Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Júlia Figueirêdo – PERDA DE SANGUE EPISTAXE: A epistaxe pode ser definida como o sangramento originado na mucosa nasal, na maioria das vezes autolimitado. A hemorragia nasal, por sua vez, corresponde a qualquer exteriorização de sangue pelas fossas nasais, independentemente de sua origem. Esse fenômeno pode estar associado a diversos mecanismos fisiológicos, como alterações na hemostasia nasal, diminuição na integridade vascular ou, até mesmo por distúrbios de coagulação. Quanto à epidemiologia desse quadro, é nítida a ocorrência de um pico bimodal na prevalência da epistaxe, que afeta principalmente crianças < 10 anos e idosos. Apesar da grande incidência (60% da população), a mortalidade por epistaxe maciça é extremamente incomum. Na avaliação da epistaxe, ressalta-se ainda as classificações quanto à localização, podendo ser: Anterior: corresponde à forma mais frequente de sangramento nasal, normalmente em crianças e jovens, alcançando intensidade leve a moderada; O sítio mais acometido é a região anterior do septo nasal. Correlações anatômicas da epistaxe anterior Posterior: ainda que sejam menos comuns, esses eventos são mais graves, predominando na população > 50 anos (associa-se ao desenvolvimento de HAS e arteriosclerose); Há maior risco de recidivas e de complicações nessa manifestação. Localização típica da epistaxe posterior Unilateral: afeta apenas uma narina; Bilateral: implica na presença de sangramento originado em ambas as fossas nasais. ASPECTOS ANATÔMICOS NA EPISTAXE: O suprimento sanguíneo das fossas nasais tem origem nas artérias Carótida externa e interna, que se ramificam intensamente para compor diversos outros vasos. Assim, destacam-se: Artéria Carótida interna: após formar a artéria oftálmica, dá origem às artérias Etmoidal anterior e posterior (suprem a mucosa superior medial e lateral); Artéria Carótida externa: dá origem a duas grandes artérias, cujas ramificações atingem a cavidade nasal: A epistaxe possui um importante caráter sazonal, havendo maior número de casos em períodos frios e secos, que ressecam a mucosa nasal. Júlia Figueirêdo – PERDA DE SANGUE o Artéria Maxilar: forma a artéria Esfenopalatina (irriga cornetos, meatos e o septo nasal posteroinferior) e a artéria Palatina maior; o Artéria Facial: se ramifica na artéria Labial superior (direcionada para o septo mucoso anterior e à mucosa lateral superior). Principais vasos sanguíneos que irrigam o septo nasal De acordo com essa rica irrigação, ainda é possível identificar duas áreas com anastomoses múltiplas, tornando essas regiões mais susceptíveis a sangramentos. Elas são: Área de Little (plexo de Kisselbach): situada na porção septal mais anterior, contempla “fusões” entre as artérias emitidas por ambas as Carótidas. Contempla ramos da a. Etmoidal anterior, da a. Esfenopalatina, da a. Labial superior e da a. Palatina maior. Área de Woodruff: se situa após a concha nasal média, com segmentos da porção maxilar. É a fonte dos sangramentos posteriores. Abrange ramos da a. Faríngea Posterior e da a. Esfenopalatina. Paredes lateral (A) e septal (B) do nariz, com destaque para a área de Woodruff e para o plexo de Kisselbach, respectivamente PRINCIPAIS ETIOLOGIAS: A epistaxe pode ser classificada em primária, quando surge de modo idiopático (sem fatores predisponentes), ou secundária, sendo possível definir uma etiologia de base para o sangramento. Esses agentes podem ainda ser divididos em locais, alterando a mucosa nasal de forma direta, ou sistêmicos, que interferem sobre o sistema vascular do nariz (direta ou indiretamente). CAUSAS LOCAIS: Dentre as etiologias locais para a epistaxe, a mais comum (17% dos casos) é o trauma, principalmente quando associado ao nose picking (hábito de “cutucar” a mucosa com os dedos), criando escoriações próximas ao plexo de Kisselbach. Quando frequente, essa agressão pode levar à exposição ou perfuração da cartilagem septal. A epistaxe de origem iatrogênica também é bastante observada, normalmente Causadores sistêmicos de epistaxe também provocam danos em outros tecidos, tornando seu controle mais complexo. Júlia Figueirêdo – PERDA DE SANGUE relacionada