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DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 1 MBA GERENCIAMENTO DE PROJETOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS PROFESSOR: GUILHERME SANDOVAL GÓES DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 2 ÍNDICE AULA 3: A DOGMÁTICA PÓS-POSITIVISTA E A NORMATIVIDADE DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS 3 INTRODUÇÃO 3 CONTEÚDO 4 INTRODUÇÃO 4 BREVE DISTINÇÃO ENTRE CASOS FÁCEIS E CASOS DIFÍCEIS 5 A INSUFICIÊNCIA DO POSITIVISMO JURÍDICO NA SOLUÇÃO DOS CASOS DIFÍCEIS (HARD CASES) 13 AS DIFERENÇAS ENTRE REGRAS E PRINCÍPIOS À LUZ DA DOGMÁTICA PÓS-POSITIVISTA 20 ATIVIDADE PROPOSTA 26 EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO 26 REFERÊNCIAS 29 CHAVES DE RESPOSTA 30 AULA 3 30 ATIVIDADE PROPOSTA 30 EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO 31 DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 3 Direitos e Garantias Fundamentais – Apostila Aula 3: A dogmática pós-positivista e a normatividade dos princípios constitucionais Introdução Nesta aula, será estudada a dogmática pós-positivista, cujo desenvolvimento é feito a partir da normatividade dos princípios jurídicos. Assim, a proposta da presente aula é investigar de que maneira deverá se comportar o juiz constitucional perante o conflito de normas de mesma dignidade constitucional (casos difíceis) de modo a salvaguardar a força normativa da Constituição. Portanto, o estudo em tela buscará verificar em que medida a superação do paradigma positivista contribuiu para a ascensão normativa dos princípios constitucionais. Objetivos 1. A compreensão das premissas teóricas que circunscrevem a superação do positivismo jurídico e viabilizam a ascensão da normatividade dos princípios sob os influxos da dogmática pós-positivista. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 4 Conteúdo Introdução A teoria da eficácia das normas constitucionais ganhou novo impulso com o advento da dogmática pós-positivista que surge na esteira da reconstrução neoconstitucionalista do direito. De fato, a nova dogmática afastou as limitações do positivismo jurídico, que, como veremos nesta aula, se mostrou incapaz de lidar com complexa colisão de enunciados normativos de mesma hierarquia. Sem nenhuma dúvida, é o pós-positivismo jurídico que incorporou novos elementos hermenêuticos à equação constitucional, dotando-a de instrumentos capazes de alavancar a efetividade dos princípios jurídicos, e, mais precisamente, dos direitos fundamentais de segunda dimensão. A elaboração científica do pós-positivismo concebe fórmulas dogmáticas avançadas capazes de realizar a Constituição, sem a necessidade de se recorrer à legislação infraconstitucional regulamentadora. Contemporaneamente, a leitura axiológico-indutivo-problemática da Constituição permite a ascensão do principialismo, entregando ao exegeta constitucional armas dogmáticas com latitude científica suficiente para realizar o sentimento constitucional de justiça a partir da superação do vetusto positivismo jurídico. É por tudo isso que é fundamental investigar as razões que determinaram o declínio do paradigma mecânico-tecnicista-axiomático-dedutivo do positivismo jurídico. Não se trata de invalidar os elementos clássicos de interpretação positivista (dogma da subsunção silogística, sistema fechado de regras jurídicas, aplicação mecânica da lei, legalismo estrito, pretensão de completude do direito, etc.), mas, apenas, demonstrar sua insuficiência na solução dos problemas constitucionais contemporâneos, que traz no seu DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 5 âmago a confluência nem sempre harmoniosa entre princípios e regras constitucionais de mesma hierarquia. São os chamados hard cases. A teoria da eficácia da Constituição de viés pós-positivista não vislumbra os direitos fundamentais como simples abstenções estatais, direitos negativos de defesa, mas, também, como ações afirmativas voltadas para a consagração da liberdade real e da igualdade substancial de toda a sociedade. Destarte, a dogmática pós-positivista não se exime de enfrentar a questão da tensão aparente de normas de mesma dignidade constitucional. Ao revés, um novo conjunto de instrumentos são hermeneuticamente concebidos com o intuito de solucionar os casos difíceis, aqui compreendidos na acepção que lhes imprime Luís Roberto Barroso,1 qual seja, “situações para as quais não há uma formulação simples e objetiva a ser colhida no ordenamento, sendo necessária a atuação subjetiva do intérprete e a realização de escolhas, com eventual emprego de discricionariedade”. Ora se a dogmática pós-positivista busca se ocupar da plena efetividade das normas constitucionais insculpidas sob a forma de princípios jurídicos, outro caminho não tem senão o de construir paradigmas hermenêuticos aplicáveis a casos difíceis, nos quais o dogma da subsunção silogística não se apresenta como solução viável. É por isso que vamos fazer uma breve análise da distinção entre easy cases (casos fáceis) e hard cases (casos difíceis), para em seguida examinar as limitações do positivismo jurídico na solução desses últimos. Breve distinção entre casos fáceis e casos difíceis A dogmática pós-positivista assenta-se na criação jurisprudencial do direito (ativismo judicial) a partir da incidência dos elementos fáticos do caso 1 BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional. Tomo III. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 22. