Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
René Descartes DISCURSO DO MÉTODO título original | DISCOURS DE LA MÉTHODE autor | RENÉ DESCARTES tradução | NEWTON DE MACEDO capa | MIMÉTICA imagem da capa | HANS HOLBEIN D. J.: OS EMBAIXADORES paginação | MIMÉTICA copyright | 2019 © MIMÉTICA PARA A PRESENTE TRADUÇÃO ESTA EDIÇÃO RESPEITA O NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO DA LÍNGUA PORTUGUESA Índice PREFÁCIO PARA BEM CONDUZIR A PRÓPRIA RAZÃO E PROCURAR A VERDADE NAS CIÊNCIAS PRIMEIRA PARTE SEGUNDA PARTE TERCEIRA PARTE QUARTA PARTE QUINTA PARTE SEXTA PARTE Prefácio René Descartes (1596-1650) nasceu na cidade francesa de La Haye, «nos jardins da Touraine», segundo a sua própria expressão, duma família nobre, cujos meios de fortuna lhe permitiram consagrar-se exclusivamente à longa e fecunda meditação que foi a sua vida, liberta de cuidados materiais. Com pouco mais de um ano de idade perde a mãe, de quem herda «uma tosse seca e uma cor pálida, que conservei até depois dos vinte anos e que fazia que todos os médicos que até então me tinham visto me condenassem a morrer novo», e até à sua entrada para o colégio fica entregue aos cuidados de uma ama que à hora da morte, num gesto de profunda humanidade, não se esquecerá de o recomendar à solicitude de seus irmãos. De 1606 a 1614 frequenta «uma das mais célebres escolas da Europa», o colégio da cidade de La Flèche que, autorizados por Henrique IV, os Jesuítas pouco antes tinham aberto; e nele, a precocidade do seu génio, que já levara o pai a chamar-lhe o filósofo, pela sua curiosidade nunca satisfeita, causa a admiração dos mestres, sobretudo pelo seu jeito matemático e pelo seu «método singular de disputar em filosofia». Concluídos os estudos no colégio, onde, a par das Humanidades, da Matemática e da Física, o seu espírito se ornara no cultivo das disciplinas galantes (Música, Esgrima, Equitação), indispensáveis a um gentil-homem, Descartes vai rematá-los na Universidade de Poitiers, onde, além da Medicina, estuda o Direito, cujo bacharelato e licenciatura tirará em 1616. Mas, desiludido da cultura livresca e oficial, que não conseguira satisfazer as suas exigências de compreensão, resolve procurar a ciência em si mesmo e no «grande livro do mundo». Em 1618 parte para a Holanda, então em luta pela independência contra os Espanhóis, e alista-se como voluntário, à sua custa, no exército protestante de Maurício de Orange. O mister das armas não lhe modera, contudo, a sua paixão absorvente e o diário de Isaac Beeckman, doutor em Medicina da Universidade de Caen, com quem então trava relações de amizade, diz-nos quanto o continuavam a ocupar os problemas matemáticos e físico-matemáticos. Em 1619, no seu desejo de «ver cortes e exércitos», passa da Holanda à Alemanha, onde, depois de assistir, em Frankfurt, à coroação do imperador Fernando II, se vai juntar ao exército católico de Maximiliano, príncipe eleitor da Baviera, em luta contra a Boémia revoltada. É então que se passa o acontecimento decisivo da sua vida espiritual, e não menos decisivo para os destinos da cultura moderna: na noite de 10 para 11 de novembro de 1619, tem três sonhos, cuja interpretação o leva à intuição duma verdade fundamental, sobre cujo conteúdo muito variam as opiniões dos comentadores, em virtude do laconismo dos termos em que Descartes se lhe refere numa nota datada dessa época: «a 10 de Novembro, quando, cheio de entusiasmo, encontrei o fundamento duma ciência admirável». A maioria das opiniões inclina-se, contudo, a interpretar esse passo como referindo-se à descoberta do seu método, embora algumas vejam nele uma alusão à descoberta intuitiva da unidade da ciência e ainda outras à da possibilidade de uma matemática universal. De 1619 a 1628 continua pela Alemanha, Suíça, Itália e, nos dois últimos desses anos, em Paris, «a visitar pessoas de diversos temperamentos e condições, a acumular muitas experiências», em mira «a procurar por mim próprio em toda a parte a reflexão sobre as coisas que se me apresentavam e das quais pudesse tirar qualquer proveito». Em Paris, de 1626 a 1628, sob a aparência exterior duma vida em tudo igual à dos belos espíritos da sua condição, a que não faltou mesmo a nota galante dum duelo por sua dama, Descartes ia, no convívio dos filósofos e homens de ciência, aprofundando a sua meditação, ocupando-se de astronomia com Morin, de matemática e experiências de ótica com Mydorge e Villebrissieu, de modo tal que, embora não tivesse ainda vindo a público uma única linha da sua mão, os frutos dessa meditação iam sendo conhecidos (solução dos problemas da duplicação do cubo ou das médias proporcionais e da trissecção do ângulo) e despertando na roda dos seus admiradores — entre os quais sobressaíam o Padre Mersenne, que será o elemento de ligação no longo diálogo que Descartes, em termos por vezes pouco amistosos, travará durante anos com os seus críticos, e o Cardeal de Bérulle, fundador da Congregação do Oratório — o desejo e a esperança de o verem consagrar-se à obra de conjunto e de renovação que era de esperar do seu génio. É a instâncias do último que a isso se decide, e escolhe a Holanda para ermo da sua meditação, certo de poder, no meio da «multidão dum grande povo, mais cioso dos seus negócios do que curioso dos alheios... viver tão solitário e retirado como nos desertos mais longínquos» e falsamente esperançado em que no ambiente protestante desse país, por que se batera, encontraria a liberdade e a segurança necessárias à realização duma obra cujas teses fundamentais continham em si, implicitamente, a negação dos valores da cultura filosófica oficial e tradicional, cultura que era tanto mais arriscado atacar, embora veladamente, quanto é certo que a dogmática cristã a adotara para sua estrutura racional. E na Holanda se conserva de 1628 a 1649, mudando várias vezes de residência, vivendo primeiro em Freneker, na Frísia, em cuja Universidade se matricula em 1629, depois em Leyde em 1630, e sucessivamente em Amsterdão, Deventer, Utrecht, Santport e por fim em Egmond, onde habita de 1643 até à partida para a Suécia. A sua atividade intelectual vai então seguir um novo rumo e entrar na fase de plena maturação. As preocupações matemáticas, que tinham começado por ser as dominantes no seu espírito, porquanto era nelas que a sua necessidade racional de clareia e de simplicidade encontravam mais farto alimento, passam para um segundo plano; e, de posse, desde 1619, dum método, para cuja descoberta as matemáticas com a evidência racional das suas demonstrações muito tinham contribuído, e a cuja fecundidade tinham até então servido de melhor testemunho, mercê dos progressos que no seu domínio, com ele, tinha conseguido realizar com êxito, vai agora pô-lo à prova num empreendimento mais ambicioso: o de explicar com ele, não este ou aquele problema de matemática ou fenómeno do mundo físico, mas os fenómenos da Natureza no seu conjunto, numa tentativa audaciosa para «estabelecer na filosofia princípios mais claros e mais certos, pelos quais seria mais fácil encontrar a razão de todos os efeitos da Natureza». O matemático e o físico cedem o passo ao metafísico; e os nove primeiros meses da sua estada na Holanda consagra-os a escrever «um pequeno tratado de metafísica cujos principais pontos são provar a existência de Deus e das almas, separadas dos corpos, portanto imortais», primeiro esboço das futuras Meditações Metafísicas. De posse dos princípios metafísicos que serviriam de garantia racional a uma explicação de conjunto da realidade física, é para esta que de novo as suas atenções se voltam, e de 1630 a 1633 trabalha no Tratado do Mundo, que deveria compreender duas partes, o Tratado da Luz e o Tratado do Homem. Mas a nova da condenação de Galileu, a 23 de junho de 1633, por ter ousado defender a hipótese coperniciana do movimento da Terra, hipótese que para Descartes era uma das pedras angulares da sua Física, traz-lhe a mais profunda desilusão da sua vida, o reconhecimento da impossibilidade de, sem perigo, poder tornar conhecida do público a obra que, num concentradoe sereno orgulho, julgava ser o testemunho irrefutável da fecundidade inexaurível do método que descobrira. Pensa em queimar o manuscrito da obra, cujos fragmentos só serão publicados muito depois da sua morte, em 1667, e resolve nada mais publicar. Mas o íntimo e inabalável convencimento do valor da sua mensagem vai-lhe quebrando esse propósito e, numa tentativa de sondagem que lhe permitiria avaliar, pela reação que provocasse, o estado dos espíritos para quem escrevia, publica em 1637 três ensaios, Meteoros, Dióptrica e Geometria, precedidos, à guisa de prefácio, do Discurso do Método. Era a primeira das suas obras que vinha a público. Com razão se disse que a filosofia de Descartes foi conhecida antes de publicada; e de facto, mercê da ativa correspondência que mantém com os mais altos valores da sua época, num convívio para que contribui sobretudo a amizade solícita e entusiástica do Padre Mersenne, as teses fundamentais da sua filosofia tinham-se divulgado e conquistado até algumas cátedras, nas quais o zelo não raro excessivo de seus discípulos as defendia dos ataques dos adversários, sujeitando-as por vezes a falsas interpretações, que Descartes procura em parte corrigir com a publicação dessa primeira obra. Daí o seu comentário e apelo na quinta parte do Discurso: «Embora tenha muitas vezes explicado algumas das minhas opiniões a pessoas de muito bom espírito que pareciam compreendê-las muito distintamente enquanto lhas expunha, todavia, quando as repetiam, notei que quase sempre as alteravam de tal maneira que não as podia aceitar como minhas. E, a propósito, desejo pedir aqui aos vindouros que nunca aceitem como minhas as coisas que lhes disserem, senão quando eu próprio as tiver divulgado.» Mas para isso era preciso divulgá-las, fazendo por um lado face ao perigo, moderado embora por mil precauções, e contrariando por outro a sua forte negação pela letra de forma. Em 1641 é publicada, em