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1 MÓDULO I: FEBRE, INFLAMAÇÃO E INFECÇÃO ANA LUIZA A. PAIVA - TXXV OBJETIVOS 1- Analisar a febre reumática, considerando o conceito, epidemiologia, etiologia, fisiopatologia e tratamento 2- Descrever os principais exames de prova inflamatória, critérios de diagnóstico e complicações 3- Explicar a importância da profilaxia primaria e secundaria da febre reumática REFERÊNCIAS • Clínica médica USP (2ªed vol.5) • Diretrizes Brasileiras para o Diagnóstico, Tratamento e Prevenção da Febre Reumática- Soc. Brasileira de Cardiologia • Reumatologia: diagnóstico e tratamento (5ª ed) - Marcos Antônio P. Carvalho DEFINIÇÃO A febre reumática (FR) é uma doença autoimune sistêmica aguda que se manifesta como uma sequela tardia de uma infecção respiratória das vias aéreas superiores (faringoamigdalites) causada pelo estreptococo beta-hemolítico do grupo A (EBGA). A FR se desenvolve em cerca de 2 a semanas após a infecção faríngea. Esse comprometimento pode afetar o funcionamento das articulações, da pele e tecido subcutâneo, do sistema nervoso central e do coração. EPIDEMIOLOGIA Atualmente, a FR é uma doença rara em países desenvolvidos. Nas últimas décadas, sua incidência também tem diminuído nos países em desenvolvimento, (melhoria das condições sanitárias e da possibilidade de tratamento específico com antibioticoterapia adequada) 13% a 43% da população mundial é portadora de FR. No Brasil, a FR e sua sequela mais importante, a valvulopatia reumática, continuam relativamente comuns com taxas de morbidade e mortalidade não desprezíveis. A cardiopatia reumática é a causa mais frequente de indicação de cirurgias cardíacas em adultos A FR surge pela primeira vez em 2,5 a 4,0% dos pacientes infectados após epidemias de faringite estreptocócica e, em geral, ocorre 1 a 3 semanas após a infecção. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estima-se que anualmente no Brasil ocorram cerca de 10 milhões de faringoamigdalites estreptocócicas, perfazendo o total de 30.000 novos casos de FR, dos quais aproximadamente 15.000 poderiam evoluir com acometimento cardíaco. 40% dos indivíduos afetados pela doença terão algum tipo de cardiopatia associada a sequelas cardíacas A maior incidência da FR ocorre entre os 5 e 18 anos de idade, sem predileção por raça ou sexo. Em 2007, foram gastos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) cerca de R$ 157.578.000,00 em internações decorrentes de FR ou CRC, de origem clínica ou cirúrgica Não é esperado FR em: - Infecção por outros tipos de estreptococos -Outras infecções estreptocócicas, que não são faríngeas como a sepse puerperal e pneumonias. COMPLICAÇÃO DE UMA AMIGDALITE Problema 08: 2 MÓDULO I: FEBRE, INFLAMAÇÃO E INFECÇÃO ANA LUIZA A. PAIVA - TXXV -Crianças < 4 anos: acredita-se que para manifestar a FR, tem a necessidade de ter uma maturidade imunológica ETIOLOGIA E FISIOPATOLOGIA Para haver a FR, a infecção estreptocócica beta- hemolítica deve ser faríngea (não é considerados outros sítios de infecções desses patógenos) A origem da doença está associada a uma reação cruzada de anticorpos produzidos originalmente contra produtos e estruturas dos estreptococos, porém passam a reconhecer também as células do hospedeiro, que se tornam alvos dos anticorpos produzidos contra o antígeno infeccioso, (mimetização molecular) O processo inflamatório cardíaco está associado a uma reação cruzada entre a proteína M do Streptococcus pyogenes e as proteínas miosina, queratina e outras proteínas do tecido cardíaco humano. INTERAÇÃO Susceptibilidade genética do hospedeiro + fator bacteriano (mimetismo molecular) Mimetismo celular: semelhança estrutural entre um patógeno e as estruturas normais do hospedeiro, ou seja, as diferentes estruturas da bactéria simulam as estruturas do hospedeiro. - Cápsula da bactéria (ácido hialurônico) = sinóvia e cartilagem - Camada externa (Proteína M) = sarcolema miocárdico - Camada média (grupo de carboidratos A) = miocárdio -Camada interna(mucopeptídeo) = tecido valvular -Membrana protoplasmática = sarcolema miocárdico e núcleo caudado subtalâmico Portanto, esse mimetismo molecular justifica a predileção da resposta imune contra as articulações, coração e SNC Nódulos de Aschoff: evidência anatomopatológica na qual há uma formação de um granuloma no miocárdio. Ele é formado por macrófagos modificados (cromatina mais