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1 Dor abdominal, Diarreia, Vômitos e Icterícia Hanna Briza TUTORIA 06 – PANCREATITE AGUDA ANATOMIA O pâncreas é um órgão de localização retroperitonial, situando-se no abdome superior, entre as vértebras T12 e L2. Divide-se em três partes: cabeça, corpo e cauda. A cabeça encontra-se circundada pelo arco duodenal, enquanto sua cauda possui íntimo contato com o hilo esplênico. Toda secreção pancreática drena para o ducto pancreático principal, ou Ducto de Wirsung, desaguando o suco pancreático no duodeno, na estrutura denominada Papila de Vater ou papila maior do duodeno (identificada pela endoscopia na segunda porção do duodeno). Devemos lembrar que a papila de Vater também recebe o colédoco (via biliar principal). Na maioria das pessoas, existe um pequeno segmento comum intrapapilar na convergência entre o Wirsung e o colédoco. A via biliar “mergulha” na cabeça do pâncreas antes de desembocar no duodeno; esta informação é de vital importância para entendermos posteriormente porque patologias pancreáticas podem cursar com obstrução do fluxo biliar. A papila de Vater contém um arranjo de fibras musculares lisas, o esfíncter de Oddi, que auxilia no controle da expulsão da bile e suco pancreático. O ducto pancreático secundário, denominado ducto de Santorini, derivado do Wirsung, deságua uma pequena parte do suco pancreático na fina papila menor do duodeno, alguns centímetros acima da papila de Vater. O suprimento arterial é derivado de ramos provenientes do tronco celíaco e da artéria mesentérica superior. O tronco celíaco dá origem a três ramos: artéria hepática comum, artéria esplênica e artéria gástrica esquerda. A artéria hepática comum se bifurca nas artérias hepática própria e gastroduodenal. Esta última, por sua vez, dá origem à artéria gastroepiploica esquerda e às artérias pancreatoduodenais superiores, responsáveis pela irrigação da cabeça pancreática. A artéria esplênica dá origem aos ramos pancreáticos, responsáveis pela irrigação do corpo e cauda: artéria dorsal do pâncreas, artéria pancreática inferior, artéria pancreática magna e artéria da cauda do pâncreas. A drenagem venosa se faz para o sistema porta, através da veia esplênica ou diretamente para a veia porta. A drenagem linfática é feita principalmente para os linfonodos pancreatosplênicos. Alguns linfáticos drenam para os pancreático-duodenais e outros poucos para os linfonodos pré-aórticos. A inervação visceral eferente é feita pelo nervo vago e pelos nervos esplâncnicos, através dos plexos nervosos hepático e celíaco. HISTOLOGIA Histologicamente, o parênquima pancreático é composto por uma porção exócrina formada por glândulas mistas túbulo-acinares (80% do órgão), e por uma porção endócrina composta pelas ilhotas de Langerhans (cerca de 20% de sua massa total). São três os principais tipos celulares que compõem o componente exócrino: (1) células ductais; (2) células centroacinares; e (3) células acinares. Estas células produzem dois tipos de secreção: hidroeletrolítica e enzimática. As células ductais e centroacinares são semelhantes em função: produzem a chamada secreção hidroeletrolítica, composta por água e eletrólitos, e, principalmente, bicarbonato (HCO3). Já as células acinares são responsáveis pela produção da secreção enzimática, contendo as enzimas digestivas em sua forma precursora, ou zimogênios (tripsinogênio, quimotripsinogênio, pró- carboxipeptidases, prófosfolipase A e B, pró-elastase, pré-calicreína) e também na forma ativada (amilase, lipase, co-lipase). FISIOLOGIA PANCREÁTICA O pâncreas é uma glândula do aparelho digestivo capaz de exercer uma dupla função – (1) exócrina (produção e secreção do suco pancreático, rico em bicarbonato e enzimas digestivas); e (2) endócrina (liberação de hormônios, tais como a insulina, o glucagon e a somatostatina). A função pancreática exócrina está associada fundamentalmente ao processo de digestão de carboidratos, lipídios e proteínas, permitindo que essas substâncias sejam adequadamente clivadas em moléculas absorvíveis e utilizadas para diversos fins. Entretanto, a produção exócrina do pâncreas não se limita aos períodos pós-prandiais precoces, mas também se faz presente nos períodos interdigestivos, ou seja, entre as refeições: (1) Secreção Digestiva: a secreção pancreática digestiva é semelhante à secreção gástrica, possuindo três fases: a) Fase Cefálica: os estímulos olfatórios e visuais vão até o córtex cerebral e desencadeiam aumento da produção exócrina pancreática através de sinais colinérgicos via nervo vago. Além da acetilcolina, estão envolvidos o Peptídeo Intestinal Vasoativo (VIP) e o Fator 2 Dor abdominal, Diarreia, Vômitos e Icterícia Hanna Briza Liberador de Gastrina (GRF), secretagogos liberados pelas terminações nervosas vagais. b) Fase Gástrica: resulta da distensão gástrica causada pela chegada dos alimentos. Há um grande estímulo para a produção de enzimas e apenas um pequeno incremento na produção de secreção hidroeletrolítica. Além deste reflexo gastropancreático, a distensão do antro gera liberação de gastrina, a qual estimula a secreção pancreática. c) Fase Intestinal: é a mais importante fase da secreção pancreática, sendo a principal responsável pela manutenção da secreção durante todo o processo digestório. O quimo rico em H+ induz a liberação de secretina pelas células S da mucosa duodenal e do jejuno proximal. Por outro lado, o quimo é também rico em aminoácidos, polipeptídeos e ácidos graxos, os quais estimulam as células I do duodeno e jejuno proximal a produzirem Colecistoquinina (CCK), ou pancreozimina. A secretina e a colecistoquinina são os principais secretagogos pancreáticos. (2) Secreção Interdigestiva: inicia-se quando o Trato Gastrointestinal alto (TGI) encontra-se livre de alimentos. A secreção hidroeletrolítica e enzimática interprandial se faz de maneira cíclica, acompanhando a atividade elétrica intrínseca do estômago e duodeno, durante os chamados Complexos Mioelétricos Migratórios (CMM). Acredita-se que esta atividade secretória seja mediada por ativação colinérgica. O PAPEL DA SECRETINA A secretina é um polipeptídeo de 27 aminoácidos cuja função primordial é estimular as células ductais e centroacinares a produzir secreção hidroeletrolítica, fundamentalmente rica em bicarbonato de sódio. A secreção alcalina resultante tem como principais ações: ✓ Proteger a mucosa duodenal contra o potencial lesivo do suco gástrico ácido. ✓ Criar um pH alcalino (> 7,00) ótimo para a máxima ação das enzimas pancreáticas. O PAPEL DA COLECISTOQUININA (CCK) A CCK é um polipeptídeo que tem como principal finalidade estimular as células acinares a produzir secreção rica em enzimas que atuam no processo digestório. As enzimas produzidas são, em sua maioria, pró-enzimas (ou zimogênios), ou seja, necessitam da ação de cofatores para que se tornem substâncias biologicamente ativas. Apenas a amilase e a lipase já são liberadas em suas formas ativas. As demais enzimas são ativadas no interior do lúmen intestinal alto, sendo a tripsina o principal cofator de ativação. A enteroquinase é uma importante enzima normalmente presente na borda em escova das células da mucosa duodenojejunal, tendo como função primordial converter o tripsinogênio e tripsina. A tripsina é uma potente enzima proteolítica, capaz de ativar todas as outras pró-enzimas pancreáticas em enzimas ativas. As enzimas pancreáticas são responsáveis pela