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1 Júlia Morbeck – @med.morbeck Objetivos 1- Rever a morfofisiologia do pâncreas e da vesícula biliar; 2- Estudar epidemiologia, fatores de risco, etiologia, fisiopatologia, manifestações clínicas e diagnóstico da pancreatite aguda e crônica. Vesícula biliar ↠ A vesícula biliar é uma estrutura com formato semelhante a um saco localizada na superfície inferior do fígado; ela possui aproximadamente 8 cm de comprimento e 4 cm de largura (SEELY, 10ª ed.). ↠ As partes da vesícula biliar incluem o amplo fundo da vesícula biliar, que se projeta inferiormente além da margem inferior do fígado; o corpo da vesícula biliar, a parte central; e o colo da vesícula biliar, a parte afunilada. O corpo e o colo se projetam superiormente (TORTORA, 14ª ed.). HISTOLOGIA ↠ Três túnicas formam a parede da vesícula biliar: (SEELY, 10ª ed.). • Uma mucosa interna que se dobra em rugas e permite que a vesícula biliar expanda; • Uma muscular, que é uma camada de músculo liso que permite que a vesícula biliar contraia; • Um revestimento externo de serosa. A túnica mucosa da vesícula biliar é composta por epitélio colunar simples disposto em pregas semelhantes às do estômago. A parede da vesícula biliar carece de uma tela submucosa. A túnica muscular média da parede é constituída por fibras de músculo liso. A contração das fibras musculares lisas ejeta o conteúdo da vesícula biliar para dentro do ducto cístico. O revestimento exterior da vesícula biliar é o peritônio visceral (TORTORA, 14ª ed.). FISIOLOGIA ↠ O fígado secreta bile de maneira contínua, que flui para a vesícula biliar, onde 40 a 70 mL de bile podem ser estocados. Enquanto a bile está na vesícula biliar, água e eletrólitos podem ser absorvidos, e os sais e pigmentos biliares podem se tornar 5 a 10 vezes mais concentrados do que quando secretados pelo fígado (SEELY, 10ª ed.). Pâncreas ↠ O pâncreas, uma glândula retroperitoneal que mede aproximadamente 12 a 15 cm de comprimento e 2,5 cm de espessura, encontra-se posteriormente à curvatura maior do estômago (TORTORA, 14ª ed.). ↠ O pâncreas é composto por uma cabeça, localizada na curvatura do duodeno, um corpo e uma cauda, que se estende até o baço (SEELY, 10ª ed.). ↠ Os sucos pancreáticos são secretados pelas células exócrinas em pequenos ductos que por fim se unem para formar dois ductos maiores, o ducto pancreático e o ducto acessório. Estes, por sua vez, levam as secreções até o intestino delgado. O ducto pancreático ou ducto de Wirsung é o maior dos dois ductos. Na maior parte das pessoas, o ducto pancreático se une ao ducto colédoco que vem do fígado e vesícula biliar e entra no duodeno como um ducto comum dilatado chamado ampola hepatopancreática ou ampola de Vater (TORTORA, 14ª ed.). ↠ A ampola se abre em uma elevação da túnica mucosa duodenal conhecida como papila maior do duodeno, que se situa aproximadamente 10 cm inferior ao óstio pilórico do estômago. A passagem do suco pancreático e biliar por meio da ampola hepatopancreática para o duodeno do intestino delgado é regulada por massa de músculo liso que circunda a ampola conhecida como músculo esfíncter da ampola hepatopancreática ou esfíncter de Oddi (TORTORA, 14ª ed.). O outro grande ducto do pâncreas, o ducto pancreático acessório (ducto de Santorini), sai do pâncreas e esvazia-se no duodeno aproximadamente 2,5 cm acima da ampola hepatopancreática (TORTORA, 14ª ed.). APG 13 – “FINAL DE FESTA” 2 Júlia Morbeck – @med.morbeck HISTOLOGIA ↠ O pâncreas é um órgão complexo composto por tecidos endócrino e exócrino que realiza diversas funções (SEELY, 10ª ed.). ↠ O pâncreas é composto por pequenos aglomerados de células epiteliais glandulares. Aproximadamente 99% dos aglomerados, chamado ácinos, constituem a porção exócrina do órgão. As células no interior dos ácinos secretam uma mistura de líquidos e enzimas digestórias chamadas suco pancreático (TORTORA, 14ª ed.). ↠ O 1% restante dos aglomerados, as chamadas ilhotas pancreáticas (ilhotas de Langerhans), formam a porção endócrina do pâncreas. Estas células secretam os hormônios glucagon, insulina, somatostatina e polipeptídio pancreático (TORTORA, 14ª ed.). Cada ilhota pancreática apresenta quatro tipos de células secretoras de hormônio: (TORTORA, 14ª ed.). • As células alfa ou A constituem cerca de 17% das células das ilhotas pancreáticas e secretam glucagon. • As células beta ou B constituem cerca de 70% das células das ilhotas pancreáticas e secretam insulina. • As células delta ou D constituem cerca de 7% das ilhotas pancreáticas e secretam somatostatina. • As células F constituem o restante das células das ilhotas pancreáticas e secretam polipeptídio pancreático. Segundo Silverthorn também pode ser chamada de células PP. Grupos de ácinos formam lóbulos que são separados por septos estreitos. Os lóbulos são conectados por pequenos ductos intercalares em ductos intralobulares, que deixam os lóbulos e se juntam aos ductos interlobulares entre os lóbulos. Os ductos interlobulares unem- se no ducto pancreático (SEELY, 10ª ed.). ↠ Uma cápsula delgada de tecido conjuntivo reveste o pâncreas e envia septos para o seu interior, separando-o em lóbulos. Os ácinos são circundados por uma lâmina basal, que é sustentada por uma bainha delicada de fibras reticulares. O pâncreas também tem uma rede capilar extensa, essencial para o processo de secreção (JUNQUEIRA & CARNEIRO). FISIOLOGIA ↠ O pâncreas produz diariamente de 1.200 a 1.500 mℓ de suco pancreático, um líquido claro e incolor que consiste principalmente em água, alguns sais, bicarbonato de sódio e várias enzimas (TORTORA, 14ª ed.). O suco pancreático é liberado no intestino delgado pelos ductos pancreáticos, onde ele atua na digestão (SEELY, 10ª ed.). ↠ O componente aquoso é produzido principalmente pelas células epiteliais colunares que revestem os pequenos ductos do pâncreas. Ele contém Na+ e K+ na mesma concentração encontrada no líquido extracelular (SEELY, 10ª ed.). 