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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS DISCIPLINA DE LITERATURA PORTUGUESA V PROFº PAULO FERNANDO MOTTA OLIVEIRA Juliet da Silva Rodrigues O narrador em Coração, Cabeça e Estômago, de Camilo Branco e A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho São Paulo 2017 No ano de 1862, Camilo Castelo Branco publicou cinco obras: As Três Irmãs; Amor de Perdição; Coisas Espantosas; Coração, Cabeça e Estômago; Estrelas Funestas; todos muito diferentes entre si. No presente trabalho, será analisado Coração, Cabeça e Estômago visando a comparação de seu narrador com o narrador de Alexandre Dumas em A Dama das Camélias. Coração, Cabeça e Estômago segue a tradição narrativa do manuscrito encontrado, onde há uma história moldura narrado pela pessoa que encontra de alguma forma a história que será contada. Neste caso, esta personagem tem um papel de emitir a história ao leitor e pouco ou nada intervém nela. Isso não ocorre em Coração, Cabeça e Estômago (e nem em A Dama das Camélias, como veremos mais à frente). Especificamente em Coração, Cabeça e Estômago, o chamado editor é amigo do narrador da história e herda seus escritos, poemas, diários, textos de jornais e, a pedido do falecido, publica esses textos, sempre intervindo ao explicar, narrar e julgar valores morais e literários a respeito do texto. “Eu fui o herdeiro dos seus papéis. Alguns credores quiseram disputarmos, pensando que eram papéis de crédito. Fiz-lhes entender que eram pedaços de um romance; e eles, renunciando a posse, disseram que tais pataratices deviam chamar-se papelada, e não papéis.” (BRANCO, Preâmbulo) Neste trecho, o narrador-editor apresenta a circunstância em que recebe os escritos de seu amigo morto Silvestre da Silva. A narrativa vai se completando, o manuscrito vai sendo descrito, e conforme ele atribui períodos em que as tais partes foram escritas, ele presume que o leitor tenha conhecimento da figura que foi Silvestre da Silva. “Nenhum deles designa época; mas quem tiver, como eu, particular conhecimento do indivíduo, pode, sem grande erro cronológico, datar os três manuscritos. O Coração reina desde 1844 até 1854. São aqueles dez anos em que nós vimos Silvestre fazer tolice brava. Em 1855 notamos a transfiguração do nosso amigo, que durou até 1860, época em que tu já tinhas trocado o Património da estima dos teus conterrâneos pelas lentilhas do Novo Mundo. Não viste, pois, a transição que o homem fez para o estômago, sepultura indigna das santas quimeras, que aconteceram na mocidade, e consequência funesta da má direção que ele deu aos Projetos, raciocínios e sistemas da cabeça. Podemos assinar tempo ao terceiro volume, desde 1860 até fim de 61, em que o autobiógrafo se desmanchou do que era para se arranjar doutro feitio.” (BRANCO, Preâmbulo) Percebe-se elementos que atestam (supostamente) a veracidade dos fatos narrados. Temos datas e informações que, para quem conhecera Silvestre da Silva, teria conhecimento de tais fatos. Além disso, comenta prosaicamente sobre cada uma das fases de Silvestre, opinando sem concessões - já que ele está morto. Outro dado importante é que o narrador/editor aproxima Silvestre do leitor como pessoa real, portanto, a obra (Coração, Cabeça e Estômago) é real para o leitor. E o elemento que mostra que o autor implícito (Camilo Castelo Branco) se coloca como sendo o próprio Camilo é a menção à uma personagem histórica logo na primeira frase do texto em diálogo: “— O meu amigo Faustino Xavier de Novais conheceu perfeitamente aquele nosso amigo Silvestre da Silva…”. Fautisno Xavier de Novais foi escritor e jornalista português, cunhado de Machado de Assis. Colaborou com a revista Revista Contemporânea de Portugal e Brasil, assim como fizera o nosso escritor brasileiro e Camilo Castelo Branco. Dividido em três partes intituladas respectivamente como “Coração”, “Cabeça” e “Estômago”, pode-se pensar num primeiro momento que elas tenham sido escritas mais ou menos na época em que se passa a ação das narrativas, explicitadas pelo narrador/editor. Mas como Silvestre da Silva mantém um tom de ironia quando narra os acontecimentos das partes “Coração” e “Cabeça”, presumimos juntamente com o narrador/editor que elas foram escritas quando o autor estava já vivenciando a época seguinte, ou seja, havia um distanciamento crítico e irônico. Aqui faço um parenteses importante: em cada parte do livro Silvestre age conforme os preceitos do coração (guiado pelas emoções), cabeça (guiado pela razão) ou do estômago (guiado pelas necessidades mais fisiológicas) de maneira inteira e unilateral. Portanto é compreensível que ele tenha alcançado com êxito o tom satírico nas duas primeiras partes (ele só não dispõe desse