digestão das proteínas (tripsina, quimiotripsina, elastase e carboxipeptidases), amido (amilase) e lipídios (lipase, colipase e fosfolipase A2), cujos subprodutos são absorvidos pela mucosa intestinal. CONCEITO A pancreatite aguda é definida como uma condição inflamatória aguda do pâncreas,com acometimento variável das estruturas peripancreáticas e órgãos à distância, cuja gênese depende da autodigestão tecidual pelas próprias enzimas pancreáticas. Nos casos mais graves, a pancreatite aguda se comporta como uma doença multissistêmica e leva à Síndrome da Resposta Inflamatória Sistêmica (SIRS), com alta letalidade. A pancreatite aguda caracteristicamente não deixa sequelas pancreáticas – morfológicas ou funcionais – após a resolução do quadro. EPIDEMIOLOGIA Cerca de 80-90% dos casos de pancreatite aguda cursam apenas com edema do pâncreas, sem áreas extensas de necrose, sem complicações locais ou sistêmicas e de curso autolimitado em 3-7 dias. Esta é a pancreatite aguda edematosa ou intersticial, ou ainda, pancreatite aguda “leve”. Os 10-20% restantes cursam com extensa necrose parenquimatosa, hemorragia retroperitoneal, um quadro sistêmico grave e uma evolução de 3-6 semanas. Esta é a pancreatite aguda necrosante ou necrohemorrágica, ou ainda, pancreatite aguda “grave”. Enquanto a letalidade da pancreatite aguda edematosa aproxima-se a 1%, na pancreatite aguda necrosante ela chega a 30-60%. A incidência da pancreatite aguda varia de 4,8 a 24,2 casos/100.000 habitantes em países desenvolvidos, 3 Dor abdominal, Diarreia, Vômitos e Icterícia Hanna Briza mas não há dados concretos a respeito de sua incidência no Brasil. A mortalidade na pancreatite aguda respeita um padrão bimodal, devendo-se, nas primeiras duas semanas, à resposta inflamatória sistêmica e às disfunções orgânicas por ela induzidas. Após esse período, deve-se, habitualmente, às complicações infecciosas da doença. Melhor conhecimento da fisiopatologia da pancreatite aguda e desenvolvimento e implementação de novas medidas terapêuticas reduziram a mortalidade nos casos graves, embora ela ainda atinja 30% em algumas casuísticas. É importante ressaltar que as pancreatites graves são, geralmente, de etiologia biliar. ETIOLOGIA As causas mais comuns de pancreatite aguda são a litíase biliar e o álcool, responsáveis por cerca de 75% dos casos. Embora não se conheça exatamente o mecanismo pelo qual esses dois fatores desencadeiam pancreatite aguda, algumas hipóteses foram aventadas. PANCREATITE AGUDA BILIAR A passagem de cálculos biliares através da ampola de Vater parece ser a causa mais comum de pancreatite aguda. Estes cálculos geralmente são pequenos (< 5 mm), sendo menores do que aqueles que causam coledocolitíase e colangite, embora estas complicações possam coexistir com a pancreatite. Cerca de 25-50% dos pacientes com pancreatite aguda biliar apresentam coledocolitíase associada, na maioria das vezes assintomática. A hipótese mais aceita atualmente é de que a obstrução transitória da ampola de Vater por um pequeno cálculo ou pelo edema gerado por sua passagem aumente subitamente a pressão intraductal e estimule a fusão lisossomal aos grânulos de zimogênio, ativando a tripsina. Isso provocaria a liberação de enzimas digestivas pancreáticas ativadas no parênquima. Outra hipótese aventada é que essa obstrução proporcionaria a ocorrência de refluxo biliar para o ducto pancreático, desencadeando o processo de ativação enzimática. Ao contrário da pancreatite alcoólica, a pancreatite biliar não se associa à pancreatite crônica. A colecistectomia previne as frequentes recidivas de pancreatite aguda nesses pacientes. A pancreatite biliar é mais comum no sexo feminino (2:1), em obesos e na faixa etária entre 50-70 anos, dados próprios da doença litiásica biliar em geral. Entretanto, pode ocorrer em qualquer idade e em qualquer tipo físico. A pancreatite aguda complica 3-7% dos indivíduos com colelitíase. PANCREATITE AGUDA ALCOÓLICA A pancreatite aguda é observada em 5-10% dos alcoólatras, competindo com a pancreatite biliar pelo primeiro lugar entre as causas de pancreatite aguda. Em geral, o indivíduo já é etilista inveterado (> 25 g etanol/dia segundo estudos recentes e > 100 g/dia classicamente) há pelo menos uns cinco anos (média de 15 anos) e já existe um acometimento crônico do pâncreas, mesmo que subclínico. A pancreatite alcoólica crônica é marcada por vários episódios recorrentes de pancreatite aguda, em geral, desencadeados após libação alcoólica. A patogênese da pancreatite aguda alcoólica é desconhecida, mas diversos fatores são implicados: 1) estímulo direto à liberação de grandes quantidades de enzimas pancreáticas ativadas; 2) contração transitória do esfíncter de Oddi; 3) lesão tóxica acinar direta do etanol ou de um metabólito; 4) formação de cilindros proteináceos que obstruem os dúctulos. Além da litíase biliar e do alcoolismo, existem diversas outras causas de pancreatite aguda, responsáveis pelos 25% restantes. Dentro desse grupo merece destaque a “pancreatite aguda idiopática” que, na realidade, em grande parte das vezes está relacionada à microlitíase biliar. HIPERTRIGLICERIDEMIA A hipertrigliceridemia é responsável por < 4% das pancreatites agudas. A maioria dos casos ocorre em pacientes diabéticos mal controlados e/ou com hipertrigliceridemia familiar e em alcoolistas. Acredita- se que a lipase pancreática metabolize os triglicérides em ácidos graxos livres que, por sua vez, seriam diretamente nocivos ao tecido pancreático. Outras causas de hipertrigliceridemia são: uso de estrogênio, nutrição parenteral, uso de propofol, hipotireoidismo, síndrome nefrótica. Os níveis exatos de triglicérides necessários para induzir PA não são conhecidos. Geralmente níveis maiores que 1.000 mg/dl são necessários, mas há relatos de pancreatite com 500- 1.000 mg/dl. OBS.: A hipertrigliceridemia acentuada pode falsear o resultado da amilase sérica, pois uma substância inibidora da atividade da amilase se eleva junto com os triglicerídeos. A diluição da amostra pode revelar a hiperamilasemia nesses casos. 4 Dor abdominal, Diarreia, Vômitos e Icterícia Hanna Briza HIPERCALCEMIA O hiperparatireoidismo primário é causa rara de pancreatite (menos que 0,5%). Cerca de 2% dos pacientes com esta síndrome endócrina podem evoluir com tal complicação. Outras causas de hipercalcemia podem determinar pancreatite, até mesmo a infusão excessiva de gluconato de cálcio. O mecanismo é desconhecido. PÓS-OPERATÓRIO A pancreatite aguda pode ocorrer no pós-operatório de cirurgias abdominais e cirurgias cardíacas (pelo efeito da CEC). A incidência depende do tempo de cirurgia e do grau de proximidade entre o pâncreas e o local operado. Nas cirurgias abdominais, o mecanismo é o trauma direto, sendo o prognóstico muito ruim quando comparado com outras causas de pancreatite. O diagnóstico é difícil, pois a dor abdominal é comum no pós-operatório. INDUZIDA POR FÁRMACOS A pancreatite causada por medicamentos é um evento incomum. A patogenia pode estar relacionada à hipersensibilidade ou a um efeito tóxico direto. O diagnóstico depende de alto grau de suspeição e anamnese detalhada. A classe de drogas mais associada com a pancreatite aguda são os imunossupressores, incluindo a azatioprina, 6- mercaptopurina, ciclosporina e tacrolimus. Nos pacientes HIV positivos, a principal causa de pancreatite é a induzida por medicamentos, principalmente a didanosina (DDI) e a pentamidina. Outras drogas envolvidas são: antibióticos (metronidazol, SMZ-TMP, tetraciclina), diuréticos (tiazídicos, furosemida), drogas usadas nas doenças inflamatórias intestinais (sulfasalazina, 5-ASA), anticonvulsivantes (ácido valproico), antiinflamatórios (sulindac), anti-hipertensivos (metildopa, IECA, clonidina), cálcio, estrógenos e tamoxifeno. Obs: Litíase biliar e álcool são as principais causas de pancreatite aguda, respondendo por cerca de 75% dos casos. Contudo, enquanto o álcool também pode provocar pancreatite crônica,o mesmo não acontece com os cálculos biliares, que causam exclusivamente doença aguda. OUTRAS CAUSAS 1) Trauma Abdominal: principal causa de pancreatite aguda em pacientes pediátricos. 