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Rayssa Mirelle S Carvalho 1 Febre Reumática ÇÃ Febre Reumática (FR) é uma doença inflamatória autoimune sistêmica aguda, que ocorre como sequela tardia de uma infecção das vias aéreas superiores (faringoamigdalite) pelo Streptococcus pyogenes. Caracteriza-se clinicamente pelo comprometimento preferencial das articulações, do coração, da pele e tecido subcutâneo e do sistema nervoso central (gânglios da base). Em todos esses órgãos as lesões são transitórias, exceto no coração, onde costumam ocorrer sequelas, principalmente nas valvas cardíacas esquerdas. Características: A febre reumática aguda (FRA) é desencadeada por respostas imunes de reatividade cruzada entre estreptococos b-hemolíticos do grupo A (EGA) e epítopos do tecido hospedeiro. Há um período de latência de 2 a 3 semanas entre a infecção por EGA incitante e os sintomas de FRA, com exceção da coreia, para a qual o período de latência é tipicamente de 4 a 8 semanas. A FRA é mais comum entre pessoas de 5 a 15 anos de idade, com um declínio na incidência em adultos. Esta condição é rara em crianças com menos de 3 anos de idade. A forma aguda da doença é caracterizada por todos ou por um subconjunto dos seguintes sintomas: febre, artrite, cardite, coreia de Sydenham, eritema marginado e nódulos subcutâneos. A doença cardíaca reumática crônica é a principal causa de morte na febre reumática e pode ser em grande parte prevenida por meio de profilaxia antibiótica adequada. Há um modelo de fisiopatologia da FR no qual a infecção da orofaringe por uma linhagem de EGA que possui epítopos semelhantes a antígenos humanos (mimetismo molecular) é inicialmente combatido pelo sistema imunológico inato. A resposta imunológica adaptativa ativada localmente superproduz, então, citocinas e anticorpos pró- inflamatórios, um subconjunto dos quais é capaz de reação cruzada com epítopos humanos e bacterianos. As citocinas agem sistemicamente, ativando e expandindo múltiplos clones de linfócitos. Nas articulações, estes anticorpos precipitam-se sob a forma de um complexo imunológico e ativam o sistema complemento, induzindo a artrite. Alguns anticorpos podem reconhecer neurônios dos gânglios basais e induzir a secreção de dopamina, o que causa a coreia de Sydenham e muito provavelmente transtorno obsessivo-compulsivo em determinados pacientes. É possível que uma tendência em direção a uma resposta imunológica sistêmica do tipo Th2 envolva uma resposta Th1 menos exacerbada, conferindo alguns efeitos cardioprotetores. Alguns autoanticorpos contra estruturas cardíacas- — principalmente aqueles derivados da miosina, laminina e tropomiosina — promovem a expressão de moléculas de adesão tais como a VCAM-1 (molécula de adesão celular vascular), que induz inicialmente o recrutamento de monócitos e macrófagos. Essas células mononucleares produzem um grande número de citocinas, que agem localmente com propriedades pró-inflamatórias e anti-inflamatórias. O equilíbrio entre estas citocinas determina a magnitude da atração de linfócitos periféricos para o coração e a gravidade da inflamação local. É possível ocorrer degeneração no reconhecimento do antígeno e propagação de epítopos, causando inflamação persistente e intensa, bem como danos ao coração. Se as citocinas anti-inflamatórias tiverem um efeito maior, a inflamação termina e ocorrem poucos, se ocorrer algum, danos cardíacos. Nesse modelo, possíveis pontos em que as circunstâncias genéticas do hospedeiro podem ter uma influência são: a resposta imunológica inicial exacerbada, apresentação do epítopo HLA/TCR (e, portanto, mimetismo molecular e ativação do sistema adaptativo), equilíbrio sistêmico Th1/Th2 e equilíbrio local de citocinas, o que determina se a inflamação continua ou termina. Rayssa Mirelle S Carvalho 2 ÇÕ Í As manifestações da FRA variam muito entre indivíduos e entre pacientes de diferentes idades. Observam-se também diferenças nos achados de estudos prospectivos e retrospectivos. A FR é rara antes do terceiro ano de vida e não é frequente em indivíduos com mais de 15 anos de idade; a maioria dos casos ocorre em indivíduos entre as idades de 4 e 