latim, a sua segunda obra, as Meditações Metafísicas, cujo manuscrito, antes de publicado, fora levado ao conhecimento, por intermédio do Padre Mersenne, de alguns teólogos e filósofos de renome, para que lhe fizessem os comentários que entendessem, comentários que com as respostas de Descartes acompanham o texto na obra publicada, o que lhe dá o inestimável valor dum diálogo vivo com figuras como Arnauld, Hobbes e Gassendi. Em 1644 aparecem em latim os Princípios de Filosofia, novo resumo do Tratado do Mundo, que nunca se consolara de não poder publicar. Assim como o interesse pelas matemáticas fora suplantado pelas preocupações metafísicas e físicas, assim agora, nos últimos anos da sua vida, a medicina e a moral passam a ser o tema predileto da sua meditação. E era lógica essa seriação: a matemática fora em grande parte o fermento criador do seu método; este levara-o, mercê da sua fecundidade, a uma explicação racional da realidade física no seu conjunto, tendo como garantia suprema certos fundamentos metafísicos; e, como na explicação exaustiva da realidade física entravam os fenómenos biológicos, suscetíveis também, na sua opinião, duma explicação puramente física, compreende-se que a sua firme convicção de ter chegado ao conhecimento racional da estrutura íntima dos fenómenos da vida lhe tivesse feito nascer o sonho grande dum possível triunfo sobre a morte, pelo menos sob a forma dum indefinido prolongamento da vida, pois conhecer um fenómeno é dominá-lo, evitando ou não a sua produção pelo manejo da causa ou causas que o provocam. Mas a efetivação desse sonho esbarrava, não com uma impossibilidade racional, mas com a dificuldade quase insuperável do tempo e dos meios necessários para efetuar todas as experiências conducentes a esse fim, pois «o poder da natureza é tão amplo e tão vasto» que «não é possível ao espírito humano distinguir as formas ou espécies existentes na terra de uma infinidade doutras que nela poderiam existir, se assim o quisesse Deus, nem por conseguinte aproveitá-las para o nosso uso, a não ser que investigássemos as causas através dos seus efeitos, utilizando numerosas experiências particulares». Em 1649, ano em que parte da Holanda para Estocolmo a convite de Cristina, rainha da Suécia, aparece a sua última obra, o Tratado das Paixões, onde, a par duma mecânica do espírito, em que se revela o seu inabalável convencimento de ter chegado ao conhecimento da estrutura íntima do corpo humano, máquina em que tudo se explica em termos de pura mecânica, se descortina a melancólica desconfiança da impossibilidade de dominar por completo essa máquina e da necessidade de, numa atitude de renúncia que nos exalta em vez de aviltar, encontrarmos o meio, mão de conservar a vida, mas de não temer a morte». A sua correspondência dos últimos anos com a princesa Isabel, filha de Frederico, rei deposto da Boémia, e com Catarina da Suécia revela o predomínio das preocupações morais, nessa altura da sua evolução espiritual. E a moral que nessas cartas preconiza, ao dissertar sobre o Soberano Bem, é aquela em que a conduta seja orientada tendo em vista não os bens exteriores, que dependem da fortuna, mas os interiores, que dependem da nossa vontade livre, a resignação, a constância, o amor místico por Deus e pelos homens. Pouco tempo viveu Descartes nesse «país dos ursos, entre rochedos e neves», tão diferente dos jardins da sua Touraine, onde acaba por o atrair a curiosidade, por vezes indiscreta, da inteligente rainha. Poucos meses depois de ter desembarcado, morre, vítima duma pneumonia, em 11 de fevereiro de 1650, o imortal fundador da filosofia moderna. Não devemos julgar da sua fecundidade espiritual pelas poucas obras que publicou, embora elas só por si lhe dessem jus ao renome de que ficou gomando. A edição completa das suas obras por Ch. Adam e Tannery, em que apenas faltam algumas cartas descobertas posteriormente, edição que deve, de preferência, ser consultada por quem pretenda entrar em contacto mais direto e amplo com o pensamento de Descartes, compreende doze volumes, dos quais os cinco primeiros são consagrados apenas à sua correspondência. Se a sua metafísica se encontra nas obras publicadas em vida, para a compreensão do método interessa conhecer, além do Discurso, dois tratados incompletos que datam dos seus anos de Paris: as Regras para a Direção do Espírito e as Investigações sobre a Verdade pelas Luzes Naturais. Está fora da índole deste prefácio uma exposição, embora sucinta, da filosofia de Descartes, e seria mesmo irrisório tentá-la em meia dúzia de páginas. Todavia, para a compreensão das obras que se apresentam ao leitor, não serão descabidas algumas breves notas que ajudem a marcar a sua posição na economia do pensamento de Descartes. O problema central da sua filosofia, problema que, mercê da maneira como o pôs e das soluções que lhe deu, ficou sendo o problema dominante da filosofia moderna, em contraste com os da filosofia antiga e medieval, é o da legitimidade dos juízos de existência ou, por outras palavras, o da passagem do pensamento ao ser. Expliquemo-nos. Para o pensamento antigo (o medieval segue na sua esteira) a realidade que nos cerca e de que tomamos conhecimento pelas informações dos sentidos e pela atividade do pensamento era um dado cuja existência objetiva estava fora de causa e que importava apenas compreender o melhor possível. Era um realismo mais ou menos ingénuo que dogmaticamente partia do postulado prático de que essa realidade existe fora de nós, realismo que se mantém nos próprios céticos, que, embora negando, apoiados sobretudo nos argumentos que as ilusões dos sentidos lhes forneciam, a possibilidade dum conhecimento certo dessa realidade, implícita e dogmaticamente aceitavam a sua existência como um dado, embora impossível de conhecer duma maneira certa. Para o pensamento moderno a realidade que nos cerca deixa de ser um dado irredutível no que diz respeito ao seu valor de existência e passa a ser, como existência, um problema a resolver. Com que direito se afirma a existência objetiva dessa realidade que se nosapresenta constituindo o conteúdo das nossas perceções e das nossas ideias? À atitude dogmática do pensamento antigo a filosofia moderna opõe uma atitude crítica. E foi Descartes que lhe imprimiu, numa torção de génio, essa nova direção, o que lhe dá direito, não apenas em palavras, mas em realidade profunda, ao título de fundador da filosofia moderna. E é fácil de explicar a génese da profunda renovação cartesiana, se nos lembrarmos de que a feição característica do génio de Descartes foi uma imperiosa necessidade de simplicidade e de clareia no domínio do pensamento. Para quem como ele só aceita como certo e existente o que tem a simplicidade e a clareia da evidência racional, a realidade tal qual se apresenta aos sentidos é tão confusa nas suas aparências contraditórias e fugidias como as mais estranhas quimeras que a imaginação possa criar, e tão irreal como elas, no que respeita ao seu valor objetivo. Essa profunda exigência de simplicidade e de clareia leva-o a aceitar um novo dogmatismo, o da absoluta racionalidade do real, e a partir em demanda duma realidade que seja tal, não porque os sentidos a percebam ou a inteligência a contemple, mas porque a razão a garante. Se só é real o que é racional, isto é, se só devemos aceitar como objetivamente existente aquilo de que tenhamos um conhecimento tão claro e evidente que a mais exigente dúvida não possa abalar, toda a realidade sensorial desaba como uma quimera, fruto apenas dos nossos sentidos, e o próprio mundo da evidência racional, formado sobretudo pelas demonstrações claras das matemáticas, rui também, se a dúvida for até ao extremo de supor a existência dum Génio malicioso que nos tivesse de tal maneira feito que emprestássemos ao erro a aparência da verdade racional. Essa necessidade de ver claro parece, pois, dever conduzir Descartes à angústia dum niilismo absoluto. Mas é no próprio momento em que assim parece naufragar num oceano de aparências desfeitas que uma primeira verdade se lhe depara, como rochedo inabalável contra todos os esforços da dúvida: a da existência do pensamento ou atividade que duvida. O Penso, logo existo, é o único caso dum juízo em que a existência está indissoluvelmente ligada ao pensamento que a afirma, pois essa existência é o próprio pensamento. Duvidar dessa afirmação é ainda corroborar a existência do pensamento, no seu novo ato de duvidar. Armado dessa primeira certeza inabalável, Descartes parte para a reconstrução da realidade, possuindo agora um critério de seleção que lhe permitirá só aceitar como verdadeiros os juízos de existência que apresentem a clareia e a distinção desse primeiro. Contudo, se muitos outros parecem gozar desse privilégio, como, por exemplo, todas as verdades matemáticas, só os poderemos aceitar como verdadeiros quando a hipótese dum Génio malicioso for tornada absurda pela certeza da existência dum Deus que, incapaz de nos enganar, como Ser absolutamente perfeito que é, venha servir de garantia última ao valor existencial dos juízos claros e distintos. Se esse Deus existe, a realidade poderá ser reconstruída com tudo aquilo em que dela tenhamos um conhecimento claro e distinto. Ora, na multiplicidade confusa e indefinida das qualidades com que a realidade se apresenta aos nossos sentidos, só as propriedades geométricas (extensão, figura e movimento) são por nós concebidas clara e distintamente. E, como só é real o que é racional, o universo cartesiano aparece muito diferente do universo sensível, despojado de todas as outras propriedades que atribuímos às coisas, mais rico em riqueza conceptual, mais pobre porém em riqueza qualitativa. É o mecanismo cartesiano nascido dessa imperiosa necessidade de ver claro, com os olhos da Razão. E porque toda a ciência moderna, sob o signo de Descartes, num esforço de desantropomorfização, na expressão feliz dum dos seus mais categorizados representantes, tende a apreender a realidade tal qual ela é em valor