procedimento estilístico ao narrar a narrativa de Marcolina devido ao teor mais trágico). Dito isso, Silvestre da Silva, ao contar sobre suas peripécias, já tem um certo distanciamento e outra ideologia que rege sua vida no momento em que as escreve. Ao narrar a parte “Estômago”, Silvestre naturalmente, quer provar que este é o estilo de vida mais correto de se viver, que proporciona mais felicidade e deveria ser um modelo de vida. Aqui, o narrador/editor intervém com o dado que mostra que Silvestre não pode ser um modelo, já que morreu de complicações de seus hábitos de comilança exacerbados. “Silvestre acompanhou-me aos banhos da Póvoa e já vinha com todos os sintomas de caquexia, resultante da imobilidade, e cansaço das molas digestivas. Retirou-se para a província logo que os primeiros banhos e as primeiras perdas ao jogo lhe molestaram o corpo e o espírito. De lá me escreveu, contando os progressos da cabeça da doença e prognosticando o seu próximo fim. Nesta carta prometia o meu amigo legar-me os seus papéis, com plena autorização de divulgá-los, se eu visse que podiam ser de proveito para a iniciação da mocidade. À maneira do moralista Duclos, dizia ele: “J'ai vécu, je voudrais être utile à ceux qui ont à vivre.” (BRANCO, O editor ao respeitável público) Assim como o narrador-editor, o leitor compreende que Silvestre, tendo a ingenuidade de um “bom selvagem”, não soube mesclar as três diferentes forças para guiar sua vida. O que pode ser um dos motivos pelos quais ele tenha optado por editar as memórias do amigo, além de claro, pagar os credores (diga-se de passagem, prevista para ser plenamente paga quando o livro chegar à 10ª edição.). Em As Dama das Camélias (publicado em 1848), o procedimento do manuscrito encontrado tem a forma do relato de um dos personagens que viveu aquela história. O testemunho dado ao editor pode parecer mais espontâneo (e por isso, mais legítimo) que os escritos de Silvestre. Temos que ter em mente que ao contar essa história, ela está carregada de subjetividade do enunciador, portanto, Armand Durval faz um relato tão confiável quanto o de Silvestre, mas pelos motivos contrários: Armand acabou de perder Marguerite e está atormentado pela culpa; já Silvestre tem distanciamento crítico de dois terço de suas narrativas, escritos quando adota ideais contrários aos que guiaram-no nas ações narradas. Num determinado momento, a própria Marguerite narra indiretamente através de seu diário e dentro do diário há ainda a narrativa de sua amiga. O mesmo procedimento é usado em Coração, Cabeça e Estômago, no capítulo intitulado “A Mulher que o Mundo Despreza”, quando Marcolina tem voz através de Silvestre e em alguns momentos relata a narrativa de personagem que encontrara ao longo de sua história. O interessante é que Dumas também faz o papel duplo de narrador/editor: ele compila essa história com um propósito, diz que os fatos podem ser atestados pelas testemunhas, cita nomes de lugares e datas precisas e, ainda que em menor presença, inclui sua própria leitura da história, guiando a interpretação do leitor. “Não tiro desta narrativa a conclusão de que todas as moças como Marguerite são capazes defazer o que ela fez. Longe disso, mas é do meu conhecimento que uma delas experimentou, em sua vida, um amor sério, que sofreu por esse amor e por ele morreu. Contei ao leitor o que soube. Tratava-se de um dever. Não sou apóstolo do vício, mas ecoarei a nobre infelicidade em todos os lugares em que a ouvir suplicar. A história de Marguerite é uma exceção, repito. Mas, fosse uma regra, não valeria a pena escrevê-la.” (DUMAS FILHO, XXVII) Mais implicitamente que Camilo Castelo Branco, o narrador/editor de A Dama das Camélias se assume como sendo o próprio Dumas Filho ao expor datas e lugares reais. Mas a principal diferença entre esses dois narradores-editores é o nível de intromissão na narrativa central. Em Coração, Cabeça e Estômago, o narrador-editor comenta, desmente, acrescenta informações, narra acontecimentos correlacionados e critica o texto, tendo um papel mais participativo na feitura da obra final (a obra que temos em mãos) que o narrador de A Dama das Camélias. O suposto Dumas Filho, participa mais como personagem da própria narrativa, interagindo com os textos (cartas, diários, sendo ouvinte) e com as personagens que interferindo nos textos, mesmo quando é ouvinte. Bibliografia: BRANCO, Camilo Castelo. Coração, cabeça e estômago. Texto-Fonte: 2 ed. Lisboa: Publicações EuropaAmérica, LD. Disponivel em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000063.pdf>. Acessado em: 07 de abril de 2017. DUMAS Filho, Alexandre. A dama das camélias. Porto Alegre: L&PM 2011. Ebook. http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000063.pdf