Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
AULA 2 FAMÍLIA, SAÚDE E SOCIEDADE Profª Tânia Maria Santos Pires 2 CONVERSA INICIAL Os conceitos expressam a forma de entendermos um assunto em determinado período histórico. Esse entendimento sofre influência direta dos contextos sociais como também das crenças ancestrais transmitidas a cada geração. Por esse motivo, os conceitos de família sofrem mudanças de acordo com os papéis que a família vem representando na sociedade. Sendo assim, conceituar família é também reconhecer as mudanças pelas quais a sociedade passou e passa no decorrer dos anos, à medida que outros conceitos são também questionados e assumem outros significados, tais como o casamento, o papel da mulher, o papel do homem, a maternidade e a paternidade. TEMA 1 – CONCEITUANDO FAMÍLIA Uma clara demonstração das mudanças sociais referentes à família evidencia-se na redefinição do termo que foi elaborada pelo dicionário Houaiss (2016). A definição anterior de família era “grupo de pessoas vivendo sob o mesmo teto (especialmente o pai, a mãe e os filhos)”. Igualmente interessante foi o processo utilizado pela editora do referido dicionário. Foi contratada uma campanha publicitária nas mídias sociais denominada #todasasfamílias com o intuito de provocar uma discussão sobre o tema e captar o condensamento de ideias, como vemos a seguir: O projeto começou com um perfil no Facebook, reunindo depoimentos de famílias com diferentes formações. As sugestões de novos verbetes serão selecionadas e encaminhadas à equipe do Houaiss. Para o filólogo Mauro Villar, diretor do Instituto Antônio Houaiss e coautor do dicionário, a campanha é uma oportunidade “excepcional, por dar voz a milhares de pessoas, incluindo grupos cuja opinião interessa ser ouvida”. (JORNAL TODA BAHIA, 2016) Após a finalização da campanha, a definição de família assumiu o seguinte texto: “núcleo social de pessoas unidas por laços afetivos, que geralmente compartilham o mesmo espaço e mantém entre si uma relação solidária” (Houaiss, 2016, grifo nosso). Escrever sobre esse tema me leva a refletir sobre a minha própria família de origem, sobre o que a fundamenta, como nos reconhecemos e o que nos liga. Penso em como gosto da companhia da minha mãe e irmãos e como seria difícil perdê-los. Mas por que gosto tanto deles? Será que é apenas porque fomos criados juntos? Será que é um condicionamento da natureza o gostar-se da mãe? 3 Crescer juntos é certamente um dos fatores predisponentes para que se desenvolvam afeto e solidariedade, mas isto não acontece de modo natural. Na verdade, a natureza mostra que há uma competição na ninhada, uma verdadeira luta para que se defina quem é mais forte e mais compatível com a vida. Nas relações humanas, há diversas lutas em andamento, porém a mais importante delas é sem dúvida a construção do afeto. Os relacionamentos afetivos, com manifestações de carinho e de solidariedade, características tão marcantes nas definições de família, não são algo natural, como se brotassem espontaneamente a partir do nascimento de uma criança. São processos construídos no cotidiano das famílias, de forma cuidadosa e intencional. Ensina-se a solidariedade, demonstra-se o afeto, constrói-se o amor dentro da família. À medida que vai se desenvolvendo, a criança percebe a dinâmica de sua família, suas prioridades e como se comportam os adultos nos seus relacionamentos familiares. Os comentários feitos sobre outros membros da família, quer sejam críticas, fofocas, assim como as atitudes de acolhimento e socorro aos primos, tios, como também os compromissos assumidos com os avós, vão consolidando mensagens delineadoras das relações familiares. Aprendemos a gostar (ou não) de pessoas que sequer conhecemos, a partir da narrativa que temos deles dentro da família. Partindo dessas análises, fica fácil concluir que as relações familiares têm pouco a ver com a consanguinidade e muito mais com a construção relacional. Por esse motivo é que os filhos adotivos são apenas filhos, assim como os pais, sejam eles um casal heteroafetivo ou homoafetivo, são apenas pais. Se o relacionamento construído no grupo familiar for do tipo truncado, deficiente na comunicação, superficial, embasado na disputa, na comparação e na cobrança, certamente o resultado será desenlaces, amargura e distanciamento, mesmo que morem todos sob o mesmo teto e tenham todos a mesma raiz genética. O amor não acontece por obrigação, ou porque alguém tem um