2) Pancreatite Aguda Hereditária. 3) Fibrose Cística. 4) Colangiopancreatografia Endoscópica Retrógrada (CPER). 5) Viroses: caxumba, coxsackie, hepatite B, citomegalovírus, varicela-zóster, herpes simples. 6) Bacterianas (micoplasma, legionela, leptospira, salmonela, tuberculose, brucelose, etc.) e Fúngicas (Aspergillus sp., Candida sp.) 7) Infestações Parasitárias: o destaque em nosso meio é o Ascaris lumbricoides, que pode obstruir transitoriamente a ampola de Vater, causando pancreatite aguda. Outros parasitas implicados são: T. gondii, Cryptosporidium. 8) Obstrução Ductal Crônica (cisto de colédoco, divertículo, pancreatite crônica, Ca pâncreas, adenoma viloso, doença de Crohn e outros). 9) Vasculite (PAN, LES), outras causas de isquemia pancreática. 10) Pancreas Divisum, Pâncreas Anular. 11) Envenenamento por escorpião (Titius sp., o “escorpião brasileiro”) “PANCREATITE AGUDA IDIOPÁTICA” Cerca de 20% dos pacientes com pancreatite aguda encontram-se neste grupo. Hoje em dia, são descritas duas entidades que parecem ser responsáveis por grande parte das pancreatites agudas neste grupo: (1) Microlitíase Biliar – 2/3 dos casos. (2) Disfunção do Esfíncter de Oddi – 1/3 dos casos. Microlitíase biliar (“Lama Biliar”): “lama biliar” é uma suspensão viscosa na vesícula biliar que pode conter cálculos microscópicos. Na USG, parece como um agrupamento de ecos de baixa amplitude, sem sombra acústica, “repousando” no fundo da vesícula e mudando de local conforme a posição do paciente. Alguns estudos sugeriram que até 75% dos casos de pancreatite aguda “idiopática” podem ser ocasionados, na realidade, pela lama biliar. O uso de ácido ursodesoxicólico reduz a recorrência desses episódios. Outras opções são a papilotomia endoscópica e a colecistectomia. Disfunção do Esfíncter de Oddi: pode ser diagnosticada pela mensuração da pressão intraesfincteriana, através da canulização da Papila de Vater (guiada pela endoscopia). A pressão do esfíncter, que normalmente fica em torno de 15 mmHg, costuma ser flagrada em níveis próximos a 40 mmHg. O tratamento preconizado é a papilotomia endoscópica 5 Dor abdominal, Diarreia, Vômitos e Icterícia Hanna Briza ou a esfincteroplastia cirúrgica, com resultados razoáveis. FISIOPATOLOGIA Na pancreatite aguda, o patologista detecta uma reação inflamatória aguda difusa do pâncreas, associada a áreas de necrose gordurosa (marco da doença), tanto ao longo do parênquima do órgão quanto nos tecidos peripancreáticos, incluindo o mesentério e o omento. Nos casos mais graves, formam-se extensas áreas de necrose glandular, com ruptura vascular e focos de hemorragia. Os achados patológicos indicam um processo “autodigestivo” do pâncreas. O pâncreas funciona como uma grande glândula exócrina e endócrina: suas células acinares são responsáveis pela função exócrina, sintetizando e secretando as enzimas pancreáticas, fundamentais para a digestão dos alimentos no tubo digestivo. As células das Ilhotas de Langerhans têm função endócrina, sintetizando e secretando hormônios como a insulina, o glucagon e a somatostatina. Com exceção da amilase e da lipase, as demais enzimas pancreáticas são armazenadas e secretadas como próenzimas inativas – os zimogênios. Os principais exemplos são: tripsinogênio, quimotripsinogênio, pró- elastase, pró-fosfolipase A. Ao chegar ao duodeno, o tripsinogênio é convertido em tripsina pela enteroquinase, uma enzima proteolítica existente na “borda em escova” do epitélio intestinal. A tripsina é o “gatilho” para o restante do processo digestivo, pois é capaz de ativar todas as outras enzimas pancreáticas, incluindo o próprio tripsinogênio. Nesse momento, forma-se uma grande quantidade de tripsina, quimotripsina, elastase e fosfolipase A (entre outras enzimas). O que acontece na pancreatite aguda? Ainda não se tem certeza do mecanismo patogênico inicial da pancreatite aguda, embora existam algumas hipóteses aceitas – sabemos que o processo inflamatório se inicia pela lesão das células acinares, que passam a liberar enzimas pancreáticas ativas para o interstício. Segundo a teoria mais aceita atualmente, um estímulo lesivo à célula acinar provoca a fusão dos grânulos contendo zimogênio com as vesículas lisossomais, que contêm a enzima catepsina B. Esta hidrolase é capaz de converter o tripsinogênio em tripsina dentro da célula acinar, culminando na ativação de todos os zimogênios. As vesículas de fusão, em vez de migrarem para a borda luminal da célula, migram para a borda intersticial, sendo liberadas no estado ativo no interstício pancreático, dando início ao processo autodigestivo. Essa hipótese é denominada “teoria da colocalização lisossomal”. Tal mecanismo é reproduzível no laboratório, em animais. Um aumento na concentração intracelular de cálcio também parece capaz de promover a autoativação do tripsinogênio em tripsina, participando na gênese da pancreatite. As enzimas fosfolipase A e lipase são as responsáveis pela autodigestão da gordura pancreática e peripancreática. Os ácidos graxos liberados neste processo formam complexos com o cálcio (saponificação), contribuindo para a hipocalcemia da pancreatite. A enzima elastase é a responsável pela lesão do tecido intersticial e pela ruptura da parede vascular. Antigamente, acreditava-se que as enzimas pancreáticas eram as únicas responsáveis pela inflamação e necrose pancreáticas, assim como a disfunção sistêmica. Hoje em dia, sabe-se que a lesão enzima-induzida é apenas o evento inicial de uma cascata de fatores. A tripsina converte a pré-calicreína em calicraína, ativando o sistema de cininas, e o fator XII (fator de Hageman) em fator XIIa, ativando o sistema da coagulação pela via intrínseca (responsável pela formação de microtrombos nos vasos pancreáticos, que podem contribuir para a necrose). Por ser interligado ao sistema de cininas e o fator XII, o sistema complemento também é ativado, atraindo para o local neutrófilos e macrófagos, que, por sua vez, produzem novos mediadores inflamatórios, como o PAF (Fator Ativador Plaquetário) e diversas citocinas, como IL-1, TNF-alfa, IL-6 e IL-8. Um exagero neste processo leva à SIRS (Síndrome da Resposta Inflamatória Sistêmica). Dano à microcirculação – A liberação de enzimas ativadas no interstício do pâncreas acaba lesando o endotélio vascular assim como as células acinares. Alterações microcirculatórias, como microtrombose, vasoconstrição, estase capilar, redução da saturação de oxigênio e isquemia progressiva ocorrem. Tais fenômenos produzem um aumento na permeabilidade capilar e edema da glândula. A lesão vascular pode levar à insuficiência microcirculatória e amplificação do dano ao tecido pancreático. Translocação bacteriana – A translocação bacteriana é fenômeno que ocorre na