condensada) que envolvem o material fibrinóide. REAÇÃO IMUNE CRUZADA Essa resposta depende da ação de linfócitos T e B, além da produção local de citocinas, causando lesões inflamatórias autoimunes. Caso se exacerbem, essas lesões podem se tornar irreversíveis -Linfócitos B (resposta humoral Th2) e anticorpos = poliartrite e coreia -Linfócitos T (resposta celular Th1) = cardite grave sequela QUADRO CLÍNICO ARTRITE Comum em 75% dos pacientes com FR, é caracterizada pelo processo inflamatório das articulações, sendo acompanhado por inchaço, calor, eritema, limitação significativo dos movimentos e macicez à pressão. Ela também tem caráter migratório – ou seja, aparece em uma ou algumas articulações, desaparece, mas então aparece em outras, aparentado assim passar de uma articulação para outra –, poliarticular – por isso também é chamado de poliartrite – e assimétrica. A duração total do surto articular é de duas a três semanas, evoluindo para a cura, sem seqüelas As articulações maiores das extremidades são geralmente comprometidas - com mais frequência os joelhos e tornozelos, mas também os punhos e cotovelos. Os quadris e as pequenas articulações das mãos e dos pés são afetados ocasionalmente. Se ocorrer comprometimento das articulações vertebrais, deve-se suspeitar de outras doenças. CARDITE É a segunda maior manifestação clínica, afetando de 50 a 60% dos doentes. Seu início é de caráter brando, podendo até ser subclínico. No entanto, com o decorrer do desenvolvimento da FR, os episódios de cardite se 3 MÓDULO I: FEBRE, INFLAMAÇÃO E INFECÇÃO ANA LUIZA A. PAIVA - TXXV tornam mais intenso, tendo um teor cumulativo, se tornando progressivamente mais fatal. Sendo assim, a ocorrência desse sintoma é um determinante para o mal prognóstico a longo prazo da doença, aumenta a morti-morbidade da febre reumática. A FR pode afetar todos os folhetos cardíacos podem ser afetados: endocárdio, miocárdio e pericárdio. O primeiro é SEMPRE acometido na cardite, sendo chamado de “valvulite”, ao passo que os demais folhetos podem ou não serem lesados. Portanto, caso haja lesões de um desses folhetos SEM a presença de “valvulite”, podemos afastar a hipótese de FR e levar outras possibilidades em conta. Quando os três folhetos são lesionados, podemos considerar um quadro de pancardite reumática exsudativa. Na maioria das cardites em pacientes com FR, o paciente apresenta universalmente valvulite mitral, podendo ou não ter uma lesão na valva aórtica associada. Obs: Caso o acometimento seja apenas no aórtico OU em qualquer outra valva do coração direto, podemos descartar a FR A principal complicação que essas valvite encontrada no exame físico cardiovascular é a presença de sopros cardíacos. O sopro mais comum é o de insuficiência/regurgitação mitral, caracterizado por ser um sopro holossistólico, se irradiando para dorso ou axila. Em caso de estenose mitral, encontramos um sopro diastólico em foco mitral, com o som em ruflar – se assemelhando a um bater de assas. Também chamado de sopro de Carey-Coombs, ocorre por conta de um turbilhonamento de sangue através dos folhetos mitrais inflamados e muito edemaciados. Por fim, menos comum, temos um sopro protodiastólico aspirativo e bem audível em foco aórtico acessório, sendo resultadode uma insuficiência aórtica. ERITEMA MARGINADO Tal sintoma se manifesta por eritemas com bordas nítidas, com centro claros, contornos arredondados ou irregulares e de difícil diagnóstico em pessoas com tons de pele mais escuros. Dessa forma, o eritema também é conhecido como um “rash” eritematoso maculopapular. Ele pode estar associado a cardite, mas não necessariamente a sua forma grave. Essas lesões de pele têm caráter múltiplo, indolor, não pruriginosa, podendo se juntar com as adjacentes, formando manchas com formatos serpiginoso. São localizadas nas regiões do tronco, abdome, face interna dos membros superiores e inferiores, com exceção da face (diferente de qual outra doença reumatológica: isso, lúpus sistêmicos). A temporariedade dessa manifestação clínica consiste, geralmente, no início da doença, podendo persistir ou se tornar recorrente durante meses. NÓDULOS SUBCUTÂNEOS São múltiplos nódulos arredondados, variando de 0,5 a 2 cm, firmes, móveis, indolores, recoberto por epiderme e sem sinais flogísticos. Geralmente acompanha quadro de cardite grave. Já em relação a sua localização, são encontrados sobre proeminências e tendões extensores, ou seja, cotovelos, punhos, joelhos, tornozelos, região occipital, tendão de Aquiles e coluna vertebral. Por fim, em relação ao tempo, esses nódulos possuem aparecimento tardio, geralmente 1 a 2 semanas após as outras manifestações. 