lnJlviOuaf ismo,,.
. As_crenças por ele abrangidas são de que é possível cria. uma
sociedade de. classes na quaf os indivíduós .."àiÀu*' uáirntu.iu-
mente o câminho que os leve_ a uma determinada posiçào na vida;nela, as diferentes capacidades individuais podeÁ dJrenrollre.o"
ao máximo de suas possibilidades e us p"sious são todas igual_
mente livÍes para âtingir uma posição sociãl de prestígio. _paralsto,
a competição e a ambição são valorizadas como-formãs lícitas para
atingir o êxito que, neste contexto, significa ascender ao máximo
na escala social. Nesta ascensão, a insatisfação com o já conse_
guido é a mola propulsora que impele o indivíduc, a uÁa busca
incessante de novas conquistas econômicas e sociais. No ideário
liberal, o conceito de liberdade traduz-se, a nível político, no con_
ceito de democruciq.
Contra o hermetismo do estamento dominante, na orclem social
anterior, coDtra o rnonopólio de determinadas tarefas sociais por
cstc estamcnto, que se valia tâmbém do casâmento cotno instituição
que garantia a transmissão h-ereditária dos privilégios, a ideololia
liberal se consolida com a Revolução Francesa. iuta' política da
burguesia contra â aristocracia, contando com a adesão àus clusscs
populares- Os ideólogos do liberalismo 
- Locke, Rousseau, Vol-taire, Diderot, Condorcet e Lepelletier, na Europa, e Mann, nos
Estados. Unidos -. compartilhavam premissas e pressupostos bási_cos, embora discordassem, como nos Àostra Cunhá (197i, p. 3a_a5,1,
quanto ao exato pâpel quc a escola desempenharia na Àociedade
de classes. Os ideais liberais passaram aos p1ânos educacionais atra_
vés principalmente de Condorcet e LepelÉtier, autores, já após a
Revolução Francesa, de projetos de üstrução públiÇa. Tanto o
Plano de Instruçáo Pública de autoria do piimeiio, elaborado em
1872, como o Plano Nacional de Educaçãol da autoria de Lepelle-
tier, divulgado no ano seguinte, têm cômo pressuposto básico a
c_rença de que a igualdade de oportunidades seria pro^movida através
da- instrução pública gratuita, obÍigâtória e iguaiitária- Ao Estâdo
caberia assumir a dívida da educação nacional, controlar o ensino
e instruir, garantindo a todos o direito à instrução. Neste sentido,
a seguinte passagem, da autoria de Mann lapid Cunha, op. cit.,
p..44, grifo nosso) é exemplar: ,.Nada, por ceito. salvo a educação
universal, pode contrabalançar a tendêniia à dominação do capital
24 
- 
Psicologia e kleologíu
e à servilidade do trrrbalho. . . . A educação, Portanto, mais do
que qualquer outro instÍumento de origem humana, é a grande
igualadora das condiçÔcs cntre os lromens - e 
sixs de equilíbrio
dã maquinaria social. . . . Faz mais do quc clcsarmar os pobres de
sua hostilidade para com os ricos: impede'os de ser pobras."
Em suma, a cclucacão formal é çonsiderada um forte fator
de construção de unra sooicdadc abelta, c um íator neutralizaclor'
viabilizado pclo Estaclo, das desigualdadcs sociais. Scus proposito-
res partcm, portanlo, da aceitação cla socicdade de classes como a
sociédade idêal c da ctcnÇa na possibilidade de igLraldade clc opor'
tur:idacles sociais nunra sooiedadc onde vigora o m.,do de produção
capitalista. Prcsentc claramentl] no pensamcnto dos filósolos ccima
mÉncionados (quando aceitarn a cxistência da propriedade privada,
supostamente alcançada atravós do trabalho e do talento indivi-
duais. quando afirmam quc il ascqnsão social dcpende útlica e ex-
clusivamente das capacidades individuais e quc não pode haver
isualdade socill totafctrtrc (J5 ll(rnl(ns p lqtlc llio exislC csl:l igual'
d"adc a nível irrdivirlLtrl. ou. in, o..t.,,, l'.rl.rrtrr:. quc rs desigrral-
dades sociais, nunt rcginlc social Iibcral. seriarn imputáveis às desi-
gualdades inclividuais naturais), csla versão da vida social encon-
ta"-r" aro centro das mais infltrcntcs cloullinas etlucacionais quasc
dois séculos dePois.