pancreatite aguda. A quebra da barreira intestinal é ocasionada pela hipovolemia (e isquemia) e por shunts arteriovenosos induzidos pela pancreatite. A principal via de translocação bacteriana 6 Dor abdominal, Diarreia, Vômitos e Icterícia Hanna Briza é através do cólon transverso, uma vez que este segmento intestinal está próximo ao pâncreas e pode ser afetado pelo processo inflamatório peripancreático. As consequências da translocação bacteriana podem ser letais. A infecção de tecido pancreático e peripancreático ocorre em cerca de 30- 40% dos casos de pancreatite aguda grave e traz uma letalidade altíssima, quando não tratada adequadamente. QUADRO CLÍNICO Pancreatite aguda é uma importante causa de dor abdominal aguda associada a vômitos.Uma vez que a clínica da doença pode ser similar à de numerosas outras patologias agudas, é difícil o diagnóstico basear- se somente em sintomas e sinais clínicos. A doença varia em severidade e o diagnóstico é, muitas vezes, falho nos extremos da apresentação. Os principais sintomas da pancreatite aguda são a DOR ABDOMINAL, as NÁUSEAS e os VÔMITOS. Quase todos os pacientes experimentam dor abdominal aguda em andar superior de abdome. A dor é contínua e pode se localizar em mesogástrio, quadrante superior direito, ser difusa ou, raramente, à esquerda. Uma característica da dor, que está presente em metade dos pacientes e que sugere origem pancreática, é a disposição em barra e a irradiação para o dorso. Normalmente precisa de analgésicos opiáceos para o seu controle. Ao contrário da dor biliar que permanece, no máximo, de 6 a 8 horas, a dor pancreática se mantém por dias. A progressão da dor é rápida (mas não tão abrupta quanto aquela da perfuração visceral), atingindo intensidade máxima dentro de 10 a 20 minutos. Pancreatite aguda com ausência de dor não é comum (5-10%), mas pode ser complicada e fatal. Um aspecto interessante é o fato de os sintomas na pancreatite aguda relacionada ao álcool frequentemente aparecerem após um ou três dias de uma libação alcoólica intensa. A dor abdominal é tipicamente acompanhada (cerca de 90%) de náuseas e vômitos que podem persistir por várias horas. Os vômitos podem ser incoercíveis e, em geral, não aliviam a dor; podem estar relacionados à dor intensa ou a alterações inflamatórias envolvendo a parede posterior do estômago. Inquietação, agitação e alívio da dor em posição de flexão anterior do tórax (genupeitoral) são outros sintomas notados. Pacientes com ataque fulminante podem apresentar-se em estado de choque ou coma. O exame físico varia na dependência da gravidade da doença. Achados sistêmicos incluem febre, sinais de desidratação, taquicardia e, em casos mais graves, choque e coma. Na pancreatite necrosante, o paciente pode se apresentar em mau estado geral, toxêmico, pálido, hipotenso, taquicárdico (100-150 bpm), taquipneico (pela dor ou pelo acometimento pulmonar), febril (38,5-39ºC) e com o sensório deprimido (confusão mental, torpor ou coma). Existe um espectro de gravidade na pancreatite aguda, e os sinais acima podem estar presentes em maior ou menor grau. O derrame pleural à esquerda é comum (pela extensão da inflamação para a hemicúpula diafragmática esquerda) e pode contribuir para a dispneia. O abdome na pancreatite aguda geralmente mostra achados inferiores aos esperados pelo quadro álgico do paciente. O exame físico revela desde dor leve à palpação até sinais de irritação peritoneal com descompressão dolorosa (Blumberg) nos casos mais graves. Distensão abdominal, devido ao “íleo paralítico” em consequência à inflamação intra- abdominal, é um achado comum, especialmente nos casos mais graves. Na radiografia, a distensão pode ser de delgado e/ou de cólon. Obstrução do ducto biliar principal em razão de coledocolitíase ou edema da cabeça do pâncreas pode ocasionar icterícia (geralmente leve). A icterícia ocorre em cerca de 10% dos casos e não necessariamente indica, como vimos, pancreatite aguda biliar. Alguns sinais cutâneos podem acontecer na pancreatite aguda, de forma incomum: a) Equimose em flancos – Sinal de Grey-Turner b) Equimose periumbilical – Sinal de Cullen c) Necrose gordurosa subcutânea – Paniculite d) Equimose na base do pênis – Sinal de Fox Sinal de Grey-Turner Os primeiros dois sinais ocorrem em 1% dos casos. São característicos, mas não patognomônicos. São causados pela extensão do exsudato hemorrágico pancreático retroperitoneal através do tecido subcutâneo e estão associados com mau prognóstico. 7 Dor abdominal, Diarreia, Vômitos e Icterícia Hanna Briza Já a necrose gordurosa subcutânea (paniculite) é um evento raro, se caracterizando pela presença de nódulos subcutâneos dolorosos de 0,5-2 cm e eritema na pele adjacente (semelhantes ao eritema nodoso). Geralmente, se localizam nas extremidades, podendo ser justarticulares, mas podem ocorrer em outros locais, como nádegas, tronco e escalpo. Podem preceder, ou não, os sintomas da pancreatite e tendem a melhorar junto com o quadro clínico. A retinopatia de Purtscher é uma rara complicação da pancreatite aguda. Manifesta-se como escotomas e perda súbita da visão. A fundoscopia demonstra exsudatos algodonosos e hemorragias confinadas à mácula e à papila óptica. O comprometimento respiratório pode piorar após os primeiros dias, se instalando derrame pleural (com preferência pelo lado esquerdo), atelectasia (pela dor ou obesidade) ou mesmo a Síndrome do Desconforto Respiratório Agudo (SDRA) – esta é uma das complicações sistêmicas mais temíveis da pancreatite aguda e se caracteriza pela hipoxemia refratária à administração de altos fluxos de O2 , associado a infiltrado pulmonar bilateral, em geral assimétrico. O principal diagnóstico diferencial da SDRA é o edema pulmonar cardiogênico. O paciente pode chegar “chocado” ou evoluir para o choque após os primeiros dias – o choque na maioria dos casos tem dois componentes: 1) Hipovolêmico – estima-se a perda de 6-10 litros para o retroperitônio ou para o peritônio nos pacientes com pancreatite grave. 2) Vasodilatação sistêmica (choque distributivo) – exatamente a mesma fisiopatologia do choque séptico, porém, sem haver infecção. Podemos chamar de “choque sirético” (SIRS = Síndrome da Resposta Inflamatória Sistêmica). Neste choque, temos uma queda acentuada da resistência vascular periférica (causando grave hipotensão arterial), venodilatação e um aumento do débito cardíaco (estimulado pela baixíssima pós-carga). A insuficiência renal é comum na pancreatite grave, manifestando-se como azotemia no exame laboratorial (aumento de ureia e creatinina). A causa na maioria das vezes é pré-renal, devido à hipovolemia (perda para o 3º espaço), portanto, é reversível com a reposição volêmica agressiva. No entanto, em alguns casos, os rins são lesados pela reação inflamatória sistêmica (enzimas ativadas e mediadores liberados por leucócitos) ou pela isquemia prolongada, evoluindo para um quadro de necrose tubular aguda – neste caso, a azotemia não reverte com a reposição volêmica e pode vir a ser grave a ponto de causar síndrome urêmica e distúrbios hidroeletrolíticos e acidobásicos indicativos de diálise. DIAGNÓSTICO A leucocitose é comum, principalmente nos casos graves, onde pode chegar até 30.000/mm3 refletindo o grau de inflamação sistêmica (por isso é um importante critério prognóstico). O aumento de proteína C reativa é outro marco laboratorial de gravidade, já que mede a intensidade da resposta inflamatória. A