objetivo, e não tal qual se apresenta aos sentidos, razão teve Huxley, um outro grande vulto dessa ciência, em afirmar que o sistema de Descartes é, não uma simples curiosidade para eruditos, mas a própria alma tanto da filosofia como da ciência contemporâneas. Quanto à Filosofia, a afirmação idealista do primado existencial do Pensamento ficou sendo, na opinião dos seus historiadores mais autorizados, o gérmen vivo, donde por uma dialética imanente derivaram todos os sistemas posteriores. Na opinião de Kuno Fischer o cartesianismo é a origem e a condição necessária do ocasionalismo de Malebranche, do monismo de Espinosa, da monadologia de Leibniz, do sensualismo de Locke, do materialismo de La Mettrie, do idealismo de Berkeley e do criticismo de Kant. A autobiografia espiritual que é o Discurso dá-nos a génese do método que orientou a fecunda meditação cartesiana e um esboço das suas conclusões fundamentais. Pena é que a tradução aqui apresentada não possa dar as excelências dum estilo que Boutroux, um dos mais categorizados representantes da alta e clara inteligência francesa, aprecia nos seguintes termos: «A razão de Descartes é uma razão viva e entusiástica que não se limita a pôr em silogismos as verdades adquiridas, mas se aplica a encontrar, a criar, a comunicar às inteligências a sua atividade criadora. Essa vida do pensamento anima o próprio estilo, que alia duma maneira surpreendente à precisão e à ordem demonstrativa o movimento, o acento, a originalidade, a cor, o espírito, o próprio encanto, ou a ironia ou a altivez, conforme a paixão intelectual que atravessa a alma desse amante da verdade. Seja qual for a impressão que se experimente de início, ao embaraçarmo-nos por vezes com essas longas frases que requerem um leitor atento e capaz de dedução, não tarda a fazer-se sentir o prestígio desse estilo magistral. E hoje mesmo, basta que a maneira dum escritor lembre no que seja a de Descartes para que se lhe admire, tal como nele, a superioridade e a austera sedução.» Newton de Macedo Para Bem Conduzir a Própria Razão e Procurar a Verdade nas Ciências Se este Discurso parecer longo de mais para ser lido duma só vez, poder-se-á dividi-lo em seis partes. Na primeira encontrar-se-ão diversas considerações sobre as ciências. Na segunda, as principais regras do método que o autor procurou. Na terceira, algumas regras da moral que tirou desse método. Na quarta, as razões com que prova a existência de Deus e da alma humana, que são os fundamentos da sua metafísica. Na quinta, a ordem das questões de física de que tratou, e em particular a explicação do movimento do coração e de algumas outras dificuldades que dizem respeito à medicina; e depois também a diferença que existe entre a nossa alma e a dos animais. E na última, que condições julga serem necessárias para ir mais avante do que até agora na investigação da natureza e que razões o levaram a escrevê-lo. Primeira Parte O bom senso é a coisa do mundo mais bem distribuída, porque cada qual pensa ser tão bem provido dele que mesmo os que são mais difíceis de contentar noutras coisas não costumam desejar mais do que o que têm. E não é verosímil que todos se enganem a tal respeito; antes isso mostra que o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente o que se chama o bom senso ou razão, é naturalmente igual em todos os homens; e que assim a diversidade das opiniões não resulta de serem uns mais racionais do que outros, mas somente de que conduzimos os nossos pensamentos por caminhos diversos, e não consideramos as mesmas coisas. Porque não basta ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo bem. As grandes almas são tão capazes dos maiores vícios como das maiores virtudes; e os que não andam senão muito lentamente podem avançar muito mais, se seguem sempre o caminho direito, que os que correm e dele se afastam. Quanto a mim, nunca presumi que o meu espírito fosse em nada mais perfeito que os do comum; muitas vezes mesmo desejei ter o pensamento tão pronto, ou a imaginação tão nítida e distinta, ou a memória tão ampla ou tão presente,como alguns outros. E não sei de outras qualidades que sirvam para a perfeição do espírito, porque, quanto à razão ou senso, que é a única coisa que nos torna homens e nos distingue dos animais, quero crer que existe inteiramente em cada um, seguindo nisto a opinião comum dos filósofos, que dizem não existir mais ou menos senão entre os acidentes e não entre as formas ou naturezas dos indivíduos duma mesma espécie. Mas não recearei dizer que julgo ter tido muita sorte em me ter encontrado desde a mocidade em certos caminhos, que me conduziram a considerações e máximas com que formei um método, pelo qual me parece ter meio de aumentar gradualmente o meu conhecimento e de o elevar pouco a pouco ao mais alto ponto a que a mediocridade do meu espírito e a curta duração da minha vida lhe permitirão chegar. Porque já colhi dele tais frutos que, embora no juízo que faço de mim próprio procure sempre inclinar-me mais para o lado da desconfiança do que para o da presunção, e embora, olhando com olhar de filósofo as diversas ações e empreendimentos de todos os homens, não haja quase nenhuma que não me pareça vã e inútil, não deixo de receber uma extrema satisfação com o progresso que julgo ter feito em busca da verdade e de conceber tais esperanças para o futuro que, se entre as ocupações dos homens, puramente homens, alguma há que seja solidamente boa e importante, ouso crer que é aquela que escolhi. Todavia pode ser que me engane e que tome por ouro e diamantes o que é apenas um pouco de cobre e de vidro. Sei quanto estamos sujeitos a enganarmo-nos no que nos diz respeito e quanto também nos devem ser suspeitos os juízos dos nossos amigos quando a nosso favor. Mas gostaria de mostrar, neste Discurso, que caminhos segui; e de nele representar a minha vida como num quadro, para que cada qual a possa julgar, e para que, sabedor das opiniões que sobre ele foram expendidas, um novo meio de me instruir se venha juntar àqueles de que costumo servir-me. Assim, o meu intento não é ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para bem conduzir a sua razão, mas somente mostrar de que maneira procurei conduzir a minha. Os que se abalançam a dar preceitos devem considerar-se mais hábeis do que aqueles a quem os dão; e se fraquejam na menor coisa, são por isso censuráveis. Mas, não apresentando este escrito senão como uma história, ou, se o preferis, como uma fábula, na qual, entre alguns exemplos que se poderão imitar, se encontrarão também talvez vários outros que será razoável não seguir, espero que ele será útil a alguns, sem ser nocivo a ninguém, e que todos apreciarão a minha franqueza. Nutri-me de letras desde a minha infância, e, porque me tinham persuadido de que por meio delas se pode adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo o que é útil à vida, tinha um enorme desejo de as aprender. Mas, logo que terminei este ciclo de estudos, no termo do qual é costume ser- se acolhido na categoria dos doutos, mudei inteiramente de opinião: porque me encontrava embaraçado com tantas dúvidas e erros que me parecia não ter tirado outro proveito, ao procurar instruir-me, senão o de ter descoberto cada vez mais a minha ignorância. E contudo estivera numa das mais célebres escolas da Europa, onde pensava que devia haver homens sabedores, se é que os há em algum lugar da terra. Lá aprendi tudo o que os outros aprendiam; e até, não me contentando com as ciências que nos ensinavam, percorri todos os livros, que pude haver às mãos, que tratam daquelas que são consideradas mais curiosas e mais raras. Além disso, não ignorava os juízos que os outros formavam de mim; e não via que me considerassem inferior aos meus condiscípulos, embora entre eles alguns houvesse em quem já se pensava para, mais tarde, substituírem os nossos mestres. E enfim o nosso século parecia-me tão florescente e tão fértil em bons espíritos como qualquer dos precedentes. O que me fazia tomar a liberdade de julgar por mim todos os outros, e de pensar que não existia no mundo nenhuma doutrina que fosse como até então me tinham feito esperar. Não deixava todavia de apreciar os exercícios, com que se ocupam nas escolas. Eu sabia que as línguas, que nelas se aprendem, são necessárias para a compreensão dos livros antigos; que a gentileza das fábulas desperta o espírito; que as ações memoráveis da história o exaltam, e que a leitura de todos os bons livros é como uma conversa com as mais honestas pessoas dos séculos passados, que foram os seus autores, e mesmo uma conversa preparada, na qual eles não nos revelam senão os seus melhores pensamentos; que a eloquência tem forças e belezas incomparáveis; que a poesia tem delicadezas e suavidades deleitosas; que as matemáticas têm invenções muito subtis, e que podem servir muito, tanto para satisfazer os curiosos como para facilitar todas as artes e diminuir o trabalho dos homens; que os escritos que tratam dos costumes contêm muitos ensinamentos e exortações à virtude que são muito úteis; que a teologia ensina a ganhar o Céu; que a filosofia ensina a maneira de falar com verosimilhança de todas as coisas; que a jurisprudência, a medicina e as outras ciências trazem honras e riquezas a quem as cultiva; e finalmente que é bom tê-las examinado todas, mesmo as mais supersticiosas e as mais falsas, a fim de conhecer o seu justo valor e de evitar o ser-se enganado por elas. Mas julgava ter já dedicado bastante tempo às línguas, e mesmo também à leitura dos livros antigos, às suas histórias e fábulas. Porque é quase o mesmo que viajar o conversar com os que viveram noutros séculos. É bom saber alguma coisa dos costumes dos diversos povos, a fim de julgar os nossos mais sãmente, e para que não pensemos que tudo o que é contra as nossas modas é ridículo e contra razão, como têm por hábito fazer os que nada viram. Mas, quando se gasta tempo de mais a viajar, acaba-se por ser estrangeiro na terra natal; e quando se é excessivamente curioso das coisas