O mito ,la igualdade dc oportunirladcs, garantida pcla cduca-
ção escolar financiada pclo Estaclo, criou t'aízes profundas no pen-
samcnto cducacional ultlndial e cltcon(lâ-§c llo (crne das idóias c
ideais dos [j]ósofos-ctiucadorss brasilciros, irrf ltrenciados quc foran.t
pela produção intclcctual de Dewcy c Mannheim'
2.1 Dcnxtcr<rc'ia e c{lúLu[Ao; o lt?ttsLttttcttlo dc ltthn l)ewey\
Considerado por muitos çomo o filósofo da dcmocracia, |ohn
Dewey, Íilósofo e eclucador norte-ínncricano, putlica,-a parlir dâ
sesunáa década deste sictrlo. ul.na série de trabalhos sobre filosofia
da'educação e pedaS(rgia. É cn Dcmocracia e aducação. publicado
pela prirneira vã, e* lgtO (Dcwey, 1959, tradução brasileira), que
à"se,ivolv" mais plenamente os fundamentos de seus ideais demo-
cráticos, bem como o papel reservado à educaçáo escolar na con-
secução destes ideais
(1) Nl]stes bl.eves resrr»tos da lilosc'lia cducacional rlc alguns pensadorcs
Íuncionalistas, será i,npossívcl f.tzcr jllsliÇa à conlplcxidadc e à impor_
tância de sua obra; apenas rcsumire)'nos algr.lns de seus aspeclos mais
diretallleotc relscionídos com a cscolâ
A relaçtio escola-sociedacle 
- 
25
Nitidamente influenciado pelo pensamento sociológico de Dur-
kheim, Dewey começa pcla análise da função que a educaçâo cum-
pre na vida de uma sociedade abstrata, não especificada quanto à
organização qrrc a caracteriza, para chegar à análise crítica do en-
sino na socicdade de classes, tal como se configurava em sua época.
A educação, enquanto nccessidade que garante a própria continui-
dade da vida humana, através da transÍrissão Çonstante das expe-
riências acumuladas pelo grupo às novas gerações, é por ele con-
siderada uma instância social positiva, que deve cumprir a função
social de produzir um ser humano "plenamente desenvolvido". O
que Dewey entende por esta expressão? Ser humano plenamente
desenvolvido é aquele que utiliza positivamente suas faculdades
individuais inatas em ocupaçóes que tenham um significado social;
por isso, Dewey critica o naturalismo de Rousseau, segundo o qual
as atividades inatas se dcsenvolveriam espontaneamente, sem a
necessidadc dc interação com o ambiente social; nessa crítica ele
não sc alia, no entanto, aos que pregâm a sujeição da individuali-
dadepela sociedade.
Sem afirmar que o natural tem um valor absoluto ou que as
boas instituições são aquelas que tcrnam o homem antinatural,
Dewey salienta a importância da cducação que integre, e não con
Úaponlra, o dcscnvolvinrento natural à eficiência social. Tal con-
cepçáo de homcm, aliada a uma concepÇão da educação que produz
este homem, ocorre nunl contexto mais amplo de definição da so-
ciedade ideal, ou seja, â sociedade denlocráticct. E uma sociedade
democrática é aqrrela "quc prepara todos os seus membros para
com igualdade aquinhoarem de seus benefícios e que assegura o
maleável reajustamento de suas instituições por meio da interação
das divcrsas formas da vida associada. Essa sociedade deve adotar
um tipo de educação que proporcione aos indivíduôs um interesse
pessoal nas relaçóes e direções sociais, e hábitos de espírito que
permitam mudanças sociais sem o ocasionamento de desordens,,
(Dewey, op. cr'r., p. 1O6). O cidadão democrático, que desenvolve
o melhor de si e o aplicâ conscientemente em nome de um fim 
-o bem comuú 
- 
só pode ser produzido, segundo Dewey, pela edrr
cação tomada em sua concepção também democrática, por ele de-
talhada, no curso de sua obra, em seus objetivos, métodôs, técnicas
e conteúdos.