4 MÓDULO I: FEBRE, INFLAMAÇÃO E INFECÇÃO ANA LUIZA A. PAIVA - TXXV COREIA DE SYDENHAM Ocorre em cerca de 10 a 30% das crianças infectadas, se instalando após alguns meses (1 a 6 meses), ou seja, quando houve regressão dos demais sintomas “maiores”. Geralmente, costuma durar entre 3 e 4 meses, embora possa se prolongar até 2 anos de forma “flutuante” em 20-30% das crianças afetadas. Essa desordem neurológica é caracterizada por bruscos movimentos rápidos involuntários e descoordenados, aparecendo durante o sono e se acentuando em situações de estresse e esforço físico. Esses movimentos frequentes estão presentes nos músculos faciais, na língua e nas extremidades. Portanto, o paciente pode, por conta desses movimentos, apresentar disartria, disgrafia (dificuldade na escrita). A fisiopatologia dessa manifestação consiste na ação autoimune de anticorpos que se ligam a neurônios dos núcleos da base, principalmente os núcleos caudados e o subtalâmico, interferindo no circuito motor do paciente, que apresentará esses movimentos involuntários EXAMES LABORATORIAIS REAGENTES DA FASE AGUDA Os primeiros exames a serem realizados consistem na procura de marcadores inflamatórios que aumentam durante o início da febre reumática. O PCR é o primeiro marcador a se elevar, nas primeiras 24h, mas tem seus níveis normalizados rapidamente, sendo o primeiro a reduzir. Já a VHS é o segundo marcador que tem seus índices séricos aumentados, se normalizando antes do fim da FR. Tanto ela como o PCR diminuem por conta do uso de fármacos anti-inflamatórios, geralmente administrados antes da realização dos exames. Por fim, a concentração de mucoproteína sérica (glicoproteínas sintetizadas no fígado) é o exame reagente mais específico dentre os outros dois, sendo o padrão ouro da fase aguda, pois VHS e PCR normalizam com fim das atividades inflamatórias e cessam com o uso de anti- inflamatórios. TESTES IMUNOLÓGICOS A investigação da infecção estreptocócica é feita através da dosagem de anticorpos produzidos por conta da interação com o patógeno. Dessa forma, podemos pesquisar a presença de anticorpos: antiestreptolisina O, anti-DNAse B e anti-hialuronidase. A pesquisa do anticorpo antiestreptolisina O (ASLO) é o principal teste feito no diagnóstico de infecções estreptocócicas e pós-estreptocócicas, sendo encontrado em 80% dos pacientes com FR. Seus níveis séricos aumentam de forma considerável após uma semana da faringoamigdalite, mesmo período em o paciente possa manifestar inflamação articular e cardite, atingindo seu pico entre a 4ª e a 6ª semana. No Brasil, consideramos uma ASLO alta quando ela ultrapassa, em título, 333 unidades Todd (nos EUA são referenciados apenas 250!!), podendo persistir mesmo por meses (1-6 meses) após o fim da atividade reumática OU 1 ano após a infecção. Portanto, recomenda-se a realização de 2 dosagens de ASLO, com intervalo de 15 dias, para compararmos a flutuação de seus níveis séricos. Mesmo sendo o padrão-ouro, a ASLO não é o melhor teste. Os níveis de anticorpo anti-DNAse B se mantém elevados por mais tempo que essa última, sendo preferível, nas sedes brasileiras de saúde pública, apenas o teste de ASLO, por ser menos dispendioso que o da anti-DNAse B. É importante temos em mente que o ideal é realizarmos os três testes sinergicamente, para 5 MÓDULO I: FEBRE, INFLAMAÇÃO E INFECÇÃO ANA LUIZA A. PAIVA - TXXV haja uma maximização da sensibilidade dos testes imunológicos, ou seja: • Apenas a ASLO: Sensibilidade de 80%; • SLO + antiDNAse-B: Sensibilidade de 90%; • ASLO + antiDNAse-B + anti-hialuronidase: Sensibilidade de 95% Esses exames, mesmo sendo inespecíficos, eles dão suporte ao diagnóstico do processo inflamatório e da infecção prévia!! OUTROS EXAMES RX de tórax: evidencia aumento da área cardíaca devido miocardite ou derrame pericárdico moderado a grave. Eletrocardiograma: os achados são inespecíficos, geralmente transitórios e evidenciam alterações. Por exemplo, o intervalo PR aumentado é considerado um critério menor, no entanto, pode ser encontrado em pacientes com FR com ou sem cardite e ser observado ainda em crianças normais. ECG normal não exclui o