que se faziam nos séculos passados, fica-se ordinariamente muito ignorante das que se praticam no presente. Além de que as fábulas fazem imaginar como possíveis muitos acontecimentos que o não são; e que mesmo as histórias mais fiéis, embora não mudem nem aumentem o valor das coisas para as tornar mais dignas de serem lidas, pelo menos omitem quase sempre as mais baixas e menos ilustres circunstâncias, donde resulta que o restante não parece tal qual é, e que aqueles que regulam os seus costumes pelos exemplos que delas tiram estão sujeitos a cair nas extravagâncias dos paladinos dos nossos romances e a conceber desígnios que excedem as suas forças. Apreciava muito a eloquência, e a poesia apaixonava-me; mas pensava que uma e outra eram mais dons do espírito do que frutos do estudo. Os que têm o raciocínio mais forte, e melhor digerem os seus pensamentos, a fim de os tornar claros e inteligíveis, podem sempre persuadir melhor, ainda que não falem senão baixo bretão e não tenham nunca aprendido retórica. E os que têm as invenções mais agradáveis, e as sabem exprimir com mais ornamento e suavidade, não deixariam de ser os melhores poetas, ainda que a arte poética lhes fosse desconhecida. Agradavam-me sobretudo as matemáticas, por causa da certeza e da evidência das suas razões; mas não notara ainda a sua verdadeira utilidade, e, pensando que apenas serviam para as artes mecânicas, admirava-me de que, sendo os seus fundamentos tão firmes e sólidos, nada de mais elevado sobre eles se tivesse construído. Pelo contrário, os escritos dos antigos pagãos sobre os costumes faziam-me lembrar palácios muito soberbos e magníficos construídos sobre areia e lama. Enaltecem as virtudes, apresentando-as como mais estimáveis que todas as coisas do mundo; mas não ensinam bastante a conhecê-las, e muitas vezes o que designam por um tal nome não é mais do que uma insensibilidade, um orgulho, ou um desespero, ou um parricídio. Venerava a nossa teologia, e pretendia, como qualquer outro, ganhar o Céu; mas, tendo aprendido, como coisa muito certa, que o seu caminho não está menosaberto aos mais ignorantes do que aos mais doutos, e que as verdades reveladas, que lá conduzem, estão acima da nossa inteligência, não ousaria submetê-las à fraqueza dos meus raciocínios, e pensava que para empreender o seu exame e ser bem-sucedido é necessário ter qualquer extraordinária assistência do Céu e ser mais do que um homem. Da filosofia direi apenas que, vendo que nela nada se encontra sobre que não se possa disputar e que, por consequência, não seja duvidoso, apesar de ter sido cultivada há muitos séculos pelos mais excelentes espíritos, não tinha a pretensão de ser mais bem sucedido do que os doutos; e que, considerando quantas opiniões diversas, sustentadas por homens doutos, pode haver sobre uma mesma matéria, sem que mais duma possa ser verdadeira, reputava quase como falso tudo o que era apenas verosímil. Depois, quanto às outras ciências, na medida em que derivam os seus princípios da filosofia, julgava que nada se pode ter construído de sólido sobre fundamentos tão pouco firmes. E nem a honra nem o ganho que elas prometem eram suficientes para me incitar a aprendê-las; porque não me sentia, graças a Deus, em condições que me obrigassem a fazer da ciência um mister, para alívio da minha fortuna; e ainda que não fosse propósito meu desprezar a glória como um cínico, pouco me importava aquela que só se pode alcançar com falsos títulos. E finalmente, quanto às más doutrinas, julgava conhecer suficientemente o que elas valiam, de modo a não estar sujeito a ser enganado, nem pelas promessas dum alquimista, nem pelas predições dum astrólogo, nem pelas imposturas dum mago, nem pelos artifícios ou gabarolices de qualquer daqueles que fazem profissão de saber mais do que na realidade sabem. Foi por isso que, apenas a idade me permitiu sair da sujeição de meus preceptores, deixei completamente o estudo das letras. E, resolvendo-me a não procurar mais outra ciência a não ser a que pudesse descobrir em mim próprio, ou então no grande livro do mundo, empreguei o resto da minha mocidade a viajar, a ver cortes e exércitos, a frequentar pessoas de diversos feitios e condições, a recolher diversas experiências, a experimentar-me a mim próprio nos encontros a que a fortuna me propusesse, e por toda a parte a refletir de tal maneira sobre as coisas que se apresentassem que delas pudesse tirar qualquer proveito. Efetivamente, parecia-me que poderia encontrar muita mais verdade nos raciocínios que cada um faz sobre os assuntos que lhe interessam, e cujas consequências logo se sentem no caso de se ter mal julgado, do que naqueles que, no seu gabinete, formula um homem de letras sobre especulações que não produzem efeito algum e que não têm para ele outra consequência a não ser a de aumentarem tanto mais a sua vaidade quanto mais afastadas estiverem do senso comum essas especulações, em virtude do muito espírito e artifício que têm de empregar para as tornar verosímeis. E em mim era sempre grande o desejo de aprender a distinguir o verdadeiro do falso, para ver claro nas minhas ações e caminhar com segurança na vida. É certo que, enquanto me limitei a considerar os costumes dos outros homens, quase nada encontrei que me satisfizesse, pois notei neles quase tanta diversidade como a que tinha encontrado entre as opiniões dos filósofos. De maneira que o maior proveito que disso tirei foi o aprender a não ser excessivamente crédulo sobre o que me tinha sido inculcado só pelo exemplo e pelo costume, visto que muitas coisas que nos parecem muito extravagantes e ridículas não deixam de ser comummente aceites por outros grandes povos; e assim a pouco e pouco libertava-me de muitos erros, que podem ofuscar a nossa luz natural e tornar-nos menos capazes de ouvir a razão. Mas, depois de ter assim empregado alguns anos a estudar o livro do mundo e a procurar adquirir alguma experiência, tomei um dia a resolução de me estudar também a mim próprio, e de empregar todas as forças do meu espírito a escolher os caminhos que devia seguir. O que me parece ter dado muito melhor resultado do que se não me tivesse afastado nunca nem do meu país, nem dos meus livros. Segunda Parte Encontrava-me então na Alemanha, para onde fora atraído pelas guerras, que ainda não terminaram; e quando voltava da coroação do imperador para o exército, a entrada do Inverno deteve-me num acampamento, onde, não encontrando nenhumas relações que me distraíssem, e não tendo, além disso, por felicidade, nem cuidados nem paixões que me preocupassem, ficava todo o dia sozinho e encerrado num quarto bem aquecido, com todo o vagar para me concentrar nos meus pensamentos. Entre estes, um dos primeiros, que me ocupou, foi o considerar que muitas vezes não há tanta perfeição nas obras compostas de várias peças e feitas pela mão de vários mestres como naquelas em que só um trabalhou. Assim, os edifícios planeados e acabados por um só arquiteto costumam ser mais belos e mais bem ordenados que os que muitos tentaram embelezar, servindo-se de velhas paredes construídas para outros fins. Assim essas antigas cidades, que, tendo começado por ser aldeias, se transformaram, com o tempo, em grandes centros, são de ordinário tão mal proporcionadas, em comparação com essas praças fortes, traçadas por um engenheiro a seu bel- prazer numa planície, que, embora considerando os seus edifícios um por um se encontre neles muitas vezes tanta ou mais arte que nos das outras, todavia, se olharmos à sua disposição, aqui um grande, ali um pequeno, e ao modo como tornam as ruas curvas e desiguais, dir-se-ia que foi mais o acaso que a vontade de alguns homens, usando da razão, que assim os dispôs. E contudo, se considerarmos que existiram sempre funcionários encarregados de fiscalizar as construções dos particulares, para as subordinar ao embelezamento do conjunto, reconhecer-se-á que é difícil, quando se trabalha nas obras dum outro, fazer coisas muito perfeitas. Do mesmo modo reparei que os povos que, tendo sido outrora semisselvagens, se civilizaram pouco a pouco, e não fizeram as suas leis senão à medida que a pressão dos crimes e das querelas a isso os obrigou, não poderiam ser tão bem policiados como aqueles que, a partir do momento em que se organizaram, observaram as constituições de qualquer prudente legislador. Como é bem certo que o estado da verdadeira religião, cujos decretos só Deus fez, deve ser incomparavelmente melhor regulamentado que todos os outros. E, para falar das coisas humanas, julgo que, se Esparta foi outrora muito florescente, não o deveu à bondade de cada uma das suas leis em particular, algumas das quais eram muito extravagantes, e mesmo contrárias aos bons costumes, mas ao facto de, tendo sido inventadas apenas por um só, tenderem todas para um mesmo fim. E do mesmo modo pensei que as ciências dos livros, pelo menos aquelas cujas razões são apenas prováveis, e que não têm nenhumas demonstrações, pois se formaram e aumentaram pouco a pouco com as opiniões de muitas diversas pessoas, não se aproximam tanto da verdade como os simples raciocínios que pode naturalmente fazer um homem de bom senso sobre as coisas que se lhe apresentam. E pensei ainda igualmente que, tendo nós todos sido crianças antes de sermos homens, e forçados durante muito tempo a obedecer aos nossos apetites e aos nossos preceptores, muitas vezes contrários uns aos outros, e não nos aconselhando talvez nem uns nem outros sempre o melhor, é quase impossível que os nossos juízos sejam tão puros e tão sólidos como seriam se tivéssemos todos desde o nascimento o uso inteiro da razão, e não tivéssemos sido conduzidos senão por ela. É certo que nunca se viu derrubarem-se todas as casas duma cidade, só com a intenção de as refazer de outra maneira e de tornar assim as ruas mais belas; mas o que se vê é muitos deitarem a baixo as suas para as reconstruir, sendo mesmo algumas vezes forçados a isso, quando elas correm risco de cair por si, por seus alicerces não serem bem firmes. Lembrando-me