3 Júlia Morbeck – @med.morbeck ↠ Íons bicarbonato HCO3- são a principal parte do componente aquoso, e eles neutralizam o quimo ácido proveniente do estômago que entra no intestino delgado. A elevação do pH causada pelas secreções pancreáticas no duodeno interrompe a digestão pela pepsina mas fornece o ambiente adequado para a função das enzimas pancreáticas. Os íons bicarbonato são ativamente secretados pelo epitélio ductal, e a água segue passivamente a fim de deixar o suco pancreático isotônico (SEELY, 10ª ed.). ↠ As enzimas no suco pancreático incluem uma enzima para digerir amido chamada amilase pancreática; várias enzimas que digerem proteínas em peptídios chamadas tripsina, quimotripsina, carboxipeptidase e elastase; a principal enzima que digere triglicerídios em adultos, chamada lipase pancreática; e as enzimas que digerem ácidos nucleicos chamadas ribonuclease e desoxirribonuclease, que digerem ácido ribonucleico (RNA) e ácido desoxirribonucleico (DNA) em nucleotídeos (TORTORA, 14ª ed.). As enzimas proteolíticas, que digerem proteínas, são secretadas em formas inativas, enquanto muitas outras enzimas são secretadas na forma ativa. As principais enzimas proteolíticas são a tripsina, a quimiotripsina e a carboxipeptidase. Elas são secretadas nas suas formas inativas como tripsinogênio, quimiotripsinogênio e procarboxipeptidase e são ativadas pela remoção de certos peptídeos das proteínas precursoras. Se elas fossem produzidas na sua forma ativa, digeririam os tecidos que as produzem (SEELY, 10ª ed.). Pancreatite A pancreatite é dividida em duas formas, aguda e crônica, exibindo, cada uma delas, suas próprias características patológicas e clínicas especificas. Ambas as formas são iniciadas por lesões que levam à autodigestãodo pâncreas pelas suas próprias enzimas. Em circunstâncias normais, vários fatores protegem o pâncreas da autodigestão: (KUMAR et al., 2023). • As enzimas digestivas são sintetizadas, em sua maioria, como proenzimas inativas (zimogênios), que são acondicionadas em grânulos secretores; • As proenzimas costumam ser ativadas pela tripsina, que é ela própria ativada pela enteropeptidase (enteroquinase) duodenal no intestino delgado; em consequência, a ativação intrapancreática de proenzimas costuma ser mínima; • As células acinares e ductais secretam inibidores da tripsina, incluindo o inibidor de serina protease de Kazal tipo 1 (SPINK1), o que limita ainda mais a atividade intrapancreática da tripsina. Ocorre pancreatite quando esses mecanismos protetores são desestruturados ou sobrecarregados. Os ataques agudos incluem desde eventos leves e autolimitados até eventos com potencial fatal. A pancreatite recorrente ou persistente pode levar à perda permanente da função pancreática (KUMAR et al., 2023). Pancreatite aguda ↠ Pancreatite aguda é um processo inflamatório reversível dos ácinos pancreáticos, desencadeado pela ativação prematura das enzimas pancreáticas (NORRIS, 2021). A pancreatite aguda é definida pela inflamação aguda do pâncreas, que pode envolver tecidos peripancreáticos e/ou órgãos a distância. É uma doença comum e com amplo espectro de apresentação, variando desde formas leves, que são mais comuns e respondem bem ao tratamento conservador, até formas graves, que requerem internações prolongadas em unidades de terapia intensiva, uso de antimicrobianos de amplo espectro e intervenções cirúrgicas (ZATERKA; EISIG., 2016). EPIDEMIOLOGIA ↠ A mortalidade na pancreatite aguda respeita um padrão bimodal. Nas primeiras duas semanas, costuma ocorrer em virtude da resposta inflamatória sistêmica e das disfunções orgânicas por ela induzidas. Após esse período, costuma acontecer por causa de complicações infecciosas da doença (ZATERKA; EISIG., 2016). ↠ No período de 2010 a 2020 foram registrados 235.052.349,09 casos de pancreatite aguda nas regiões do Brasil (LIMA et al., 2021). ↠ Pessoas com idade de 30 a 80 anos tem uma incidência maior da doença. As principais causas relacionadas à pancreatite aguda são a litíase biliar e o 4 Júlia Morbeck – @med.morbeck etilismo (≥ 4 a 7 doses de bebida alcóolica por dia para os homens e ≥ 3 doses por dia para as mulheres), nesse último afeta predominantemente homens com história de consumo alcoólico abusivo. No Brasil, cerca de 17,9% da população adulta faz uso abusivo de bebida alcoólica, de acordo com dados da Organização Mundial de Saúde (OMS, 2017) (LIMA et al., 2021). ↠ Em relação ao tempo de internação total dos pacientes, foi registrado uma média de 7,1 dias (LIMA et al., 2021). ↠ No que diz respeito aos serviços hospitalares, nos últimos 10 anos o valor médio total dos custos hospitalares relacionados às desordens pancreáticas foi de R$206.9333.416,00 (LIMA et al., 2021). ETIOLOGIA A determinação da etiologia da PA é obviamente importante, mesmo porque muitas podem ser tratadas e eliminadas, prevenindo recorrências (DANI; PASSOS, 2011). LITÍASE BILIAR ↠ A migração de cálculos biliares é a principal causa de pancreatite aguda, respondendo por aproximadamente 40% dos casos. O mecanismo pelo qual os cálculos provocam a pancreatite aguda é desconhecido, mas as hipóteses são: (ZATERKA; EISIG., 2016). • a passagem do cálculo resulta em edema transitório da papila, logo, em discreta obstrução ao esvaziamento do ducto pancreático principal; • durante a passagem do cálculo através da ampola, há refluxo de bile em virtude de obstrução transitória. Apesar de a litíase biliar ser a principal causa de pancreatite aguda, apenas 3 a 7% dos pacientes portadores de cálculos desenvolvem pancreatite aguda. Os principais fatores de risco para sua ocorrência são sexo masculino e cálculos menores que 5 mm. É relevante mencionar que a pancreatite biliar é mais comum em mulheres, pois a litíase é muito mais comum entre elas que entre homens (ZATERKA; EISIG., 2016). A microlitíase, definida