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 6 concreto sobre o texto constitucional e não o contrário: o sentido inequívoco e único da letra da norma. Com efeito, o processo exegético de casos difíceis envolve vários sentidos diferentes para um mesmo enunciado linguístico, uma vez que, em sede de princípios constitucionais, predomina a tensão de comandos normativos abertos, polissêmicos, plurissignificativos e indeterminados, que apenas indicam um fim a alcançar, mas, não, o modo de alcançá-lo. Diferentemente dos casos fáceis – nos quais a operação exegética de subsunção do fato à norma é suficiente para a solução do caso concreto (aplicação mecânica da lei) –, a solução dos chamados casos difíceis (hard cases) demanda, como visto da definição de Luís Roberto Barroso,2 a atuação subjetiva do intérprete que se vê diante de escolhas hermenêuticas. Ou seja, os casos difíceis são aqueles em que se apresentam ao operador do direito diferentes perspectivas exegéticas, todas igual e juridicamente válidas. E assim é que, a dogmática pós-positivista – ao considerar que o papel do juiz não é meramente técnico – torna-se imprescindível para a hodierna interpretação constitucional, uma vez que esta última precisa, necessariamente, da atividade juscriativa do magistrado/exegeta constitucional na realização de escolhas exegéticas. Com efeito, a estrutura semântica aberta do texto escrito dos princípios constitucionais apenas entremostra ao juiz os limites dentro dos quais poderá atuar, o que evidentemente implica no ativismo judicial como meio de concretização/interpretação da norma constitucional. Não se trata, portanto, do mero preenchimento das lacunas e da determinação dos conceitos jurídicos indeterminados (já consagrados pela rigidez positivista da concepção 2 Na lição de Luís Roberto Barroso, “Do inglês hard case, a expressão identifica situações para as quais não há uma formulação simples e objetiva a ser colhida no ordenamento, sendo necessária a atuação subjetiva do intérprete e a realização de escolhas, com eventual emprego de discricionariedade. (Cf. Temas de direito constitucional. Tomo III, p. 22.) DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 7 tecnoformal do direito), mas, sim, de criação do direito pelo juiz constitucional no seu processo de concretização/interpretação da Constituição.Em consequência, é correto afirmar que o grande objetivo da dogmática pós- positivista é propor soluções lógicas e racionais às questões jurídicas complexas dos chamados casos difíceis (hard cases), cujo desfecho transcende a via da mera racionalidade silogística de subsunção para adentrar a via da racionalidade retórico-argumentativa, mais consentânea com a textura aberta dos princípios constitucionais. Assim, sem descurar do princípio da fundamentação das decisões judiciais – insculpido no inciso IX do art. 93 da Constituição de 1988 –, a dogmática pós- positivista tenta dar nova roupagem hermenêutica na solução dos casos difíceis, na medida em que reveste a decisão judicial criadora de direito da necessária legitimidade democrática em nome da normatividade do direito constitucional como um todo. Não se trata apenas de mais uma técnica de decisão judicial, mas, sim, de um instrumento efetivo de normatividade plena do comando escrito de dignidade constitucional. Com rigor, a fundamentação da decisão passa a compor a correção normativa do direito, ou seja, sob a ótica da dogmática pós- positivista, a efetividade ou eficácia social de uma norma constitucional também é função dos paradigmas de racionalidade discursiva, i.e., também é função da fundamentação jurídica apresentada pelo juiz ou intérprete da Constituição na entrega de sua norma-resultado. Em linhas gerais, grande parte da doutrina entende que a ponderação de valores é a técnica viável para a solução dos casos difíceis, uma vez que o formalismo positivista é incapaz de lidar com tais hard cases que projetam, de per si, a possibilidade de colisão de normas constitucionais de mesma hierarquia, como por exemplo, a liberdade de imprensa contra o direito à imagem e à honra, ou, a livre iniciativa versus o direito dos consumidores. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 8 É nesse sentido que o juízo de ponderação é o elemento central na resolução dos hard cases, nos quais nenhuma regra pré-estabelecida pelo legislador democrático rege ou orienta a decisão judicial, sendo, pois, necessária a ponderação de princípios, detentores de uma dimensão de peso, feita pelo intérprete na busca da resposta correta para o caso concreto. Portanto, argumentos de princípio devem ser sopesados com o fito de se verificar a solução do hard case. A estrutura do raciocínio ponderativo tem seu fundamento na leitura axiológica da Constituição, aqui vislumbrada como tábua de valores que concretizam o sentimento constitucional de justiça. É nesse sentido que a dogmática pós-positivista professa a aplicação do direito a partir de uma dimensão ética da Constituição e seus princípios fundantes que alicerçam o ordenamento jurídico como um todo. É a reaproximação entre a ética e o direito que a dogmática pós-positivista tenta, desesperadamente, atingir. Em síntese, o raciocínio positivista dedutivo-subsuntivo, que parte do caso geral para o particular, não dá conta da complexidade hermenêutica dos casos difíceis (não existe hierarquia entre normas constitucionais), daí a necessidade do balanceamento e sopesamento de valores ou normas. Tal raciocínio positivista ficaria restrito à aplicação das regras jurídicas, caracterizando os casos fáceis. No mundo abstrato dos princípios constitucionais, a normatividade da Constituição não tinha vida própria, eis que dependente de desdobramentos em casos fáceis regidos pelas regras. Em síntese, na maioria dos casos de aplicação de regras constitucionais (casos fáceis), o dogma da subsunção é juridicamente suficiente,3 enquanto que solução dos hard cases, nas hipóteses de conflito de interesses que devem ser reduzidos para a colisão de princípios ou regras constitucionais, perpassa, inexoravelmente, pela técnica da ponderação. Dessarte, diante da realidade fática de uma sociedade pós-social, eivada de conflitos de 3 Nesse ponto, impende alertar, entretanto, que a aplicação de regras constitucionais não representa necessariamente um caso fácil, ao revés, em determinadas situações específicas, poderá ser necessário recorrer-se ao processo de ponderação de regras na solução in concreto. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 9 interesses que surgem a partir de relações assimétricas de poder, seja entre Estados nacionais, seja entre indivíduos de uma mesma sociedade nacional, a dogmática pós-positivista desponta como instrumento viável que pode contribuir para a mitigação desses conflitos sociais, na medida em que é formulada desde uma base epistemológica voltada para a consecução do bem comum e conectada com as aspirações da sociedade aberta de intérpretes da Constituição. Em consequência, a proposta acadêmico-científica do pós-positivismo para a solução dos casos difíceis não tem a pretensão de substituir o método clássico de Savigny, mas, sim, o de complementá-lo naquelas situações em que a subsunção é inexequível. Não se proclama aqui seu fenecimento, muito ao revés, seus elementos clássicos devem ser usados com prioridade na solução dos easy cases. Da exposição apresentada extrai-se que, na redução de complexidade de casos difíceis (hard cases), não há como desconsiderar a estrutura flexível do raciocínio ponderativo e suas três dimensões tópico-problemática, retórico- argumentativa e axiológico-indutiva. Esta é a razão pela qual a ponderação de valores penetrou profundamente no universo exegético do constitucionalismo contemporâneo, notadamente no que tange à solução diferenciada de casos fáceis e difíceis. No entanto, é muito importante destacar que esta distinção entre easy cases e hard cases que é feita pelas teorias da argumentação jurídica não encontra consenso doutrinário. Assim, impende trazer à colação a ideia de Lenio Streck 4 que considera indevida tal distinção e, para defender seu posicionamento, apresenta um plexo de argumentações desfavoráveis. Nas palavras do autor: 4 STRECK, Lenio Luiz. Bases para a compreensão da hermenêutica jurídica em tempos de superação do esquema sujeito-objeto. In: Revista Sequência, n. 54, p. 29-46, jul. 2007. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 10 Em pleno Estado Democrático de Direito, a interpretação do direito não tem conseguido ultrapassar o esquema sujeito-objeto, o que se deve a não incorporação do paradigma da intersubjetividade, forjado nas teses desenvolvidas no século XX por Wittgenstein e Heidegger. Nesse sentido, as diversas teorias discursivo- procedimentais (argumentativas) do direito continuam a operar com a cisão entre easy cases e hard cases, regra e princípio e discursos de justificação e discursos de aplicação. Como consequência, não superaram o problema das múltiplas respostas, o que reafirma os alicerces do positivismo jurídico. Desta feita, é na trilha de Lenio Streck que seguem as críticas contundentes às teorias procedimentais (argumentativas), que apontam a ponderação de valores como constructo hermenêutico central da solução dos casos difíceis. Assim é que o autor, 5 em vibrante crítica ao positivismo disfarçado do paradigma argumentativo-procedural, lança sua teoria focada na resposta constitucionalmente adequada, num cenário hermenêutico destroçado pelo que denomina de “grau zero de sentido”. Vale, pois, mostra sua visão crítica sobre a cisão entre hard cases e easy cases: É nesse contexto, isto é, por acreditar na existência de hard cases e easy cases e, sobremodo, por “dispensar” a pré-compreensão antecipadora, a teoria da argumentação utiliza-se do princípio da proporcionalidade como “chave” para resolver a ponderação, a partir das quatro características de todos conhecidas. Como a proporcionalidade só “é chamada à colação” em caso de necessidade de ponderação (são os casos difíceis),é ao intérprete que caberá “hierarquizar” e “decidir” qual o princípio aplicável. Ora, se, ao fim e ao cabo, é ao intérprete que cabe hierarquizar (e escolher) o princípio aplicável, a pergunta que fica é: qual é, efetivamente, a diferença entre o “intérprete ponderador” e o “intérprete positivista-discricionarista”? 5 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica, neoconstitucionalismo e “o problema da discricionariedade dos juízes”. In: Anima Revista Eletrônica, 1. ed., v. 1. Disponível em: <http://www.opet.com.br/revista/direito/primeira_edicao/artigo_Lenio_Luiz_Streck_hermeneutica.pdf>. Acesso em: 25 jun. 2010. http://www.opet.com.br/revista/direito/primeira_edicao/artigo_Lenio_Luiz_Streck_hermeneutica.pdf DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 11 Assim sendo, ao lançar as bases da crítica à discricionariedade interpretativa das teorias procedurais da argumentação jurídica, assevera que estas se constituem em uma espécie de “reserva hermenêutica”, que somente seria chamada à colação na “insuficiência” da regra, isto é, quando se estiver em face de “casos difíceis” (hard cases). Casos fáceis (easy cases) e casos difíceis (hard cases) partem de um mesmo ponto e possuem em comum algo que lhes é condição de possibilidade: a pré-compreensão (Vorverständnis). Para o autor, esse equívoco de separar easy cases de hard cases é cometido tanto pelo positivismo de Hart como pelas teorias discursivo-argumentativos, valendo citar, por todos, Alexy (Teoria da Argumentação Jurídica) e Atienza (As razões do Direito). Ou seja, tais teorias têm em comum a ideia de que os princípios (critérios) para solução dos casos difíceis não se encontram no plano da aplicação, mas, sim, devem ser retirados de uma “história jurídica” que somente é possível no plano de discursos a priori (no fundo, discursos de fundamentação prévios). Sem embargo da robustez científica do pensamento de Lenio Streck, o que importa aqui é distinguir bem os diferentes critérios de solução dos casos difíceis e fáceis. Ou seja, ainda que se concorde com Lenio Streck no que diz à referida separação, o fato é que, em linhas gerais, a dogmática pós- positivista propõe a ponderação de valores como solução dos casos difíceis, que por sua vez é governada pelo princípio da proporcionalidade. Para o pós- positivismo, a ponderação consiste em verificar a dimensão de peso de cada princípio em colisão à luz dos fatos do caso concreto e dar a eles um valor relativo de modo a identificar aquele que deve prevalecer, sem, entretanto, afetar sua validade jurídica. O pós-positivismo parte da ideia-força de que os princípios constitucionais não se prestam ao dogma da subsunção e ainda que a discricionariedade interpretativa e a realização de escolhas pelo intérprete possam ocorrer em detrimento da certeza jurídica, a normatividade da Constituição ocorrerá, sem DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 12 o reenvio da questão constitucional ao legislador democrático. É claro que a nova teoria da argumentação jurídica – mormente a de Alexy – coloca o argumento de princípio no cerne da interpretação constitucional, o que equivale a dizer que os princípios constitucionais dão unidade ao sistema constitucional como um todo, integrando suas diferentes partes (orgânica e dogmática), mitigando, dessarte, tensões normativas aparentes. Portanto, neste ponto, há que se dar razão a Luis Roberto Barroso, 6 quando destaca que as “regras contêm relato mais objetivo, com incidência restrita às situações específicas às quais se dirigem [easy cases]. Já os princípios têm maior teor