disso, persuadi-me de que na verdade não fazia sentido que um simples particularintentasse reformar um Estado, mudando-lhe tudo desde os alicerces, e derrubando-o para o levantar de novo; nem mesmo também intentasse reformar o corpo da ciências, ou a ordem estabelecida nas escolas para as ensinar; mas, quanto às opiniões que até então aceitara como verdadeiras, persuadi-me de que nada de melhor poderia fazer que dispor-me a suspender a sua aceitação, a fim de as substituir por outras melhores, ou de as aceitar de novo, depois de as ajustar ao nível da razão. E acreditei firmemente que desta maneira conseguiria conduzir a minha vida muito melhor do que se construísse apenas sobre velhos alicerces, e não me apoiasse senão sobre os princípios por que me tinha deixado persuadir na mocidade, sem nunca ter examinado se eram verdadeiros. Porque, embora notasse nessa tarefa muitas diversas dificuldades, estas não eram todavia insuperáveis, nem comparáveis às que se encontram na reforma de coisas menos importantes que interessam às sociedades. Estes grandes corpos é muito difícil levantá-los de novo, quando abatidos, ou mesmo mantê-los, quando abalados, e as suas quedas não podem deixar de ser muito violentas. Além de que, pelo que respeita às suas imperfeições, se as têm (e a diversidade que entre eles existe basta para mostrar que as têm), o uso atenuou-as muito sem dúvida; e evitou até ou corrigiu insensivelmente um grande número, que por prudência não se poderiam remediar tão bem; e finalmente essas imperfeições são quase sempre mais suportáveis que o não seria a sua mudança: como os grandes caminhos que contornam as montanhas se tornam pouco a pouco tão unidos e tão cómodos, à força de serem frequentados, que é muito melhor segui-los que tentar ir a direito, subindo por cima de rochedos e descendo ao fundo dos precipícios. Por isso não poderia de modo algum aprovar esses temperamentos conflituosos e inquietos que, não sendo chamados nem pelo nascimento nem pela fortuna à administração dos negócios públicos, não prescindem de neles introduzir, em pensamento, qualquer nova reforma. E, se pensasse que existe neste escrito qualquer coisa pela qual pudesse ser suspeito de semelhante loucura, desgostar-me-ia muito o ter consentido na sua publicação. Nunca o meu intento foi mais longe que procurar reformar os meus próprios pensamentos, e construir em terreno que é todo meu. Se aqui vos mostro o modelo da minha obra, que tanto me agradou, não quer isto dizer que aconselhe os outros a imitá-lo. Aqueles a quem Deus mais beneficiou com suas graças alimentarão talvez desígnios mais elevados; mas receio bastante que este seja já ousado de mais para muitos. A simples resolução de nos libertarmos de todas as opiniões que antes aceitávamos como verdadeiras não é um exemplo que todos devam seguir; e o mundo é quase composto apenas de duas espécies de espíritos, aos quais ele não convém de nenhum modo, a saber: daqueles que, julgando-se mais hábeis do que são, não resistem a precipitar os seus juízos, nem têm paciência bastante para conduzir por ordem os seus pensamentos, donde resulta que, se tomassem uma vez a liberdade de duvidar dos princípios que receberam e de se afastarem do caminho comum, nunca poderiam manter-se no atalho que é preciso tomar para ir mais direito e ficariam perdidos toda a vida; depois, daqueles que, tendo bastante razão ou modéstia para julgar que são menos capazes de distinguir o verdadeiro do falso que alguns outros, por quem podem ser instruídos, devem antes contentar-se com o seguir as opiniões desses outros do que procurar por si próprios outras melhores. Pelo que me diz respeito, teria sido sem dúvida do número destes últimos, se tivesse tido apenas um professor, ou tivesse ignorado as diferenças que em todos os tempos têm existido entre as opiniões dos mais doutos. Mas tendo aprendido, desde o colégio, que nada se pode imaginar de tão estranho e de tão pouco aceitável que já não tenha sido dito por qualquer dos filósofos; e depois, ao viajar, tendo reconhecido que todos os que têm sentimentos muito contrários aos nossos nem por isso são bárbaros ou selvagens, antes muitos usam, tanto ou mais do que nós, da razão; e tendo considerado quanto um mesmo homem, com o seu mesmo espírito, sendo educado desde a infância entre franceses ou alemães, se torna diferente do que seria se tivesse vivido sempre entre chineses ou canibais; e como, até nas modas da indumentária, a mesma coisa que nos agradou há dez anos, e que nos agradará talvez antes de outros dez, nos parece agora extravagante e ridícula, de sorte que são bem mais o costume e o exemplo que nos persuadem do que qualquer conhecimento certo; e que, contudo, a pluralidade das opiniões não é uma prova que valha para as verdades um pouco difíceis de descobrir, porque é bem mais verosímil que um só homem as tenha encontrado que um povo inteiro — eu não podia escolher ninguém cujas opiniões me parecessem dever ser preferidas às dos outros, e encontrava-me como que obrigado a procurar conduzir-me a mim próprio. Mas, como um homem que anda só e nas trevas, resolvi ir tão lentamente, e usar de tanta circunspeção em tudo, que, embora não avançasse senão muito pouco, evitaria pelo menos cair. Não quis mesmo começar a rejeitar nenhuma das opiniões que outrora se tinham insinuado no meu espírito, sem ser por intermédio da razão, antes de ter gasto bastante tempo a traçar o plano da obra que ia empreender e a procurar o verdadeiro método para chegar ao conhecimento de tudo de que o meu espírito seria capaz. Sendo ainda novo, estudara um pouco, entre as partes da filosofia, a Lógica, e entre as matemáticas, a análise dos geómetras e a álgebra, três artes ou ciências que pareciam dever contribuir alguma coisa para o meu desígnio. Mas, ao examiná-las, notei que, no que respeita à Lógica, os seus silogismos e a maior parte dos seus outros preceitos servem mais para explicar a outrem o que já se sabe, ou mesmo, como a arte de Lulle, para falar sem critério daquilo que se ignora, do que para aprender.\E ainda que ela contenha, efetivamente, preceitos muitos verdadeiros e bons, encontram-se misturados com eles tantos outros que são ou nocivos ou inúteis que é quase tão difícil separá-los como tirar uma Diana ou uma Minerva dum bloco de mármore ainda não trabalhado. Depois, pelo que respeita à análise dos antigos e à álgebra dos modernos, além de que só se ocupam de matérias muito abstratas e que não parecem de nenhum uso, a primeira está sempre tão sujeita à consideração das figuras que não pode exercitar o entendimento sem fatigar muito a imaginação; e na segunda, está-se de tal modo sujeito a certas regras e a certos algarismos que se faz dela uma arte confusa e obscura que embaraça o espírito, em vez duma ciência que o cultive. O que me levou a pensar que era necessário procurar um outro método qualquer que, compreendendo as vantagens desses três, fosse isento dos seus defeitos. E como a diversidade das leis serve muitas vezes de desculpa aos vícios, de sorte que um Estado é bem melhor administrado quando, tendo embora muito poucas, se aplicam rigorosamente; assim, em vez desse # grande número de preceitos que constituem a Lógica, julguei que me bastariam os quatro seguintes, contanto que tomasse a firme e constante resolução de não deixar uma só vez de os observar. O primeiro consistia em nunca aceitar como verdadeira qualquer coisa sem a conhecer evidentemente como tal; isto é, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção; não incluir nos meus juízos nada que se não apresentasse tão clara e tão distintamente ao meu espírito que não tivesse nenhuma ocasião para o pôr em dúvida. O segundo, dividir cada uma das dificuldades que tivesse de abordar no maior número possível de parcelas que fossem necessárias para melhor as resolver. O terceiro, conduzir por ordem os meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir pouco a pouco, gradualmente, até ao conhecimento dos mais compostos, e admitindo mesmo certa ordem entre aqueles que não se prendem naturalmente uns aosoutros. E o último, fazer sempre enumerações tão completas e revisões tão gerais que tivesse a certeza de nada omitir. Essas longas cadeias de razões, inteiramente simples e fáceis, de que os geómetras costumam servir-se para chegar às suas mais difíceis demonstrações tinham-me sugerido que todas as coisas que podem cair sob o conhecimento do homem se encadeiam da mesma maneira e que, contanto que simplesmente nos abstenhamos de aceitar como verdadeira nenhuma que o não seja, e que observemos sempre a ordem necessária para as deduzir umas das outras, nenhumas pode haver tão afastadas a que não se chegue por fim, nem tão ocultas que não se descubram. E não me foi muito difícil procurar por quais deveria começar: pois já sabia que devia ser pelas mais simples e mais fáceis de conhecer; e, considerando que, entre todos os que até aqui procuraram a verdade nas ciências, só os matemáticos puderam encontrar algumas demonstrações, isto é, algumas razões certas e evidentes, não duvidei de que deveria começar por onde elas começam; embora eu não esperasse delas nenhuma outra vantagem a não ser a de habituarem o meu espírito a nutrir-se de verdades e a não se contentar com falsas razões. Essas considerações não me levaram, contudo, a procurar aprender todas as ciências particulares, que se chamam vulgarmente matemáticas; e, vendo que, embora os seus objetos sejam diferentes, todas coincidem em não considerar nesses objetos senão as diversas relações ou proporções que neles se encontram, pensei que valia mais examinar unicamente essas proporções em geral, representando-as apenas por figuras, que me serviriam para tornar o seu conhecimento mais fácil, sem contudo as limitar apenas a essas figuras, a fim de as poder aplicar melhor depois a todos os outros objetos a que essas proporções conviessem. Tendo notado, em seguida, que para as conhecer teria algumas vezes necessidade de as considerar cada uma em particular, e outras