hiperglicemia é uma alteração comum, e no início do quadro é devida à SIRS mas, posteriormente, pode ser secundária a uma destruição maciça das ilhotas de Langerhans, na pancreatite necrosante extensa. Hipocalcemia também é achado frequente, e decorre da saponificação do cálcio circulante pela gordura peripancreática necrosada – por este motivo também possui relação direta com a gravidade do quadro (quanto mais necrose, mais hipocalcemia). Outros marcos que indicam gravidade são o aumento das escórias nitrogenadas e as alterações nas provas de coagulação (ex.: alargamento do TAP e PTTa). As provas hepáticas também podem estar alteradas, revelando aumento das aminotransferases, fosfatase alcalina e bilirrubina. O aumento das aminotransferases, além de ter valor prognóstico, pode sugerir o diagnóstico etiológico da pancreatite. Uma TGP (ALT) > 150 U/L tem especificidade de 96% para pancreatite biliar. Porém, a TGP (ALT) < 150 U/L não afasta pancreatitebiliar, já que a sensibilidade é baixa (48%). CONFIRMAÇÃO DIAGNÓSTICA O diagnóstico de pancreatite aguda pode ser facilmente estabelecido diante de um caso clínico típico com o auxílio da dosagem sérica de amilase e lipase (que estarão > 3x o LSN). Métodos de imagem, como a Tomografia Computadorizada de Abdome, são 8 Dor abdominal, Diarreia, Vômitos e Icterícia Hanna Briza úteis nos casos duvidosos, podendo confirmar o diagnóstico de pancreatite ao demonstrarem a presença de edema/necrose do parênquima pancreático. Cumpre ressaltar, no entanto, que os exames de imagem não são obrigatórios para o diagnóstico em todos os casos, existindo indicações específicas para sua realização. AMILASE SÉRICA Esta enzima pancreática costuma se elevar já no primeiro dia do quadro clínico (2-12h após o início dos sintomas), mantendo-se alta por 3-5 dias. Sua sensibilidade é de 8590% entre 2-5 dias. Sua especificidade é de 70-75%. O normal da amilase sérica geralmente é abaixo de 160 U/L. A especificidade aumenta muito quando considerados níveis acima de 500 U/L e principalmente 1.000 U/L! A amilase pode estar normal nos casos de pancreatite crônica avançada agudizada (como na pancreatite alcoólica), pois o parênquima pancreático já está destruído, exaurido de suas enzimas. Como já citado anteriormente, os níveis de amilase podem estar falsamente reduzidos na hipertrigliceridemia (quando os triglicerídeos aumentam, aumenta também um fator solúvel que inibe a amilase...). Uma amilase colhida após o quinto dia dos sintomas frequentemente é negativa. A especificidade da amilase é comprometida por 4 fatos: 1) Amilase Salivar: a maior parte da amilase existente no organismo não é pancreática, mas sim salivar (55-60% da amilase). 2) Absorção Intestinal: existe amilase pancreática na luz intestinal, podendo haver absorção luminal pelo intestino inflamado ou obstruído. 3) Macroamilasemia: uma entidade caracterizada pela ligação de uma proteína sérica à amilase plasmática, impedindo que ela seja normalmente filtrada pelos rins. 4) Insuficiência Renal: uma parte da amilase é eliminada pelos rins, logo, a insuficiência renal grave cursa com hiperamilasemia. Doenças da glândula salivar e outras doenças intraabdominais agudas podem cursar com aumento da amilase. Ex.: colecistite aguda, coledocolitíase, perfuração de qualquer víscera oca (ex.: úlcera perfurada), isquemia Confirmação diagnóstica mesentérica, obstrução intestinal aguda, apendicite aguda, salpingite aguda, gravidez ectópica. Entretanto, apesar de existirem diversas causas de hiperamilasemia, raramente elas elevam a amilase acima de 3-5 vezes o limite da normalidade (> 500 UI/L). Elevações dessa magnitude possuem ESPECIFICIDADE para pancreatite. A determinação da isoforma pancreática da amilase não é específica da pancreatite, visto também estar aumentada nas lesões intestinais e na insuficiência renal. LIPASE SÉRICA Esta outra enzima pancreática se eleva junto com a amilase na pancreatite aguda, porém, permanece alta por um período mais prolongado (7-10 dias). Possui sensibilidade igual à da amilase (85%), sendo mais específica (80%). A lipase também existe dentro do lúmen intestinal e as mesmas condições abdominais que fazem aumentar a amilase também podem fazer aumentar a lipase – Em geral, essas condições também não aumentam mais que 3 vezes o limite da normalidade (normal: até 140 U/L; 3x o normal: > 450 U/L, variando conforme o método laboratorial usado). AMILASE + LIPASE SÉRICAS Tanto a amilase quanto a lipase, se acima de 3 vezes o limite superior da normalidade, são altamente específicas para pancreatite aguda – logo, na prática devemos dosá-las em conjunto para confirmar o diagnóstico de pancreatite! Se as duas estiverem aumentadas, a especificidade é de 95%. A sensibilidade das duas juntas é de 95%, ou seja, em apenas 5% dos casos de pancreatite aguda as duas enzimas são normais (provavelmente casos de “pancreatite crônica agudizada”). OUTRAS DOSAGENS LABORATORIAIS Diversos fatores vêm sendo estudados como substitutos da amilase e lipase para o diagnóstico de pancreatite aguda, por exemplo: peptídeo ativador do tripsinogênio, tripsinogênio 2 e tripsinogênio urinário. Tais exames, no entanto, ainda precisam ser consagrados com grandes estudos para ganharem real aplicação prática. TOMOGRAFIA COMPUTADORIZADA CONTRASTADA A Tomografia Computadorizada (TC) com contraste venoso é o melhor método de imagem para avaliar a presença de complicações locorregionais num quadro de pancreatite aguda, sendo indicada nos casos classificados como “graves”. Como a TC pode ser normal em 1530% dos casos de pancreatite “leve”, sua 9 Dor abdominal, Diarreia, Vômitos e Icterícia Hanna Briza realização não se justifica nestes pacientes, até porque a probabilidade de complicações é baixa em tal contexto. A TC pode mostrar aumento focal ou difuso do pâncreas, borramento da gordura peripancreática e perirrenal, coleções líquidas peripancreáticas, pseudocistos e áreas não captantes de contraste indicativas de necrose. Possui elevada sensibilidade e especificidade, e pode, como vimos, esclarecer os casos de dúvida diagnóstica (aqueles em que a clínica é sugestiva, mas a dosagem de amilase e lipase não é confirmatória). Obs: Como já dissemos, nem todos os pacientes necessitam de TC. As indicações para sua realização na PA são mostradas na tabela abaixo. Os critérios prognósticos de Ranson e APACHE-II serão comentados adiante, quando falarmos em prognóstico da pancreatite aguda. Vale relembrar: na pancreatite “leve” (edematosa), a TC não é necessária. O exame ideal é a TC helicoidal, que é capaz de revelar imagens com maior definição da captação do contraste endovenoso. O melhor momento para a realização de TC na pancreatite aguda grave é após o terceiro dia do início do quadro (isto é, após as primeiras 72h, que é quando as complicações como a necrose costumam estar bem estabelecidas, sendo mais fácil observá-las). Deve-se evitar a TC contrastada em pacientes que evoluem com injúria renal aguda pela pancreatite grave (evitar um componente de “nefropatia induzida por contraste”). Nestes casos, a RNM torna-se preferencial. ULTRASSONOGRAFIA O pâncreas pode ser visualizado, mostrando sinais ecogênicos clássicos de pancreatite aguda. Contudo, a frequente interposição de alças intestinais repletas de gás torna a ultrassonografia de abdome um exame de baixa sensibilidade tanto para o diagnóstico de PA quanto para a detecção de necrose pancreática. Por outro lado, a USG abdominal é o método de escolha para o diagnóstico da litíase biliar, a causa mais comum de pancreatite aguda, podendo assim orientar a conduta posterior. Por isso, está sempre indicada. RADIOGRAFIA SIMPLES É um importante exame a ser pedido nos pacientes com quadro de “abdome agudo”, principalmente na dúvida entre um abdome cirúrgico ou não. O RX de tórax pode revelar derrame pleural à esquerda ou atelectasia em bases pulmonares; em casos mais graves pode haver um infiltrado bilateral compatível com SDRA. A pancreatite aguda pode determinar várias alterações no RX de abdome, assim como outras causas de abdome agudo inflamatório – são elas: 1. Alça sentinela (íleo localizado). 