título familiar nas nossas vidas, mas é um processo que inclui compromisso, dedicação, doação, muita boa vontade e intenção para atingir seus objetivos. Apesar de todas as mudanças na sua constituição, conceitos e definições, a família mantém seus principais objetivos: prover ao ser humano afeto e segurança para que se desenvolva de forma saudável, tornando-se um adulto autônomo, maduro e capaz de encontrar sentido na própria vida. Isso não tem a ver com dinheiro ou bens, simplesmente com amor. 4 TEMA 2 – DIVERSOS OLHARES SOBRE O TEMA FAMÍLIA O tema família é objeto de estudo de diversos campos do conhecimento, tais como o direito, sociologia, antropologia, educação, saúde e filosofia. Vamos destacar três olhares que se sobressaem: o do direito, da sociologia e da saúde, com seus principais focos de atenção sobre a família. 2.1 A família na visão do direito No campo jurídico, o tema família também tem sofrido mudanças conceituais, o que levou a alterações na legislação regimentar sobre o direito das famílias. Anteriormente centrados na consanguinidade e no casamento formalizado, os conceitos legais evoluíram por reconhecer a materialidade das questões envolvendo as famílias. O princípio jurídico segue a lógica de que o fato é sempre anterior à lei; sendo assim, há muito tempo via-se diversos arranjos familiares informais, sobretudo entre as camadas mais pobres da sociedade, enquanto as camadas mais elevadas consideram as questões do patrimônio no tocante à sua união, justificando a formalização do casamento. Um dos momentos mais marcantes dessa trajetória no nosso país relaciona-se à aprovação do divórcio em 1977– lembrando que nessa época não havia o reconhecimento da união civil, sendo o casamento formal a única maneira de legitimar a família. Apesar da forte pressão da Igreja Católica, a lei de autoria do senador Nelson Carneiro foi aprovada, permitindo que casais que desejassem a separação pudessem não apenas se separar, mas também contrair novas núpcias com o amparo civil do casamento legal, porém com a restrição de poder fazê-lo apenas uma vez. Na mudança constitucional de 1988, esse direito foi ampliado, de modo a permitir o divórcio de acordo com a vontade das pessoas envolvidas, sem limitação de números de vezes (Barbosa, 2016). O código civil de 2002 considera a família em três sentidos: a) sentido “lata”, que se refere à composição feita pelos cônjuges, seus filhos e parentes na linha reta ou colateral (pais dos cônjuges, irmãos e afins); b) no sentido “restrito”, que considera família os cônjuges e seus filhos, ou um dos pais e seus filhos; e c) no sentido “amplíssimo”, que abrange todos os laços, quer sejam sanguíneos e afetivos, até os que trabalham no ambiente familiar (Brasil, 2002). Esse sentido amplo remonta à origem latina do termo, durante o Império Romano, quando famulus se referia ao grupo de servos domésticos. Os escravos pertenciam ao 5 senhor, sobretudo os que eram nascidos na sua casa, e faziam parte de sua famulus, assumiam costumes, nomes, cultura, criando dessa forma identidade com a casa do senhor. Posteriormente houve a ampliação do pater familias (poder familiar), que passou a incluir a mulher e filhos (Neves, 2014). A importância da visão jurídica destaca-se sobretudo na resolução dos conflitos que envolvem as relações familiares no tocante ao patrimônio e às questõesda herança, por ocasião do falecimento de um dos pais, como também nas situações de separação do casal. O objetivo é a proteção dos filhos, na defesa do direito de a criança ter garantido seu provimento material, assim como conviver com ambos os pais e seus familiares mesmo após a separação. São momentos de muito sofrimento para as famílias, contudo são recursos necessários para que se estabeleça a justiça nos momentos de dor e conflito. 2.2 A família na visão da sociologia Para a sociologia, o conceito de família está centrado em sua função social, em seu papel de incluir o ser humano na sociedade e prestar-lhe cuidados, sobretudo nas etapas consideradas de maior fragilidade, como a infância e a velhice. Na visão da sociologia, a família humana organiza-se de acordo com sua cultura, portanto os arranjos familiares são expressões das construções culturais, podendo ser diferentes entre os povos, desde que reconhecidos como válidos nos seus contextos (Costa e Silva; Cunha, 2005). Da mesma forma como aprendemos a falar o idioma de origem com o sotaque da nossa região, aprendemos a nos relacionar de acordo