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I MARIA HELENA SOUZA PATTO PSICOLOGIA E IDEOLOGIA (uma introduçao crítictt à psicologia escolar) T. A. QUEIROZ, EDITOR São Paulo Copa: Depto. de Arte da TAe 11 ediçâo - 198 1 l1 reimpressâo - 1987 C I P-Brusil. Cotaloeaçôo-na-Pubt icdçAo Câdara B,atileio do Livto_ SP Paro, Mâriâ Helcn! §ousa. P54tp Psicoloris ê ideôlogia i una int.oduçao qíiic! À psicôlosia lscolrr / Maris Helens Souza PÍllo. - são Prulo : T. A. Queüôz.tqa4 (Biblioreca de psicoloah e psicanálisc ! v. J) Bibliografi!. I Àntropolosia educscion.l 2 Pesquiso educaciôíâl L Psicologia Brasil 4. Psicolog,a educacionâl 5. sôciôlôsi, edu cocional 6. Sociolo3ia educ6cion0l - Brssil I Tnulo. cDD.f7o,5 li8 ?3, 170 l909al 8l-209a ,- ,?o 7a ln.lices pan catúlaQ sistedátito: I Brasil : Es.ola e sociedade 170 l909al 2 arasil : Psicolo8ia lto gal I Educação c culiurâ 170 19 4 Edücação c dodin!ção cultural 170 te t Escola c sociedrd. lio 19 o Pcsqur\J !Ju!a(ional r70 rb 7 Psicologia escolar 170 15 Proibida a repmdução mesmo parclal, ê por qualquêr procêsso, sem autorlzaçâo oxpr€Bsa do odltor tsBN 85-85008-12-l Direitos desta edição reservados T. A. QUEIROZ, EDITOR, LTDA. Rua foaquim Floriano, 733 - 4."04534 São Paulo, SP \ l ! SUMÁRIO A psicologia entre logos cruzados (Ecléa Bosi) .. . . XI Prelticio . INTRODUÇÃO I - RAÍZESr A RELAÇÃO ESCOLA-SOCTEDADE ...........1. Sociedade e educação em Durkheim: um esboço . . 2. Liberalismo e ensino 3. Sociedade e educação em Althusser: a escola como aparelho ideológico do Estado II - ESCOLA, SOCIEDADE E PSICOI,OGÍA ESCOLAR NOBRASIL t. O Estado Novo e o ensino .. 2. Desenvolvimentismo, imperialismo e ensino ...... 3. Convergências: história do Brasil e história da psi- cologia no Brasil . . I - A CONSTtTUtÇÃO DA PSICOLOGIA CrFNTÍr'rCAl. Ciência e ideologia: uma distinção fundamental . - 2. Um pouco de história 3. Um exemplo concreto: a psicologia escolar ...... 1 5 16 17 22 32 55 55 59 74 77 96 IV .._ PSICOLOCIA E CLASSES SUBALTERNAS . ,....,,,.,. 113 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. A psicologia da carência çultural: psicologia da po- breza ou pobreza da psicologia? Os programas de educação compensatória . . .. . . A sociologia da "marginalização" social: do princí- pio da integração ao princípio da contradiçáo . . . . o mito dâ deficiência de linguagem Modarças sonoras . Autoridade pedagógica e psicologia Características psicológicas do oprimido: algumas versôes alternativas :.. 113 ,í 117 120 126 135 140 144 1987 Impresso no Brasil V - DA ADESÃO À TRANSFORMAÇÃO: CAMINHOS ....,. 1601. Uma pesquisa ..... ......... 160 2. Duas propostâs alternativas: a extensão do atendi- mento psicanalítico e a psicologia institucional . .. 187 5. Um passo além: a consciência da exclusão ...... 199 Relerências biblogrólicas ........ 211 Anexo (Roteio de Questionário - Psicólogo escolar) 217lndice de nomea . .. .. .. 225 A PSICOLOGIA ENTRE FOGOS CRUZADOS Ecléq Bosi Antes de mais nada, e paru lembrar o tempo todo: Maria Helena Souza Patto é uma valenle trabalhadora intelectual que acr€ditâ na Undécima Tesa dc Marx sobre Feuerbaoh: "Os filósofos até agora se limitaram a interpretar o mundo; cabe-nos transfor- má1o." Dessa proposição nascem inúmeras perguntas, das quais a mais honesta e incontornável é esta: o que fazer? Desta vez é a psicologia e, com maior ênfase, a psicologia es- colar, que se empenham no grande desafio: como voltar as costas, estrategicamente, para as teorias cinzentas do velho funcionalismo e para as hipóteses sombrias da "carência cultural"? E como atacar de frente os contextos vivos onde se dá (ou não se dá) historica- mente o processo de aprendizado de valorcs antigos e novos? A questão ético-política, que é urgentc em Maria Hclena Souza Patto, sobredetermina cada uma dl-- suas opçõcs de pcsquisa e de leitura teórica. A práxis move não só o primciro passo do estudioso que vai sondar no campo os substtatos geológicos do cotidiano pobre. como também o geslo da reílexão sobre o sentido histórico da própria ciência. A práxis leva pelas suas mãos duras e gcnerosas tânto a pes' quisadora quanto a cnsaísta qüe nasceu com cla, pois ambas se sabenr penetradas das mcsmas angústias e das mesmas precárias esperanças. O novo ângulo de visão altera muitas perspectiYas. A rotação dos olhos explica o caráter demolidor dos capítulos iniciais da obra, onde há páginas de fogo ateadas contrâ o método positivista, supos- tamente neutro, da psicologia social francesa, ou contrã as técnicâs reificadoras da psicologia funcional americana, cega e surda para as condiçóes sociais concretas dos seus "sujeitos", melhor dizendo, "vítimas". Não é por mero âcaso que os conceitos de "carência cultural" e de "marginalização social", produzidos pela ciência contemporânea, se tenham revelado - aliás, a curto prâzo - for- mações verbais puramente ideológicas. Elaborados de maneira abs- trata, "neutra" (isto é, longe e acima da práxis), esscs conceitos confirmaram o que já alguns críticos mârxistas vêm denunciando: a incapacidade dos métodos positiyistas e funcionalistas comPreen' derem, por dentro, o fenômeno da contradição social. ){ll - Psicoloqfu e ideologiu Desvendar a face ideológica nua e crua de certas doutrinas psicológicas e educacionais é um dos alvos prediletos dâ Autora, Lastreada às vezes pelo discurso bem travado de Altl.russer e de Bourdieu, no qual as instâncias escolares entram como elos do aparelho ideológico dc Estado, a tese de Maria Helena faz o pro- cesso implacável dc toda instituição de ensino que vise a Íepro- duzir a divisão do trabalho, viga mestra do capitalismo industrial e da tecnocracia que o rege. As relações de sentido, que a cultura escolar continuamente propõe, são quase sempre uma sutil modalidade das relações de força. E a Escola, por si mesma inculcadora de idéias e valores, pode transformar-sÇ em órgáo controlador na medida em que toma por auxiliar de suas funções a Psicologia Escolar, ou uma certa Psicologia Escolar. Maria Hclena se vê diante de um monstro bié. falo, psicopedagógico, que prctende orientar, motivar ou corrigir, se necessário, modos de ser e modos de aparecer da criança que estuda. A prática do psicólogo escolar pode correr todos os perigos de uma ciência que. embora sc diga imparcial, acaba se revelando parte interessada de um pesado sistema de conformismo social. Traz nas suas origens (os testes psicométricos de Galton e de Simon- Binet) o vício positivista de medir, prever, ajuizar e controlar os gestos e os signos da criança-aluno. Abre-sc, a esta altura, um cspaço teórico para discutir a função "integradora" das várias terâpias educacionais no aconselhamento do educando. E com isso está instaurado o processo à psicologia escolar. Nascida e crescida sob a égide oficial de uma ideologia deter- minista e antidialética, a psicologia escolar mârcou pâsso anos a fio, repetindo, talvez sem o saber, os chavões da ideologia burguesa ocidental durante toda a prirleira m€tade do século XX. A sovada noção dc Ql (Quociente de Inteligência) triunfou na academia e daí passou a lugar-comum nas revistas do grande público e em todas as instâncias de comunicação em que a cultura é diluída e manipulada para uso dos incautos. Racistas c elitistas de vário naipe ou simplcs aplicadores mecânicos do famigerado teste lan- garam máo dessa e de outras tabelas. E lá se foram inferir a baixa cota de talento que o destino cego teria reservado a negros e a índios, a mestiços e a migrant s, a lavradores e a subproletários do campo e da cidade. A psicologia da aprendizagem ganhava um pseudo-rigor cujo significado real era perder em acuidade antropológica Para avaliar diferenças sociais e culturais efetivas. Dos pesos e medidas dos anos 40 e 50 para as noções de carência culturql, código restrito e mareirutlizaçAo o passo não era Aprcsentdçdo - XIII tão grande, e os cientistas sociais da década de 60 detam-no sem hesitar. Veja o leitor, a propósito, um dos rnomentos mais ricos deste ensaio: o capítulo " Psicologia e classes subalternas". Creioque a tese de Maria Helena Souza Patto vem dizet que as coisas podem mudar e que já estão mudando. Sem dúvida, o trabalho interrlisciplinar foi e é a maior alavanca da transformação em tennos de pôr em crise as certczas ossilicadas das regiões cien- tíficas particularcs. O realismo dialético de Horkheimer e Adorno empreendeu, já nos anos 40, a gigantesca tarefa de abalar, com as armas conjugadas de Marx e de Freud, os alicerces da psicologia do "caráter nacional". Essa ideologia turvava as interpretâções de tantos estudiosos alcmães e norte-americanos antes da primeira guerra mundial. Mais recentemente, a teoria da "dependência" es- Úutural âjudou, de fato, a virar a mesa do funcionalismo e a repor na pauta das ciôncias humanas as rclações de força e as relações simbólicas vigentes nos países do Tcrceiro Mundo. E chegando rrrais perto do nosso tema: há uma pedagogia do oprimido, de Paulo Freire; há uma psicoterapia do explorado, de Alfredo Moffatt. Por que só a Psicologia Escolar se manteria ausente e silenciosa? Maria Helena fez ouvir o seu nõo. Sou-lhe grata por isso. Maria llclena, temerária, vocô não temeu o risco dos lugates tão disÍantes das salas da academia. Ao contrário, você foi ao en- contro deles. E foi a partir deles que se armou a suâ visão crítica da psicologia moderna. Este livro é mais que uma tese, é a radiografia de uma procuta. É a busca, às vezes insofrida, daqueJe espaço quente onde o psicó- logo cruze com o crítico socíal, o educador se encontre com o mili- tanto político, o terapeutâ aperte âs mãos do líder sindical ou da animadora de comunidade. Urna teoria nova há de nascer no corâção da encruzilhada, pois é esse ponto vital e perigoso que a imaginação popular elege para dispor suas flores, acender suas velas e despachar para o incerto futuro os objetos pobres e sagrados da sua liturgia de medos e necessidades, I I I i ) i l f PREFÁCIO Este trabalho é, acima de tudo, um depoimento. É o rclato do início de uma trajetória