à colocação de sondas nasogástrica ou nasoenterais. Lesões que acometem estruturas adjacentes ao nariz (ex.: fratura de face) também podem provocar sangramentos, normalmente decorrentes da ruptura endotelial ou da formação de pseudoaneurismas. A inserção de corpos estranhos nas fossas nasais, comumente observada em crianças, também pode implicar em epistaxe, podendo ser acompanhada por secreção purulenta nos episódios de duração > 24 horas. Para evitar o agravamento do quadro, a remoção deve ser realizada por um médico. Corpo estranho na cavidade nasal esquerda. O rompimento de vasos pode ocorrer tanto na colocação quanto nas tentativas de remoção Alterações anatômicas, como perfuração do septo nasal, promovem sangramentos em decorrência da maior exposição da mucosa a agentes irritantes. Como nessa situação a perda de sangue se projeta pelas duas narinas, é mais difícil avaliar corretamente o foco do sangramento. O contato prolongado com irritantes químicos (ex.: solventes) ou o uso de descongestionantes nasais e de cocaína também pode causar sangramentos variados Septo nasal perfurado, possivelmente devido ao abuso de cocaína A inflamação da mucosa nasal, seja de forma aguda (infecção viral) ou crônica (quadros alérgicos), favorece a invasão patogênica e torna esse tecido mais friável, propenso a escoriações e sangramentos recorrentes. Destaca-se que o uso contínuo de corticosteroides nasais também é responsável por múltiplos episódios de epistaxe. Por fim, tumores, sejam eles neoplásicos (raros) ou benignos, também podem induzir dano vascular, provocando a epistaxe. Destaca-se, nesse sentido, o angiofibroma nasofaríngeo juvenil, formação benigna de aparecimento quase universal em meninos de 7 a 21 anos. Esse tumor apresenta grande capacidade de crescimento, podendo invadir estruturas próximas e comprimir vasos sanguíneos. A apresentação clínica típica conta com epistaxe recorrente, massa nasofaríngea e obstrução nasal. Sinais de alerta para neoplasias nasais: Obstrução, rinorreia ou edema (principalmente unilateral) Oriundo do sudoeste asiático Otalgia intensa Periodontite avançada Júlia Figueirêdo – PERDA DE SANGUE CAUSAS SISTÊMICAS: A epistaxe é a principal manifestação clínica em portadores da doença de Osler-Weber- Rendu (ou telengiectasia hemorrágica hereditária - THH), uma disfunção autossômica dominante marcada por malformações vasculares difusas. Telangiectasias (vasos dilatados) nos lábios e língua de um portador de THH Nesses indivíduos, a intensidade da epistaxe piora com a idade (e naqueles submetidos a tratamento), com 90% apresentando episódios recorrentes já aos 12 anos. Padrões da epistaxe na THH: telangiectasias puntiformes isoladas (1); difusas e comunicantes (2); e isoladas com grandes dimensões (3) O diagnóstico desse distúrbio deve partir de uma forte suspeita clínica, associada a histórico familiar compatível. Utilizam-se como critérios: Epistaxe: ocorrência espontânea com alta recorrência; Telangiectasias: localizadas principalmente nos dedos, lábios, cavidade oral e no nariz; Lesões viscerais: presença de malformações arteriovenosas em diversos órgãos do TGI, nos pulmões, cérebro ou fígado; Familiar de 1º grau com diagnóstico de THH. Sistema de classificação HES para portadores da doença de Osler-Weber-Rendu, utilizado como preditor da gravidade da epistaxe Diversosoutros distúrbios hemorrágicos podem favorecer a ocorrência de epistaxe, em especial aqueles marcados por alterações plaquetárias, como a hemofilia e a doença de Von Willebrand. Pacientes hemofílicos apresentam deficiência dos fatores VIII ou IX da coagulação. Dessa forma, apresentam menor capacidade de regulação da hemostasia, e sofrem com sangramentos mais intensos e prolongados. Comparação entre o controle hemostático num indivíduo saudável e num hemofílico Na doença de Von Willebrand, por sua vez, as principais alterações dizem respeito ao Júlia Figueirêdo – PERDA DE SANGUE alargamento do TTPa, indicando depleção de fator VIII e menor agregação plaquetária. A epistaxe é o principal sintoma dessa condição. Casos de sangramentos posteriores ou de hemorragias maciças podem ser decorrentes de malformações vasculares, como o aneurisma