9 anos. Crianças pequenas tendem a apresentar febre e cardite com mais frequência, enquanto a artrite é mais comum em adultos. Se houver febre, pode ser alta ou baixa. A artrite é a mais comum das principais manifestações, seguida por cardite e coreia. ARTRITE A artrite costuma ser o principal sintoma inicial da FRA, embora por vezes a cardite possa ocorrer primeiro. A artrite é mais grave e mais comum em jovens adultos (quase 100% dos casos) que em adolescentes (82%) e crianças (66%). Tem um padrão poliarticular, assimétrico e migratório; O termo tradicional migratório não indica necessariamente que a inflamação desaparece em uma articulação e aparece em outra. Os locais afetados costumam sobrepor-se no tempo, e a progressão também pode ter um efeito aditivo. Relatou-se o envolvimento monoarticular em apenas 17% a 25% dos pacientes em séries mais antigas. No entanto, uma vez que os medicamentos anti- inflamatórios não esteroides (AINEs) alteram o curso natural da artrite e potencialmente interrompem o padrão migratório, a monoartrite agora é mais comum. Os pacientes não tratados apresentam, de maneira típica, o envolvimento de 6 a 16 articulações. Grandes articulações — tais como joelhos, tornozelos, cotovelos e punhos — são as envolvidas com mais frequência, e os membros inferiores costumam ser os primeiros afetados. O quadril, ombro e articulações falangeanas são as envolvidas com menos frequência. CARDITE A cardite é a segunda manifestação “maior” mais frequente na FRA, ocorrendo em 50-60% dos casos. A ocorrência de cardite responde por quase 100% da morbimortalidade atribuída à doença. No surto inicial de FRA a cardite costuma ser branda (podendo, inclusive, ser subclínica), mas na medida em que surtos repetitivos se sucedem, os novos episódios de cardite tornam-se progressivamente mais graves, deixando sequelas cumulativas. Os três folhetos do coração podem ser afetados: endocárdio, miocárdio e pericárdio. O acometimento endocárdico (“valvulite”) é universal ao passo que o acometimento dos demais folhetos é variável. Obs.: Na prática, na maioria das vezes em que a FRA se manifesta com cardite, o paciente apresenta apenas valvulite mitral, às vezes com doença associada na valva aórtica. Sendo assim, ao examinarmos um paciente com FRA e cardite, em geral o que se evidencia é a existência de um sopro de regurgitação valvar, tipicamente regurgitação MITRAL. ERITEMA MARGINADO É um rash eritematoso maculopapular, com nítidas bordas avermelhadas, serpiginosas, com centro claro, que costuma se estender de forma centrífuga. A lesão não é pruriginosa nem dolorosa, não produzindo sintomas. “A febre reumática lambe as articulações, mas morde o coração.” Rayssa Mirelle S Carvalho 3 É uma manifestação incomum da FRA (~ 1% dos casos). Os locais preferenciais de aparecimento são o tronco e as porções proximais dos membros, sendo a face tipicamente poupada. As lesões têm caráter migratório, ou seja, enquanto algumas aparecem, outras desaparecem. Na grande maioria dos casos, o eritema marginado é acompanhado pela cardite e, frequentemente,também se associa aos nódulos subcutâneos da FRA. Não é patognomônico de FRA, podendo ocorrer em farmacodermias, sepse ou mesmo de forma idiopática. Esta manifestação não responde ao tratamento com anti-inflamatórios. NÓDULOS SUBCUTÂNEOS São nódulos firmes, indolores, medindo de 0,5 a 2 cm (geralmente têm o tamanho de um “grão de ervilha”), solitários ou numerosos. Esses nódulos não apresentam sinais flogísticos, e a pele sobre eles é móvel. Geralmente aparecem em associação à cardite e, quando isso acontece, a cardite costuma ser grave. Normalmente aparecem cerca de três semanas após o início dos sinais e sintomas de cardite reumática e têm duração em torno de 1-2 semanas, no máximo um mês, diferenciando-se dos nódulos da artrite reumatoide, que são mais duradouros. São encontrados em < 1% dos casos, constituindo a manifestação “maior” mais rara da doença. COREIA DE SYDENHAM É uma síndrome que geralmente se instala após alguns meses (1-6 meses) do início do quadro de FRA, em geral, após os outros sintomas “maiores” terem regredido. Aproximadamente 20% dos pacientes com