com os padrões aprendidos no ambiente familiar. Nesse aspecto a sociologia destaca a importância da família como sendo a responsável pela integração do ser humano na sociedade, tornando-o apto para a convivência comunitária. Dentro do contexto familiar aprendemos as primeiras normas de convivência em grupo, como as palavras de cortesia, lidar com as frustrações iniciais, esperar pelo outro e entender a importância de dividir – quer seja o espaço, a comida, o afeto dos pais. Posteriormente somos apresentados a outras instituições formadoras, tais como a comunidade, representada pela vizinhança, a igreja, a escola e demais grupos de convívio social. No entanto, sempre fazemos a leitura desses ambientes a partir da formatação familiar inicial, até que tenhamos a estrutura psíquica capaz de realizar a crítica necessária para então conscientemente consolidarmos o nosso repertório emocional pessoal. 6 2.3 A família na visão da saúde A família assumiu importância no setor da saúde a partir da implantação da Estratégia Saúde da Família em 1994. Até então o foco da assistência à saúde era totalmente individualizado, de certo modo coerente com o modelo de assistência à saúde vigente à época, centrado nos eventos agudos. A partir da implantação da Atenção Primária à Saúde, modificou-se o foco da assistência, como também ampliou-se o conceito de saúde e doença. O sentido da saúde e doença tornou-se coletivo, centrado no cuidado muito mais do que na cura, considerando com destaque os determinantes sociais. Dentro dessa visão, entendeu-se que manejar as condições crônicas seria muito mais efetivo do que a assistência pura e simples do evento agudo. Ao manejar-se corretamente as condições crônicas haveria redução dos eventos agudos. Entende-se por condição crônica todas as situações que se prolongam e requerem cuidados de saúde, não apenas as doenças crônicas, tais como a hipertensão ou o diabetes, mas também condições como a infância, a adolescência e o envelhecer: As condições crônicas são aquelas condições de saúde de curso mais ou menos longo ou permanente que exigem respostas e ações contínuas, proativas e integradas do sistema de atenção à saúde, dos profissionais de saúde e das pessoas usuárias para o seu controle efetivo, eficiente e com qualidade. (Mendes, 2012, p. 33.) Além das condições de acompanhamento e cuidado da saúde de seus membros, a família é fundamental no momento do cuidado com a doença. Portanto, a visão da saúde para a família poderia ser dita que está no cuidado contínuo, para manejar as condições prolongadas, sobretudo nas situações em que a cura não é o objetivo – mas o manejo carinhoso e comprometido faz total diferença no conforto e bem-estar do paciente e da sua família. TEMA 3 – EMPODERAMENTO FEMININO E REPERCUSSÕES NA FAMÍLIA Uma certa vez eu conversava com uma senhora, que completaria 50 anos de casamento. Os filhos se manifestaram dizendo que se os pais quisessem eles fariam uma festa. Imediatamente a senhora se reagiu e disse claramente que não queria festejar o evento. Posteriormente ela me disse a razão de não querer festa: “Festejar o quê? Todos esses anos foram de muito sofrimento, agressões, palavras ofensivas. Eu não fui embora porque tinha medo. Tinha medo de que ele 7 me matasse, medo de que eu não conseguisse sobreviver sozinha com 7 filhos. Não tenho motivo para fazer festa”. Essa senhora integrou um grupo de mulheres que fizeram parte de uma pesquisa minha, de 2001, enquanto trabalhava como médica de uma comunidade rural no interior do Paraná. Ela não era uma exceção; ao contrário, fazia parte da regra geral, experiência comum entre a absoluta maioria das mulheres que entrevistei, para entender a cultura de gênero daquela região e como isso afetava a saúde dessas mulheres. Poderíamos pensar que essa situação estaria restrita à condição das mulheres das áreas rurais, e que poderia ser diferente da situação em áreas metropolitanas, porém não é assim. A cultura de gênero dominante impõe à mulher uma posição inferior na sociedade, na família, subordinando-a a condições humilhantes e aumentando intensamente os riscos de sua exposição a doenças, violência e morte precoce. Para que esta reflexão fique mais clara, vamos estabelecer diferença entre sexo e gênero, pois são termos que se confundem em vários momentos na compreensão das pessoas. 