de abstração e uma finalidade mais destacada no sistema” [gestando os casos difíceis]. Enfim, das diversas maneiras de se analisar a colisão de princípios constitucionais, dada a riqueza científica da dogmática pós-positivista, interessa aqui salientar um importante aspecto que surge e que se reflete nas modernas teorias da eficácia das normas constitucionais: os limites da criação jurisprudencial do direito. Tendo como ponto de partida para a solução dos casos difíceis a ponderação de valores, a dogmática pós-positivista rompe com o silogismo jurídico, feito à luz do fetiche da lei de aplicação mecânica. No entanto, não se pode olvidar de Lenio Streck 7 e suas críticas ao “uso discricionário da ponderação” e à “ponderação discricionária”. A inclinação de agir conforme sua pré- compreensão deve ser posta de lado por parte do juiz constitucional, arrostando o paradigma do solipsismo judicial que redunda inexoravelmente no mero decisionismo judicial. É por tudo isso que é importante continuar 6 BARROSO, Luís Roberto. A nova interpretação constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 30. 7 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica, neoconstitucionalismo e “o problema da discricionariedade dos juízes”. In: Anima Revista Eletrônica, 1. ed., v. 1. Disponível em: <http://www.opet.com.br/revista/direito/primeira_edicao/artigo_Lenio_Luiz_Streck_hermeneutica.pdf>. Acesso em: 25 jun. 2010. http://www.opet.com.br/revista/direito/primeira_edicao/artigo_Lenio_Luiz_Streck_hermeneutica.pdf DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 13 aprofundando o exame das limitações do paradigma positivista na solução da tensão normativa de princípios. A insuficiência do positivismo jurídico na solução dos casos difíceis (hard cases) Já com o devido alerta sobre a distinção de casos fáceis e difíceis, o objetivo deste segmento temático é examinar o que está morto no velho modelo positivista de raciocínio inflexível atrelado à norma posta pelo legislador, incompatível com os problemas constitucionais característicos da era pós- moderna. A ideia é mostrar que existem muitas situações nas quais a raiz da decisão judicial se encontra para além da letra da lei (extra legem). Ou seja, a convicção jurídica do magistrado não será extraída dedutivamente do enunciado normativo, mas, a partir de uma operação exegética muito mais complexa e que é fruto de um ato de participação criadora do juiz, porém dentro de limites científico-hermenêuticos. Não se trata, pois, de um ato mecânico de subsunção silogística, mas, sim, de um ato reflexivo-axiológico voltado para o sentimento constitucional de justiça. Nesse mister, a nova interpretação constitucional busca encontrar alternativas dogmáticas à subsunção silogística, quando houver a incidência de diferentes premissas maiores (enunciados normativos) sobre um mesmo caso decidendo. Isto significa dizer que os elementos fáticos de um único caso concreto incidem sobre diferentes normas jurídicas de mesma hierarquia, igualmente válidas e vigentes, o que evidentemente gera a perspectiva de decisões judiciais diametralmente opostas e axiologicamente contraditórias. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 14 Nesse contexto, como já visto no segmento anterior, o novo paradigma neoconstitucional de cunho pós-positivista assume importância capital na solução de casos concretos que suscitam a colisão de normas constitucionais de mesma hierarquia, uma vez que calcado nas teorias discursivas do direito. Sem nenhuma dúvida, o positivismo jurídico não tem elementos para produzir uma solução constitucionalmente adequada, dado que sua lógica exegética tentará encontrar desesperadamente a única resposta correta para o caso, isto é, a única premissa maior (enunciado normativo) válida in abstracto para o problema em tela. Ora, isso é praticamente impossível na maioria dos casos que envolvem a colisão de normas constitucionais, notadamente aquelas garantidoras de direitos fundamentais. Irremediavelmente, hoje, o paradigma pós-positivista é o único capaz de lidar com esta problemática que envolve normas jurídicasque são, ao mesmo tempo, axiologicamente conflitantes, porém detentoras de mesma dignidade constitucional. Em consequência, fica cada vez mais claro que o positivismo jurídico está hermeneuticamente morto neste novo campo da interpretação constitucional. Como explicitado na disciplina interpretação constitucional, nesta nova era de predominância cêntrica dos princípios constitucionais, o quadro de elementos clássicos da hermenêutica de Savigny perde latitude científica, transformando-se mesmo, na visão de determinados juristas, em verdadeiro “morto sem sepultura”. Esta é a intelecção do ex-Ministro Eros Roberto Grau,8 cujas palavras projetam o declínio da metódica de Savigny: Uma das conferências que assisti em um ainda recente congresso versava sobre a distinção entre os métodos de interpretação, gramatical, teleológico etc. De repente percebi que quem palestrava 8 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. Rio de janeiro: Malheiros, 2004. Prefácio de Ministro Eros Grau. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 15 tinha mais de duzentos anos, um autêntico morto sem sepultura, fazendo ressoar o Bolero, de Ravel... Com efeito, nesta passagem de Eros Grau, fica claro a obsolescência do positivismo jurídico na solução dos complexos problemas normativos do direito hodierno. É induvidoso que a teoria jurídica positivista, inspirada na escola da exegese e na hermenêutica clássica de Savigny, entra em declínio diante de um constitucionalismo aberto a valores éticos e pautado na dignidade da pessoa humana. Realmente, não se pode negar que o positivismo jurídico torna-se insuficiente diante daquilo que Miguel Carbonell 9 denominou de Estado (neo)constitucional. Nas palavras do autor “as modificações operadas sobre o modelo ou paradigma do Estado constitucional são de tal ordem que já se pode falar de um Estado (neo)constitucional”. Com isso, destacamos que a concepção tecno-formal do positivismo jurídico, desprovida de qualquer perspectiva de abertura axiológica, não consegue lidar com as diferentes possibilidades interpretativas dos princípios constitucionais, comandos normativos abertos e de baixa densidade normativa. Nesse sentido, a grande virada dogmática do Estado neoconstitucional se perfaz a partir da quebra do mito hermenêutico de que o texto constitucional traz no seu bojo sentido jurídico inequívoco, único e imutável. Ora, as bases teóricas do neoconstitucionalismo são edificadas exatamente no caminho contrário a este, ou seja, o texto constitucional é, induvidosamente, a trilha que orienta o intérprete, mas nunca o trilho que aprisiona a nova interpretação constitucional. Não se trata, pois, de desvelar o conteúdo 9 CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003. p. 9. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 16 jurídico preexistente da norma posta, mas, sim, captar o sentimento constitucional de justiça no caso concreto. Eis que a nova interpretação constitucional assenta-se na criação jurisprudencial do direito a partir da incidência dos elementos fáticos do caso concreto sobre o texto constitucional e não o contrário: o sentido inequívoco e único da letra da norma. Destarte, é possível que o processo exegético indique vários sentidos diferentes para um mesmo texto da norma (enunciado linguístico). Tal particularidade é ainda mais verdadeira em sede de princípios constitucionais, comandos normativos axiologicamente abertos e com um pequeno núcleo essencial garantidor de aplicação direta por parte do intérprete da Constituição. O texto escrito do princípio não é dotado da premissa maior e da premissa menor, como é o caso da regra jurídica. Ao contrário, o texto do princípio indica apenas o valor a ser constitucionalmente protegido. Dessarte, no dizer de Luís Roberto Barroso,10 os princípios contêm relatos com maior grau de abstração, não especificam a conduta a ser seguida e se aplicam a um conjunto amplo, por vezes, indeterminado, de situações. É por isso que a metódica positivista apresenta-se inadequada para a solução dos chamados casos difíceis (hard cases), em que se apresentam ao operador do direito diferentes perspectivas exegéticas, todas igual e juridicamente válidas. E assim é que a dogmática positivista – ao considerar que o papel do juiz é meramente técnico – torna-se enfraquecida, dado que a nova interpretação constitucional exige “atos juscriativos” do magistrado na captação do sentido e do alcance do texto da norma. Com efeito, a estrutura semântica aberta do texto normativo dos princípios constitucionais apenas entremostra ao 10 BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional. Tomo III. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 15. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 17 intérprete os limites dentro dos quais poderá atuar, o que evidentemente implica na sua efetiva participação na compreensão/interpretação/aplicação da norma. Aliás, esta é uma das razões pelas quais o positivismo jurídico entra em colapso: seu legalismo normativista que não admite a criação do direito para além do preenchimento das lacunas e da determinação dos conceitos jurídicos indeterminados. E mais: vários outros fatores importantes fragilizam a concepção formalista do positivismo jurídico, entre eles, podemos citar: 1. imprecisão linguística do texto constitucional; 2. possibilidade de colisão de normas constitucionais de mesma hierarquia; 3. existência de casos difíceis sem a correspondente regulamentação jurídica, ou seja, hipóteses que não cabem sob nenhuma norma jurídica existente;11 4. ocorrência de casos especialíssimos que demandam uma decisão judicial contrária ao texto de uma determinada lei em nome de uma prestação jurisdicional justa;12 5. caráter principiológico da Constituição, isto é, nossa Carta Magna tem um grande número de princípios jurídicos e um pequeno número de regras jurídicas;13 6. abertura do sistema brasileiro de direitos fundamentais nos termos do artigo 5º § 2º da Constituição da República de 1988.14 11 A existência de hipóteses ainda não reguladas in abstracto pelo legislador democrático caracteriza a chamada lacuna axiológica de Carlos Santiago Niño. (Cf. Interpretação constitucional no pós- positivismo. Teoria e casos práticos, p. 349). 12 É a chamada “interpretação contra legem” na qual o exegeta se vê obrigado a aplicar uma alternativa hermenêutica que entra em colisão com o próprio texto da lei com o desiderato ético de realizar o sentimento constitucional de justiça. 13 Tal fato, evidentemente, diminui a segurança jurídica e dificulta a aplicação axiomático-subsuntivo- silogística no âmbito do direito constitucional brasileiro. 14 A nosso talante, acreditamos que o artigo 5º § 2º é o oxigênio dogmático-axiológico que mantém viva nossa Carta Magna; que a faz respirar valores éticos, na medida em que os direitos fundamentais do DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 18 De tudo se vê que o positivismo jurídico está morto no sentido de afirmar a concepção tecnoformal do direito, na qual o juiz constitucional atua como “a boca da lei”; um juiz guardião da verdade irrefutável posta pelo legislador democrático. Com rigor, tal concepção vislumbra o direito como um fenômeno meramente jurídico, sem penetração de outros fluxos epistemológicos. Trata-se de um direito cientificamente puro, fechado em si próprio, autopoiético, separado da ética e da filosofia. Nesse sentido, Robert Alexy,15 por exemplo, aponta quatro grandes motivos que enfraquecem tal concepção e que a figura abaixo busca apontar de modo destacado.cidadão brasileiro não se limitam àqueles fixados pelo legislador democrático, mas, incluem muitos outros que emanam de um regime democrático ou de um governo republicano, dos princípios constitucionais, dentre eles o novo eixo da democracia contemporânea: a dignidade da pessoa humana e, finalmente, dos tratados internacionais. Temos, por via de consequência, um rol jusfundamental com muitos direitos fundamentais não escritos, o que certamente não se coaduna com a aplicação mecânica da lei do positivismo jurídico. (Cf. GÓES, Guilherme Sandoval. A reconstrução neoconstitucionalista do direito.) 15 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. Tradução Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy Livraria Editora e Distribuidora, 2001. p. 17. OBSTÁCULOS AO POSITIVISMO JURÍDICO APONTADOS POR ROBERT ALEXY • a imprecisão da linguagem do direito, • a possibilidade de conflitos entre as normas, • o fato de que é possível haver casos que requeiram uma regulamentação jurídica, que não cabem sob nenhuma norma válida existente, • a possibilidade, em casos especiais, de uma decisão que contraria textualmente um estatuto. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 19 Note-se que a dogmática pós-positivista caminha exatamente nesta direção da crítica de Alexy, na qual se verifica as limitações do positivismo jurídico na solução de problemas constitucionais da contemporaneidade pós-moderna. De fato, o pós-positivismo inverte o sinal da interpretação positivista clássica, deslocando-o para a leitura moral da Constituição, na qual o direito produz justiça social com dignidade da pessoa humana. Já não mais atende ao dador da norma-decisão (juiz ou intérprete) a mera racionalidade de subsunção amparada pelo pensamento sistemático-silogístico. Ao revés, a crítica de Alexy entremostra diferentes obstáculos hermenêuticos que se antepõem ao paradigma positivista e reforça cada vez mais a necessidade de novas fórmulas teóricas, aptas a superar a letra da lei, mas que, no entanto, permaneçam subordinadas à ordem jurídica de valores constitucionalmente protegidos. Esta é a razão pela qual investigamos intensamente as bases teóricas que informam a correção normativa do direito a partir de paradigmas de racionalidade discursiva que superam a letra da lei (extra legem), mas permanecem limitados pela ordem jurídica como um todo (intra jus). Tais paradigmas superam o discurso axiomático-dedutivo do direito e a mera aplicação mecânica da lei. Enfim, o estimado aluno haverá de concordar que existem muitos fatores que limitam o paradigma positivista e de sua concepção tecnoformal do direito, que só leva em consideração a letra da lei. Em consequência, é forçoso reconhecer a insuficiência do positivismo jurídico no que tange aos casos difíceis, que não encontram uma formulação direta e abstrata no corpo de normas do Estado, sendo necessária a intervenção científico-hermenêutica do intérprete na escolha da decisão final. Em outras palavras, a lógica meramente formal do positivismo jurídico é ultrapassada pelo paradigma pós-positivista reaproximador da ética e que DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 20 gesta a nova interpretação constitucional principialista superadora da lei. Não basta apenas considerar a dicção literal da norma positivada sob a forma de regra jurídica, há que se perquirir o valor embutido no princípio constitucional e, mais do que isso, é preciso atribuir-lhe normatividade autônoma. Com isso, o modelo interpretativo pós-positivista ganha densidade científica para solucionar os casos difíceis, que projetam a colisão de normas constitucionais de mesma hierarquia. As diferenças entre regras e princípios à luz da dogmática pós- positivista O último ponto da presente aula é examinar como a moderna dogmática pós- positivista vislumbra a distinção entre as normas jurídicas, ou seja, entre as regras e os princípios jurídicos. Tal distinção não é meramente quantitativa, mas, também, qualitativa. Para tanto, é preciso insistir na intelecção de que a função do intérprete não é apenas descrever significados da letra da lei posta pelo poder legislativo, mas, sim, captar o sentido e o alcance do enunciado normativo mediante a construção de conexões semânticas e fáticas diante do caso concreto. Como veremos, esse tipo de visão é imprescindível para a plena compreensão da distinção entre regras e princípios. Como se sabe, hoje em dia, sob a égide da dogmática pós-positivista, tanto as regras como os princípios são considerados normas jurídicas, ou seja, as duas modalidades de norma jurídica têm capacidade de gerar um direito subjetivo diretamente sindicável perante o poder judiciário, sem depender de legislação superveniente. Diferente era a situação no positivismo jurídico, onde os princípios constitucionais não eram percebidos como norma jurídica, mas, sim, como meros comandos de indicação moral, que fixavam valores axiológicos a serem DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 21 perseguidos, mas que não podiam garantir uma posição jusfundamental individual do cidadão comum. Havia a necessidade que tal princípio fosse desdobrado em diferentes regras jurídicas que dariam então efetividade ao direito subjetivo individual positivado na forma principiológica. Com efeito, como já amplamente visto, o universo dogmático do juspositivismo ficava restrito ao sistema fechado de regras jurídicas, no qual juízes e tribunais aplicavam o direito a partir da metódica clássica, ou seja, partindo da letra fria da lei (premissa maior), o poder judiciário fazia a subsunção do fato à norma, verificando se o caso concreto (premissa menor) se subsume na literalidade do enunciado normativo entregue pelo legislador. Nesse universo dogmático, não há espaço para os princípios, uma vez que não gozam do status de norma jurídica. No dizer de Barroso:16 “Na trajetória que os conduziu ao centro do sistema, os princípios tiveram de conquistar o status de norma jurídica, superando a crença de que teriam uma dimensão puramente axiológica, ética, sem eficácia jurídica ou aplicabilidade direta e imediata”. E, com precisão, destaca o autor algumas características essenciais do positivismo jurídico, que reforçam essa ideia de que princípios não são normas jurídicas. 16 BARROSO, Luís Roberto. A nova interpretação constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 30. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 22 Características do Positivismo Jurídico Na visão de Luis Roberto Barroso: (i) a aproximação quase plena entre Direito e norma; (ii) a afirmação da estatalidade do Direito: a ordem jurídica é una e emana do Estado; (iii) a completude do ordenamento jurídico, que contém conceitos e instrumentos suficientes e adequados para solução de qualquer caso, inexistindo lacunas; ( discurso axiomático do direito) (iv) o formalismo: a validade da norma decorre do procedimento seguido para a sua criação, independendo do conteúdo. Também aqui se insere o dogma da subsunção, herdado do formalismo alemão. (pensamento silogístico do direito). (Cf. Temas de direito constitucional. Tomo II, p. 25-26.) É bem de ver, pois, que o positivismo jurídico tornou-se a filosofia dos juristas da escola da exegese, cujo desígnio hermenêutico-metodológico buscava a cientificidade pura do direito, em nome da certeza jurídica. Sem nenhuma abertura axiológica, a dogmática positivista empenhava-se na construção de paradigmas