profissional difícil, quc lem suas râr7-Ês na tradição positivista dos cursos brasileiros de lormação dc psicó- logos: nos laboratórios de psicologia animal e de mensuração psi- cofísica e psicológica de seres humanos, nos contextos terapôuticos onde o objetivo, queiramos ou não, é a remoção de co,rpol tamentos disfuncionais, nos projetos de pesquisa onde os chamados "sujeitos" não passam de objetos, observados e medidos em situações supos- tamente assépticas, neutras, objetivas. A percepção de que nos formamos técnicos da coneçâo "desvios", da harmonização de " desequilíbrios ", da resolução "crises", da exclusão dos que resistem à norma e, portanto. d2l con- servação de uma determinada ordem social, é igtralmentc difícil c lenta, como o é a consciência de que esta formação só pode- ocorrer no marco de uma determinada concepção de homcm, de socicclade e de ciência. Os homens reais nos são apresentados como o [Io- mem, entidade abstrata e ahistórica; as socicdades de classcs nos chegam como Sociedade, entidade igualmente abstl'ata. harmônica, que infelizmente passa por crises rnas quc não é conlraditór'ia cm sua essência, que paira acima e alóm dos l.romcns c à qt:al estes têm que se aclaptar, basicamente da mesma lorma como os lrrjmais se adaptam aos seus ambientes naturais. Neste çontexto, àr psicolo- gia cabe decifrar, guiada pelo princípio da identidade, as leis que regem a adaptação humana ao seu ambiente sociaJ (leia-sc natural). Mas, para merecer o sl«1us dc ciência faz-sc imprescindívcl que as operações produtoras do conhecimento se baseiem na quantificação e que o pesquisador mantenha-se afastado das questócs denominadas políticas, supostaments fora de sua alçada. Aprendetnos quc "o cientista é sobretudo um neutro". Esta visão predominante dos homens, das sociedades e das ciências humanas não sofre qualquer soluçAo de çontinuidade quando a psicologia se vôlta pâra o estudo da mjséria e dos miç- ráveis numa sociedade de classes. Ao contrário, quando elabora â teoria da carência, deficiência ou marginalização cultural, a psico- logia põe à mostra todos os seus pressupostos conservadores. Com ela aprendemos que "o brasileiro (leia-se as classes populâres) é sobretudo um fraco", que precisa do nosso auxílio técnico para redimir-se. lj de de ! 2- Psicologia e ideologkt Durante alguns anos fui porta-voz dessa psicologia que encon- trou grand€ receptividade entre psicólogos. e educadores. Afinal, a versão funcionalista norte-americana dos problemas escolares e sociais dos setores "marginalizados " das classes trabalhadoras faz muito sentido para quem se forma, tanto na escola como fora dela, mergulhado nas concepções dominantes sobre o individualismo, a democracia, as diferenças individuais, o culto e o inculto, o normal e o patológico, a meritoiracia e o papel preponderante da escola- rização na promoção da igualdade entre os homens. Porque é sobretudo a sistematização do modo como a vida social aparece às classes dominântes (e, por imposição, também às classes dominadas, em certa medida) que a psicologia, em geral, e a psicologia da pobreza, em particular, articulam um discurso extre- mamente convincente e competente, como sugere Marilena Chauí. Nelas, a visão do mundo que elaboramos durante to<lo um processo de socialização presidido por idéias ideológicas encontra sua legitimação; afinal de contaE é preciso não esquecer que, numa sociedade de classes, a ciência é gerada num lugar de onde se fala com a autoridade de quem pretensamente detém todo o saber -as universidades. Destituídos dc um instrumental que nos permita a críliça ra- dical de nossos pressupostos e de nossa ação, acabamos por nos dedicar a uma prática profissional adaptativa e paternalista quando nos voltamos para as classes subalternas. Porém, se isso é verdade, não é a verdade total e definitiva sobre a condição do psicólogo e da psicologia; caso contrário, estaríamos até hoje e para scmpre disseminando a teoria da carênciâ cultural. É impossível refazer todos os passos da transformação. Certa- mente, a leitura árdua e paciente de autores inquietos e inquietan- tes {izeram uma parte. Não se 1ê, não se ouve impassivelmente Karl Marx, Henri Lefàbvre, Franco Basaglia, Louis Althusser, Paulo Freire, fosé de Souza Martins, Ecléa Bosi, Carlos Rodrigues Bran- dão, MaÍilena Chauí, Maria da Conceição Tavares. Não se vive, sem marcas, anos e anos de uma conjuntura política marcada pela repressão. Não se vive impassivelmente, alheio às desigualdades sociais, sobretudo quando estas são flagrantes, como no caso bra- sileiro, nem ao antagonismo que se verifica entre a "realidade" da qual fala a psicologia da carência cultural e a realidade mesma: quando uma criança favelada, malsucedida na escola de seu bairro, supostamente por não ter as habilidades psicomotoras necessárias à aprendizagem da leitura e da escrita, faz uma pipa ou joga bolinha de gude diante de nossos olhos, nossas convicções sobre sua incapacidade voltâm para casa irremediavelmente abaladas. & prelócio 3 Juntas, teoria e prática prepararam dialeticamente o momento da dúvida. Paytindo da crítica da psicologia ínstrumental (do conheci- mento psicológico como dimensão da consciência necessária da sociedade, isto é, da consciência das classes dominantes), este tra- balho pretende colaborâr na elaboração permanente de uma psico- logia crítica (de um conhecimento psicológico enquanto dimensão da consciência possível da sociedade, ou seja, da consciência das classes exploradas), capaz de situar historicâmente seu próprio co- nhecimento, seus compromissos e suas possibilidades de transfor- mação social. À psicologia como técnica, comprometida com uma classe social específica - a dominante, matcrial e espiritualmente - é preciso opor uma psicologia que, embora localizando especia- lizadamente os processos psíquicos, não perca de vista a totalidade social concreta que lhes dá sentido. Nestâ perspectiva, fazer psico- logia bontinua sendo um ato político como sempre foi, mas agora um ato político comprometidocom os âgentcs da transformaçào da estrutura social e não mais com os interessados pelâ sua con- servaÇão. Como bem o mostraram os proÍessorcs integrantes da banca que examinou gste texto enquanto tese de doutoranentoJ apresen- tada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo em 1981,* ele contém lacunas e mal-entendidos, carece de unidade. O método dialético de análise e exposiÇão ficou de fora somo modo de pensar os problemas levantados; a totalidade social nele com- parece em sua versão não dialótica, em sua concepção estrutura- lista; a ênfase no papel reprodutivo dos aparelhos icleológicos de Estado, acabou por dar um peso exoessivo aos efcitos mante- nedores das práticas cscolares e da acão da psicologia na escola (embora não se possa minimizá-los), em detrimento dos efeitos transformadores destas mesmas práticas; enfim, a marca althusse- riana é nítida. Numa linguagem bastante em moda entre os teóricos da educação no Brasil, a crítica das concepçõcs tradicionais Íuncio- nalistas sobre as relações entre escola e sociedade dc classes talvez tenha sido feita, mas a crítica da crítica não. Gramsci poderia ter salvo a situação, não fosse visceral a influência positivista em nosso modo de pensar que quase nos impossibilita de conceber dialeti- camente a psicologia e a vida humana. Neste sentido, "o feitiço virou contra o feiticeiro", e um tgxto que aparentemente fala de (*) Professores doutores Ecléa Bosi (orientadora), José de Souza Martins, Dennêval Saviani, Sylvia Lcset de Mello e Ana Maria de Almeida, aos quais sou imensamente grata. 4 - Psícologia e icleologia fora sobre as diíiculdades com que os psicólogos se defrontam na compreensão da realidade acabou sendo um exemplo vivo destas dificuldades. Mesmo assim, se as questões levantadas. sc as críticas à psi- cologia instrumental, se a proposla de abertura do pcnsamento do psicólogo para além do estrita e rôstritamente psicológico, se o alerta no sentido de mostrar-lhe a importância de fundar sua ação no saber gerado no âmbito das demais ciências humanas e na co- participaçáo das classes populares lornadas sujcitos do conheci- mento seryirem para sensibilizar os psicólogos para a necessidade de repensar e reÍazet a sua ciência, esta publicação, ainda que ambígua e a meio caminho, encontrará uma razão de ser, l,eyar âdiante a tarefa aqui esboçada é, afinal, um desafio qrrc sc coloca a todos que estejam tentando trazer para o centro de suas vidas as palavras de Berthold Brecht: "a única finalidade da ciência está em aliviar a miséria da existência humana". '" Mario Helena Souza Pafio Târbató, janeiro de 1982 INTRODUCÃO Nos últimos cinco anos a psicologia escolar, cnquanto área de aplicação do conhecimento acumulado pela oiência psicológica, recebeu considerável impulso cm São Paulo. Portanto, se há pouco tempo o mercado de trabalho parâ o psicólogo desejoso de tra- balhar num contexto escolar era muito restrito ou praticamente in€xistente, hoje sua ausênçia na rede de ensino público paulis- tano já nâo é tão flagrantc. Assim é que, rum levantamento que realizamos durante o ano de 1977. .junto à Scção de Psico- logia CIínica do DepartamentD dc Assistênçia Escolar da Prefei- tura Mr:nicipal de São Paulo. ptrdcmos verificar que cerca de 70 psicólogos foram contratados nos últimos anos para exercerem a ftrnção de psicólogos escolarcs, busoando o cor]fexto para sua ação não mais nas clínícas dc atendimcnto à popuJação escolar da rede municipal de ensino, mas nas escolas que integram a rede pública de ensino de primeiro grau. Mais do quc isto, além de sua presença rnais significativa em te rmos quantitativos. existia uma preocupação entre os çoordenadores deste grupo dc ptofissionais no sentido de imprimir outro lumo à atuação do psicólogo escolar, para além dos limites impostos pclo atcndinrento ntrrna linha tradi- cional de diagnóstico e tratanento das dificuldades de aprcndiza- gem. Coerente com esta preocupação, a Associação dos Psicólogos da Prefeitura