3.1 Sexo feminino versus gênero feminino Quando nasce um ser humano, este não sabe se é homem ou se é mulher, porém seu corpo sabe, desde o momento da concepção, qual é a determinação biológica que desenvolverá desde a fase fetal até o final da vida, as características masculinas ou femininas. Isso é o que chamamos de sexo. Após o nascimento, mesmo sem que o saibamos, o nosso contexto social tece diante de nós o caminho que vamos percorrer dentro do conjunto de costumes, comportamentos, crenças, para que aprendamos como nos comportar de acordo com o nosso sexo. Desse modo, o bebê de sexo masculino sai da maternidade vestido de homem (azul) e o de sexo feminino sai vestido de mulher (rosa). A partir de então, diversas mensagens são continuamente direcionadas sobre como se espera que o menino ou a menina se comportem. A menina é preparada para ser mãe, para ser discreta, obediente e cuidadora. O menino é preparado para ser corajoso, forte, independente, líder. Na dimensão da expressão sexual, a acentuação da diferença é ainda maior e mais injusta. É permitido ao homem expressar sua sexualidade quase que sem julgamentos morais, ao passo que a mulher tem seu caráter entendido a partir 8 do seu comportamento sexual. Quando se diz que um homem é sério e honesto, imediatamente pensamos que se trata de uma pessoa correta nos negócios, na sua ética pessoal, cumpridora de seus deveres. Quando dizemos que uma mulher é séria e honesta, pensamos que se trata de uma mulher de comportamento sexual controlado. Se for casada, pensamos que é alguém que não trai seu marido. Se é solteira, então é uma moça que teve poucos namorados. Essa diferença entre a forma cultural como se expressam os comportamentos masculinos e femininos na sociedade é chamada de gênero. Trata-se de fato de uma cultura, em que se entende que há direitos diferentes, permissões diferentes e mesmo desenvolvimentos econômicos e sociais diferentes para homens e mulheres na sociedade. Essa realidade nos é imposta de forma tão intensa desde que nascemos que nem sempre nos damos conta de como ela interfere em nossa vida. Na verdade, aprendemos a vê-la de modo natural e até acabamos por naturalizar coisas absurdas que interferem nos relacionamentos conjugais, no direito, na justiça, nas relações de trabalho e nas relações sociais como um todo.Tive uma prova de quão internalizada é essa cultura de gênero numa situação muito banal ocorrida comigo. Há cerca de 2 anos fui comprar um aparelho de TV. Lembro-me de que eu estava com pressa porque ainda tinha uma lista de coisas a fazer naquela manhã. Durante a compra, o vendedor conseguiu me convencer a aceitar um seguro estendido, mas logo em seguida eu me arrependi e pedi que ele cancelasse esse valor da nota. Meio a contra gosto ele atendeu o meu pedido, mas enquanto eu me afastava em direção ao caixa, percebi que ele estava ligando para alguém. Tive a intuição de que eu ainda seria abordada a respeito daquele seguro. Quando cheguei ao caixa, o gerente se aproximou de mim e gentilmente me perguntou a razão de eu ter desistido do seguro, se eu não desejava reconsiderar (lembrem-se, eu estava com pressa), então respondi rapidamente: “desisti porque meu marido não me autorizou”. Imediatamente o gerente deu-se por satisfeito, não me questionou mais. Finalmente concretizei a compra e fui aos meus outros afazeres, porém refleti muito sobre o episódio. Na verdade eu fiz uma espécie de experimento social. Apesar de ter dito uma mentira ao gerente com o objetivo de me livrar da importunação da venda indesejada, eu pude ver o quanto a sociedade aceita o poder do homem na relação conjugal, sem questionar, sem hesitar, sem sequer argumentar. A realidade que me beneficiou naquele momento é a realidade que torna a vida de muitas mulheres um tormento. 9 3.2 Assumindo o poder e o controle sobre si mesma Lutar para ter poder sobre si mesmo(a), ter autonomia para tomar suas decisões, ter o direito a estudar e a trabalhar em condições dignas, ter direito a não ser discriminado(a) em nenhum aspecto, quer ser seja de cunho social, racial, ideológico, de gênero e de direcionamento sexual são alguns aspectos que compõem o empoderamento. Esse termo tem sido empregado nas lutas das minorias e se aplica fortemente à luta das mulheres por igualdade de gênero e respeito na sociedade. É importante frisar que a busca pela autonomia não é uma negação da nossa feminilidade. A sociedade deve reconhecer que há singularidades ligadas ao nosso componente biológico natural que nos diferencia dos homens. A questão é que isso não deveria ser impedimento para que uma mulher