interpretativos capazes de criar uma blindagem epistemológica contra elementos metajurídicos invasores da pureza científica do direito, daí a ideia-força de sistema fechado de regras jurídicas. Vivia-se aquilo que poderíamos denominar de hegemonia exegética da norma legislada.Em um mundo onde o juiz sofria a tendência de se achar o guardião da certeza jurídica, não havia espaço para a eficácia jurídica e social da normatividade dos princípios constitucionais, em especial daqueles dispositivos que mais de perto dizem com o cerne da justiça social, da igualdade material e da proteção de hipossuficientes. Assim sendo, o decisivo agora, sob os influxos da dogmática pós-positivista, é saber que a qualificação normativa de um determinado direito fundamental como princípio jurídico ou como regra jurídica induz determinado tipo de DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 23 interpretação, na medida em que consubstanciam estruturas diversas que influenciam sua efetividade ou eficácia social. Em linhas gerais, podemos afirmar que as regras são normas jurídicas com alta densidade normativa, uma vez que seu texto já contém a hipótese de incidência e a consequência jurídica a ser observada. Já os princípios são normas jurídicas com baixa densidade normativa, porque seu texto apenas indica o fim ou o valor a ser perseguido, sem nada relatar sobre a conduta para se alcançar tal fim ou valor. Da mesma forma, como já amplamente visto, as regras são aplicadas mediante subsunção silogística e através do pensamento axiomático-dedutivo, enquanto que os princípios são aplicados mediante ponderação de valores e através do pensamento axiológico-indutivo. As regras têm maior potencial de assegurar a segurança jurídica, tendo em vista seu grande núcleo essencial e uma limitadíssima reserva de ponderação. Diferentemente, os princípios são normas com grande potencial para distribuir a justiça social, porém apresentam certa incerteza jurídica, pois têm um pequeno núcleo essencial e uma grande área de reserva de ponderação. Finalmente, pode-se, ainda, destacar que as regras têm alto teor normativo- jurídico, enquanto os princípios têm alto teor axiológico. É por tudo isso que é importante examinar as diferenças entre regras e princípios, que vários autores, nacionais e estrangeiros, já teorizaram. Tal estudo é relevante na compreensão exata da mudança de paradigma, razão pela qual vamos estabelecer agora um quadro panorâmico amplo que sintetiza tal distinção entre princípios e regras. REGRAS PRINCÍPIOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 24 Humberto Ávila Adoção da conduta descrita (dever imediato) e manutenção de fidelidade aos princípios superiores que desdobra (dever mediato). Promoção de um estado ideal de coisas (dever imediato) e adoção da conduta necessária (dever mediato). Josef Esser (Critério da determinabilidade dos casos de aplicação) Normas portadoras de baixo nível de generalidade, pois o relato da regra é mais específico com descrição da situação que pretende regular. O texto da norma é mais fechado. Têm maior grau de generalidade porque possuem textura aberta com maior grau de abstração, o que possibilita sua incidência sobre uma pluralidade de situações. Estabelecem, pois, fundamentos normativos para a tomada de decisão. Robert Alexy (A diferença não é apenas de grau – maior ou menor nível de generalidade – mas sim qualitativa). As regras veiculam mandados de definição. Isto significa dizer que as regras têm natureza biunívoca, ou seja, só admitem duas espécies de situação: ou são válidas e se aplicam ou não se aplicam por inválidas. Uma regra vale ou não vale juridicamente. Em regra, não são admitidas gradações de peso no que Princípios são comandos de otimização, isto é, deveres de otimização que podem ser cumpridos em diversos graus, de acordo com as possibilidades normativas e fáticas do caso concreto. Têm apenas dimensão de peso, logo, o conflito de princípios se resolve mediante a lei de DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 25 tange às normas insculpidas sob a forma de regra. A exceção da regra ou é outra regra, que invalida a primeira, ou é a sua violação. colisão, ou seja, ponderação que vai estabelecer no caso concreto uma relação de preferência condicionada. O critério de Ronald Dworkin (também qualitativa) As regras são aplicáveis à maneira de tudo ou nada (all or nothing). Trata-se de uma aplicação lógico- disjuntiva, isto é, subsuntiva: se ocorrerem os fatos previstos na hipótese de incidência então que se aplique sua consequência jurídica. Caso não se aplique, a regra deve ser considerada inválida. Em outras palavras, se ocorre a condição da norma, então ou a norma é válida — hipótese na qual deverá ser aceita sua consequência normativa — ou inválida, hipótese que não será cumprida. Diversamente das regras, os princípios continuam válidos apesar de não terem sido aplicados em um determinado caso concreto por motivo de ponderação com outros princípios ou valores de mesma hierarquia jurídica. Isto significa dizer que pelo postulado da unidade da Constituição, os princípios não se anulam entre si, como as regras, mas, sim, são ponderados em caso de conflito normativo. A tensão dialética entre os princípios é aparente, pois serão os elementos fáticos do caso concreto que indicarão qual dos princípios em colisão DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 26 deverá predominar. Atividade proposta Aponte e comente as principais causas, que na visão de Robert Alexy, levaram ao colapso do positivismo jurídico, enquanto concepção tecno-formal do direito. Exercícios de fixação Questão 1 Analise as assertivas abaixo sobre o neoconstitucionalismo, a dogmática pós- positivista e a normatividade dos princípios, e responda a seguir: I. Sob a égide da dogmática positivista, tanto as regras como os princípios são considerados normas jurídicas, ou seja, as duas modalidades de norma jurídica têm capacidade de gerar um direito subjetivo diretamente sindicável perante o poder judiciário, sem depender de legislação superveniente. II. Princípios são comandos de otimização, isto é, deveres de otimização que podem ser cumpridos em diversos graus, de acordo com as possibilidades normativas e fáticas do caso concreto. III. As regras têm maior potencial de assegurar a segurança jurídica, tendo em vista seu grande núcleo essencial e uma limitadíssima reserva de ponderação. IV. O neoconstitucionalismo é uma visão superada do fenômeno jurídico- constitucional. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 27 Somente é CORRETO o que se afirma em: a) ( ) I, III e V; b) ( ) II, III; c) ( ) I, II e III; d) ( ) III e V; e) ( ) I, III e IV. Questão 2 Sobre os princípios e regras, assinale a alternativa INCORRETA: a) ( ) Os princípios possuem uma dimensão de peso ou de importância, que não está presente nas regras. b) ( ) As regras são aplicadas de forma disjuntiva (tudo ou nada), a partir da aferição de sua validade. c) ( ) Os princípios servem de fundamento às outras normas, seja pelo fato de aquelas consistirem em especificações dos princípios, seja porque o princípio constitui um fim para cuja consecução as outras normas estabelecem meios. d) ( ) As regras apresentam elevado grau de abstração e baixa densidade normativa enquanto os princípios têm reduzida abstração e alta densidade normativa. e) ( ) Os princípios são comandos de otimização aplicados mediante uma dimensão de peso aferida no caso concreto. Questão 3 DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 28 Os princípios, possuidores que são de natureza normativo-jurídica, possuem atualmente grande relevo para o Direito em um quadro jurídico-filosófico que se tem denominado como: a) ( ) Pós-positivismo jurídico. b) ( )Positivismo-normativista. c) ( ) Realismo jurídico. d) ( ) Jusnaturalismo. e) ( ) Legalismo estrito kelseniano. Questão 4 Podemos apontar pelo menos quatro grandes motivos denegadores da concepção tecnoformal do direito, EXCETO: a) ( ) A precisão da linguagem do direito. b) ( ) A possibilidade de conflitos entre as normas. c) ( ) O fato de que é possível haver casos que requeiram uma regulamentação jurídica, que não cabem sob nenhuma norma válida existente. d) ( ) A possibilidade, em casos especiais, de uma decisão que contraria textualmente um estatuto. e) ( ) A aplicação de casos que, submetidos à subsunção, podem gerar uma solução injusta. Questão 5 São características da reconstrução neoconstitucionalista do direito e da dogmática pós-positivista, EXCETO: DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 29 a) ( ) Legalismo normativista estrito. b) ( ) Desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sob a égide da dignidade da pessoa humana. c) ( ) Papel ativo do poder judiciário na garantia dos direitos fundamentais. d) ( ) Valorização da força normativa dos princípios. e) ( ) O direito como um sistema aberto de regras e princípios. Referências ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy Livraria Editora e Distribuidora, 2001. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. Rio de janeiro: Malheiros, 2004. Prefácio feito pelo Ministro Eros Grau. BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional. Tomo III. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. ______. A nova interpretação constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003. ______. A nova interpretação constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. STRECK, Lenio Luiz. Bases para a compreensão da hermenêutica jurídica em tempos de superação do esquema sujeito-objeto. In: Revista Sequência, n. 54, p. 29-46, jul. 2007. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 30 ______. Hermenêutica, neoconstitucionalismo e “o problema da discricionariedade dos juízes”. In: Anima Revista Eletrônica, 1. ed., v. 1. Disponível em: <http://www.opet.com.br/revista/direito/primeira_edicao/artigo_Lenio_Luiz_S treck_hermeneutica.pdf acesso dia 25/06/2010>. Chaves de Resposta Aula 3 Atividade proposta O aluno deve destacar as razões que motivaram o colapso do positivismo jurídico e sua concepção tecnoformal do direito, na qual o juiz constitucional aplica mecanicamente a lei, sem nenhuma consideração ética e sem levar em consideração nenhum outro fluxo epistemológico que não seja a teoria pura do direito. Atuar como “a boca da lei” é o papel do juiz positivista dentro de um sistema fechado de regras jurídicas. É nesse sentido que Robert Alexy aponta, pelo menos, quatro grandes motivos denegadores da concepção tecno-formal do direito, a saber: (1) a imprecisão da linguagem do direito, (2) a possibilidade de conflitos entre as normas, (3) o fato de que é possível haver casos que http://www.opet.com.br/revista/direito/primeira_edicao/artigo_Lenio_Luiz_Streck_hermeneutica.pdf%20acesso%20dia%2025/06/2010 http://www.opet.com.br/revista/direito/primeira_edicao/artigo_Lenio_Luiz_Streck_hermeneutica.pdf%20acesso%20dia%2025/06/2010 DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 31 requeiram uma regulamentação jurídica, que não cabem sob nenhuma norma válida existente, bem como, (4) a possibilidade, em casos especiais, de uma decisão que contraria textualmente um estatuto. Enfim, o aluno deve compreender o papel da reconstrução neoconstitucionalista do direito que caminha exatamente nesta mesma direção da crítica feita por Robert Alexy. Exercícios de fixação Questão 1: B Justificativa: As alternativas I e IV estão erradas, pois sob a égide da dogmática positivista, somente as regras são consideradas normas jurídicas, ou seja, os princípios são meros comandos axiológicos que apenas vinculam o legislador democrático. De outra banda o neoconstitucionalismo é uma visão avançada do fenômeno jurídico-constitucional, cujo desiderato é a reaproximação do direito e da ética. Questão 2: D Justificativa: Somente a alternativa D está errada, pois as regras apresentam baixo grau de abstração e alta densidade normativa enquanto os princípios têm alta abstração e baixa densidade normativa. Questão 3: A Justificativa: Somente a alternativa A está correta, pois é a dogmática pós- positivista que traz no seu âmago a ascensão exegética dos princípios constitucionais, afastando o paradigma positivista calcado no sistema axiomático-fechado de regras jurídicas. Questão 4: A DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 3 32 Justificativa: Somente a alternativa A (precisão da linguagem do direito) não foi usada por Alexy para apontar as fragilidades da concepção tecnoformal do direito. Questão 5: A Justificativa: Somente a alternativa A (legalismo normativista estrito) não é característica reconstrução neoconstitucionalista do direito e da dogmática pós-positivista.
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