como cálculos biliares minúsculos e/ou lodo biliar que não são facilmente visíveis em exames de imagem de rotina, frequentemente é a causa em pacientes inicialmente rotulados como tendo pancreatite idiopática aguda (GOLDMAN; SCHAFER, 2022). ÁLCOOL ↠ O álcool é responsável por 30% das pancreatites agudas, afetando predominantemente homens jovens com história de consumo alcoólico abusivo. De modo geral, considera-se que os pacientes que apresentam pancreatite aguda por álcool apresentam, na maioria das vezes, evidências funcionais ou morfológicas de pancreatite crônica, de tal maneira que é inadequado falar em pancreatite aguda, mas, sim, em pancreatite crônica agudizada (ZATERKA; EISIG., 2016). ↠ O mecanismo de lesão pancreática alcoólica envolve uma combinação de toxicidade direta, estresse oxidativo e alterações na secreção de enzimas pancreáticas (GOLDMAN; SCHAFER, 2022). Hipertrigliceridemia ↠ Esta é uma importante causa de pancreatite aguda não traumática em pacientes sem litíase biliar ou antecedente de consumo de álcool. Os pacientes geralmente apresentam soro lipêmico em virtude de níveis de triglicerídes plasmáticos maiores que 1.000 mg/dL, havendo claro predomínio de VLDL (very low density lipoprotein) e quilomícrons (ZATERKA; EISIG., 2016). O mecanismo pelo qual há lesão pancreática não é bem conhecido, mas parece envolver liberação de ácidos graxos livres e lesão direta das células acinares pancreáticas e do endotélio (ZATERKA; EISIG., 2016). ↠ De maneira geral, três tipos de pacientes apresentam pancreatite aguda por hipertrigliceridemia: (ZATERKA; EISIG., 2016). 5 Júlia Morbeck – @med.morbeck • diabéticos mal controlados com antecedente de hipertrigliceridemia; • alcoolistas com hipertrigliceridemia; • indivíduos magros, não diabéticos e não alcoolistas com hipertrigliceridemia induzida por drogas. Hipercalcemia ↠ Trata-se de causa rara de pancreatite aguda. Nesse contexto, a doença surge pela deposição excessiva de cálcio no ducto pancreático e ativação prematura do tripsinogênio. Pode ocorrer em pacientes com hiperparatireoidismo, hipercalcemia paraneoplásica, sarcoidose, toxicidade por vitamina D e no intraoperatório de cirurgias cardíacas, durante as quais se utiliza, de modo rotineiro, a infusão de altas doses de cálcio (ZATERKA; EISIG., 2016). Drogas ↠ Medicamentos são causa incomum de pancreatite aguda, respondendo por aproximadamente 1,4% dos casos. Apesar de sua baixa frequência, desponta respondendo por aproximadamente 1,4% dos casos como um problema emergente, pois acredita-se que ela se deva à subestimação de sua frequência, uma vez que, para seu diagnóstico, é necessário alto índice de suspeita (ZATERKA; EISIG., 2016). ↠ Os mecanismos responsáveis pela pancreatite aguda medicamentosa são variáveis, incluindo efeito tóxico direto da droga, reações de hipersensibilidade ou efeito tóxico indireto, mediado por hipertrigliceridemia ou outras anormalidades metabólicas (ZATERKA; EISIG., 2016). INFECÇÕES ↠ Vários agentes infecciosos são potenciais causadores de pancreatite aguda, mas a frequência com que estas ocorrem é desconhecida. O diagnóstico etiológico nesses casos é complexo e depende da definição do quadro de pancreatite paralelamente à definição da existência da infecção (ZATERKA; EISIG., 2016). Uma pancreatite aguda de causa infecciosa deve ser cogitada se o paciente apresentar a síndrome causa da pelo agente infeccioso, o que ocorre na maioria dos casos (ZATERKA; EISIG., 2016). Ascaris lumbricoides pode causar pancreatite por obstruir o ducto pancreático à medida que os vermes migram através da ampola de Vater. Os vírus que podem infectaras células acinares pancreáticas diretamente e podem causar pancreatite incluem citomegalovírus, vírus Coxsackie B (GOLDMAN; SCHAFER, 2022). TRAUMATISMO ↠ O traumatismo iatrogênico no pâncreas e no ducto pancreático durante a realização de uma colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) é uma causa comum de pancreatite, com o risco médio de menos de 5% para pacientes com cálculos biliares simples ou neoplasia maligna (GOLDMAN; SCHAFER, 2022). ↠ Traumatismos penetrantes e não penetrantes, que variam de uma contusão a lesão grave por esmagamento e até mesmo transecção da glândula, podem causar pancreatite. A apresentação aguda é a regra, mas alguns pacientes com lesões mais leves apresentam quadro subagudo ou crônico. A lesão isquêmica da glândula pode ocorrer após procedimentos cirúrgicos, especialmente a circulação extracorpórea, e causar pancreatite grave (GOLDMAN; SCHAFER, 2022). O trauma fechado do abdome é a causa mais comum de PA em crianças (DANI; PASSOS, 2011). TUMORES ↠ Quaisquer tumores pancreáticos ou papilares que provoquem obstrução à drenagem do suco pancreático podem ocasionar quadros de pancreatite aguda, sobretudo em indivíduos acima dos 40 anos de idade (ZATERKA; EISIG., 2016). A pancreatite aguda pode até mesmo ser a primeira manifestação da neoplasia. Adenocarcinomas e neoplasias intradutais mucinosas são os principais responsáveis por esses quadros (ZATERKA; EISIG., 2016). GENÉTICA ↠ Mutações no gene do tripsinogênio catiônico (PRSS1), que já foram identificadas em famílias com pancreatite hereditária, são mais comumente observadas em associação com pancreatite crônica, mas podem se apresentar inicialmente como pancreatite aguda (GOLDMAN; SCHAFER, 2022). ↠ Muitas outras mutações e polimorfismos estão associados à pancreatite aguda e crônica. Esses genes afetados incluem o regulador da condutância da fibrose cística (CFTR), o inibidor da serinoprotease kazal do tipo 1 (SPINK1), a quimiotripsina C, o receptor sensível ao cálcio, claudinas e outros (GOLDMAN; SCHAFER, 2022). 