assumisse condições de comando, ou que lhe fosse negado emprego porque é mãe, ou sofresse assédio no trabalho porque está grávida. O empoderamento feminino é tema de discussão das agendas internacionais, como se vê no movimento “ElesPorElas”, iniciativa da ONU Mulheres (2014). São ações de âmbito internacional que têm como objetivo elaborar estratégias que ajudem as mulheres a alcançar autonomia, porém, acima de tudo, que mais mulheres possam enxergar o que significa a cultura de gênero imposta pela sociedade, que vem traçando um destino injusto e sofrido para grande parte das mulheres no mundo. TEMA 4 – RESSIGNIFICANDO O GÊNERO MASCULINO A cultura de gênero vigente na sociedade já demonstrou-se danosa para a mulher, porém, ao mesmo tempo que privilegia o homem, na realidade o desfavorece em vários aspectos. De modo geral, percebemos que o homem produzido por esta sociedade tem muita dificuldade de aprofundar seus sentimentos e também de expressá-los. Na maioria das vezes, sua comunicação é pobre e, quando exposto ao conflito, sua forma de lidar é beligerante. A identidade de gênero masculina ligava-se a dois fatores preponderantes: a sexualidade e o trabalho. Enquanto as mulheres ficaram caladas a respeito de sua própria sexualidade, até porque casavam-se virgens (pelo menos alegadamente) e não se sentiam encorajadas a manifestar suas insatisfações conjugais nessa área, a maioria dos homens não se sentia questionada nesse 10 quesito. A mudança da sexualidade feminina trouxe uma cobrança para a qual o gênero masculino não estava preparado, ou seja, o questionamento sobre a qualidade das relações sexuais. Agora não se trata apenas de um casamento para reprodução, em que a mulher cumpria sua obrigação conjugal, mas um relacionamento que deve ser prazeroso para o casal. Nesse sentido, um homem que não consegue uma troca conjugal satisfatória torna-se inseguro dentro do casamento. Nas relações de trabalho, a situação – embora ainda favorável ao homem – trouxe diversas mudanças impensáveis há algumas décadas. Quem imaginaria uma mulher motorista de caminhão, taxista ou trabalhando na construção civil? As profissões permitidas às mulheres eram apenas aquelas que se relacionavam ao seu gênero, como professora, enfermeira, cozinheira, secretária. Mesmo entre as mulheres de camadas sociais privilegiadas, com acesso à boa educação, a mensagem era direcionada para forjar a boa dona de casa, para que ficasse feliz “atrás de um grande homem”. A partir do momento em que homens e mulheres começam a disputar espaço no mundo do trabalho, o provedor masculino sentiu- se ameaçado. Ele não era mais o único a trazer o dinheiro para casa, a mulher poderia ter uma profissão e tornar-se independente financeiramente. Afinal, se a mulher não precisa mais de um provedor, mantenedor, se ela pode até mesmo questionar a intimidade do casal, demonstrando sua insatisfação dentro do casamento, qual lugar restaria ao homem dentro da família? Nesse cenário, o homem perde a sua alegada autoridade familiar por não ser mais o exclusivo provedor da família. Na verdade, a insegurança por sentir que perdeu a autoridade faz parte do conjunto em que se enraíza a violência intrafamiliar impetrada pelos homens às suas companheiras. Ao perder a autoridade, ele se impõe pela força, pela intimidação e pela violência manifestada nas relações abusivas. Esse modelo de gênero masculino, antiquado embora atual, por ser ainda muito presente na sociedade, é extremamente nocivo aos homens, às mulheres e à família como um todo, portanto deve ser questionado e modificado. 4.1 Como seria o novo gênero masculino? O entendimento equivocado de masculinidade que muitas pessoas manifestam causa confusão na interpretação do gênero masculino. Imagine como seria um homem adulto, que desde cedo brincou de carrinhos e de bonecas com outras crianças. Na brincadeira de criança, o menino aprenderia a trocar a fralda 11 da bonequinha, fazer comidinha e dar mamadeira. Prepararia o café, iria ao mercado e depois iria trabalhar na delegacia de polícia em que ele atua, ou no hospital em que ele é plantonista, ou na construção civil, em que ele constrói prédios, ou no treino de futebol, onde ele é jogador profissional. Os comportamentos vão sendo cultivados diariamente, nas brincadeiras, nos comentários, nas piadas. Homens e mulheres são separados por modelamentos sociais do cotidiano, que vão desde o brincar da criança até as frases repetidas pelos pais, sem perceber o quanto