2. Sinal do cólon amputado: paucidade de ar no cólon distal à flexura esplênica, devido a um espasmo do cólon descendente. 3. Dilatação das alças (íleo paralítico inflamatório). 4. Aumento da curvatura duodenal (aumento da cabeça do pâncreas). 5. Irregularidades nas haustrações do transverso, devido ao espasmo difuso. As alterações intestinais da pancreatite aguda são decorrentes da extensão do exsudato inflamatório pancreático para o mesentério, mesocólon transversoe peritônio. RESSONÂNCIA NUCLEAR MAGNÉTICA A RNM é provavelmente equivalente à TC em termos de acurácia para o diagnóstico de pancreatite aguda, porém, possui duas importantes vantagens: (1) na suspeita de pancreatite biliar, a colangiorressonância pode identificar mais de 90% dos cálculos na via biliar; (2) no paciente que evolui com IRA no contexto da PA “grave”, a RNM evita a exposição ao contraste iodado endovenoso. Suas limitações continuam sendo o elevado custo e a menor disponibilidade. A RNM é superior à TC na análise de coleções líquidas, com maior poder de diferenciação entre pseudocistos, abscessos, necrose. DIAGNÓSTICOS DIFERENCIAIS As doenças que se manifestam com intensa dor abdominal aguda devem ser afastadas, entre elas: 1. Doença péptica / Úlcera perfurada. 2. Colelitíase, Coledocolitíase, Colecistite aguda. 3. Isquemia mesentérica. 10 Dor abdominal, Diarreia, Vômitos e Icterícia Hanna Briza 4. Obstrução intestinal aguda. 5. IAM inferior / Dissecção aórtica abdominal. 6. Gravidez ectópica. Na colelitíase e na doença péptica a dor costuma ter menor duração. A dor da colecistite aguda pode ser muito semelhante a dor da pancreatite. A isquemia mesentérica aguda pode ser facilmente confundida com pancreatite aguda – um histórico de fibrilação atrial, pós-IAM, a ausência de vômitos incoercíveis, a presença de diarreia ou sangue no toque retal e uma acidose metabólica proeminente, são dados que sugerem o diagnóstico de isquemia mesentérica. Na úlcera perfurada, o exame abdominal em geral mostra irritação peritoneal proeminente (às vezes, “abdome em tábua”), achados não esperados na pancreatite aguda, que é uma causa de inflamação predominantemente retroperitoneal. Há casos em que os critérios clínicos e laboratoriais não são capazes de diferenciar com certeza a pancreatite aguda de seus diagnósticos diferenciais; nestes, está indicada a laparotomia exploradora. TRATAMENTO Só para relembrar as definições, pois estas influenciam totalmente a abordagem terapêutica da pancreatite aguda. FORMA LEVE: • Menos do que três critérios de Ranson positivos e APACHE II < 8. • Ausência de complicações orgânicas sistêmicas. FORMA GRAVE: • Escore de Ranson > 3. • APACHE > 8. • Presença de complicações orgânicas sistêmicas. • Presença de complicações locais como necrose, abscesso e pseudocisto. COMO ABORDAR INICIALMENTE UM QUADRO DE PANCREATITE AGUDA? 1. Reposição volêmica, analgesia e dieta zero. 2. Definir se é a forma leve ou a forma grave de doença (só é possível após 48 horas). 3. Na forma grave, orientar a conduta posterior pelo resultado da TC contrastada (observar se existe necrose > 30% do pâncreas). 4. Observar o surgimento de complicações tardias. 5. Recomeçar a dieta enteral no momento adequado. TRATAMENTO DA FORMA LEVE A forma leve não indica internação em serviço de Terapia Intensiva – O paciente pode ser internado em uma unidade intermediária, permanecer em dieta zero até a melhora do quadro clínico (principalmente a dor) e até que haja peristalse audível. A realimentação oral em geral é possível com 3-5 dias de evolução na forma leve. Os melhores critérios para iniciarmos dieta são a melhora da dor abdominal, o retorno da peristalse, a ausência de vômitos e o paciente manifestar desejo de alimentar-se. O tratamento de suporte nesses casos se resume a: (1) Analgesia – meperidina ou outros opiáceos. Algumas referências mais antigas recomendam evitar o uso de morfina pelo fato desta medicação poder aumentar o tônus do esfíncter de Oddi. No entanto, a última edição do Sabiston ressalta que – apesar de tal efeito realmente poder ocorrer – até hoje nunca foi confirmado que o controle álgico com morfina exerce impacto efetivamente negativo na evolução da pancreatite aguda. Logo, se necessário, PODEMOS usar morfina no paciente. (2) Hidratação venosa para reposição volêmica (perdas para o terceiro espaço e pelos vômitos). (3) Controle eletrolítico e ácido-básico (ex: hipocalemia e alcalose metabólica devido aos vômitos, hipocalcemia, hipomagnesemia, esta última comum na pancreatite alcoólica.). A forma leve geralmente é a manifestação da pancreatite intersticial (edematosa) e nesses casos a TC não é necessária (exceto se houver alguma complicação tardia). TRATAMENTO CLÍNICO DA FORMA GRAVE Os casos graves podem evoluir com complicações orgânicas sistêmicas importantes, como choque misto, insuficiência renal, queda do sensório, insuficiência cardíaca congestiva e SDRA. Estas devem ser agressivamente tratadas. Às vezes, é necessária intubação traqueal com ventilação mecânica e a monitorização hemodinâmica completa (cateter de PAM e cateter de Swan-Ganz). Vamos descrever alguns tópicos especiais no tratamento da pancreatite aguda grave: 11 Dor abdominal, Diarreia, Vômitos e Icterícia Hanna Briza Analgesia: Deve ser feita com opiáceos, pois a dor em geral é de forte intensidade. Se for possível o controle com a Meperidina, essa deve ser o opiáceo de escolha, devido a uma vantagem teórica sobre a morfina (a morfina pode aumentar o tônus do esfíncter de Oddi). Caso ainda assim a dor seja de forte intensidade, já vimos que é possível o uso de morfina... O grande problema da Meperidina é que pode haver acúmulo de metabólitos tóxicos, com irritação neuromuscular e, raramente, convulsões. Hidratação Venosa (medida mais importante): Deve ser feita visando uma reposição volêmica vigorosa, com os objetivos principais de normalizar a diurese, a pressão arterial, a frequência cardíaca e a pressão venosa central. Estes pacientes perdem uma grande quantidade de líquido para o retroperitônio. Na pancreatite grave, pelo menos 6 litros de cristaloide devem ser repostos nas primeiras 24h. O fluido de escolha pode ser o Ringer lactato ou o soro fisiológico, com alguns autores preferindo o primeiro, devido ao fato de conter cálcio. Coloides sintéticos devem ser evitados, pois podem aumentar o risco de SDRA na PA grave. A estimativa da perda volêmica é feita pelo exame clínico, pelo hematócrito inicial (na admissão pode estar aumentado pela hemoconcentração), pela queda do hematócrito após 48h de reposição volêmica (uma queda maior que 10% indica uma grande hemoconcentração prévia) e pelo balanço hídrico (quando muito positivo nas primeiras 48h, significa que o organismo precisou de mais líquido