Quando passa do ideal à realidade sociâl, Dewey (como Dur-
kheim) constata a distância que os separa; são inúmeras as passa-
gens de sua obra que ressaltam as inadequaçóes da organização
social vigente e do sistema de ersino. Mas é nesse ponto que de-
tectamos a fraqteza de sua ârgumentação: a análise críticâ que faz
da sociedade de classes acaba inconsistente porque norteada por
26 
- 
Psicologiq e ideoLogía
juízos de valor, segundo o binômio "certo-errado", tomando como
ponto de referência scus próprios r,alores, sem perceber que está
atribuindo a uma cultura arbirár'ia (no sentido que Bourdieu dá a
esta expressão) o valor dc verdade absoluta, paradigmática. Assim,
por exemplo, ao fazer uma compaÍação entre a definição teórica
do termo sociedadc e a realidade a quc sc referc, mostra que esta
última, ao contrário da acepção teórioa da palavra que a designa.
inclui "uma plutalidade de associações boas e más" (op. cit., p.88);
âo tentar operâcionalizar critérios que permitam uma medida do
valor dos diferentes modos de vida social, encarece a necessidade
de "extrair os traços desejáveis das fotmas dc vida social existen-
tes e empregá-los para criticar os traços indesejáveis" (op. cít.,
p,89) e demonstra como estes critérios podem funcionar numa
i'ma1ta de ladrões", num "grupo de malfeitores" e na família, atri-
buindo evidentes vantagens para esta última, em termos nitida-'
ments éticos. Não faltam refçrências explícitas às iniqüidades da
sociedade baseada em classcs sooiaris (p. 150), àr divisão do trabalho
em intelectual e braçal (p. 9),'à cxploração das classes dominadas
pelas classes dominantcs (P. 343), scm, contudo, qualqucr referên-
cia às causas estrutlrrais dgstc gstado dc coisas; pelo contrário, as
dimensõcs econômica e política da socicdade capitalista §ão vistâs
muitas vezes como bcnóficas à humanidade (p. 346, por cxemplo).
Os desvios do ideal dcmoqrático são, assim, creditados aos desvios
pessoais, como é o caso dos "conluios crin.rinosos, das agrcmiaçôes
comerciais que mais saqueiam o públioo do que o servem e engre-
nagens políticas que se mantêm rrnidas pelo interesse da pilhagem"
(op. cit., p.88). As causas das.deformações da vida social após a
revolução industrial capitalista sáo consideradas individuais e nào
sociais-estruturais.
De fato, Dewcy afirma que à escola tem cabido, nesta for-
mação social, perpetuar as velhas tradições em bcnclício de alguns
poucos escolhidos, preparar uma camada da população para o
exercício do trabalho braçal em benefício dos opulentos, perpetuar,
enfim, a ordem social existente ao invés de transformá-la. Dewey
pÍopõe que a transformação de una sociedade autocrática numa
õrdãm soiial democrática seja feita através da educação Diz ele: "O
triunfo ou o mau êxito nessa realização depende mais da adoção
de métodos educativos apropriados a efetuar essa transformação
do que de qualquer coiú. Pois essa mudança é essencialmente
a mudança da qualidade da atitude mentâ1 
- 
uma mudança edu-
cativa" (op. cit., p. 349). Segundo ele, é preciso criar nas escolas
uma projeção do tipo de sociedade que queremos obter e atuâr de
maneirn u formar os espíritos em conformidade com este ideal.