FRA desenvolve coreia. Coreia é um distúrbio motor involuntário (extrapiramidal), caracterizado pela presença de movimentos bruscos e fora de propósito, presentes nas extremidades e na face. Os movimentos coreicos geralmente começam nas mãos, posteriormente acometendo os pés e a face, de caráter simétrico ou assimétrico. A hemicoreia ocorre em um percentual significativo dos casos. Podem surgir “sorriso largo”, “caretas” e contorções. A fala geralmente está comprometida (disartria) e a língua também pode apresentar movimentos involuntários. Ó NÃO existem manifestações clínicas ou laboratoriais patognomônicas de febre reumática aguda. Logo, seu diagnóstico se baseia no reconhecimento de um conjunto de critérios, os famosos Critérios de Jones, cuja última revisão foi feita em 2015 pela American Heart Association. O critério pode ser utilizado tanto em primeiro episódio, como em casos recorrentes; Rayssa Mirelle S Carvalho 4 Os critérios devem ser aplicados de maneira diferenciada em função do risco de febre reumática da população do paciente acometido. Assim, consideram-se dois cenários: População de baixo risco e população de moderado/alto risco. O tratamento da FRA se baseia no controle da atividade inflamatória e na erradicação do S. pyogenes da orofaringe (antibioticoterapia inicial seguida de antibioticoprofilaxia para evitar novas infecções). O paciente também deve permancer em repouso enquanto durarem as manifestações inflamatórias, principalmente na vigência de cardite. ERRADICAÇÃO DO S. PYOGENES A antibioticoterapia, visando a erradicação do estreptococo do grupo A (S. pyogenes) da orofaringe, deve ser prescrita para todo paciente com diagnóstico de FRA, independentemente dos resultados da cultura. A droga de escolha em nosso meio é: Também existem as opções via oral. Vale salientar, que em outros países a penicilina VO é a primeira escola, mas aqui no Brasil, utiliza-se uma conduta diferente porque a pen V nem sempre é encontrada nas farmácias brasileiras e pela adesão. Obs.: Imediatamente após a antibioticoterapia a antibioticoprofilaxia secundária deve ser iniciada. PROFILAXIA Pacientes com história de febre reumática devem receber antibioticoprofilaxia contra o estreptococo do grupo A Em todas as populações (baixo, moderado e alto risco), o diagnóstico do PRIMEIRO EPISÓDIO DE FRA poderá ser estabelecido quando o paciente apresentar: 2 critérios maiores + critério obrigatório; 1 critério maior + 2 critérios menores + critério obrigatório. o diagnóstico dos EPISÓDIOS RECORRENTES DE FRA NAS POPULAÇÕES DE MODERADO/ALTO RISCO (ex.: Brasil) poderá ser estabelecido quando o paciente apresentar: 2 critérios maiores + critério obrigatório; 1 critério maior + 2 critérios menores + critério obrigatório; 3 critérios menores + critério obrigatório. Penicilina G benzatina, via IM, dose única. – 1.200.000 unidades se peso > 20 kg. – 600.000 unidades se peso ≤ 20 kg. Rayssa Mirelle S Carvalho 5 visando prevenir novos surtos da doença (profilaxia “secundária”). PROFILAXIA PRIMÁRIA Consiste no tratamento adequado e oportuno da faringoamigdalite estreptocócica, antes que o primeiro episódio de FRA aconteça. PROFILAXIA SECUNDÁRIA Todo indivíduo que já teve um episódio de FRA encontra-se sob risco particularmente aumentado (50%) de novos episódios após reexposição ao estreptococo do grupo A (seja esta última sintomática ou não). O risco é mais alto nos primeiros cinco anos após o episódio, diminuindo daí em diante. Logo, a antibioticoprofilaxia de longo prazo, quando feita de maneira correta, é eficaz em evitar a recidiva da doença. A escolha recai sobre a penicilina G benzatina, uma formulação injetável que tem a vantagem de manter níveis séricos estáveis por longos períodos. A duração deve ser de no mínimo cinco anos após o último episódio de FRA e, no máximo, a vida inteira. Obs.: Pacientes com boa adesão terapêutica que não desejam receber injeções regulares PODEM fazer uso diário de penicilina V ou sulfadiazina pela via oral. Se houver alergia à penicilina e às sulfas, a escolha passa a ser a azitromicina (alguns autores preferem a eritromicina).
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