de São Paulo (entidade recém organizada) promoveu o 1 .' Ciclo de Debates sobre o AÍerdimento Psicológico a Escola- res, em julho dc 1978. Embora não disponhamos de dados que confirmem nossa im- pressão, acreditamos que o quadro diâgnóstico da profissão de psicólogo êlaborâdo por Sylvia Leser de Mello em 1969 (Mello, 1975) provâvelmente não se mantém nas mesmas proporções re- gistradas nâquela época. Segundo csses dados, cerca de 75o/o das atividades profissionais dos psicólogos formados nas três facul- dades paulistanas que ofereciam cursos de graduação em psico- logia concentravam-se nas áreas de ensino superior e da clínica - praticada principalmente em consultórios particulares. A psi- cologia escolar estava praticamente ausente do mercado de trabalho para o psicólogo paulista, absorvendo cerca de l5dlo das expe- riências profissionais dos formados pela FFCL de São Bento (N:15), 13o/o d,as experiências de trabalho dos formados pela FFCL Sedes Sapientiae (N:9) e cerca de 60lo das ocupações exer- cidas, depois de formados, pelos psicólogos que haviam cursado a 6 - Psicologia e icleologia Universidade de Sáo Paulo. Estes dados levaram a autora a per- guntar: "por que os psicólogos estão ausentes da maior rede de pr€stação de serviços públicos à comunidade?" (p. 52). Decorrido um espaço de tempc suficientcmcnte longo para a ocorrência de mudanças no panorama da demanda de serviços num país do Terceiro Mundo em rápida expansão industrial e tecnoló- gica, a pergunta quc nos ocupa e preoÇupâ na atualidade assume uma forma diversa daquela íornrulada por Mello há cerca de dez anos; anirnados, sem dúvida, com ;ssa rápida expansão de uma área da psicologia aplicada na qual acrcditamos que o psicólogo virtualmente tem mais possibilidades rle vir a exercer um papel social abrangedor e significativo, nossa reação diantc desse fato é de apreensão. É esta atitude diante do crcscimento inédito desse segmento do mercado de trabalho que nos lcva a indagar: por que os psicólogos cotneçam a se lazer presefiles na maior rede de pres- taçdo cle seryiços públicos à comunidade? Os conhecedores da histoda da psicologia no Brasil, porque dela participaram ou porquc a pesquisaram, certamente discorda- rão da afirmação que acabarnos dc fazer, segundo a qual os psicó- logos conrcçatn a se fazer prcsentcs na vílsta redc de ensino pú- blico. Dados reunidos por Mello (1975) e Pcssotti (1976) atestam quc a essôla e o ensi)]o já Iolarl crbjclo dc ir)ler.essc dos psicólogos brasileiros; referem-se particulariltcnle irs qualro primciras décadas deste século, quando represcntant!-s das (luírs vcrtcntes da psico- logia - a médico-hospitalar e a çducacional - estiyeram voltados para ptoblemas de aprcndizagem c de rc-ndiÍDcnto cscolar. É o caso. por exemplo, da criação no llio dc faneilo, em 1906, de um labo- ratório de Psicologia Pedagógica e da irauguração, en1 1914, do Gabinete de Psicologia Científioa na Ilscola Normal Sooundárja de São Paulo, sob a dircção do Prof. Ugo Pizzoii, e detlicado a "ex- perimentos de psicologia escôlar" (c[. prrblicação da Escola Nor- mal Secundáriâ, 1914, p. 19). É o caso, ainda, da existência, na década de vinte, de um Serviço de Inspeção Médico-Escolar, em Sío Paulo, junto ao qual o Dr. Durval Marcondes criou, em 1958, a primeira Clínica de Orientação Infantil. Neste contexto, as ati- vidades desenvolvidas no laboratório do Ins.tituto Caetano de Cam- pos, em São Paulo, dando continrridade à linha de ação iniciada na Escola Normal Secundária, não podeliam deixar de ser mencio- nadas, mesmo porque continuâm vivas na memória e na ação pro- fissional de psicólogos que nele tiveram sua formação. Assim, é mais do que justo afirmal que os psicólogos bra- sileiros _^ em especial os paulistas e cariocas - já detiveram na escola seu foco de atenção; porém, é preciso indagar: em que ter- InlroduçAo - 7 mos? Fazendo realmente psiaologia escolar ou psicologia experi mental com crianças cm idade escolar, e contribuindo, assim, para a constituição da psicologiaeducacional mas não da psicologia escolar em nosso meio? Fazendo psicologia escolar ou consultório psicológico nas escolas. bascados num modelo médiço de atuaçío? A resposta a estas pelgurltâs nos impõe duas digressões: uma, sobre a distinção quc tradicionalmente é feita entre psicologia es- colar e psicologia edrtcacional, e outra sobre as características dos serviços prestados, até um passado recente, pela psicologia à edu- cação escolar. Quanto à maneira mais usual de definir a psicologia da edu- cação e contrapô-la à psicologia escolar, Mello (1975) nos informa que "a Psicologia oferece à educação duas qualidades de contri- buição: uma cientíiica, que consiste nos conhecimentos sobre pro- blemas que interessam à educação; a outra, que chamaríamos "pro- fissional", e que consiste na introdução do psicólogo na escola, como técnico intercssado no dcsenrolar do processo educacional. À primeira reoebe, co,rumentL- e nomc de psicologia educacional, mas não se trata de uma clisciplina psicológica com objeto e pro- blemas próprios. Essa é uma designação gcnórica que teúne aque- les campos especiais dc investigacão da ciência psicológica. taís como os estudos do desclrvolvillrento mental, das diferenças indi- viduais, da aprendizagem, etc., isto é, todos os conhecimentos PSi- cológicos quc, de alguma forma, possam trazcr qualgusr contribui- çáo para a eficiícia do proccsso cducativo. À segunda chamamos psicologia escolar porque é uma área de aplicação da Psicologia voltada para a solução de problemas cscolarcs concretos, que Pos- sam perturbar os objeÍjvos educacionais." (p. 53-54) Bardon e Ben- nett (1975) tambóm colocam csta distinção nos mesmos termos: "ConÍunde-se amiúde PsicoJogia da Educação com Psicologia Esco- lar pelo fato de ambas dirigirem scus interesses para a escola, o seu pessoal e os seus alunos. Entrctanto, a Psicologia da Educa- ção, pelo menos nos Estados Unidos, não é uma Psicologia Apli- cada no mesmo sentido da Psicologia Escolar ou da Clinica. O objeto de estudo da Psicologia da Educação refere-se às caracterís- ticas de estudantes e professores e explora tópicos como a aprendi- zagem, a motivação, o reforço e a transferência, assim como as condições que afetam todos esses fatores. Tipicamente, o Psicólogo educacional realiza pesquisas sobre as inúmeras variáveis suscetí- veis de influenciar a aprendizagem, com o rigoroso controle de elementos estranhos às variáveis que estiverem sendo investiga- das. . . . A pesquisa em Psicologia da Educação pode ser realizada muito mais cuidadosâmente no laboratório que na escola." (p. 18-19) 8 - Psícologia e ideologia Embora não concordemos com a clássica e nefasta separaçào entre teoria e prática, entre pcnsamcnto e ação, entre ciênciá e técnica, entre os que produzem conheeirnento ê os que meramente o aplicam, contida nestas deÍinições, ncm com a' definição de psicologia escolar que veiculam, é a ela que estamos nos reÍerindo quando perguntamos sobre a natureza do trabalho a que se dedi- caram os primeiros psicólogos voltados para o ensino. Voltaremos à definição da psicologia escolar quando nos detivermos na análise rnais- aprofundada do papel real e do pâpel possível do psicólogo escolar numa sociedade de classes. Em busca de elementos que nos permitam caracterizar os tipos dc contribuição da psicologia à escola, no Brasil, tomemos três momentos significativos da hjstória da psicologia em São paulo, nos quais os psicólogos estiyeram voltados para a educação for- mal: a instalação e funcionamcnto do Laboratório de psicologia Pedagógica, em 1914, junro à Esccla Normal Secundária de São Paulo; a criação, em 1938, da Clínica de Oricntação Infantil junto à Seção de Higiene Mer.rtal do"antigo Scrviço dc Saúde Escolar, c o surgimento do Setor dc Psicologia Clínica cla Seção -fécnico-Edu_ cacional do Departamento dc Educação, Assistência e Recrcio da Secretaria de Educação da Prefeitura Municipal de São paulo, em 1954. 1. O Lqboratórío de Pedag<.tgiu Experimental da EscoLa Normo! Secunddria de São Paulo. A análise de uma publicacão prcciosa leita pela Esc<.:la Normal Secundária de São Paulo, datar-la de I914, nos permite perceber, dc imediato, o tipo dc psicologia pcdagógica ou "psicologia esco- lar" que se desenvolvia ncssa insliLuicão. Iti no plimeirõ artigo,"O futuro da pedagogia ó cientíÍico", de autoria do então clireiorl da Escola Normal, Dr. Oscar Thompson, f ica nítid:,r a conccpção de ciências humanas vigenlc c norteadora da prática cientí[ica, na época, quando ele exalta "uma bela fasc da pcdagogia, que toma o nome de científica pela organizaçâo que, pouco a pouco, se lhe vai imprimindo" (p.3) c "tudo quanto há de grande na ciência pedagógica e o subsídio valioso que lhe pode prestar a psicologia.,, (P. 5) A importância dada à mêtodologia positivista é clara: "O progrssso das ciências naturais repercute sobre a psicologia e lhe imprime um vigoroso impulsc-,, [avorccendo desdc lôgo o úscimen- to de conceitos anúlogos e mérodos semelhantes aos que se pratica- Yam com êxito, segundo o pensamento científico de Bacon, no campo das coisas de ordem marerial. Era o primeiro sopro dc vida oa,psrcologia experimental, cujo pleno desenvolvimento, por umacolarloraçào mais imediata das ciéncias naturais, estava reservado lntrodução - 9 para o século XIX, em que às categorias mecânicas sucedem as categorias biológícas e a psioologia de livresca que era, encontra nos laboratórios, a partir de Wundt, um novo ambiente e um novo método de trabalho." (p. 5, gÍifos nossos) Ao lado da menção a Wundt, comparece Binet e seu gabinete de estudo cientifico da criança. Valendo-se dos ensinamentos fundamentais não só da bio- logia, mas também da sociologia e da psicologia, a pedagogia deve voltar-se, segundo Thompson, para a consecução de uma pedagogia científica que, em oposição à pedagogia dogmática do passado, co- loque nas mãos dos professores recursos das ciências positivas e lhe permita conhecer o edr-rcando sob o ponto de vista científico. A sociologia é