Neste projeto, o ensino "vocacional" (que ein Dewey assume um
A relação escola-sociedade 
- 
27
sentido inteiramente diverso do significado restrito que o termo
assumiu no ensino profissionalizante) desempenha um papel cen-
tral, pois scrá ele que garantirá a consecução dos objetivos da
escola: o desenvolvimento de acordo côm a natureza, a eficiência
social e o enriquecimento mental e cspiritual. Cabe ao Estado
gerir a esoola cnquanto ambiente cspccial que forneça "um am-
biente homogêneo e bem cquilibrado às pessoas mais jovens"
(op. ch., p. 23).
A leiturâ de Democracía e educação pode levâr-nos, num pri-
meiro momento, à dúvida sobre se Dewey propunha a substituição
da sociedade de classes por uma sociedade autenticamente demo-
crática ou apcnas sua " democratização ", sem transformá-la em seus
fundamentos. Freqüentcmentc, suas análises e argumentos percor-
rem caminhos que ora o acercam, ora o distanciam da proposta
de superação da sociedade de classes; esta ambigüidade é nítida,
por exemplo, em suas considerações sobre a cisão entre o trabalho
braçal e o intelectual etrr nosso "defeituoso regime industrial"
(p. 349): "...tal Çstade de coisas cxistirá enquanto a sociedade
for organizada com fundamento na divisão em classes trabalhado-
ras e classes não-traba Ihadora s. A inteligência daqueles que fabri
cam e produzem torna-se cspessa em sua incessante luta com as
coisas; e a dos que se emanciparam da disciplina do trabalho tor-
na-se amante dos prazercs, ostcntadora e afeminada. Além disso,
a maioria dos scrcs humanos ainda não goza de liberdade econô-
mica. Suas ooupações são escolhidas pelo acaso e pela premência
das circunstâncias; não são a exprossão normal de suas aptidôes
em atuação recíproca com as necessidades e recursos do ambiente.
As nossas condições cconômioas ainda reduzem muitos homens a
uma condição servil. A conseqiiência é não scr liberal a inteligência
daqueles que são os senhores da situação, na vida prática. Em vez
de propugnarem rcsolutamente pela submissão do mundo aos fins
humanos eles dedícam-se a utílizar-se (los outros homens para lins
tanto mais anti-humanos quanto mdis egoístqs" (p. 149, grifos nos-
sos). A mesma dúvida pode invadir o leitor em passagens nas quais
Dewey se refere aos conteúdos e objetivos da nova educação, em
termos aparentemente scmelhantes aos de uma pedagogia do opri-
mido: "uma educação que reconheça a plena significação intelec-
tual e social de uma vocação incluiria em si â instrução sobre os
antecedentes históricos das condições sociais para proporcionar com-
preensão e iniciativa a respeito dos materiais e dos fatores da
produção, e o estudo da economia, da ciência, do governo e da
política, para pôr o futuro trabalhador em contato com os pro-
blemas atuais e com os vários métodos propostos para sua solução.
Acima de tudo, ela lhe excitaria a capacidade de ieadaptação às
28 Psicologitt e iJcologut
mudanças dc condiçôes, dc modo que o futuro não se tornassecegâmente submisso ao dcstino que Ihe fosse imposto., 1p.:St-fSZy.No cnranto, csta perccpção da realidade ,o.iát 
"ãrnà'irip".f"itu,sobretudo corno fruto dc distorçóes pessoais, moralmente àndená_yeis,.dos que a gercrn c do anacronismo a"' a"t.iÀi"áãà.-té"ni"u"
sociais de controlc e não clas ealacteristicas do rnoa" J" p.oduçao
em vigor vinbiliza a defesa dc possibiliclade Lle igualdaJe'ãe opor_tunidades nunrü cslr.ulur:r s.,..iirl .lc classcs. fm u-lrima insÃnciu, amudança social que dcfcndc e pela qual luta atravls ão 
-àetalha_
mento de urn modelo educacior.ral altel nativo pareoe consisti. numamaior permeabilidado nas bar.reiras

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