6 Júlia Morbeck – @med.morbeck FISIOPATOLOGIA ↠ Pancreatites agudas têm como evento inicial a ativação prematura do tripsinogênio no interior das células pancreáticas em quantidades suficientes para superar os mecanismos de defesa capazes de proteger o pâncreas da tripsina ativada (ZATERKA; EISIG., 2016). A hipercalcemia intracelular parece ser crucial nesse momento do início da PA, agindo através da ativação do tripsinogênio e da estabilização da tripsina. O tripsinogênio também pode ser ativado por enzimas lisossomais, tais como a catepsina B (DANI; PASSOS, 2011). ↠ O resultado disso é a ativação seriada dos demais zimogênios e da fosfolipase A2, promovendo autodigestão do parênquima pancreático. Essa agressão inicial resulta em complicações inflamatórias locais e desencadeamento de uma resposta inflamatória sistêmica (ZATERKA; EISIG., 2016). Os mecanismos implicados incluem lesão endotelial, liberação de citocinas pró e anti-inflamatórias, estresse inflamatório e translocação bacteriana a partir do trato gastrointestinal, sobretudo o cólon. A migração de grandes contingentes de células inflamatórias para o pâncreas faz que a agressão se perpetue e possa se generalizar (ZATERKA; EISIG., 2016). Uma vez ocorrida a lesão tissular inicial, a doença pode ser compreendida em três fases: uma resposta inflamatória local, uma resposta inflamatória sistêmica, que pode resultar em falência de um ou múltiplos órgãos, e, finalmente, a infecção pela translocação bacteriana a partir do intestino (DANI; PASSOS, 2011). Uma das dificuldades está em descobrir por que uma proporção de pacientes progride de uma limitada inflamação local para uma resposta inflamatória sistêmica potencialmente perigosa. A provável causa são os altos níveis de células inflamatórias na circulação que podem atingir o parênquima pulmonar, renal, hepático e sistemas vascular e hemopoético (DANI; PASSOS, 2011). As alterações microcirculatórias são importantes dentro da fisiopatologia das formas mais graves. Observam-se vasoconstrição, estase capilar, shunts arteriovenosos, aumento da permeabilidade capilar e isquemia tecidual. Isso pode causar edema local e, nos casos mais graves, esse processo pode se generalizar e resultar em extravasamento de quantidades relevantes de água livre do plasma para o terceiro espaço, provocando hipotensão e hemoconcentração (ZATERKA; EISIG., 2016). LESÃO EM ÓRGÃOS A DISTÂNCIA: Circulação sistêmica das citocinas (IL- 1, IL-8, IL-6, TNF-alfa), fosfolipase A2 e espécies reativas do oxigênio provoca ocorrência de lesões em órgãos a distância e quadro de disfunção de múltiplos órgãos, entre os quais destaca-se principalmente a síndrome do desconforto respiratório do adulto (ZATERKA; EISIG., 2016). Na fase tardia das pancreatites agudas graves, infecções do tecido pancreático e peripancreático surgem como principal causa de mortalidade (ZATERKA; EISIG., 2016). Hipotensão secundária ao extravasamento de água livre para o terceiro espaço por alteração da permeabilidade capilar resulta em isquemia intestinal e queda da barreira mucosa, ocasionando o surgimento de microfraturas epiteliais que permitem deslocamento de microrganismos provenientes da luz do cólon para a circulação linfática e venosa. Cabe ressaltar que, muitas vezes, esses pacientes têm algum grau de supercrescimento bacteriano subclínico, seja por íleo prolongado ou por uso concomitante de antimicrobianos de amplo espectro. Uma vez em contato com o tecido pancreático necrótico, esses microrganismos encontram ambiente propício para sua proliferação (ZATERKA; EISIG., 2016). 7 Júlia Morbeck – @med.morbeck CLASSIFICAÇÃO MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS ↠ Dor abdominal é a principal queixa da maioria dos pacientes com pancreatite aguda. Sua intensidade é variável, desde um desconforto sutil à dor incapacitante. Caracteristicamente é contínua, mal definida, localizada no epigástrio ou andar superior do abdome, irradiando-se para o dorso, mas também podendo atingir os flancos direito ou esquerdo. Seu alívio ocorre na posição genupeitoral e há agravamento com posição supina e com esforço (ZATERKA; EISIG., 2016). Em 90% dos casos, a dor é acompanhada de náuseas e vômitos, possivelmente relacionados à intensidade da dor ou à inflamação da parede posterior do estômago (ZATERKA; EISIG., 2016). ↠ A icterícia na PA resulta de uma série de fatores e é assinalada em cerca de 20 a 50% dos pacientes. A compressão do colédoco pelo edema do pâncreas constitui a causa mais frequente. Também pode ser decorrente de cálculos encravados na papila ou de edema dessa estrutura (DANI; PASSOS, 2011). ↠ A hiperglicemia pode ser justificada pelo edema pancreático, que provoca diminuição na produção de insulina, bem como pode resultar da resposta adrenocortical, ou da destruição pancreática e/ou periférica de insulina. Acresce que, na PA grave, como acontece na infecção e no estado inflamatório graves, há resistência periférica à insulina. As células beta também são destruídas no processo necroinflamatório, porém tendem a resistir mais do que as exócrinas (DANI; PASSOS, 2011). ↠ O choque pode causar lesão renal, mas a própria tripsina circulante pode ser o agente lesivo, assim como a lesão pode decorrer da presença de microêmbolos. Um quadro de hipertensão arterial transitória é observado. Seria decorrência do aumento da resistência vascular renal e da redução da perfusão e filtração dos rins (DANI; PASSOS, 2011). ↠ Na vigência da PA, pode haver síndrome de coagulação vascular disseminada, provavelmente em consequência da liberação, no sangue, de enzimas proteolíticas e cininas vasoativas. Além disso, a hipotensão através de estase, acidose e hipoxemia predisporia à instalaçãoou à propagação da coagulação intravascular (DANI; PASSOS, 2011). DIAGNÓSTICO EXAME CLÍNICO ↠ O exame físico desses pacientes varia conforme a gravidade do quadro. Na doença leve, revela desconforto abdominal à palpação do epigástrio e andar superior do abdome, em que pode ser notado “plastrão” (massa) inflamatório. Não são habitualmente notados sinais de distensão abdominal ou descompensação hemodinâmica (ZATERKA; EISIG., 2016). ↠ Nas formas graves, notam-se paciente agudamente enfermo, com sinais de toxemia, abdome doloroso, distendido, com respirações superficiais em virtude de irritação frênica pelo processo inflamatório, e evidências de irritação peritoneal. Outros sinais de gravidade incluem: hipotensão, taquicardia, febre e íleo paralítico. Hipotensão não é infrequente nessa situação. Alterações senso riais podem ser notadas, caracterizando a chamada encefalopatia pancreática (ZATERKA; EISIG., 2016). Até 25% dos pacientes encontram-se ictéricos por causa de litíase biliar, seja por coledocolitíase com ou sem colangite aguda, seja pela passagem do cálculo biliar pela via biliar principal associada a edema da papila duodenal. Hemorragia digestiva pode ocorrer em função de úlceras de estresse ou de síndrome de Mallory-Weiss secundária a vômitos intensos (ZATERKA; EISIG., 2016). ↠ Com o correr dos dias, podem ser observadas manchas esverdeadas ou púrpuras nas regiões lombares (sinal de Grey-Turner) ou na região periumbilical (sinal de Cullen), consequência do acúmulo de material hemorrágico intracavitário, que se infiltra nos folhetos parietais (DANI; PASSOS, 2011). 8 Júlia Morbeck – @med.morbeck ↠ O abdome é flácido, na maioria das vezes, mas sensível. Pode mostrar até mesmo rigidez de parede, decorrente de irritação química ou de peritonite bacteriana secundária. À ausculta abdominal, há diminuição ou, mesmo, ausência de ruídos intestinais (DANI; PASSOS, 2011). O diagnóstico de pancreatite aguda exige pelo menos dois dos três critérios a seguir: (GOLDMAN; SCHAFER, 2022). • dor abdominal persistente, de forte intensidade, localizada no andar superior do abdome, com irradiação para o dorso e associada a náuseas e vômitos; • amilase e/ou lípase maior ou igual 3 vezes o limite superior da normalidade; • achados tomográficos compatíveis com pancreatite aguda. EXAMES LABORATORIAIS Amilase ou Lipase ↠ A maioria dos pacientes com pancreatite aguda apresenta elevações dos níveis séricos de amilase ou lipase algumas horas após o aparecimento dos sinais/sintomas (GOLDMAN; SCHAFER, 2022). A lipase é geralmente preferida à amilase como exame diagnóstico em razão de sua especificidade superior. Embora a elevação para mais de três vezes o limite superior do normal seja o ponto de corte recomendado para o diagnóstico de pancreatite aguda, até 25% dos casos não atingem esse limite. Os níveis de lipase tendem a permanecer elevados por mais tempo do que os níveis de amilase, mas ambos diminuem gradualmente ao longo muitos dias. Elevações superiores a três vezes o limite superior do normal são mais específicas para pancreatite aguda. Os níveis de amilase e lipase podem ser normais em pacientes com pancreatite aguda, sobretudo se forem medidos alguns dias após o aparecimento dos sinais/sintomas, e hipertrigliceridemia acentuada pode interferir em sua medição acurada. Ambas as enzimas são eliminadas pelo rim e a insuficiência renal pode elevar falsamente o nível dessas enzimas em até cinco vezes o limite superior do normal na ausência de pancreatite (GOLDMAN; SCHAFER, 2022). Os níveis de amilase e lipase também podem estar elevados em várias outras condições que podem mimetizar pancreatite aguda, como isquemia intestinal e infarto, obstrução intestinal, colecistite e coledocolitíase. Além disso, os níveis de amilase podem estar elevados em decorrência de gravidez ectópica, salpingite aguda e algumas doenças extra-abdominais, como parotidite, câncer de pulmão e traumatismo cranioencefálico (GOLDMAN; SCHAFER, 2022). Outros exames laboratoriais ↠ Na pancreatite grave, podem ser observadas leucocitose, azotemia e hemoconcentração. A falha de normalização do nível sanguíneo de ureia ou do hematócrito com a reposição volêmica está associada a perdas mais substanciais para o terceiro espaço e um pior prognóstico (GOLDMAN; SCHAFER, 2022). ↠ Hiperglicemia, hipocalcemia e hipertrigliceridemia leve também podem ocorrer. Elevações dos níveis de alanina aminotransferase (ALT) mais de três vezes o limite superior do normal são mais sugestivas de cálculos biliares, embora qualquer elevação significativa na bioquímica hepática deva aumentar a possibilidade de cálculos biliares (GOLDMAN; SCHAFER, 2022). EXAMES DE IMAGEM ↠ Os exames de imagem são usados não apenas para estabelecer o diagnóstico, mas também para determinar a causa e o prognóstico. Na maioria dos pacientes, a ultrassonografia (US) e a TC são usadas de maneira complementar (GOLDMAN; SCHAFER, 2022). Ultrassonografia ↠ A US abdominal confirma o diagnóstico de pancreatite aguda ao documentar aumento pancreático, edema ou acúmulo de líquido peripancreático associados. A visualização do pâncreas pode ser limitada pelo biotipo ou por gás intestinal sobreposto. É importante ressaltar que a US é mais acurada na identificação de cálculos biliares na vesícula biliar ou em um ducto biliar comum dilatado em pacientes com pancreatite por cálculos biliares (GOLDMAN; SCHAFER, 2022). Tomografia computadorizada ↠ A TC é mais acurada do que a US para confirmar o diagnóstico de pancreatite aguda e na documentação de necrose pancreática e acúmulos de líquido peripancreático, mas é menos preciso na identificação de cálculos biliares. A TC também é particularmente útil para excluir doenças intra-abdominais que podem mimetizar a pancreatite aguda (GOLDMAN; SCHAFER, 2022). ↠ O parênquima pancreático que opacifica na TC com contraste intravenoso ainda é viável, enquanto o parênquima que não é realçado pelo contraste é necrótico. A extensão da necrose pancreática tem alguma importância prognóstica, mas geralmente não é clara na TC até pelo menos 3 dias após a apresentação inicial. As TC não são necessárias rotineiramente em todos os pacientes com pancreatite aguda, mas devem 9 Júlia Morbeck – @med.morbeck ser realizadas quando o diagnóstico não é claro e em pacientes que apresentam