concebida como "a ciência que estuda a vida dos animais, das crianças e dos selvagens, a história geral da hu- manidade, os poemas e as biografias. Assim concebida, não passa dc uma psicologia sociológica, que cstuda a psicologia da criança, do animal, dos povos, das multidõcs, da linguagem, da literatura, etc., mostrando como elas assumenr formas diversas na vida social correspondentcs a diversos 'cstados da civilizaçáo'. A educaçào , . . respeita em seus vários momÇntos c nír slla dinâmica as condiçõcs especiais da civilização." (p. 14) À psicologia, por sua vcz, cabc fornecct métodos e princípios sobre os quais sc apóia a "arlc da educação"; o psicólogo forne- cerá ao professcrr condições para rcalizar uma "análise anatômica" da vida psíquica. A esÍq basta conhecer as "formações mais sim- ples da existência psicológica; scnsâçõcs, idéias, sentimentos, ins- tintos e atos voluntários"; e as "lcis fundamentais da atividade psíquica, as suas quatro atitudes cssenciais: atenção e mcmória, hábito c fadiga. Estas nocões seryir-lhe-ão de base para o conheci- mento da vida psíquica complcxa: reprcsentativa, sentimental e ativa. " (p. 12) Para melhor cumprir com suas finalidades, a pedagogia neces- sita de instrumentos dc medição que lhe permitam assimilar e apli- car uma psicologia racional, positiva, científica. É em consonância com este espírito que a 17 de setembro de 1914 inaugura-se o Ga- binete de Psicologia Científica, montado e organizado, na Escola Normal, sob a direção do professor itâliano Ugo Pizzoli, especial- mente convidado para esse fim. São Paulo passava a contar, assim, à maneira das principais escolas normais do mundo, com um ga- binete para o estudo científico da criança, cquipado com signifi- cativâ aparelhagem, desde a destinada à avaliagão somato-antropo- lógica, estesiométrica, estesioscópica, até os materiais construídos para permitir o exame psicológíco das funções mentais superiores. 10 - Psicologia e i(leologia É nesta linha psícoÍísica e psicométrica que sedesenvolvem os trabalhos de pesquisa e as publicaçôes dos discípulos do Prof. Ugo Pizzoli; atestam-no os trabalhos reunidos na publicação a que esta- mos nos reportando. São alguns de seus títulos: "Contribuição para os métodos de estudo do raciocínio nas crianças", "Notas sobre o grafismo inlantil", " Expcriências sobre a memória cinética nas crianças", "Subsídjos para o cstudo da memória", "O raciocínio nas crianças", "Contribuição experinental à classificação dos tipos intelectuais", "Notas sobre a associação das idéias". Estamos diante, portanto, de uma prática de laboratório e dc gabinete inspirada em Wundt e Binet, que corresponde, com precisão, às caracterís- ticas da clássica psicologia cducacional.l Estes dados vêm mostrar que a dependência cultural brasileira em rclação aos países "oivilizados" é um fato inconteste. Mudam os modclos, permaneoe o fato: nessa época, o modelo é o europeu. Mais tarde, será o norte-americano, nstalado solidamente cm nosso presente. E a psicologia e a e{rcação não fugiram à regra. 2. As clínicas de orientação ülanlíl da Secrelctriq da Eclucaçiro do Estado de São Paulo e us clínícas psícológicas da Secretarict de Educação clo Município dc São Paulo. Integrânte do grupo de módicos-psicólogos que constituíram a vertente médico-l.rospi talar da psicologia (segundo terninologia usa- da por Pessotti (1975)), Durval Marcc.rndcs criott, ent 1938, r pri- meira Clínica de Orientaçâo lrrfantil junto ao Sewiço de tnspeçao Médioo-Escolar do Instituto dc Higicne dc São Paulo. Dilusor das idéias de Freud em nosso rr.rcio,,iMe rcondcs imprimiu à sua acão e à de seus colaboÍadorcs .lunto a essa instituição de prestação de serviços à clientela infantil cscolar: uma linha nitidamer.rte clínica, norteada sobretudo pelas aplicaçÓes diagnósticas e curalivas da dou- trina freudiana.'Assim, ao contrário do que acontecia na Escola Normal Secundária - onde PredoninaYam procedimentos psico- técnicos conduzidos no Laboratório de Pedagogia ExPerimentâl -ao diagnóstico, baseado em testes do inteligência e técnicas proje- tivas de personâlidade, seguia-se um atendimento psicoterapêutico individualizado ao aprendiz, visto como portador de características pessoais incompatíveis com a aprendizagem e o ajustamento es- (1) É interessante registrar, a respeito das caractcrísticas da "psicologia es- colar" nessa época, a referéncia dc O. Thompson aos "humildes e deser- dados", para ieferir-se às crianças provenientes do povo (p. 6), anteci- pqndo, assim, a preocupação otual com os "desprivilegiados" or, "caren- tes culturais". Introduçao - 1l colar. Assim, valendo-se dos ensinamentos da psicanálise de ma- neira mais restrita do que as aplicações atuais do enfoque psicana- lítico num âmbito escolar - das quais as propostas desenvolvidas por Bleger (1966, 1975) c Bohoslavsky (i977) são exemplos signi- ficativos as clínicas de orientação detinham-se sobretudo na in- yestigação de problemas situados nos alunos (neurológicos, psico- lógicos, fonoarrdiológicos, psiquiátricos), o que permite caracteri- zálas como consultórios clínicos baseados num modelo médico de atuação. A dinâmica institucional, a relação professor-aluno, os métodos e conteúdos do ensino, enquanto dimensões inscritas num todo social marcado por relações de poder, náo eram levados em conta em suas atividades e reflexõcs. Em outras palavras, a escola, seus proccdimentos e objetivos não eram objeto de questionamen- to, nem mesmo enquanto variáveis que poderiam gerar problemas de aprendizagem e de ajustamento. Cabia aos serviços terapêuticos nas várias áreas levar a criança a adquirir condições de adequar-se a exigências escolares não qucstionadas ou trabalhadas. A orienta- ção dos professores cra feita com a finalidade precípua de obter sua colaboração junlo às crianças-problema, Somente muitos anos mais tarde - já na década de setenta - é que esse serviço, já reestru- turado administrativamen te em outras bases, se dispõe a abandonar a linha de atendimcnto esscncialmentc clínica, por não conseguir atender à dcrnanda crcscsntc dc diagnóstico e lrâtamento de crian- ças com problcrnas cle rendimcnto escolar. Portanto, durante cerca de trinta anos os tócnicos quc atuaram nesse serviço - inicial- mente não-psicólogos, dada a inexistência de cursos de graduação em psicologia até 1958 - se restringiram ao atendimento clínico; nem por isso clcixaram de sentir, cada yez mais, a precariedade dcssa forma de atcrdimento, definida principalmente em termos de diíiculdade de acompanhamento dos professores c de atendimento simultâneo a um grandc númcro de escolares. A história das clínicas psicológicas da Prefcitura do Municí- pio dc Sáo Paulo tem muitos pontos em comum com a das clínicas de orientação do Estado. Em 1954, três educadoras de parques infantis (Ruth Alvim, Maria lgnes Longhin e Ivone Khouri), duas das quais educadoras sanitárias e uma recreacionista, preocupadas com muitas crianças que freqüentavam os parques da capital e que não recebiam o atendimento de que necessitavam e não se ajusta- vam à escola, deram início a um trabalho visando a atender este problema. Complementadas em sua formação pelo curso de espe- cialização em Psicologia Clínica da PUC, começaram a atender âs crianças com dificuldadcs escolares - quer a nível de aprendizagem, quer a nivel de ajustamcnto - atrayés de psicodiagnóstico e ludo- 12 Psicolc.tgia e icleologia terâpia. O Serviço de Higiene Mental do Estado, através de suas clínicas de orientação infantil, já não podia absorver essas crian- ças, pois enfrentava o problcma de superlotação. Assim, estas edu- cadotas passaram a dcsenvolver suas atividades na própria sede do Departamento de Assistência c Rccreio, mais tarde desmembrado em dois: o Departamento de Educação lnlantil, encarregado dos problemas educacionais dos parques infantis e o Departamento de Assistência Escolar. Em 1956 este Departâmento foi ampliado para poder atender às escolas municipais em suas oito séries de primeiro grau. Diante da grande demanda, a Prefeitura construiu duas cli nicas psicológicas: uma no Itaim e outra na Moóca, cujas ativida- des principais giravam em torno de diagnóstico e tratamento de distúrbios fonoaudiológicos, psicomotores e emocionais. Um traba- tho realizado predominantemcnte nas escolas só começou a con- cretizar-se a partir de 1975, o que motivou a ampliação da de- manda de psicólogos a qr-le nos referimos. lstes dados lcfet'cntcs às caraclerísticas d(j três serviços de psicologia voltados para a cscõla c para o ensino nos permitem ooncluir que até rcccntcmcntc a psicologin escolar, cnquanto psi- cologia aplicada à çducacão cscolar, incxistiu na redc de ensino público no Estado dÇ São Paulo,/A históriâ da psicologia escolar, senso estrito, comcÇa a ser escrita a partir do início da década de setenla, quando contcçaln a articular'-sc pcsquisas e debates que preparariarr o surgimento clos projctos dc psicologia escolar pro- priamente ditos, a nível cstadual c runicipal. O qul: tivemos até entáo {oi, dc um laclo, o dcscnvolvinento da psicologia educacio- nal - numa linha francanrentc cxperimental e psicofísica ini ciado Çm 1914 c continuado a partir dc 1956 no laboratório de psicologia da Cadcira cic Psicologia Dducacional da FFCL, no qual podiam scr encontrados muitos dos aparelhos da antiga Escola Normal Secundária dc São Paulo;r de outro, encontramos o que poderíamos chamar de instalação de gabinetes de psicologia clínica integrados por equipes multidisciplinares, com alguns poucos psi- cólogos, que atuavam junto à rede de escolas públiqas da capital paulistâ partindo do pressuposto básico de que os problemas de aprendizagem c de ajustamento escolar se encontravam predomi- nantemente ruo aprendiz. (2) Nole-se que muitos dos atuais profcssores do Institüto de Psicologia da USP, princip.rlmente do Departamcnto dc Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvilücnto e da Personalidndc, pcrtenciam a essa Cadeira, lTerdeira, via lnstituto Lle EducaÇão Caetano dc Campos, da