para repor as perdas). Nos casos graves ou refratários ou nos pacientes com problema cardíaco prévio devemos guiar a nossa reposição volêmica pela PCP (Pressão Capilar Pulmonar), estimada pelo cateter de Swan-Ganz. Devemos mantê-la em torno de 18 mmHg. Suporte Nutricional: Estes pacientes ficarão em dieta oral zero por períodos prolongados (superiores a quatro semanas), tornando necessário outro tipo de suporte nutricional, que deve ser iniciado de preferência nas primeiras 48h, devido ao estado hipercatabólico da pancreatite grave. A nutrição enteral jejunal (por cateter nasojejunal instalado por via endoscópica) é a mais indicada atualmente. A dieta deve ser rica em proteínas e pobre em lipídeos. Estudos demonstraram que essa alimentação é segura e pode reduzir o risco de infecção pancreática por diminuir a translocação bacteriana pela mucosa intestinal. A Nutrição Parenteral Total (NPT) é indicada nos poucos pacientes que não toleram a dieta enteral ou naqueles em que as necessidades calóricas não são atingidas após o segundo ao quarto dia de dieta. Esta dieta possui risco de sepse pelo cateter venoso profundo, além de ser mais cara e menos efetiva que a enteral. Estudos recentes comparando a nutrição nasojejunal com a nasogástrica, a princípio, não encontraram piores resultados com a segunda (teoricamente, o gotejamentode nutrientes antes do duodeno poderia agravar o estímulo ao pâncreas inflamado, piorando a pancreatite). Mais estudos são necessários a fim de esclarecer melhor se a nutrição nasogástrica é realmente segura e equivalente à nasojejunal. Aminas Vasopressoras: A noradrenalina (associada ou não à dobutamina), em veia profunda, deve ser utilizada nos casos de choque refratário à reposição volêmica vigorosa. Quando necessária, isso indica que o paciente tem forte componente de choque “sirético” ou mesmo séptico. Seu uso deve ser guiado pelos parâmetros da monitorização hemodinâmica. Cateter Nasogástrico em Sifonagem: Um cateter nasogástrico deve ser deixado em sifonagem nos casos de vômitos incoercíveis e distensão abdominal (íleo paralítico). O objetivo é descomprimir o tubo digestivo e reduzir o risco de broncoaspiração. Antibiótico Profilático: Até pouco tempo atrás, recomendava-se antibioticoprofilaxia para portadores de pancreatite aguda grave com > 30% de necrose do pâncreas. No entanto, estudos recentes sugeriram NÃO haver qualquer benefício com essa conduta, pelo contrário: ela parece aumentar a incidência de superinfecções fúngicas (candidíase sistêmica). Importantes livros de referência (ex Harrison e Cecil) afirmam que NÃO HÁ LUGAR para a antibioticoprofilaxia em pancreatite aguda, seja ela grave (necrohemorrágica) ou não. O fato é que alguns autores ainda defendem este procedimento (ex.: Associação Italiana para o Estudo do Pâncreas) enquanto outros ainda não o descartaram por completo, pelo menos em casos selecionados (ex.: a AGA, ou Associação Americana de Gastroenterologia, aceita seu uso em portadores de necroses extensas, desde que o ATB não seja mantido por mais de 14 dias). Que orientação devo guardar para o dia da prova??? Em vista das recomendações das principais referências de prova, sugerimos acatar suas orientações claramente expressas e NÃO INDICAR ATB 12 Dor abdominal, Diarreia, Vômitos e Icterícia Hanna Briza PROFILÁTICO EM CASOS DE NECROSE PANCREÁTICA ESTÉRIL (isto é, só se deve fazer ATB se a necrose estiver comprovadamente infectada). Medidas sem Eficácia Confirmada: Lavagem peritoneal (diálise peritoneal): era recomendada (por alguns autores) a pacientes com critérios de gravidade que evoluem mal a despeito dos cuidados intensivos. O princípio da lavagem peritoneal consistia na depuração das enzimas e toxinas extravasadas do pâncreas inflamado para a cavidade peritoneal, evitando que estas substâncias fossem novamente absorvidas para a corrente sanguínea. Devido a resultados controversos, essa terapia caiu em desuso. Outras medidas estudadas no tratamento da pancreatite aguda não tiveram benefício em humanos: octreotídeo, somatostatina (drogas que inibem a secreção enzimática acinar), aprotinina, plasma fresco congelado, etc. Um inibidor do PAF (Fator Ativador Plaquetário), chamado lexipafante, administrado dentro das primeiras 72h do início dos sintomas na pancreatite aguda grave, demonstrou algum benefício prognóstico num estudo piloto, mas isso não foi confirmado em estudos randomizados. O uso de probióticos parece aumentar a mortalidade. NECROSE PANCREÁTICA INFECTADA – DIAGNÓSTICO E CONDUTA – A pancreatite aguda com mais de 30% de necrose na TC contrastada tem uma chance de 40% de infecção do tecido necrosado. Por isso, estes pacientes, quando apresentam uma piora clínica após uma melhora inicial ou aparece um quadro novo de febre, leucocitose ou qualquer outro sinal de sepse, devem ser submetidos à investigação de infecção pancreática. Geralmente a infecção ocorre após 10 dias do início da pancreatite... Se a TC mostrar gás no pâncreas ou tecido peripancreático (sinal da bolha de sabão), isso é bastante indicativo de infecção. Caso contrário, o diagnóstico é feito pela punção do tecido necrótico guiada por TC. Neste contexto, na realidade, qualquer coleção de líquido também deve ser puncionada. O exame bacteriológico possui ótima acurácia diagnóstica (90% de sensibilidade): se mostrar bactérias coráveis pelo Gram ou crescimento positivo em culturas para germes comuns, o diagnóstico de necrose pancreática infectada (ou coleções infectadas) está confirmado. O resultado fica pronto em 2 dias. Os germes mais comuns são os Gram-negativos entéricos (Escherichia coli, Klebsiella sp,...), Staphylococcus aureus, anaeróbios e Candida sp. Em 80% dos casos cresce apenas uma bactéria. As bactérias chegam até o pâncreas por translocação pela quebra da integridade da barreira intestinal. Toda pancreatite com necrose infectada deve indicar a necrosectomia, que reduz substancialmente a letalidade desses pacientes. Trata- -se de uma cirurgia de alto risco que é feita deixando-se a cavidade aberta ou fechada, com revisões posteriores programadas a cada 2-3 dias, no intuito de completar a necrosectomia. Deve-se postergar a necrosectomia, se a condição clínica permitir, para após 12 dias do início do quadro, quando o pâncreas já está mais estruturado. Estudos mostraram um melhor prognóstico nesses pacientes quando comparados aos submetidos à intervenção precoce. Existe uma tendência crescente para a realização dessa cirurgia através da técnica videolaparoscópica, porém, a literatura ainda não validou tal estratégia. Logo, até o momento ainda não é possível recomendar a necrosectomia videolaparoscópica com base em evidências científicas, mas muitos serviços têm adotado essa conduta. Devemos lembrar que a necrosectomia na ausência de infecção não traz benefício prognóstico e pode até aumentar a mortalidade da pancreatite necrosante. COLANGIOPANCREATOGRAFIA RETRÓGRADA ENDOSCÓPICA (CPRE) E PAPILOTOMIA É empregada nas primeiras 72h da pancreatite aguda biliar, na presença de colangite e/ ou icterícia progressiva moderada a grave (ex.: bilirrubina total > 5 mg/dl). Logo, a CPRE + papilotomia não está indicada de rotina em todos os casos de pancreatite aguda biliar! Durante a CPRE, a papilotomia ou esfincterotomia endoscópica é capaz de permitir a saída dos cálculos impactados ou acumulados no colédoco. COLECISTECTOMIA SEMIELETIVA A colecistectomia de urgência deve ser evitada na