envolvimento cardíaco, e o diagnóstico de cardite não deve ser baseado apenas em anormalidade encontradas no ECG. Ecocardiograma Doppler: detecta a valvulopatia, disfunção miocárdica e pericardite, além de avaliar o desempenho cardíaco. Devido à grande sensibilidade do exame, a lesão valvar pode ser detectada em pacientes sem manifestação clínica de cardite. DIAGNÓSTICO O diagnóstico de FR é clínico. Dessa forma, ele é pautado através da identificação de um conjunto de critérios, os Critérios de Jones, que continuam sendo o “padrão-ouro” para o diagnóstico de FR. Esses critérios foram divididos em maiores e menores a partir da especificidade da manifestação, e não em relação a sua frequência. Assim, a probabilidade do paciente ter adquirido o primeiro surto de FR é alta quando: • Pelo menos 2 critérios maiores; • OU 1 critério maior + 2 critérios menores. Os critérios de Jones modificados pela American Heart Association (AHA) em 1992 devem ser utilizados para o diagnóstico do primeiro surto da doença Os critérios de Jones revistos pela OMS e publicados em 2004 destinam-se também ao diagnóstico das recorrências da FR em pacientes com Cardiopatia Reumática Crônica (CRC) estabelecida TRATAMENTO O tratamento da FR é feito tanto pela erradicação do Streptococcus pyogenes, como na diminuição 6 MÓDULO I: FEBRE, INFLAMAÇÃO E INFECÇÃO ANA LUIZA A. PAIVA - TXXV das manifestações clínicas apresentadas pelo paciente, diminuindo os índices de morbidade dele. PROFILAXIA PRIMÁRIA Tem como objetivo erradicar o EBHGA da orofaringe. O agente de escolha é a penicilina benzatina por via intramuscular • Até 20kg: 600.000 UI • > 20kg : 1. 200.00 UI A incidência da FR pode ser reduzida se o antibiótico for administrado até 9 dias após o início da faringite. Obs: NÃO é recomendado o uso de antibióticos como tetraciclinas (as EBGA possuem alta prevalência de resistência), sulfonamidas (não erradicam o agente) e cloranfenicol (são fármacos com alta toxicidade). TRATAMENTO SINTOMÁTICO PROFILAXIA SECUNDÁRIA Visa prevenirrecorrências das infecções estreptocócicas. São mais frequentes nos primeiros 2 a 5 anos após o surto inicial da doença, em crianças escolares (7 a 14 anos) e nos pacientes com cardite reumática prévia. A primeira escolha também é a penicilina benzatina nas mesmas doses recomendadas para a profilaxia primária É recomendado a sua utilização a intervalos de 2 a 3 semanas Pacientes que não manifestaram cardite: mantida até os 18 anos de idade ou 5 anos após último surto Pacientes com cardite, porém sem sequela: mantida até os 25 anos de idade ou 10 anos após último surto Pacientes que apresentaram cardite reumática e mantêm doença valvar sequelara: o tratamento deve ser mantido indefinidamente. É relevante destacar que havendo boa aderência à profilaxia secundária prescrita, dificilmente reagudizações e novos surtos ocorrerão, de modo que haverá menor risco de doença cardíaca crônica e menor necessidade de cirurgia corretiva com consequentemente, melhor prognóstico final da doença. MEDIDAS GERAIS • Monitorização do paciente • Administração de fluidos e internação hospitalar para os casos de cardite moderada ou grave, artrite incapacitante e coreia grave. • Tratamento cirúrgico na cardite: pacientes com lesões de valva mitral com ruptura de cordas tendíneas ou perfuração das cúspides. PROGNÓSTICO E ASPECTOS BIOPSICOSSOCIAIS O prognóstico após a febre reumática depende se o coração foi ou não afetado. Muitas crianças vão recuperar bem e não terão complicações e outras vão precisar tomar antibióticos por muito tempo para prevenir a reinfecção. As pessoas que têm febre reumática com cardite (inflamação do coração) podem desenvolver 7 MÓDULO I: FEBRE, INFLAMAÇÃO E INFECÇÃO ANA LUIZA A. PAIVA - TXXV doenças cardíacas na vida adulta, e podem, eventualmente, precisar de cirurgia para corrigir as válvulas cardíacas danificadas. Além disso, estão sendo criadas estratégias para obtenção de vacina antiestreptocócica para ser utilizada em indivíduos geneticamente susceptíveis, estabelecendo uma imunidade contra cepas desencadeadoras da FR. existem algumas limitações físicas e sociais como o cansaço + dispneia causada pela cardite impede que as crianças pratiquem atividades físicas da mesma forma que os colegas que não tem a doença. 8 MÓDULO I: FEBRE, INFLAMAÇÃO E INFECÇÃO ANA LUIZA A. PAIVA - TXXV
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