ântigaEs- cola Notmal de São Paulo, falo quc se reflete direiamente llos temas e na nretodologiâ de suá prodlição científicâ. Veja, por exemplo, Àn- gelini (1951, 1955); Aguirrc (1951): Almeida (1965). IntroduÇão - 73 A partir desta visita rápida ao passado da psicologia aplicada à educação, algumas perguntas se nos impõem, em nome de sua compreensão mais ampla enquânto fenômeno que ocorre numa so- ciedade determinada, num momcnto determinado de sua história. Em outras palavras, para que nosso objeto de estudo - a psicologia esoolar possa ser conhecido, faz-se necessário mergulháJo em suas determinações econômicas, sociais e políticas, na busca de respostas às seguintes questões: por que os psicólogos começam a lazer-se maís presentes na maior rede de servíços públicos à comu- nidade? A que Jins ou a quem estarão servindo? Através de que tipo de concepção de cíência e de que tttividades instrumentais amattudcís .lestq concelJcão? Suas prólicqs e concepções e$tAo em continuíd<tde ou em ruptura com a dos psicótogos que, no passado, atu.tram sobre a população escolar? O esclarccimcnto destas questões implica várias tarefas: I Por sc tr.rtal de unra área de aplicação da psicologia vol- tada cspecificamentc pala a educação fomal e exercida, na maioria das vezes, em insti(uicõe:s escolares, não poderíamos deixar de nos lcfelir :]s relaçócs entre cscola e sociedade, bem como à forma qLrc assumem na sociedadc brasileira atual, pano de fundo neces- siírio ii comprcensão clo papel desempenhado pelo psicólogo r.ra escola. 2. Atravós dc trm trabalho de dissccoão dcssa área, tal como ela se constituiu no decorrer de sua história, faz-se necessário pro- curar definir seu sl.ll&s enquar.rto crência, Em termos mais concre- tos, procurar caraoterizar, por meio desta análise, a natureza de seu discurso teór'ico, tócnico e dc pesquisa. Em que medida esta- mos diantc de um discurso ideológico ou pseudocientífico? Em que medida se valc de conccitos, de dicotomias e dc classificações do real que obscurecen-r, mais do que esclarecem, os fenômenos por ela abrangidos? 3. Além da necessidade de nos determos na realidade esco- lar, nossa experiência nesta área nos mostrou que o principal objeto de estudo da psicologia educacional e de intervenção da psicologia escolar tem sido, nos últimos quinze anos nos Estados Unidos, e na última década, no llrasil, a chamada "carência cultural" e suas implicações educacionais. Por isso, uma revisão das principais pu- blicações sobre este tema torna-se imperativa, bem como seu con- fronto oom um corpo conceitual e explicativo mais amplo, forne- cido pela sociologia histórica e concreta das populações "marg! nâis". Esta leitura contextual do discurso da psicologia escolar nos pei'nritirá caractcrizar o nível de consciência que o permeia e a 14 - PsicoLogia e ideoLogíu maneira ci.rmo essa consciência determina a ação do psicólogo es- colar. Em suma, tal análise poderá fornecer dados que permitam verificar a hipótese de quc os psicólo61os escolares, tal como os profcsscres primários, mas num nívcl de sofisticaçáo cientificista maior, têm sido veículos da ideologia dominante, estando, por- tanto, en6lajados num processo de colaboração com a mânutençâo do sistema social onde se inserem. Os paralelismos possíveis entre a constituição da sociologia e da psicologia cmpiristas não serão casuais se considerarmos que ambas sÍo oiêrroias produzidas no bojo de uma mesma sociedade. Portanto, muitas críticas atualmente feitas à sociologia possivel- mente vall.ram para a psicologia. A psicologia escolar ó uma área especializrda dc sonhecimcnto, na psicologia, tal como a sociologia rural, por cxemplo, o é na sociologia. Assim, a análise crítica a que Martins (1978) submcte a sociologia tural, trazendo à luz suas arnbigüidades, podc oferecar um mapa à tarefa de identificar os andaimcs que susttntam a psicologia çscolar.3 A análise da psicologia escolar propriamente dita, fazendo in- cidir sobrc ela nossa reflexáo, [ar-se-á em dois níveis distintos mas complcmentarcs: a) o da bibliografia disponível em nosso meio relativa a esta área, espccialmente dc uma publicação recente, ocorrida exatamente no momento em quc a psicologia escolar começa a assumir uma posiçllo dc mais dcstaque no mcrsado de trabalho; ncsta attá- lise, buscaremos não só no dito mas no não dito, nos silênsios (l) No ccntro da sociologia rural, Martils víti encontrar a noçiro de comu- nidadc, unra catcgoria sociológica Ielevanle para â explicação do mundo pré capilalista nras não para dar conta dos proce§sos no mtÍrdo capita- lislâ P()riaDlo- iDst.rlada no cerne de sua tcoria encontra-se um conceito pré-capitalista, mas dcvidamente secularizado e racionalizado, de mo- do a satisfazer a uma necessidade de uma nova ordem social se auto_ex_ plicar de forma â se prcservar e perpetuâr. O conceito de anomia, por êxemplo. base de una sociologia na qual "as incongruências e as ten- sõcs, como as Ialências e as greYes, trâduzem_se no nível teórico como allomaliâs" (Martins, 1978, p. 56), .< dcrivado deste conceito ambí' guo dc comunidade. Henri Lefêbvrc (1970, cf. Maflins. 1978 p. 47) õaracteriza este processo como resultado da necessidade que a sociedade capitâlista tem de definir e redefinir categorias, através das quais prôcura auto-interpretar-sc c nas quais busca fundamentos pala um progri,ma polírico-de ordenaçáo social c de neutrâlizaçâo dfls tensóes io.úi". A cstas redefinições Letàbvre dá o nome de "râptos ideológi- cos", que scriam "a trâdlução de umâ noção segundo significaç6es quc são esiranhas à sua extrâção original" (1970, cf. Marrins, op cir., p. 59). Quc raplos ideológicos â p'sicologic perpetrou? Que tepercus' iões tiveram elcs nâ psicologia aplicada à escola? Introdução - 15 e nos'"ocos" desse discurso, os elementos qr.Íe permitam ca racterizá-los; b) o do discurso produzido por psicólogos escolares, ao responde- rem a um qucstionário aberto (anexo 1). O grupo de sujeitos constitui-se dc yinte psicólogos que atuam em escolas primá- rias das rcdcs estadual e municipal de ensino, na cidade de São Paulo. Transformar a psicologia escolar em objeto de estudo pare- ce-nos, portanto, um primeiro passo para instaurar enl seu âmbito um exercício dc crítica que permita identificá-1a como psicologia instrumental, dimensão da sonsciência necessária da sociedadc, e transformír-la numa psicologia crítica, dimensão da consciência pos- sível desta sociedade. i CAPÍTULO I RAíZES: A RELACÃO ESCOLA-SOCIEDADE À decisão de iniciar um ttabalho de psicologia com a lemá- tica dc uma área da sociologia - a sociologia da educaçào -dcçorrc da impossibilidade de se discutir critiçamente a psicologia escolar e o papel social do psicólogo fora do marco de uma con- cepçao, igualnrenter crítica, das relações que se estabelecem entre a educação escolar e a estrutura da sociedade na qual se insere a prática cducativa. A mancira de conceber as rolaçóes entre o processo educacio- nal formal c a sociedade de classes não é coesa no pensamento sociológico. Gouveia (1976), revendo a literatura recente a respeito do papcl social da cscolâ nas sociedades indr.rstriais capitalistas, lo- calizou basicanreDle duas concepções oposta§: segundo a primeira dcstírs vcrsões, os rqsultados tlo processo educacional, especial- mente os cognitivos (valores e atitudes), são humanamente positi- vos c politicanenlc neutros c, portanto, desejáveis enquanto pro- dutos do ensino. Assim, a escola é considerada uma instituicão voltadur para a socialização dos inraturos. entendendo-se por esse tcrmo ora um processo que crpõe o indivírluo ao pensamento cicrrtíÍico, cnriquecc-lhc o acervo de informações e o leva assim, a unra visão mais modcrna, mais racional ilo mundo", ora como um processo de preparação "para a difícil transição do círculo protegido da família para a esfera efetivamente mais neutra do ttabalho c da profissão" (p. 16). Implícita nesta concepçáo do pape) da escola enconÍra-se o crcnça na igualdâde de oportunida- des, real ou possíve), nassociedades capitalistas. No outro extremo, Gouvcia localiza os teóricos que denunciam resultados conclená- veis do processo educativo; segundo eles, a escola cumpre um papel ideologizantÇ, ou seja, através de uma imposição sutil, leva os cducandos a adquirirem uma visão de mundo compatível conr a manutenção da sociedade de classes; assim, ela está a servÍço dos inlelesses dos grupos que, nesta formação social, monopolizam o poder econôrnico, social, político e cultural. Subjacentes â estas duas formas extremas de conceber o papel social da educação escolar encontram-se as duas t€ndências teóri- cas mais representativas do pensamento sociológico: de um lado, o funcionalismo, que tem em Durkheim seu representante mais importânte e como principio constitutivo a integraçAot de outro, o matariolismo histórico formulado por Marx e continuado por outros pensadores marxistâs e que tem como princípio constitutivo o prin- A relação escola-socied.ads - 17 cípio da controdiçdo (cf. Martins, 1977, ín Foracchi e Martins, op. cil.. Introdução). Uma breve apresentação destas duas perspectivas, "prodtrzidas por diferentes visões do mundo" (Martins, 1977. idem, p. l) faz-se fundamental, neste momento, por duas razõcs: pri- meiro, porque o psicólogo, dada a formação que, via de regra, recebe nos cursos de psicologiâ, não suspeita da presença destas duas versões do social no pensamento sociológico nem da impor- tância de conhecê-las e contrapô-las; em segundo lugar, porque a anrilisc crítica da ação do psicólogo escolar só poderá ser realizada se rcfelida a estes quadros teóricos. Sem pretender aplesentâr uma síntese que faça justiça à complexidade e à amplitude da obra durkhciniiana e urarxista, ficaremos limitados àqueles aspectos dcssas tcorias que mais diretamente digam respeito à relação es- çola-sociedade. 