um primeiro episódio, doença grave, complicações sistêmicas ou doença que demora a melhorar (GOLDMAN; SCHAFER, 2022). Pancreatite crônica ↠ A pancreatite crônica é definida como uma inflamação prolongada do pâncreas associada à destruição irreversível do parênquima exócrino, fibrose e, nos estágios avançados, perda do parênquima endócrino (KUMAR et al., 2023). OBS.: As pancreatites crônicas (PC) caracterizam-se pela substituição irreversível do parênquima pancreático normal por áreas de fibrose e pelo surgimento de estenoses e irregularidades nos ductos pancreáticos. Tais lesões são, em geral, progressivas, mesmo com a retirada do fator causal. Sob essa denominação são agrupadas afecções com etiopatogenias diversas que apresentam características morfológicas e evolutivas semelhantes (ZATERKA; EISIG., 2016). CLASSIFICAÇÃO ↠ Há dois tipos principais de pancreatites crônicas - as calcificantes (PCCs) e as obstrutivas (PCOs) -, de acordo com classificação proposta em Roma em 1988, a qual, embora útil, não engloba outros tipos de pancreatites crônicas, em particular as pancreatites crônicas autoimunes (PCAs) (ZATERKA; EISIG., 2016). • As PCCs, assim denominadas porque se calcificarão com o passar do tempo, representam a quase totalidade dos casos de pancreatites crônicas e correspondem às pancreatites crônicas alcoólica, hereditária, nutricional, metabólica e idiopática. Tem sido dada importânciacada vez maior à identificação de mutações genéticas que predispõem às pancreatites crônicas, o que pode ocorrer na pancreatite crônica hereditária, na fibrose cística ou, mesmo, nas pancreatites crônicas alcoólicas. As principais mutações identificadas até o momento são nos genes CFTR (cystic fibrosis transmembrane conductance regulator), SPINK1 (serine protease inhibitor Kazal type 1) e PRSS1 (cationic trypsinogen) (ZATERKA; EISIG., 2016). • As PCO, bem mais raras e que não se calcificam, são consequentes a qualquer modificação anatômica que dificulte a drenagem de secreção pancreática para o duodeno, como estenose cicatricial, traumática, cirúrgica, endoscópica ou congênita do ducto pancreático principal, pancreas divisum etc (ZATERKA; EISIG., 2016). ↠ Existe ainda outras classificações para a PC. No Brasil, segundo a Diretriz brasileira de pancreatite crônica, é utilizada uma classificação própria adaptada às características das pancreatites crônicas em nosso meio, obtida a partir da classificação de Marselha-Roma e modificada por sugestões contidas em outras classificações (SANARFLIX). 10 Júlia Morbeck – @med.morbeck EPIDEMIOLOGIA ↠ A estimativa da real incidência da pancreatite crônica é dificultada pela ausência de critérios ideais para o diagnóstico da doença e pela heterogeneidade da metodologia utilizada pelos estudos (ZATERKA; EISIG., 2016). ↠ Apesar disso, acredita-se que a incidência da doença seja maior em locais onde o consumo alcoólico e a alimentação rica em gorduras e proteínas são elevados. Por outro lado, regiões flageladas pela desnutrição, sobretudo a proteica, como a Ásia tropical e certos países africanos, também apresentam uma incidência relativamente alta de pancreatite crônica, principalmente em indivíduos jovens (ZATERKA; EISIG., 2016). ↠ A doença é bastante encontrada no Brasil, sobretudo porque o consumo de álcool entre nós é muito elevado, especialmente da cachaça, bebida de preço insignificante e alto teor alcoólico (DANI; PASSOS, 2011). ↠ A pancreatite crônica ocorre no Brasil em especial na região Sudeste, pelo consumo excessivo de álcool, pelo elevado teor alcoólico existente na bebida mais consumida no País – a aguardente de cana – e pelo seu baixo custo. Qualquer tipo de bebida alcoólica, fermentada ou destilada, pode resultar na lesão pancreática crônica, desde que a quantidade de etanol consumida durante determinado tempo supere a dose considerada crítica para que o pâncreas seja cronicamente comprometido (80 e 100 mL de etanol puro diário, respectivamente, para o sexo feminino e para o masculino, por um período superior a cinco anos) (ZATERKA; EISIG., 2016). ↠ As pancreatites crônicas, particularmente as alcoólicas, predominam em homens entre 30 e 40 anos de idade. As formas hereditárias e nutricionais afetam indivíduos mais jovens, na 1.ª ou 2ª década de vida, ao passo que as formas obstrutivas, as metabólicas e as idiopáticas prevalecem em indivíduos acima dos 40 anos (ZATERKA; EISIG., 2016). ETIOLOGIA ↠ A causa mais comum de pancreatite crônica é o uso de álcool a longo prazo. Além do álcool, a pancreatite crônica tem sido associada às seguintes condições: (KUMAR et al., 2023). • Obstrução prolongada do ducto pancreático por cálculos ou neoplasias; • Lesão autoimune; • Fatores hereditários, conforme discutido anteriormente; até 25% dos casos de pancreatite crônica têm uma base genética. Os exatos mecanismos pelos quais o álcool promove a lesão pancreática não são conhecidos, mas acredita-se que isso ocorra por uma série de fatores, como toxicidade direta às células acinares, produção de um suco pancreático litogênico, aumento do estresse oxidativo, indução da ativação prematura dos zimogênios pancreáticos e carências nutricionais relacionadas ao alcoolismo. Além disso, deve ser mencionada a frequente associação entre tabagismo e etilismo nos portadores de pancreatite crônica, o que potencializa os efeitos tóxicos do etanol, aparentemente por mecanismos de toxicidade direta e aumento do estresse oxidativo, acelerando a progressão da doença e agravando suas manifestações (ZATERKA; EISIG., 2016). A pancreatite hereditária é uma doença autossômica dominante caracterizada pelo início precoce de pancreatite aguda e crônica, o desenvolvimento de insuficiência pancreática exócrina e endócrina e um alto risco de adenocarcinoma pancreático. As mutações no gene do tripsinogênio (PRSS1) nessas famílias parecem causar ganho de função em que o tripsinogênio mutante, uma vez