pancreatite aguda biliar, por ter maior morbimortalidade. Entretanto não deve ser postergada por muito tempo, pois o índice de recidiva é relativamente alto (20-25%) e precoce. Todos os pacientes com pancreatite aguda biliar devem ser submetidos à colecistectomia laparoscópica antes da alta hospitalar (semieletiva), porém, somente após a 13 Dor abdominal, Diarreia, Vômitos e Icterícia Hanna Briza resolução do quadro clínico agudo. Deve ser complementada pela CPRE pós-operatória com papilotomia, caso existam cálculos no colédoco ou pela colangiografia e exploração do colédoco peroperatória. PROGNÓSTICO Na abordagem da pancreatite aguda, é fundamental realizarmos o quanto antes uma avaliação formal do prognóstico. Assim, poderemos guiar melhor nossa conduta terapêutica. Esta avaliação deve ser feita através de critérios clínicos e laboratoriais validados, classificando a pancreatite como “leve”, “moderada” ou “grave”. No caso da pancreatite “grave” é mandatório realizar uma TC abdominal com contraste endovenoso após as primeiras 72h do início do quadro, a fim de detectar a presença ou não de necrose (pancreatite necrosante) bem como outras complicações locorregionais. O fato é que diferentes escores foram validados com o intuito de estratificar o prognóstico da pancreatite aguda. A seguir, apresentaremos os principais. CRITÉRIOS DE RANSON Apesar de serem muito antigos e cada vez menos utilizados na prática, os critérios de Ranson são os mais cobrados nas provas de residência. São 11 os critérios estudados por Ranson, em 1974. Destes, cinco são avaliadosna admissão do paciente e refletem a gravidade e a extensão do processo inflamatório, assim como a idade. Os outros seis critérios são avaliados ao longo das 48 horas iniciais e refletem o desenvolvimento das complicações sistêmicas e o grau de perda volêmica para o “terceiro espaço”. Devemos saber que a maioria dos pacientes com pancreatite aguda tem a forma leve da doença, e o número médio de critérios de Ranson positivos é de 1,6. A minoria com a forma grave tem uma média não muito alta (2,4). A média nos casos fatais é de 5,6. Deve-se salientar que os 11 critérios devem ser buscados, pois caso contrário reduz-se a sensibilidade do escore – tais critérios predizem 60-85% e omitem 15-30% das pancreatites graves. ESCORE APACHE-II O APACHE II é outro escore validado para estimativa do prognóstico. Foi criado para a avaliação de pacientes graves em geral e, portanto, pode muito bem ser utilizado na pancreatite (considera-se como “grave” a pancreatite que soma 8 ou mais pontos). O APACHE-II consta de 14 parâmetros (sendo 12 variáveis fisiológicas), que levam em conta diversas funções orgânicas (circulatória, pulmonar, renal, cerebral, hematológica etc.) e sua interpretação não é simples. Para torná-lo prático, o cálculo pode ser feito online ou com programas de computador. O APACHE II possui a vantagem de poder ser calculado já nas primeiras 24 horas da admissão, diferentemente do Ranson, que requer 48h para ser concluído. ESCORE “BISAP” O BISAP é um escore de fácil aplicação à beira do leito, consistindo de 5 parâmetros importantes para a definição de pancreatite aguda “grave”. Tais parâmetros são memorizados como um acrônimo das letras que compõem seu nome... Curiosamente, a palavra “BISAP” não tem como único propósito servir de mnemônico: na realidade, trata-se também de uma sigla em inglês (Bedside Index for Severity in Acute Pancreatitis). Observe a composição do “BISAP”: (B) Blood urea (ureia sérica) > 44 mg/ml (I) Impaired Mental Status ou “alteração do estado mental”; (S) SIRS (Síndrome da Resposta Inflamatória Sistêmica); (A) Age ou “idade” > 60 anos; (P) Derrame Pleural. ESCORE DE ATLANTA Este é um dos escores mais utilizados na prática atual. Preconiza que a pancreatite aguda pode ser classificada em 3 subtipos, dependendo da gravidade. 14 Dor abdominal, Diarreia, Vômitos e Icterícia Hanna Briza Ele ressalta o conceito mais importante acerca da estratificação de gravidade dessa doença: o que define se a pancreatite aguda é “grave” ou não é a presença da Síndrome de Resposta Inflamatória Sistêmica (SIRS) desencadeada pela inflamação pancreática (isto é, a inflamação se origina no pâncreas, porém, todos os órgãos e tecidos do corpo podem acabar sofrendo consequências). Evidentemente, quanto mais intensa a inflamação sistêmica maior a chance de falência orgânica múltipla e, por conseguinte, pior o prognóstico do paciente. ESCORE DE ATLANTA PANCREATITE AGUDA “LEVE”: ausência de falência orgânica e ausência de complicações locais (ex coleções líquidas, necrose peripancreática) ou à distância. PANCREATITE AGUDA “MODERADA”: falência orgânica transitória (< 48h de duração) ou presença de complicações locais e/ou à distância. PANCREATITE AGUDA “GRAVE”: falência orgânica persistente (48 horas ou mais de duração. TOMOGRAFIA COMPUTADORIZADA CONTRASTADA A TC de abdome com reforço de contraste é o “padrã oouro” no diagnóstico de necrose pancreática, com uma acurácia superior a 90% quando há mais de 30% de necrose glandular e uma sensibilidade próxima a 100% entre o 4º e o 10º dia do início da doença. É fundamental sabermos se estamos diante de uma pancreatite intersticial ou de uma pancreatite necrosante, pois mudam o prognóstico e a conduta. A presença de necrose pancreática radiologicamente detectada (ausência focal de captação após reforço de contraste) eleva substancialmente a morbimortalidade associada à doença: a mortalidade geral na pancreatite edematosa é menor que 1% enquanto na presença de necrose pancreática este índice situa-se entre 10-25%, atingindo patamares ainda mais elevados na presença de infecção pancreática e outras complicações. O processo inflamatório também pode causar o aparecimento de Coleções Líquidas Agudas, isoladas ou múltiplas e de tamanhos variados – podem ser muito bem visualizadas na TC e, como têm duração inferior a 4 semanas, não podem ser chamadas de Pseudocistos. A extensão do processo inflamatório também pode ser bem estimada pela TC, que identifica o acometimento do espaço peripancreático, a invasão do retroperitônio, do espaço perirrenal anterior e dos órgãos adjacentes. Existe um escore prognóstico feito pela TC contrastada, que contempla a extensão da inflamação (o fleimão pancreático) para os tecidos peripancreáticos, a presença de coleções líquidas e a extensão da área de necrose. Um escore total maior ou igual a 6 pontos indica mau prognóstico. MARCADORES SOROLÓGICOS Proteína C Reativa (PCR) ou Interleucina 6 (IL-6): níveis de PCR superiores a 150 mg/L indicam mau prognóstico, bem como níveis elevados de IL-6. A IL-6 é a citocina que estimula a produção e liberação hepática dos reagentes de fase aguda, especialmente a Proteína C Reativa. Desse modo, a IL-6 é um marcador prognóstico mais precoce do que a PCR, sendo a PCR de maior valor apenas a partir do 2º dia de internação. OUTROS O SOFA (Sequential Organ Failure Assessment) e a escala de Marshall modificada são outros escores que avaliam o grau de comprometimento multiorgânico, podendo ser aplicados na pancreatite aguda grave a fim de estimar o prognóstico. Curiosamente, existe também um escore para avaliar BOM PROGNÓSTICO. Trata-se do HAPS (Harmless Acute Pancreatitis Score), que é composto por: (1) ausência de defesa ou descompressão dolorosa do abdome; (2) hematócrito normal; (3) ausência de azotemia. O HAPS prevê, com 98% de acurácia, que a pancreatite aguda é “leve”.