vezes somente de reter ou compreender várias ao mesmo tempo, pensei que, para as considerar melhor em particular, as devia figurar por linhas, por não encontrar nada mais simples, nem que pudesse mais distintamente representar à minha imaginação e aos meus sentidos; mas que, para reter ou compreender várias simultaneamente, era necessário designá-las por alguns caracteres, os mais simples possíveis; e que, dessa maneira, aproveitaria o melhor da análise geométrica e da álgebra e corrigiria todos os defeitos duma pela outra. E, efetivamente, atrevo-me a dizer que a exata observância desses poucos preceitos que escolhera me deu tal facilidade para destrinçar todas as questões que essas duas ciências abrangem que em dois ou três meses que empreguei a examiná-las, tendo começado pelas mais simples e gerais, e sendo cada verdade que encontrava uma regra que me servia para encontrar depois outras, não somente resolvi muitas que antes julgava muito difíceis, como me pareceu também, para o fim, poder determinar, mesmo naquelas que ignorava, por que meios e até onde seria possível resolvê-las. Apesar desta confissão, não me deveis julgar muito vaidoso, se considerardes que, existindo apenas para cada coisa uma verdade, quem quer que a encontre sabe dela tudo o que pode saber; e que, por exemplo, uma criança instruída na aritmética, que tenha feito uma adição segundo as regras, pode ter a certeza de ter encontrado, a respeito da soma que fez, tudo o que o espírito humano pode encontrar. Porque, enfim, o método que ensina a seguir a verdadeira ordem, e a enumerar exatamente todas as circunstâncias do que se procura, contém tudo o que confere certeza às regras da matemática. Mas o que me satisfazia nesse método era o ter a certeza de com ele usar em tudo da minha razão, se não perfeitamente, pelo menos o melhor que podia; além de que, ao pô-lo em prática, sentia que o meu espírito se acostumava pouco a pouco a conceber mais nítida e distintamente os seus objetos, e que, não o tendo escravizado a nenhum assunto particular, prometia a mim próprio aplicá-lo tão utilmente às dificuldades das outras ciências como o aplicara às da álgebra. Não que ousasse, por essa razão, empreender logo o exame de todas as que se me apresentassem; porque isso seria mesmo contrário à ordem que ele prescreve. Mas, tendo notado que os seus princípios se deviam tirar todos da filosofia, na qual não encontrara ainda nenhuns certos, pensei que, primeiro que tudo, devia procurar estabelecê-los nela; e que, sendo isso a coisa mais importante do mundo e onde a precipitação e a prevenção são mais para temer, não devia tentá-lo sem ter atingido uma idade bem mais madura que a dos vinte e três anos, que então tinha; e sem ter, antes, empregado muito tempo a preparar-me para isso, tanto desenraizando do meu espírito todas as más opiniões que até então nele tinha acolhido, como reunindo muitas experiências, que servissem mais tarde de matéria aos meus raciocínios, e ainda exercitando-me sempre no método que me impusera, a fim de me adestrar nele cada vez mais. Terceira Parte Finalmente, assim como antes de começar a reconstruir a casa que se habita não basta derrubá-la, nem preparar os materiais e arquitetos, nem aprendermos nós próprios a arquitetura, nem além disso traçar cuidadosamente o seu plano, pois é necessário também termo-nos prevenido com qualquer outra, onde nos possamos alojar comodamente enquanto se trabalha nela — assim, a fim de não ficar irresoluto na minha conduta, enquanto a razão me obrigasse a sê-lo nos meus juízos, e para não deixar de viver, a partir desse momento, o mais felizmente possível, formei para mim próprio uma moral provisória, constituída apenas por três ou quatro máximas, que vos quero expor. A primeira era obedecer às leis e aos costumes do meu país, conservando firmemente a religião em que Deus me deu a graça de ser instruído desde a infância, e conduzindo-me, em tudo o mais, segundo as opiniões mais moderadas e mais afastadas do exagero, que fossem geralmente aceites ou praticadas pelos mais sensatos daqueles com quem teria de viver. Porque, começando desde esse momento a não contar para nada com as minhas próprias opiniões, pois as queria submeter todas a exame, parecia-me evidente que o melhor que tinha a fazer era seguir as dos mais sensatos. E embora haja talvez entre os Persas e Chineses homens tão sensatos como entre nós, parecia-me que o mais vantajoso seria seguir aqueles com quem teria de viver; e que, para saber quais eram, na verdade, as suas opiniões, devia reparar mais no que praticavam do que no que diziam; não só porque, dada a corrupção dos nossos costumes, poucos há que queiram dizer tudo o que creem, mas também porque muitos o ignoram; porque, sendo a atividade do pensamento, pela qual se crê uma coisa, diferente daquela pela qual se conhece que se crê, muitas vezes uma não acompanha a outra. Entre muitas opiniões igualmente aceites só escolhia as mais moderadas; não só porque são estas sempre as mais cómodas na prática, e verosimilmente as melhores, pois todo o excesso costuma ser mau, como também a fim de me afastar menos do verdadeiro caminho, no caso de errar, do que me afastaria se, tendo escolhido um dos extremos, devesse ter seguido o outro. E, em especial, incluía entre os extremos todas as promessas pelas quais se diminui, por pouco que seja, a própria liberdade. Não que desaprovasse as leis que, para remediar a inconstância dos espíritos fracos, permitem, quando se tem algum bom desígnio, ou mesmo, para a segurança do comércio, algum desígnio apenas indiferente, que se façam promessas ou contratos que obrigam a mantê-lo; mas, porque não via no mundo nada que permaneça sempre no mesmo estado, e porque, no meu caso particular, prometia a mim próprio aperfeiçoar cada vez mais os meus juízos, e não torná-los piores, pensaria cometer uma grande falta contra o bom senso se, pelo facto de ter aprovado uma vez qualquer coisa, me julgasse obrigado a aceitá-la como boa depois, quando deixasse de o ser ou eu não a considerasse como tal. A segunda máximaconsistia em ser o mais firme e resoluto que pudesse nas minhas ações, e não seguir com menor firmeza do que se fossem muito certas as opiniões mais duvidosas, uma vez que as tivesse escolhido, imitando nisto os viajantes, que, perdidos em qualquer floresta, não devem errar vagueando para um lado e para outro, nem ainda menos parar, mas sim andar sempre o mais a direito possível numa mesma direção, e não modificá- la, por fracas razões, ainda que de princípio só o acaso tenha determinado a sua escolha; porque, dessa maneira, embora não cheguem exatamente aonde querem, pelo menos chegarão por fim a qualquer lugar, onde naturalmente estarão melhor que no meio da floresta. E, da mesma maneira, como as ações da vida não admitem muitas vezes nenhum adiamento, é uma verdade muito certa que, quando não está em nosso poder o discernir as opiniões mais verdadeiras, devemos seguir as mais prováveis; e mesmo, ainda que não notemos numas mais probabilidade que nas outras, devemos contudo decidir-nos por algumas, e considerá-las depois não já como duvidosas, no que diz respeito ao seu valor prático, mas como verdadeiras e muito certas, pois que a razão que a isso nos decidiu o é também. E esta consideração permitiu-me desde então libertar-me de todos os arrependimentos e remorsos que costumam perturbar as consciências desses espíritos fracos e hesitantes que, vacilando, praticam como boas as ações que depois julgam ser más. A minha terceira máxima era procurar sempre antes vencer-me a mim próprio do que vencer a fortuna e antes modificar os meus desejos do que a ordem do mundo; e, dum modo geral, habituar-me a crer que só os nossos pensamentos estão inteiramente em nosso poder, de maneira que depois de ter procedido o melhor possível em relação às coisas que nos são exteriores, tudo o que impede que sejamos bem-sucedidos é, em relação a nós, absolutamente impossível. E esta simples consideração bastava para me impedir, daí por diante, de nada desejar que não pudesse adquirir, e para desse modo me tornar feliz. Efetivamente, como à vontade por inclinação natural só deseja aquilo que o entendimento lhe apresenta de qualquer modo como possível, é certo que, se considerarmos todos os bens exteriores como igualmente afastados do nosso poder, não lastimaremos mais a falta daqueles que são devidos ao nascimento, quando deles privados sem nossa culpa, do que lastimamos não possuir os reinos da China ou do México; e que, fazendo, como se costuma dizer, da necessidade virtude, não desejaremos mais ter saúde, quando doentes, ou ser livres, quando prisioneiros, do que desejamos agora ter corpos duma matéria tão pouco corruptível como os diamantes ou asas para voar como as aves. Mas confesso que é necessário um longo treino e uma meditação muitas vezes reiterada para nos habituarmos a encarar por esse prisma todas as coisas, e creio que é sobretudo nisto que reside o segredo desses filósofos que outrora puderam subtrair-se ao império da fortuna e rivalizar em felicidades, apesar da dor e da pobreza, com os seus deuses. Porque, ocupando-se constantemente em considerar os limites que lhes eram prescritos pela natureza, persuadiram-se tão perfeitamente de que nada estava em seu poder além dos seus próprios pensamentos que isso só bastava para evitar perturbarem-se com quaisquer outras coisas; e dos seus pensamentos dispunham tão absolutamente que tinham dum certo modo razão em considerar-se mais ricos e poderosos, livres e felizes, que quaisquer outros homens que, não tendo essa filosofia, por muito favorecidos que sejam pela natureza e pela fortuna, nunca dispõem como eles de tudo o que querem. Por fim, para remate dessa moral, resolvi passar em revista as diversas ocupações humanas, com a intenção de escolher a melhor; e, sem desfazer nas dos outros, pensei que o melhor que tinha a fazer era continuar com aquela em que de momento me ocupava, isto é, empregar toda a minha vida a cultivar a razão e a progredir, o