1 Sociedaclc e educaçoo ern Durkheint: unt esboço Nascido na França, Emile Durkheim (1858-1917) recebeu, se- gundo cstudiosos de sua vida e obra, podeÍosas influências das idóias de Herbert Spencer, filósofo inglês fundador da {ilosofia evolucionista (1820-1g0i). Na leitura detida da obra de Spencer plasrrou sua adesâo aos modclos biológicos que aplicou. mais tarde, ntr análise das sociedades hunranas (cf. Gianotti, 1978). Teudo de- dicado toda a sua vida ao desenvolvimento da sociologia cicr.rtífica, Durkheim inscreveu profundas marcas nos rumos tomados pelo pcnsamcnto sociológico ao justificar e realizar a sooiologia como oiência objetiva e indutiva que tem como objeto de estudo uma dimcnsão irrcdutível a outras e que transcende o individual c o psicológico - a dimensão dos fatos sociais. Partindo do pressn- posto de qui: as oiências humanas são da mesma natureza das ciêDcias físicas e biológicas, enfâtizou a necessidade de utilizar, nr.r estudo dos fatos sooiais, a mesma metodologia científica prescnte ncssas ciências: a investigação das leis que regem os fatos, en- quantc expressões precisas de relações estabelecidas empiricamente. Instalou, assinr. a versão positivista de ciência no seio dos estudos do homem em suas relações com os outros homens. Através do conceito de solidariedâde, Durkheim estabelece uma distinção básica entre dois tipos de agrupamentos sociais; aliás, é na elaboração deste conceito que o modelo biológico, apren- dido com Spencer, ingressa em sua concepção da vida social. Para ele, a integração dos elementos que compõem um todo social pode ser de dois tipos: a integração que resulta da solidariedade mecâ- nica entre as partes e a que é produto da solidariedade orgânica (Durkheim, 1895). A primeira caracteriza a coesão nos agrupâmen- :l I IT I 18 - Psicologia e ideologia tos sociais onde existe pouca diferenciação entre os participantes, onde a se:lelhança eirtre eles, mais do que a diferença, leva-os a constituit unra sociedade. Dois exemplos típicos de sociedades desta natuÍeza seriam a horda e o clã. Neles está ausente a diferenciação de funções, não existe a divisâo social do trabalho que ocorrerá, mais tarde, na história da civilização. Nas sociedades mais complexas, a integlação sc dá através da complcmentaridade de diferentes funções, exercidas por diferentcs jntegrantcs do todo social. Tais sociedades complexas funcionam, scgundo Durkheim, como um complexo organismo onde as dife- rcntes lunções são exercidas por dlferentes órgãos ou conjuntos espccializados de cólulas, funções estâs em estreita inter-relação e equilíbrio e que garantem o bom funcionamento do organismo como um todo; oste funcionamento sadio do todo, por sua vez, é a ga- rantia dc que as difcrentes partes terão condição de um bom funcio- narrento. Da mesma forma, nos agrupamentos sociais complexos, onde o (rabalho se especializa e se divide, as várias partes dcsem- pcnhanr. scgundo suas aptidões, diferentes fungões complementa- res. todas clas necessárias ao bom funcionamento do todo, à orderlr e ao cquilíbrio social; cm outras palavras, o princípio que rege a coesão do todo social é agora o da solidaríeclade orgitnica. O cluc caractcliza as sociedades complexas e as distinguc das sociedadcs mais sirnples é a cliyisdo social clo trabalho. Qual a ori- Elcln deslér divisão? Em A clivisão sociul d.o trabalho, publicado originalmento em 1893, e com partes traduzidas para o português (1977. 1978), l)urkheim âpresenta sua explicação para cslc fenô- rrcne: sr!a ori61eÍn cs(aria na condensação progressiva das socieda des, isfo ó, no auntcnto da densidade meteríal dos agmpamentos hunranos - scu crescimento quantitâtivo ou demogri'rfico - e no iru[rcnt.] Llc sua den::ídade moral - o aumento da freqüência dos relacionamentos entre seus integrantes. A concentração progressiva das populaçóes rurais nas cidades, o desenyolvimento das vias de comunicação respondem por esse aumento da densidade material e moral; ao condensar-se, a sociedade gera a necessidade da divisão social do trabalho. Portanto, esta divisão, seEÍundo Durkheim, cor'- responde a uma necessidade, vem preencher uma determinada fun .cão no organismo social - daí o termo funcionalismo para designar esta teoria. Nesta linha de raciocínio, a divisão social do trabalho tem c:omo função auntentar a força produtiva e a habilidade do trabalhador: sua existênciâ é condição necessária ao desenvolvi- mcnto intelectual c material das sociedades, é um fato social posi- tivo e benéfico que vem integrar o corpo social, assegurar sua unidade e seu íuncionamento sadio. A relação escola-socie dqde - 19 Porém, argumenta Durkheim, parâ que haja solidariedade enre as partes, para que se estabeleça unra efetiva colaboração em torno dc unl .projeto social que visa o bem cornum. é preciso quc a açào dos indivíduos seja regulada, controlada. coagidã nesta àireçao, ja quc o scr humano é basicamente guiado peio egoísnro. Assim, a cada um dos tipos de solidariedadé correiponde-um ron.iunto de regras jurídicas, expressão obscrvável e mLnsurável da soliclaric_ dade vigcntc. A solidariedade mecânica exprime-se pelo díreito rc_ pressivo. Para Durkheim, a função da pena é mantôr a integração do todo social,-é proteger a.sociedade- As regras da moraie do direito são estabelecidas a partir da semelhan-ça das consciências dc scus intcgrantcs (a consciência coletiva), *u", ,r,.,u vez insrituí- das, passam a ser imperativas. Durkheim argumenta que, embora um mínimo de semclhanca cntre os t'ndivíduos seja necessário à sobrevivência de uma socie_ dade complexa, a solidariedade que a divisão do trabalho procluz §upõe quc os indivíduos difiram entre sit quanto maior a àiversi- fioaoão das personalidades, mais o trabalho será diversificado, es_ pccializado e, conseqüentemente, mais cada membro clcpenclerá cs_ traitamentc da sociedade. A partir dcste ârgumento, Duikhcirn afir_ n.ra que nas sociedadcs complexas há muito mais liber.tlade jndivi- dual do que nas socieclades mais simples, coesas grnças à solida_ riedade nrccánica. A respeito da consciência, diz eli: '; lá clissenros quc cm nossâ corrsoiência há duas oonsciências: uma que ó comurn a todo o grupoe, por conseguinte. não é a gente mesnto, mas a so_ ciedade vivcndo e agindo em nós: a outra. io contrário. l-qpresenta apcras nós mcsmos. naquilo que temos de pessoal c distinto, 11â. quilo que faz de nós um indivíduo" (189j; em Foracchi e Martins. 1977, p. 29). Nas socicdades onde prcdomina a solidariedacle rne, cânica, a consciência coletiva toma conta de toda a consciôncia, nao havcndo, assim, espaco para a consciência individual. Nas socie_ dades -cm que predornina a solidariedade produzida pcla divisão do_trabalho, pela especializaçáo de tarefas ê papéis, ai dif"."r,çu. individuais úo imprescindíveis; "é necessário, éntáo, que a cons_ çiência coleliva deixe uma parte da consciência indiviàual desco_ belta, para que aí se estabeleçam as ftrnções especiais que ela não pode regulamentar; c quânto mais esta regiáó se estcnde, mais forte. é a coesão que resulta desta solidariedaãe,, (Durkheim, 1g93; em Foracchi c Martins, 1977, p.31). À educação cabe a função de constituir um ser social sotidário em cada novo indivíduo. Nas palavras do próprio Durkheinr, ,,edu_ cação _é a ação exercida pelas geraçóes adulias sobre as gerações que não se encontram ainda preparadas para a vida social; iem por objeto suscitar e desenvolver, na criança, certo número de es- 20 Psícologia e ideologia tados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade polí- tica no seu Donjunto e pclo meio especial a que a criança, pârti- cularmente, se destine" (1922t em Pereira e Foracchi, 1974, p. 42). Esse ser social não nasce com o indivíduo; é preciso que a educa- cão, enquanto socialização metódica, "agregue ao ser egoístÍr c a social, que acaba de nascer, uma natureza de vida moral e social" (itlcm, p. 4i). Esta inculcação não deve ser entendida, segundcr Durkheim, como insuportável tirania que a sociedade cxcrce sobre o indivíduo, mas como uma ação que interessa ao próprio inclivi duo, uma vcz que ó através de sua submissão a certas exigências sociais quc os homcns adquirem sua real dimensão humana, ou scja, human izam-se. Nas sociedades complexas, onde se verifica a multiplicação dc papéis, a educação tem um caráter ao mesmo tempo uno e múltiplo. Sua dinensão unjficadora garante a criação de un'ra base comum a todos, ind.pendentementc da catcgoria social a quc pcrtençam: "nâo há povo em quc não exiúa certo número de idéias, de scnti- mcntos c dc práticas que a cducacão deve inculcar a todas as erian- ças" (idcnt, ibídent, p.4l). De outro lado, a diversidade eduerejo nal justifica-se inteiramente numa sociedâde na qual é inrperalivo formar indivíduos diferentes para o exercício de funçõcs difcrcntcs. Argumenta Durkhein: "A socjedade não poderia existir sem quc houvcssc cnl sclrs trleml]los certa homogcncidade; a educação per pcttta c lclorca csta honrogclejdadc, Iixando dc antcn-rão na allr-ra da criança cDrtas similitudes essenciais, recktmadus pela vida colc lira. Pot outro lado, sem uma tal ou qual diversificação, toda co- opcracão seria impossíveJ: a educação asscgura a pcrsistôncia dcsta divcrsicladc ncccssária, d iversi ficando-se ela mesma e permitindo as cs peciaJizaçóe s" (idem, p. 42, grifo nosso). Flmbora defenda a necessidade da heterogeneidadc cducativa, Du|khcim rcssalta que esta diversidade não podc tcr como base injustas dcsigualdades sociais; não se podc, por exemplo, dcstinar uma criança às profissões manuais somente em função de seu local de nascimento ou de sua origem social. Mas, se a origem social do educando não é válida como critério para destinála a esta ou aquela educação, qual seria esse critério, no pensâmento durkl.rcimiano? As aptidões individuais. "Não podcmos nem de- vemos nos dedicar todos ao mesmo gênero de vida; temos, segundo nossas aptidóes, diferentes funções a preencher e será preciso qui: nos coloquenos em harmonia com o trabalho que nos incumbe Nem todos somos feitos para refletir; e será preciso que haja s€mpr: hor.nens cle sensibilidadé e homens de ação. Inversamente, há u'.' cessidade de homens que tenham, como ideal de vida, o exercíci'J A relaçao