ativado para tripsina, é difícil de inativar. A tripsina, se presente em uma quantidade que supera os mecanismos de proteção normais, pode ativar outras enzimas pancreáticas e levar a danos pancreáticos e, subsequentemente, à pancreatite crônica. Um dos mecanismos de proteção é um inibidor de tripsina chamado proteína SPINK1. Mutações de perda de função em SPINK1 predispõem à pancreatite crônica. As principais mutações no regulador da condutância da fibrose cística (CFTR) levam à fibrose cística, que pode estar associada à pancreatite crônica e atrofia pancreática, dependendo da localização da mutação. Determinadas mutações no CFTR predispõem à pancreatite crônica, sem causar as características sinopulmonares da fibrose cística clássica. Vários polimorfismos genéticos adicionais no receptor de detecção de cálcio, quimiotripsina C, claudinas e outros também estão associados à pancreatite crônica. Com exceção do PRSS1, esses polimorfismos predispõem à pancreatite crônica e podem funcionar como genes modificadores, mas não são suficientes para causar pancreatite crônica (GOLDMAN; SCHAFER, 2022). A pancreatite autoimune é uma doença que mais frequentemente se apresenta como massa no pâncreas com icterícia obstrutiva, mimetizando câncer, mas também pode se apresentar como pancreatite crônica e raramente como pancreatite aguda.11 Como o câncer é mais comum do que a pancreatite autoimune, ele deve ser excluído (geralmente com ultrassonografia endoscópica). A pancreatite autoimune do tipo 1 (também chamada de doença IgG4) é caracterizada por edema difuso do pâncreas, elevação do nível sérico de IgG4 e envolvimento de outros órgãos, especialmente com estenose biliar, inflamação das glândulas salivares, fibrose retroperitoneal e lesões renais. Histologicamente, esses órgãos são infiltrados por células inflamatórias crônicas, principalmente plasmócitos com IgG4 em sua superfície. Os níveis séricos de IgG4 também estão elevados. A pancreatite autoimune do tipo 2 acomete apenas o pâncreas e não está associada a elevações de IgG4 (GOLDMAN; SCHAFER, 2022). FISIOPATOLOGIA ↠ A pancreatite crônica ocorre, com frequência, após episódios repetidos de pancreatite aguda. Foi sugerido 11 Júlia Morbeck – @med.morbeck que a pancreatite aguda possa iniciar uma sequência de fibrose perilobular, distorção ductal e alteração das secreções que, em consequência de lesão recorrente, leva à perda do parênquima exócrino e à fibrose (KUMAR et al., 2023). ↠ A lesão pancreática crônica de qualquer causa leva à produção local de mediadores inflamatórios, que promovem a formação de fibrose e perda das células acinares. Embora exista uma sobreposição entre as citocinas liberadas durante a pancreatite aguda e crônica, os fatores fibrogênicos tendem a predominar na pancreatite crônica. Essas citocinas fibrogênicas, incluindo o fator de crescimento transformador β (TGFβ) e o fator de crescimento derivado das plaquetas (PDGF) induzem a ativação e a proliferação de células estreladas pancreáticas (miofibroblastos periacinares), a deposição de colágeno e a fibrose (KUMAR et al., 2023). OBS.: A pancreatite crônica caracteriza-se por fibrose do parênquima, atrofia e perda das células acinares além de dilatação variável dos ductos. Macroscopicamente, a glândula édura, algumas vezes com ductos visivelmente dilatados contendo concreções calcificadas. Essas alterações costumam ser acompanhadas de um infiltrado inflamatório crônico evidente no exame histológico, que circunda os lóbulos e os ductos. A perda das células acinares é uma característica constante, porém há preservação relativa das ilhotas de Langerhans, que se tornam incorporadas no tecido esclerótico e podem se fundir, parecendo aumentadas. O epitélio ductal pode apresentar atrofia, hiperplasia ou metaplasia (escamosa) (KUMAR et al., 2023). MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS ↠ A dor é sintoma habitualmente presente e, em geral, a primeira exteriorização clínica da doença (ZATERKA; EISIG., 2016). ↠ Manifesta-se sob a forma de crises dolorosas recorrentes, intensas, localizadas no andar superior do abdome, com duração de 1 a 7 dias, intercaladas por períodos de acalmia variáveis de meses a anos, precipitadas, quase sempre, pelo abuso alcoólico e/ou por alimentação gordurosa. A sua fisiopatologia não é adequadamente conhecida, mas seu aparecimento é atribuído à hipertensão ductal provocada pela presença de rolhas proteicas nas fases iniciais da doença e por estenoses ductais nas fases mais tardias; inflamação perineural dos nervos intra e peripancreáticos também pode contribuir para o quadro doloroso (ZATERKA; EISIG., 2016). ↠ A redução do peso corporal é notada, pelo menos temporariamente, em quase todos os pacientes; o grau de emagrecimento depende, inicialmente, da frequência e da intensidade das crises dolorosas e, em seguida, do grau de envolvimento do parênquima glandular, determinando má absorção e diabetes (ZATERKA; EISIG., 2016). ↠ A má absorção e o diabetes melito são manifestações tardias da afecção, surgindo, em média, dez anos após o início das crises dolorosas, quando já houve comprometimento de mais de 70% do parênquima pancreático. Resultam, respectivamente, da substituição do parênquima secretor exócrino e endócrino pela fibrose (ZATERKA; EISIG., 2016). IMPORTANTE: A insuficiência pancreática exócrina com perda de absorção de gordura e proteínas só ocorre quando a perda de função do órgão é maior que 90%. Assim, observamos esteatorreia com fezes gordurosas, volumosas e malcheirosas. A tríade clássica da PC é composta de Esteatorreia + Diabetes Mellitus + Calcificações, todavia ocorre em menos de um terço dos pacientes (SANARFLIX). Comparação dos mediadores na pancreatite aguda e crônica. Na pancreatite aguda, a lesão acinar resulta na liberação de enzimas digestivas, o que leva a uma cascata de eventos, incluindo a ativação da cascata da coagulação, inflamação aguda e crônica, lesão vascular e edema. Na maioria dos pacientes, ocorre resolução completa da lesão aguda, com restauração da massa de células acinares. Na pancreatite crônica, episódios repetidos de lesão das células acinares levam à produção de citocinas pró-fibrogênicas, como o fator de crescimento transformador β (TGFβ) e fator de crescimento derivado de plaquetas (PDGF), resultando em proliferação dos miofibroblastos, síntese de colágeno e remodelação da matriz extracelular (MEC). A lesão repetida leva à perda irreversível da massa de células acinares, fibrose e insuficiência pancreática (exócrina). 