mais que pudesse, no conhecimento da verdade, seguindo o método que me tinha imposto. Tinha sentido tão extremas alegrias, desde que começara a servir-me dele, que não acreditava que, nesta vida, outras se pudessem ter mais suaves e mais inocentes; e, como a cada passo descobria por meio dele novas verdades, que se me afiguravam bastante importantes, e em regra ignoradas pelos outros, a satisfação que com isso colhia enchia de tal modo o meu espírito que nada mais me interessava. Além de que as três máximas precedentes se legitimavam apenas pela intenção que tinha de continuar a instruir-me; porque, tendo Deus concedido a todos alguma luz para discernir o verdadeiro do falso, eu não teria julgado dever contentar-me, um só momento, com as opiniões de outrem se não tivesse resolvido empregar o meu próprio juízo a examiná-las, na devida altura; e não teria sabido livrar- me de escrúpulos em segui-las se não esperasse não perder com isso nenhuma ocasião de encontrar outras melhores, se acaso as houvesse. Enfim, não teria sabido limitar os meus desejos, nem ser feliz, se não tivesse seguido um caminho por onde estava convencido de que encontraria, com a aquisição de todos os conhecimentos de que fosse capaz, todos os verdadeiros bens que poderia vir a ter; tanto mais que, não se inclinando a nossa vontade senão para seguir ou fugir das coisas que o entendimento lhe apresenta como boas ou como más, basta julgar bem para bem proceder, e julgar o melhor possível para proceder da melhor maneira, isto é, para adquirir todas as virtudes e, com elas, todos os outros bens ao nosso alcance; e quando se está certo disto, não se pode deixar de ser feliz. Depois de me ter assim munido destas três máximas, e de as ter posto de parte, com as verdades da fé, que foram sempre as primeiras na minha crença, julguei que, quanto a todas as outras opiniões, podia livremente tentar libertar-me delas. E, como esperava realizar melhor essa tarefa em convívio com os outros homens do que continuando encerrado no quarto bem aquecido onde me tinham ocorrido todos estes pensamentos, recomecei a viajar, ainda o Inverno não terminara. Nos nove anos que se seguiram, não fiz mais do que vaguear no mundo daqui para ali, procurando ser mais espectador do que ator em todas as comédias que nele se desenrolam; e, refletindo sobretudo, a propósito de cada coisa, sobre o que podia torná-la suspeita e ser ocasião de nos enganarmos, eu desenraizava, ao mesmo tempo, do meu espírito todos os erros que nele até então se tinham podido insinuar. Não que imitasse por isso os céticos, que duvidam apenas por duvidar e afetam ser sempre irresolutos; porque, pelo contrário, todo o meu intuito era conquistar a certeza e rejeitar a terra movediça e a areia, para encontrar a rocha ou a argila. O que me deu muito bom resultado, segundo me parece, tanto mais que, procurando descobrir a falsidade ou a incerteza das proposições que examinava, não por fracas conjeturas, mas por raciocínios claros e seguros, não encontrava nenhumas tão duvidosas que delas não tirasse sempre alguma conclusão bastante certa, quando mais não fosse a de não conterem nada de certo. E, como ao derrubar uma velha habitação se guardam habitualmente os escombros para com eles construir uma nova, assim ao destruir todas as minhas opiniões que julgava mal fundadas fazia diversas observações e coligia muitas experiências, que me serviriam para estabelecer outras mais certas. Além disso, continuava a treinar-me no método que tinha adotado; porque não só tinha o cuidado de conduzir geralmente todos os meus pensamentos segundo as suas regras, como reservava de vez em quando algumas horas para o aplicar, em especial, às dificuldades da matemática ou mesmo também a algumas outras que podia tornar quase semelhantes às das matemáticas, separando-as de todos os princípios das outras ciências, que não julgava suficientemente firmes, como tereis ocasião de ver com várias que são explicadas neste volume. E assim, sem viver, aparentemente, duma maneira diferente da daqueles que, tendo por único empregopassar uma vida calma e inocente, evitam confundir os prazeres com os vícios, e que, para preencher os seus ócios sem se aborrecerem, lançam mão de todos os divertimentos honestos, eu não deixava de perseverar no meu intento e de progredir no conhecimento da verdade, mais talvez do que se tivesse lido livros ou frequentado pessoas letradas. Todavia, esses nove anos passaram sem que tivesse tomado nenhum partido acerca das dificuldades que costumam ser discutidas entre os doutos, nem começado a procurar os fundamentos de qualquer filosofia mais certa do que a vulgar. E o exemplo de muitos espíritos excelentes que, tendo tido já esse mesmo projeto, não tinham sido, na minha opinião, bem-sucedidos, levava-me a imaginar tantas dificuldades para a sua realização que não teria talvez ousado empreendê-lo tão cedo se não soubesse que já constava que eu o tinha realizado. Ignorava em que se baseavam para tal afirmarem; e se para isso eu alguma vez contribuí com os meus discursos, deve ter sido mais por neles confessar a minha ignorância mais ingenuamente do que costumam fazer aqueles que estudaram pouco, e talvez também por mostrar as razões que tinha para duvidar de muitas coisas que outros consideram certas, do que por me vangloriar de qualquer doutrina. Mas, com orgulho bastante para não querer que me tomassem pelo que não era, pensei que devia tentar, por todos os meios, tornar-me digno da reputação de que gozava; e há justamente oito anos que esse desejo me decidiu a afastar-me de todos os sítios onde pudesse ter relações, e a retirar- me para aqui, para um país onde a longa duração da guerra criou uma tal disciplina que os exércitos que nela se mantêm não parecem servir senão para que nele se possam gozar os frutos da paz com toda a segurança, e onde entre a multidão dum grande povo muito ativo, e mais cuidadoso dos seus próprios interesses que curioso dos dos outros, sem carecer de nenhuma das comodidades que existem nas cidades mais frequentadas, pude viver tão solitário e retirado como nos desertos mais longínquos. Quarta Parte Não sei se deva falar-vos das primeiras meditações que nele fiz; porque são tão metafísicas e tão pouco vulgares que não agradarão talvez a toda a gente. E todavia vejo-me de certo modo obrigado a falar-vos delas, para que se possa avaliar se os fundamentos que escolhi são bastante firmes. De há muito tinha notado que, pelo que respeita à conduta, é necessário algumas vezes seguir como indubitáveis opiniões que sabemos serem muito incertas, como já atrás foi dito. Mas agora, que resolvera dedicar-me apenas à descoberta da verdade, pensei que era necessário proceder exatamente ao contrário, e rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se após isso acaso ficaria qualquer coisa nas minhas opiniões que fosse inteiramente indubitável. Assim, porque os nossos sentidos nos enganam algumas vezes, eu quis supor que nada há que seja tal como eles o fazem imaginar. E, porque há homens que se enganam ao raciocinar, até nos mais simples temas de geometria, e neles cometem paralogismos, rejeitei como falsas, visto estar sujeito a enganar-me como qualquer outro, todas as razões de que até então me servira nas demonstrações. Finalmente, considerando que os pensamentos que temos quando acordados nos podem ocorrer também quando dormimos, sem que neste caso nenhum seja verdadeiro, resolvi supor que tudo o que até então encontrara acolhimento no meu espírito não era mais verdadeiro que as ilusões dos meus sonhos. Mas, logo em seguida, notei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso, eu, que assim o pensava, necessariamente era alguma coisa. E notando que esta verdade — eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos céticos seriam impotentes para a abalar, julguei que a podia aceitar, sem escrúpulo, para primeiro princípio da filosofia que procurava. Depois, examinando atentamente que coisa eu era, e vendo que podia supor que não tinha corpo e que não havia qualquer mundo ou qualquer lugar onde eu existisse; mas que, apesar disso, não podia admitir que não existia; e que antes, pelo contrário, por isso mesmo que pensava, ao duvidar da verdade das outras coisas, tinha de admitir como muito evidente e muito certo que existia; ao passo que bastava que tivesse deixado de pensar para não ter já nenhuma razão para crer que existia, ainda que tudo o que tinha imaginado fosse verdadeiro; por isso, compreendi que era uma substância, cuja essência ou natureza é apenas o pensamento, que para existir não tem necessidade de nenhum lugar nem depende de nenhuma coisa material. De maneira que esse eu, isto é, a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, mais fácil mesmo de conhecer que este, o qual, embora não existisse, não impediria que ela fosse o que é. Depois disso, considerei duma maneira geral o que é indispensável a uma proposição para ser verdadeira e certa; porque, como acabava de encontrar uma com esses requisitos, pensei que devia saber também em que consiste essa certeza. E tendo notado que nada há no eu penso, logo existo, que me garanta que digo a verdade, a não ser que vejo muito claramente que, para pensar, é preciso existir, julguei que podia admitir como regra geral que é verdadeiro tudo aquilo que concebemos muito claramente e muito distintamente; havendo apenas alguma dificuldade em notar bem quais são as coisas que concebemos distintamente. Depois, tendo refletido que, já não duvidava, o meu ser não era inteiramente perfeito, pois claramente via que o conhecer é uma maior perfeição que o duvidar, lembrei-me de procurar donde me teria vindo o pensamento de alguma coisa de mais perfeito do que eu era; e conheci com evidência que deveria ter vindo de alguma natureza que fosse efetivamente mais perfeita. Não me era difícil saber donde me teriam vindo os pensamentos que tinha de muitas outras coisas exteriores a mim, como do céu, da terra, da luz, do calor e de muitas outras, porque, não notando