escolq-sociedade - 2l da cultula e do pensamento. Ora, o pensamento não pode ser de- senvolvido scnão isolado do movimento, scnão quando o indivíduo se curva sobre si mesmo, desyiando-sc da ação exterior" (itlem, ibidem, p. 35). Portanto, a educação, enquanto instituição sociali- zadora, tem um duplo papcl a desempenhar nas socicdadcs com- plexas: a homogeneização e a diferenciação dc seus integrantcs. A(é aqui acompanhamos o pensamento durkheimiano no ciue se refere à descrição e explicação do que ele chama de "socicdades complexas" genéricas, isto é, todos sociais integrados, articulados, harmoniosos, saudávcis, normais. No entanto, quando volta scu ins, trumental organicista para a análise da vida social nas grandcs c conturbadas cidades industriais europóias do fim do sóculo XÍX, Durkheim ,não encontrâ a integração, a solidariedade orgânica, a colaboração por ele preconizadas. Defronta-sc, pelo contrário, eom greves, falôncias, confrontos entre operários e patrões, concorrôn- cia desmedida entre os vários grupos en.rpresariais, enfirn, cxplo raqão, dominaÇão, competição, arbitrariedade. Está-sc, scgundo clc, diante de um organismo docnte. Coerente com o modelo olgânico de explicação do social, Dur-- kheim diagnostica esta situaÇão como anômala, patológica, nr cluul a prcscnça de disfunções impede a articulação harmoniosa do todo. O cstudo das sociedades complexas levou-o aos conceitos clc nor- malidade e de patologia social. Mais do que isso, Dulkhcim obsclva que quanto n.rais a civilizaçáo progride, mais diminui o nívcl dc rroralidadc (quc podc ser quantificado pelo número de suicídios c de crimes dc todos os tipos). A causa da patologia social çstaria, cntão, na divisão social do trabalho? Segundo cle, não. É na dc- sintegração das normas sociais, na falência da regulamcnta(-ao, lir inoperância dos mecanismos sociais de controlc, eficientes qrranclcr as socicdades não haviam atingido um tal grau de complcxidacle, que se encontram âs or;gens da situação vigentc. A estc cstado dc falência da legislação Durkheim chamou de anomia. No prefácio à segunda edição de A clivisão social clo trabqlho (em Gianotti, 197a, p. 3-21), Durkheim faz um diagnóstico da si. tuaçáo em que se encontra a organização social dos povos conten porâneos, qualificando-a d.e lenômeno mórbido, estodo de desregra- mento, estado de imoralídade coleÍivq, estado de anomia jurídica e moral. Detecta uma debilidade aguda na regulamentação das rela- ções entre empregador e empregado, trabalhador e empreiteiro, industriais entre si, industriais e público consumidor. Toda esta esfera da vida coletiva encontrâ-se, de acordo com sua anállse, sub- Íraída à aÇao moderadora da regra, entendi.da como uma maneira dc agir obrigatória, imposta e, portanto, fora do alcance do arbítrio individual. A desordem que se verifica no mundo moderno repousa 22 - Psícologia e ideologia na falência das instituições encarregadas da regulamentacão das re- laçõcs entre as partes. ". ..como nada contém as forças litigantes c não lhes dcsigna os limites que devem respeitar, elas tendem a sc desenvolvcr scnr limites e acabam por se chocar umas contra as outras para se reçalcarem e reduzirem mutuamente. Sem dúvida, as fltais irttertsas cor'rseguem muito bem aniquilar ds ütaís lrdcas e s[- bordiná las . . . IMas] as tréguas impostas pela violôncia são sem- prc aperlrs provisórias c não paciÍicam os espíritos, As paixões humanas ni-lo cessam senão diante de ttura potênoia moral que rcspcitcm" (í(lem, p.4, grifos nossos). A úr.rica rnedida que poderá reinstaurar a ordem e o equilíbrio perdiclos ser1r, para Durkheim, a criação de corporações proííssio r?ais, representativas das várias atividades profissionais, dotadas de auloridade legal e de poder regulanentar. Somente assim as rela- côDs cntre as partes, entre os "mais fortes" e os "mais fracos", deixarão de sc-r opressivas e os direitos e deveres de cada grup<r se irnporão Lrns aos outros colfra mgsma autoridade. Paraevjtar os erros do passado, quando as corporaçõcs aca- baram, no final do século XVIII, por transformat-se em engrena- gcns da administração. fortemente dependeDtcs do Estado, I)ur- khcirrr cnlatiza a ncccssidade cle quc as colporações seiaru instirui- çocs ptiblicas, cuja função seria, nâo a prestação de scr.viços cccr- nôrniccrs. nras o cxcrcício de um podel mor.al de regulamentação das rclaçôes sociais. Constituiriam uma das bases da organizoção po1ítica, a divisão elcmentar do Estado, a unidade política funda mcntal. Se, para Durkheim, a soluçào para o que elc <lcfiniu como cstado anômico em que se encontravam as sociedades Çomplexas, no final do sóculo, estava na criaçáo de um órgão neoessário à instituição de um novo direito, para outros sociólogos, também fun- cionalislas e igualmente críticos em lelação aos l'rrmos lomados pcla vida social, â função transformadora, a caminho de uma sociedade democráticâ, deyelia ser exercida pela educação escolar. Este é c) temâ central da sociologia educacional desenvolvida por Johr l)cwey e por Karl Mannheim, ambos represetrtantes, no pensamento educacional, da doutrina social e política conhecida como libera- - 1ismo, onde se cncontram as raízes profundas do pensamento edu- cacional brasileiro. 2. Liberalisnto e ensino O liberalismo, enquanto doutrina econômica dos que defen- dem o livre desenvolvimento dos interesses índividuais, sem limi- A relação escola-socieclade - 23 tação estatal, como sistema.para- atingir o bem-estar social e pri_vado, tem como corolário o individuallsmo, uma das -cara-cieríst icasdistintivas do noyo estilo de vida que ." a".""uãiu" "o 1e.ço docapitalismo, as comunidades urbanai européia, _ o. Àu.io, _ "gye, po_r isso, passou a ser designado como gênero de vi<Ja íurguês. Nas palavras-de Cox (1974, p. ZOl1, ,, proí^velmente a caractcrís, tica crucial de um sistema dé classes sãciais é o lnJlviOuaf ismo,,. . As_crenças por ele abrangidas são de que é possível cria. uma sociedade de. classes na quaf os indivíduós .."àiÀu*' uáirntu.iu- mente o câminho que os leve_ a uma determinada posiçào na vida;nela, as diferentes capacidades individuais podeÁ dJrenrollre.o" ao máximo de suas possibilidades e us p"sious são todas igual_ mente livÍes para âtingir uma posição sociãl de prestígio. _paralsto, a competição e a ambição são valorizadas como-formãs lícitas para atingir o êxito que, neste contexto, significa ascender ao máximo na escala social. Nesta ascensão, a insatisfação com o já conse_ guido é a mola propulsora que impele o indivíduc, a uÁa busca incessante de novas conquistas econômicas e sociais. No ideário liberal, o conceito de liberdade traduz-se, a nível político, no con_ ceito de democruciq. Contra o hermetismo do estamento dominante, na orclem social anterior, coDtra o rnonopólio de determinadas tarefas sociais por cstc estamcnto, que se valia tâmbém do casâmento cotno instituição que garantia a transmissão h-ereditária dos privilégios, a ideololia liberal se consolida com a Revolução Francesa. iuta' política da burguesia contra â aristocracia, contando com a adesão àus clusscs populares- Os ideólogos do liberalismo - Locke, Rousseau, Vol-taire, Diderot, Condorcet e Lepelletier, na Europa, e Mann, nos Estados. Unidos -. compartilhavam premissas e pressupostos bási_cos, embora discordassem, como nos Àostra Cunhá (197i, p. 3a_a5,1, quanto ao exato pâpel quc a escola desempenharia na Àociedade de classes. Os ideais liberais passaram aos p1ânos educacionais atra_ vés principalmente de Condorcet e LepelÉtier, autores, já após a Revolução Francesa, de projetos de üstrução públiÇa. Tanto o Plano de Instruçáo Pública de autoria do piimeiio, elaborado em 1872, como o Plano Nacional de Educaçãol da autoria de Lepelle- tier, divulgado no ano seguinte, têm cômo pressuposto básico a c_rença de que a igualdade de oportunidades seria pro^movida através da- instrução pública gratuita, obÍigâtória e iguaiitária- Ao Estâdo caberia assumir a dívida da educação nacional, controlar o ensino e instruir, garantindo a todos o direito à instrução. Neste sentido, a seguinte passagem, da autoria de Mann lapid Cunha, op. cit., p..44, grifo nosso) é exemplar: ,.Nada, por ceito. salvo a educação universal, pode contrabalançar a tendêniia à dominação do capital 24 - Psicologia e kleologíu e à servilidade do trrrbalho. . . . A educação, Portanto, mais do que qualquer outro instÍumento de origem humana, é a grande igualadora das condiçÔcs cntre os lromens - e sixs de equilíbrio dã maquinaria social. . . . Faz mais do quc clcsarmar os pobres de sua hostilidade para com os ricos: impede'os de ser pobras." Em suma, a cclucacão formal é çonsiderada um forte fator de construção de unra sooicdadc abelta, c um íator neutralizaclor' viabilizado pclo Estaclo, das desigualdadcs sociais. Scus proposito- res partcm, portanlo, da aceitação cla socicdade de classes como a sociédade idêal c da ctcnÇa na possibilidade de igLraldade clc opor' tur:idacles sociais nunra sooiedadc onde vigora o m.,do de produção capitalista. Prcsentc claramentl] no pensamcnto dos filósolos ccima mÉncionados (quando aceitarn a cxistência da propriedade privada, supostamente alcançada atravós do trabalho e do talento indivi- duais. quando afirmam quc il ascqnsão social dcpende útlica e ex- clusivamente das capacidades individuais e quc não pode haver isualdade socill totafctrtrc (J5 ll(rnl(ns p lqtlc llio exislC csl:l igual' d"adc a nível irrdivirlLtrl. ou. in, o..t.,,, l'.rl.rrtrr:. quc rs desigrral- dades sociais, nunt rcginlc social Iibcral. seriarn imputáveis às desi- gualdades inclividuais naturais), csla versão da vida social encon- ta"-r" aro centro das mais infltrcntcs cloullinas etlucacionais quasc dois séculos dePois. O mito ,la igualdade dc oportunirladcs, garantida pcla cduca- ção escolar financiada pclo Estaclo, criou t'aízes profundas no pen- samcnto cducacional ultlndial e cltcon(lâ-§c llo (crne das idóias c ideais dos [j]ósofos-ctiucadorss brasilciros, irrf ltrenciados quc foran.t pela produção intclcctual de Dewcy c