da artéria carótida. Esse fenômeno deve ser suspeitado principalmente em indivíduos com histórico de cirurgias na cabeça ou pescoço. Diversos fármacos podem estar diretamente relacionados à ocorrência de perdas de sangue, destacando-se os anticoagulantes. Todos os compostos que aumentam o tempo de coagulação (ex.: heparina) podem elevar a susceptibilidade individual à epistaxe. Há grande risco de epistaxe nos pacientes em uso de medicamentos como a varfarina. No entanto, caso o RNI destes esteja dentro da faixa terapêutica, não há indicação para suspensão. FISIOPATOLOGIA: Quaisquer lesões que afetem a integridade da camada submucosa podem levar ao extravasamento de sangue oriundo dos seios cavernosos (áreas de confluência vascular). Em indivíduos hígidos, sem distúrbios de coagulação, o sangramento será rapidamente controlado. Contudo, se há algum fator que afete o retorno à hemostasia, a epistaxe pode levar a grandes perdas de sangue. AVALIAÇÃO CLÍNICA E DIAGNÓSTICO: Em episódios de hemorragia ativa ou intensa, a avaliação do paciente pelo protocolo ABCDE é fundamental, tendo como objetivo identificar complicações de risco imediato. Seus componentes são: Airway: sangramentos posteriores podem levar à obstrução de vias aéreas, principalmente em idosos; Breathing: a análise da frequência respiratória é uma forma de verificar se o paciente está hemodinamicamente estável; Circulation: novamente com o intuito de assegurar a estabilidade do paciente, deve ser aferida a pressão arterial e a frequência cardíaca; Disabillity: consiste na classificação do estado de consciência; Exposure: visa a localização do foco hemorrágico. No contexto da investigação clínica, a coleta de uma anamnese detalhada é importante para a correta definição da etiologia, principalmente quando a epistaxe for uma manifestação secundária. Devem ser indagados: Características do sangramento (volume, modo de início, e lateralidade); Fatores precipitantes para a hemorragia; Sintomas associados (ex.: hematêmese ou hemoptise); Antecedentes pessoais e familiares de epistaxe; Histórico de doenças hemorrágicas ou cardiovasculares; Fatores que aumentam o risco de epistaxe: HAS: pode prolongar a duração dos episódios, mas não os desencadeia; Tabagismo e aterosclerose: promovem o enfraquecimento da mucosa e dos vasos nasais; ICC; Etilismo. Júlia Figueirêdo – PERDA DE SANGUE Medicamentos de uso contínuo (especialmente anticoagulantes); Hábitos de vida (principalmente uso de drogas). Durante o exame físico, e necessário garantir uma boa fonte de luz para a análise da cavidade nasal, que pode ser precedida pela limpeza das narinas (remoção de coágulos). O espéculo nasal é usado para dilatação, facilitando a visualização de estruturas importantes. No entanto, caso disponível, um endoscópio pode ser empregado, pois fornece maior precisão. A avaliação se inicia pelo plexo de Kisselbach, pois é o local mais comumente atingido. Busca-se por úlceras, erosões ou sangramento ativo. A seguir, são inspecionados também o vestíbulo, os cornetos e o próprio septo nasal. Sangramento no plexo de Kisselbach identificado pelo uso do espéculo nasal Vale destacar que nem sempre é possível determinar o local primário da epistaxe. Nessas situações, as suspeitas devem se direcionar para sangramentos posteriores. A solicitação de exames complementares normalmente não é necessária, porém, nos casos em que o paciente apresente histórico de anticoagulação ou de discrasias sanguíneas, a coleta de sangue é útil para calcular o RNI. Exames de imagem devem ser realizados somente se há suspeita de tumores na cavidade nasal ou na nasofaringe. CONDUTA: Após a determinação da estabilidade do paciente, o manejo do sangramento é iniciado, com aplicação de anestésico local (lidocaína 2%) numa gaze. Pacientes cooperativos e bem orientados podem auxiliar o processo ao assoar delicadamente o nariz. Posteriormente é feita a administração de oximetazolina, um vasoconstrictor spray, e solicita-se ao indivíduo que mantenha compressão manual das narinas por cerca de 10 a 15 minutos. Sangramentos pouco intensos podem se resolver ainda nessa etapa, sem necessidade de intervenções mais extensas. Com a identificação