neles nada de superior a mim, podia admitir que, caso fossem verdadeiros, dependiam da minha natureza, do que ela tem de perfeito; e no caso de serem falsos era de mim ainda que dependeriam, vindos do nada, isto é, do que de imperfeito existe na minha natureza. Mas o mesmo não acontecia já com a ideia dum ser mais perfeito do que o meu; porque tê-la formado do nada era manifestamente impossível; e, porque não repugna menos admitir que o mais perfeito seja uma consequência e uma dependência do menos perfeito do que admitir que do nada alguma coisa proceda, não podia também aceitar que tivesse sido criada por mim próprio. De maneira que restava apenas admitir que tivesse sido posta em mim por um ser cuja natureza fosse verdadeiramente mais perfeita do que a minha, e que mesmo tivesse em si todas as perfeições que eu poderia idealizar, isto é, que fosse Deus, para tudo dizer numa palavra. A isso acrescentei que, visto conhecer algumas perfeições que não possuía, não era o único ser que existia (empregarei aqui, se o consentirdes, alguns termos de escolástica), mas que necessariamente devia existir algum outro mais perfeito, do qual dependesse e de quem tivesse recebido tudo o que possuía. Porque, se eu fosse o único ser, independente de qualquer outro, e de mim próprio tivesse recebido todo esse pouco pelo qual participava do ser perfeito, teria podido dar a mim próprio, pela mesma razão, todo o muito que reconhecia faltar-me, e ser dessa maneira eu próprio infinito, eterno, imutável, omnisciente, omnipotente, em suma ter todas as perfeições que atribuía a Deus. Com efeito, segundo os raciocínios que acabo de formular, para conhecer a natureza de Deus tanto quanto isso me é possível bastava-me considerar, acerca de todas as coisas de que em mim exista a ideia, se era ou não perfeição possuí-las, e estava certo de que todas existem nele, exceto as que denotam qualquer imperfeição. Assim eu via que a dúvida, a inconstância, a tristeza, e outras coisas análogasnão podiam existir nele, visto que a mim próprio seria muito agradável ser isento delas. Além disso, acrescia ainda o ter eu ideias de muitas coisas sensíveis e corporais; porque, embora supusesse que estava sonhando e que tudo o que via ou imaginava era falso, não podia negar, contudo, que as ideias dessas coisas existiam de facto no meu pensamento; mas, como tinha reconhecido em mim próprio muito claramente que a natureza intelectual é distinta da corpórea, considerando que toda a composição indica dependência, e que esta é manifestamente um defeito, julguei por isso que, quanto a Deus, não podia ser uma perfeição o ser composto de essas duas naturezas, e que, por consequência, o não era; mas pensei também que, se existem no mundo alguns corpos, inteligências ou quaisquer outras naturezas que não sejam completamente perfeitas, o seu ser deve depender tanto do poder desse Deus que não poderiam subsistir um só momento sem ele. Depois disso, quis ainda pensar outras verdades, e, tomando por tema a matéria dos geómetras, a qual concebia como um corpo contínuo, ou um espaço indefinidamente extenso em comprimento, largura e altura ou profundidade, divisível em muitas partes, que podem ter diversas formas e grandezas, pois os geómetras supõem tudo isto na sua matéria, revi algumas das suas demonstrações mais simples. E, tendo notado que essa grande certeza, que todos lhes atribuem, se funda apenas em serem compreendidas com evidência, segundo a regra por mim há pouco indicada, notei também que nada existia nelas que me garantisse a existência dos objetos a que se referem. Porque, por exemplo, eu compreendia bem que, sendo dado um triângulo, é necessário que os seus três ângulos sejam iguais a dois ângulos retos; mas, apesar disso, nada via que me garantisse que no mundo existe qualquer triângulo. Ao passo que, voltando a examinar a ideia dum ser perfeito, notava que a existência está contida nessa ideia, do mesmo modo, ou mais evidentemente ainda, que na dum triângulo está compreendido serem os seus três ângulos iguais a dois retos, ou na esfera serem todos os seus pontos equidistantes do centro; e que, por conseguinte, é pelo menos tão certo como qualquer demonstração de geometria que Deus, que é esse ser perfeito, é ou existe. Mas o que faz que muitos se convençam de que é difícil conhecê-lo, e conhecer o que é a alma que possuem, é o facto de nunca levarem o seu espírito para além das coisas sensíveis, e de estarem de tal modo habituados a nada considerar senão com a imaginação, que é uma maneira particular de pensar as coisas materiais, que tudo que não é imaginável lhes parece não ser inteligível. E que isto é assim mostram-no os próprios filósofos que, nas escolas, sustentam como máxima que nada existe no entendimento que não tenha primeiramente existido nos sentidos, nos quais, todavia, é fora de dúvida que as ideias de Deus e da alma nunca existiram. Afigura-se-me que todos os que querem usar da imaginação para as compreender procedem como se para ouvir os sons, ou cheirar os perfumes, quisessem servir-se dos olhos; com a diferença, para pior ainda, de que o sentido da vista não nos garante menos que os do olfato ou da audição a realidade dos objetos que pretende atingir; ao passo que nem a imaginação nem os sentidos poderiam nunca certificar-nos de qualquer coisa sem a intervenção do entendimento. Enfim, se há ainda quem não se persuada bem da existência de Deus e da alma com as razões que apresentei, quero dizer-lhes que é menos certa a existência de todas as outras coisas, de que se julgam talvez mais seguros, como ter um corpo, existirem astros e uma terra e outras coisas semelhantes. Porque, embora se tenha dessas coisas uma tal certeza moral que seria extravagante duvidar delas, todavia também, quando se trata de certeza metafísica, não se pode negar, sob pena de insensatez, que o facto de podermos imaginar, em sonho, que temos um outro corpo, e que vemos outros astros e uma outra terra, sem que na realidade assim seja, é motivo suficiente para não estarmos inteiramente seguros da sua certeza. Quem nos garante, com efeito, que os pensamentos que ocorrem em sonhos são mais falsos do que os outros, se muitos deles não são menos fortes e nítidos? Por mais que os melhores espíritos se esforcem, não creio que possam apresentar nenhuma razão que baste para desfazer essa dúvida, se não pressupuserem a existência de Deus. Na verdade, em primeiro lugar, aquilo mesmo que há pouco adotei como regra, isto é, que são inteiramente verdadeiras as coisas que concebemos muito clara e distintamente, não é certo senão porque Deus é ou existe, ser perfeito de que nos vem tudo que em nós existe. Donde se segue que as nossas ideias ou noções, coisas reais que provêm de Deus, não podem deixar de ser verdadeiras na medida em que são claras e distintas. De maneira que as falsas que muitas vezes temos são as que têm alguma coisa de confuso e obscuro, e participam, sob este aspeto, do nada, isto é, são assim confusas porque nós não somos inteiramente perfeitos. E é evidente que não repugna menos admitir que a falsidade ou a imperfeição provenham de Deus, que, como Deus, as possuiria, do que admitir que a verdade ou a perfeição provenham do nada. Mas se não soubéssemos que tudo o que existe em nós de real e de verdadeiro provém dum ser perfeito e infinito, por claras e distintas que possam ser as nossas ideias, nenhuma razão teríamos que nos certificasse que elas possuem a perfeição de serem verdadeiras. Ora, depois de o conhecimento de Deus e da alma ter garantido a certeza dessa regra, é fácil compreender que os sonhos que imaginamos não devem de modo algum fazer-nos duvidar da verdade dos pensamentos que temos quando acordados. Porque, se acontecesse que mesmo a dormir tivéssemos alguma ideia muito distinta, que um geómetra, por exemplo, inventasse qualquer nova demonstração, o ter sido durante o sonho não impediria que ela fosse verdadeira. E quanto ao erro mais frequente dos nossos sonhos, que consiste em nos representarem muitos objetos como os sentidos exteriores, não importa que esse erro nos leve a desconfiar da verdade de tais ideias, pois estas podem também enganar-nos muitas vezes, sem que estejamos a dormir: como sucede quando, tendo icterícia, se vê tudo amarelo, ou com a grandeza dos astros e dos outros corpos que, quando muito distantes, aparecem mais pequenos do que são. Porque enfim, quer estejamos acordados, quer durmamos, nunca nos devemos deixar persuadir senão pela evidência. Note-se que digo razão, e não imaginação ou sentidos. Porque, embora vejamos o Sol muito claramente, não devemos julgar por isso que ele tem apenas a grandeza que lhe vemos; e podemos à vontade imaginar distintamente uma cabeça de leão unida ao corpo duma cabra, sem que tenhamos de concluir, por isso, que no mundo existem quimeras: porque a razão não garante que seja verdadeiro o que assim vemos ou imaginamos. Mas garante-nos bem que todas as nossas ideias ou noções devem ter algum fundamento verdadeiro; porque não seria possível que Deus, que é inteiramente perfeito e verídico, as tivesse posto em nós sem isso. E porque os nossos raciocínios não são nunca tão evidentes nem tão completos durante o sono como em vigília, ainda que algumas vezes o que então imaginamos seja tanto ou mais forte e nítido, ela mostra-nos também que o quanto de verdade encerram os nossos pensamentos, os quais não podem ser inteiramente verdadeiros, porque não somos inteiramente perfeitos, se deve encontrar de preferência nos que temos quando acordados. Quinta Parte Gostaria de continuar, e de mostrar aqui toda a cadeia das outras verdades que deduzi dessas primeiras. Mas, como para isso me seria agora necessário falar de muitas questões debatidas entre os doutos, com quem não desejo indispor-me, julgo que será preferível abster-me, e dizer somente duma maneira geral quais elas são, para os mais autorizados apreciarem se seria útil que o público delas fosse mais particularmente informado. Mantive- me sempre firme na resolução
Compartilhar