Mannheim' 2.1 Dcnxtcr<rc'ia e c{lúLu[Ao; o lt?ttsLttttcttlo dc ltthn l)ewey\ Considerado por muitos çomo o filósofo da dcmocracia, |ohn Dewey, Íilósofo e eclucador norte-ínncricano, putlica,-a parlir dâ sesunáa década deste sictrlo. ul.na série de trabalhos sobre filosofia da'educação e pedaS(rgia. É cn Dcmocracia e aducação. publicado pela prirneira vã, e* lgtO (Dcwey, 1959, tradução brasileira), que à"se,ivolv" mais plenamente os fundamentos de seus ideais demo- cráticos, bem como o papel reservado à educaçáo escolar na con- secução destes ideais (1) Nl]stes bl.eves resrr»tos da lilosc'lia cducacional rlc alguns pensadorcs Íuncionalistas, será i,npossívcl f.tzcr jllsliÇa à conlplcxidadc e à impor_ tância de sua obra; apenas rcsumire)'nos algr.lns de seus aspeclos mais diretallleotc relscionídos com a cscolâ A relaçtio escola-sociedacle - 25 Nitidamente influenciado pelo pensamento sociológico de Dur- kheim, Dewey começa pcla análise da função que a educaçâo cum- pre na vida de uma sociedade abstrata, não especificada quanto à organização qrrc a caracteriza, para chegar à análise crítica do en- sino na socicdade de classes, tal como se configurava em sua época. A educação, enquanto nccessidade que garante a própria continui- dade da vida humana, através da transÍrissão Çonstante das expe- riências acumuladas pelo grupo às novas gerações, é por ele con- siderada uma instância social positiva, que deve cumprir a função social de produzir um ser humano "plenamente desenvolvido". O que Dewey entende por esta expressão? Ser humano plenamente desenvolvido é aquele que utiliza positivamente suas faculdades individuais inatas em ocupaçóes que tenham um significado social; por isso, Dewey critica o naturalismo de Rousseau, segundo o qual as atividades inatas se dcsenvolveriam espontaneamente, sem a necessidadc dc interação com o ambiente social; nessa crítica ele não sc alia, no entanto, aos que pregâm a sujeição da individuali- dadepela sociedade. Sem afirmar que o natural tem um valor absoluto ou que as boas instituições são aquelas que tcrnam o homem antinatural, Dewey salienta a importância da cducação que integre, e não con Úaponlra, o dcscnvolvinrento natural à eficiência social. Tal con- cepçáo de homcm, aliada a uma concepÇão da educação que produz este homem, ocorre nunl contexto mais amplo de definição da so- ciedade ideal, ou seja, â sociedade denlocráticct. E uma sociedade democrática é aqrrela "quc prepara todos os seus membros para com igualdade aquinhoarem de seus benefícios e que assegura o maleável reajustamento de suas instituições por meio da interação das divcrsas formas da vida associada. Essa sociedade deve adotar um tipo de educação que proporcione aos indivíduôs um interesse pessoal nas relaçóes e direções sociais, e hábitos de espírito que permitam mudanças sociais sem o ocasionamento de desordens,, (Dewey, op. cr'r., p. 1O6). O cidadão democrático, que desenvolve o melhor de si e o aplicâ conscientemente em nome de um fim -o bem comuú - só pode ser produzido, segundo Dewey, pela edrr cação tomada em sua concepção também democrática, por ele de- talhada, no curso de sua obra, em seus objetivos, métodôs, técnicas e conteúdos. Quando passa do ideal à realidade sociâl, Dewey (como Dur- kheim) constata a distância que os separa; são inúmeras as passa- gens de sua obra que ressaltam as inadequaçóes da organização social vigente e do sistema de ersino. Mas é nesse ponto que de- tectamos a fraqteza de sua ârgumentação: a análise críticâ que faz da sociedade de classes acaba inconsistente porque norteada por 26 - Psicologiq e ideoLogía juízos de valor, segundo o binômio "certo-errado", tomando como ponto de referência scus próprios r,alores, sem perceber que está atribuindo a uma cultura arbirár'ia (no sentido que Bourdieu dá a esta expressão) o valor dc verdade absoluta, paradigmática. Assim, por exemplo, ao fazer uma compaÍação entre a definição teórica do termo sociedadc e a realidade a quc sc referc, mostra que esta última, ao contrário da acepção teórioa da palavra que a designa. inclui "uma plutalidade de associações boas e más" (op. cit., p.88); âo tentar operâcionalizar critérios que permitam uma medida do valor dos diferentes modos de vida social, encarece a necessidade de "extrair os traços desejáveis das fotmas dc vida social existen- tes e empregá-los para criticar os traços indesejáveis" (op. cít., p,89) e demonstra como estes critérios podem funcionar numa i'ma1ta de ladrões", num "grupo de malfeitores" e na família, atri- buindo evidentes vantagens para esta última, em termos nitida-' ments éticos. Não faltam refçrências explícitas às iniqüidades da sociedade baseada em classcs sooiaris (p. 150), àr divisão do trabalho em intelectual e braçal (p. 9),'à cxploração das classes dominadas pelas classes dominantcs (P. 343), scm, contudo, qualqucr referên- cia às causas estrutlrrais dgstc gstado dc coisas; pelo contrário, as dimensõcs econômica e política da socicdade capitalista §ão vistâs muitas vezes como bcnóficas à humanidade (p. 346, por cxemplo). Os desvios do ideal dcmoqrático são, assim, creditados aos desvios pessoais, como é o caso dos "conluios crin.rinosos, das agrcmiaçôes comerciais que mais saqueiam o públioo do que o servem e engre- nagens políticas que se mantêm rrnidas pelo interesse da pilhagem" (op. cit., p.88). As causas das.deformações da vida social após a revolução industrial capitalista sáo consideradas individuais e nào sociais-estruturais. De fato, Dewcy afirma que à escola tem cabido, nesta for- mação social, perpetuar as velhas tradições em bcnclício de alguns poucos escolhidos, preparar uma camada da população para o exercício do trabalho braçal em benefício dos opulentos, perpetuar, enfim, a ordem social existente ao invés de transformá-la. Dewey pÍopõe que a transformação de una sociedade autocrática numa õrdãm soiial democrática seja feita através da educação Diz ele: "O triunfo ou o mau êxito nessa realização depende mais da adoção de métodos educativos apropriados a efetuar essa transformação do que de qualquer coiú. Pois essa mudança é essencialmente a mudança da qualidade da atitude mentâ1 - uma mudança edu- cativa" (op. cit., p. 349). Segundo ele, é preciso criar nas escolas uma projeção do tipo de sociedade que queremos obter e atuâr de maneirn u formar os espíritos em conformidade com este ideal. Neste projeto, o ensino "vocacional" (que ein Dewey assume um A relação escola-sociedade - 27 sentido inteiramente diverso do significado restrito que o termo assumiu no ensino profissionalizante) desempenha um papel cen- tral, pois scrá ele que garantirá a consecução dos objetivos da escola: o desenvolvimento de acordo côm a natureza, a eficiência social e o enriquecimento mental e cspiritual. Cabe ao Estado gerir a esoola cnquanto ambiente cspccial que forneça "um am- biente homogêneo e bem cquilibrado às pessoas mais jovens" (op. ch., p. 23). A leiturâ de Democracía e educação pode levâr-nos, num pri- meiro momento, à dúvida sobre se Dewey propunha a substituição da sociedade de classes por uma sociedade autenticamente demo- crática ou apcnas sua " democratização ", sem transformá-la em seus fundamentos. Freqüentcmentc, suas análises e argumentos percor- rem caminhos que ora o acercam, ora o distanciam da proposta de superação da sociedade de classes; esta ambigüidade é nítida, por exemplo, em suas considerações sobre a cisão entre o trabalho braçal e o intelectual etrr nosso "defeituoso regime industrial" (p. 349): "...tal Çstade de coisas cxistirá enquanto a sociedade for organizada com fundamento na divisão em classes trabalhado- ras e classes não-traba Ihadora s. A inteligência daqueles que fabri cam e produzem torna-se cspessa em sua incessante luta com as coisas; e a dos que se emanciparam da disciplina do trabalho tor- na-se amante dos prazercs, ostcntadora e afeminada. Além disso, a maioria dos scrcs humanos ainda não goza de liberdade econô- mica. Suas ooupações são escolhidas pelo acaso e pela premência das circunstâncias; não são a exprossão normal de suas aptidôes em atuação recíproca com as necessidades e recursos do ambiente. As nossas condições cconômioas ainda reduzem muitos homens a uma condição servil. A conseqiiência é não scr liberal a inteligência daqueles que são os senhores da situação, na vida prática. Em vez de propugnarem rcsolutamente pela submissão do mundo aos fins humanos eles dedícam-se a utílizar-se (los outros homens para lins tanto mais anti-humanos quanto mdis egoístqs" (p. 149, grifos nos- sos). A mesma dúvida pode invadir o leitor em passagens nas quais Dewey se refere aos conteúdos e objetivos da nova educação, em termos aparentemente scmelhantes aos de uma pedagogia do opri- mido: "uma educação que reconheça a plena significação intelec- tual e social de uma vocação incluiria em si â instrução sobre os antecedentes históricos das condições sociais para proporcionar com- preensão e iniciativa a respeito dos materiais e dos fatores da produção, e o estudo da economia, da ciência, do governo e da política, para pôr o futuro trabalhador em contato com os pro- blemas atuais e com os vários métodos propostos para sua solução. Acima de tudo, ela lhe excitaria a capacidade de ieadaptação às 28 Psicologitt e iJcologut mudanças dc condiçôes, dc modo que o futuro não se tornassecegâmente submisso ao dcstino que Ihe fosse imposto., 1p.:St-fSZy.No cnranto, csta perccpção da realidade ,o.iát "ãrnà'irip".f"itu,sobretudo corno fruto dc distorçóes pessoais, moralmente àndená_yeis,.dos que a gercrn c do anacronismo a"' a"t.iÀi"áãà.-té"ni"u" sociais de controlc e não clas ealacteristicas do rnoa" J" p.oduçao em vigor vinbiliza a defesa dc possibiliclade Lle igualdaJe'ãe opor_tunidades nunrü cslr.ulur:r s.,..iirl .lc classcs. fm u-lrima insÃnciu, amudança social que dcfcndc e pela qual luta atravls ão -àetalha_ mento de urn modelo educacior.ral altel nativo pareoe consisti. numamaior permeabilidado nas bar.reiras
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