de focos de epistaxe anterior, a primeira linha terapêutica consiste na cauterização da área, seja química (nitrato de prata ou ácido tricloroacético) ou elétrica. Resolução de sangramento no plexo de Kisselbach a partir da aplicação de nitrato de prata. Há formação de tecido cicatricial (dir.) Sangramentos posteriores também se beneficiam da cauterização, realizada, no entanto, de modo endoscópico por um especialista. Júlia Figueirêdo – PERDA DE SANGUE Caso essas medidas iniciais não sejam eficazes ou o sangramento seja difuso, deve ser realizado o tamponamento anterior da narina afetada. Diversos tipos de tampões podem ser usados, mas o dedo de luva lubrificado e preenchido por gaze embebida em Ácido Tranexâmico é uma opção comum. Outras alternativas são o cateter- balão (pouco acessível) e a inserção de gaze lubrificada com bacitracina por meio de uma pinça baioneta. Uso de gaze vaselinada no tamponamento nasal anterior Após a correta inserção do tampão, este deve ser fixado externamente, para evitar que ele se movimente e obstrua as vias aéreas. O tamponamento deve ser mantido por cerca de 48 horas. Como sangramentos persistentes estão associados a etiologias de acometimento posterior, recomenda-se que esses pacientes sejam submetidos ao tamponamento anteroposterior. A técnica mais usual para esse procedimento é a colocação de um “pacote” de gaze por meio da orofaringe, sendo então tracionado por fios inseridos na cavidade nasal até seu encaixe nas coanas posteriores. Após essa etapa realiza-se o tamponamento anterior conforme o passo-a-passo supracitado, e mantém-se o aparato por 4 a 7 dias. Inserção e fixação do tampão nasal posterior A sonda de Foley também pode ser utilizada, com grandes índices de sucesso no manejo da epistaxe posterior. Sua colocação segue o assoalho nasal até a orofaringe, ponto no qual o balão é insuflado com 5 a 7 mL de água destilada e tracionado adequadamente. Já no posicionamento final, há nova injeção de fluidos no balão, e o cateter pode ser fixado por pinça umbilical ou, novamente, pelo processo de tamponamento anterior. Alternativas de realização do tamponamento nasal posterior com sonda de Foley Após a colocação do tampão, é necessária monitorização por 3 a 6 horas: Para o sangramento anterior, as possibilidades são: Epistaxe leve: se há presença de sinais vitais estáveis, o paciente pode receber alta médica, com encaminhamento, se necessário, para o otorrinolaringologista; Júlia Figueirêdo – PERDADE SANGUE Epistaxe moderada: caso o tempo de uso do tampão supere 48 horas, o indivíduo deve ser obrigatoriamente acompanhado pelo especialista em até 72 horas após a alta. Fluxograma para abordagem e manejo inicial da epistaxe Em caso de falhas terapêuticas ou no controle da epistaxe posterior, podem ser realizados procedimentos de embolização ou cauterização endoscópica, realizados por especialistas em radiologia intervencionista e otorrinolaringologia. PROFILAXIA: Após o controle bem-sucedido da epistaxe, cabe ao médico orientar o paciente quanto a medidas que podem reduzir a recorrência do quadro, como: Evitar assoar o nariz de forma vigorosa por 7 a 10 dias; Aplicar spray nasal com solução salina ou solução lubrificante; Evitar carregar objetos pesados ou inclinar a cabeça para baixo; Aparar as unhas, evitando lesões autoprovocadas; Umidificar o ambiente doméstico, principalmente o quarto; Dormir com a cabeceira da cama elevada; Evitar o consumo de álcool, tabaco e outras drogas. A antibioticoterapia sistêmica não é realizada como rotina para a prevenção da síndrome do choque tóxico, uma vez que a sua incidência é bastante baixa. Ainda assim, o paciente deve ser instruído a buscar atendimento na presença de sinais como febre, hipotensão, descamação e hiperemia da mucosa. Outra importante orientação, principalmente para crianças e idosos é quanto ao posicionamento adequado da cabeça durante um episódio de epistaxe. O indivíduo deve inclinar-se para a frente, evitando a deglutição do sangue. Posicionamento adequado da cabeça em caso de epistaxe anterior Quadros de epistaxe posterior requerem encaminhamento imediato ao otorrinolaringologista, logo após posicionamento do tampão.
Compartilhar