12 Júlia Morbeck – @med.morbeck DIAGNÓSTICO O diagnóstico das pancreatites crônicas depende de um contexto clínico apropriado (p. ex., homem jovem com intenso e prolongado consumo alcoólico e dor abdominal típica, perda ponderal, insuficiência exócrina e/ou endócrina) associado a exames que reflitam a perda da função pancreática e a presença de anormalidades anatômicas compatíveis (ZATERKA; EISIG., 2016). A pancreatite crônica é uma doença lentamente progressiva na qual danos visíveis à glândula (p. ex., em uma TC) e falha funcional (p. ex., esteatorreia ou diabetes melito) não se evidenciam por anos. Todos os exames de diagnóstico são mais acurados quando a doença está muito avançada e todos são muito menos acurados nos estágios iniciais da doença (GOLDMAN; SCHAFER, 2022). EXAMES LABORATORIAIS ↠ A dosagem das enzimas pancreáticas em particular da amilase e da lipase, pode estar alterada no sangue durante as crises de exacerbação da doença, especialmente em suas fases iniciais, quando o parênquima pancreático ainda se encontra relativamente preservado. Nas fases fnais da afecção, é relativamente comum encontrar níveis normais dessas enzimas, o que se justifica pela escassez da produção enzimática, secundária à extensa substituição do parênquima pancreático por fibrose (ZATERKA; EISIG., 2016). ↠ Quando houver colestase, a fosfatase alcalina e a gamaglutamiltransferase, além das bilirrubinas séricas, também podem se elevar (ZATERKA; EISIG., 2016). ↠ Os níveis de glicose sérica estarão elevados em pacientes com insuficiência endócrina (GOLDMAN; SCHAFER, 2022). GORDURA NAS FEZES ↠ A quantificação da gordura nas fezes durante uma coleta de 72 horas durante uma dieta rica em gordura pode ser usada para documentar a esteatorreia, mas raramente é realizada. A análise qualitativa da gordura com coloração de Sudan de uma amostra de fezes tem sensibilidade e especificidade baixas. Os níveis fecais de elastase pancreática são diminuídos para menos de 100 μg/g em pacientes com pancreatite crônica avançada e esteatorreia. O teste pode ser realizado enquanto os pacientes estão recebendo terapia com enzimas pancreáticas (GOLDMAN; SCHAFER, 2022). EXAMES DE IMAGEM ↠ As radiografias simples de abdome podem demonstrar calcificação pancreática difusa ou focal em pacientes com pancreatite crônica avançada. Embora específicos para pancreatite crônica, esses achados são detectados somente após anos de doença (GOLDMAN; SCHAFER, 2022). ↠ A ultrassonografia abdominal é de utilidade limitada porque o gás sobreposto muitas vezes limita a capacidade de visualização do pâncreas. Um ducto pancreático anormal, calcificações pancreáticas, atrofia da glândula ou alterações na ecotextura são observados em cerca de 60% dos pacientes (GOLDMAN; SCHAFER, 2022). ↠ A TC é o exame de imagem mais amplamente usado para pancreatite crônica, e imagens de alta qualidade podem ser obtidas do pâncreas e do ducto pancreático. Os achados típicos incluem ducto pancreático dilatado, calcificações ductais ou parenquimatosas e atrofia. Essas alterações estruturais levam anos para se desenvolver, portanto a TC não é tão acurada em doenças precoces ou menos avançadas (GOLDMAN; SCHAFER, 2022). ↠ Assim como a TC, a RM possibilita imagens detalhadas do pâncreas e a adição de CPRM possibilita uma avaliação ainda melhor da morfologia do ducto pancreático. A 13 Júlia Morbeck – @med.morbeck secretina pode ser administrada no momento da CPRM para possibilitar melhor visualização do ducto pancreático. A RM com secretina-CPRM é mais sensível para detectar as alterações iniciais da pancreatite crônica do que a TC (GOLDMAN; SCHAFER, 2022). ↠ A US endoscópica possibilita imagens muito detalhadas do parênquima e do ducto pancreático. A US endoscópica normal exclui essencialmente a pancreatite crônica, enquanto a US endoscópica muito anormal é altamente consistente com a pancreatite crônica. A CPRE fornece as imagens mais detalhadas do ducto pancreático, bem como a oportunidade de fornecer terapia. Mudanças no ducto incluem dilatação, irregularidade, cálculos ductais e estenoses. No entanto, a CPRE apresenta risco de causar pancreatite; portanto, deve ser utilizada apenas quando a terapia é planejada (GOLDMAN; SCHAFER, 2022). Referências TORTORA, Gerard J. Princípios de anatomia e fisiologia / Gerard J. Tortora, Bryan Derrickson; tradução Ana Cavalcanti C. Botelho... [et al.]. – 14. ed. – Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2016. JUNQUEIRA, Luiz Carlos U.; CARNEIRO, José. Histologia Básica - Textoe Atlas. [Digite o Local da Editora]: Grupo GEN, 2017. REGAN, J.; RUSSO, A.; VVANPUTTE, C. Anatomia e Fisiologia de Seely, 10a ed. Porto Alegre: AMGH, 2016. DANI, Renato; PASSOS, Maria do Carmo F. Gastroenterologia Essencial, 4ª edição. Grupo GEN, 2011 ZATERKA; EISIG. Tratado de Gatroenterologia da graduação à pós-graduação, 2ª edição. Atheneu, 2016. KUMAR, Vinay; ABBAS, Abul K.; ASTER, Jon C. Robbins & Cotran Patologia: Bases Patológicas das Doenças. Grupo GEN, 2023. GOLDMAN, Lee; SCHAFER, Andrew I. Goldman-Cecil Medicina. Grupo GEN, 2022. LIMA et al. Estudo panorâmico do perfil epidemiológico das desordens pancreáticas nas macrorregiões do Brasil. Revista Eletrônica Estácio Recife, 2021.
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