isso é condicionante emocional. Quando a mãe diz “fecha a perna”, mesmo sem ver a criança, você pode imaginar que ela se dirige à filha, não é mesmo? Se a ouvir dizer “levanta rápido e não chora”, a chance de a frase ser dirigida a um menino é maior ainda. Como podemos esperar que as coisas mudem se as mensagens continuam as mesmas? Temos que formatar um novo modelo de educação para os meninos e as meninas. É fundamental construir a solidariedade entre os gêneros que seja plantada na infância e repercutida para toda a vida. Nesse novo formato, homens e mulheres teriam uma relação equilibrada dentro das características de seu sexo biológico original1 e teriam o compartilhamento de tarefas cotidianas que hoje são divididas de acordo com o gênero. O homem é biologicamente maior e com mais força muscular do que sua mulher e seus filhos. Isso acontece na natureza com um objetivo biológico, que é a responsabilidade de proteger a prole, mantendo e preservando as espécies. As sociedades humanas, assentadas sobre a necessidadedo domínio, desvirtuam o modelo natural de proteção, formatando-o em um modelo masculino muito distante de ser um protetor, tornando-o um verdadeiro predador da sua própria família, a qual maltrata, violenta e explora. O novo homem teria maturidade para perceber seu papel masculino com profundidade, entendendo seu espaço com a responsabilidade de quem ama e protege. Junto com a mulher, seria cuidador, provedor e protetor de sua família. Esse mesmo cuidado se estenderia à natureza, ao meio ambiente, aos menos favorecidos. Imagine a repercussão que essa mudança traria para o mundo. 1 Exemplos: é fácil para uma mulher dirigir um veículo, no entanto trocar um pneu requer estrutura muscular que a maioria das mulheres não tem; somente a mulher pode engravidar e amamentar, mas trocar a fralda do bebê, homens e mulheres podem fazer. 12 TEMA 5 – AS NOVAS REPRESENTAÇÕES DE FAMÍLIA A família tradicional composta pelo pai, mãe e filhos, validada pelo casamento ou união estável, mantém sua função e reconhecimento social. Todavia, esse modelo já não representa a maioria das famílias em nossa sociedade. A pesquisa PNAD (IBGE, 2015) constatou que os outros modelos de família já superam o modelo tradicional, razão pela qual os novos modelos vêm sendo reconhecidos tanto no âmbito jurídico como social. É verdade que não são todos os modelos de família que são reconhecidas pela constituição, porém é consenso entre os juristas que, apesar de alguns modelos tecnicamente não serem descritos na Constituição de 1988, o sentido da constituição permite incluir todos os tipos de família na proteção do Estado. O que realmente importa é o vínculo afetivo que as pessoas mantêm entre si (Lima, 2018). A seguir apresentaremos as configurações familiares que se destacam atualmente, separando-as entre as que têm pronto reconhecimento civil constitucional e aquelas que ainda não têm, embora sejam reconhecidas socialmente. 5.1 Configurações familiares reconhecidas pela Constituição Os modelos familiares contemplados na Constituição são a família heterossexual constituída pelo casamento ou pela união estável, composta pelo pai, mãe e filhos, e a família monoparental, formada por um dos pais e seus filhos. Vale destacar que a família monoparental não compreende a formação composta por outros parentes como avó e neto, ou tio e sobrinho. Estes podem ser considerados responsáveis legais quando têm formalmente a tutela do menor (Brasil, 2002). O entendimento jurídico preza os vínculos afetivos que ligam as pessoas, sobretudo quando há crianças envolvidas, portanto o reconhecimento do sistema familiar tende a acontecer mesmo sem a formalização civil. A discussão está mais centralizada nas outras configurações que estão fora do texto constitucional, principalmente naqueles arranjos antes considerados fora do padrão e sujeitos ao julgamento social. 5.2 Configurações familiares fora do texto constitucional As novas configurações familiares não estão propriamente pautadas nas bases legais, porém se formatam como família devido aos seus vínculos afetivos. 13 Afinal, o que de fato nos faz sentir família é o laço que nos liga a alguém, tornando- o parte da nossa história. Quantas vezes nos surpreendemos ao saber que alguém não é filho natural daquele pai ou daquela mãe, e sim seu enteado ou madrasta. Isso porque, ao observarmos a relação entre aquelas pessoas, notamos que há afeto, respeito e um relacionamento de forte vinculação. 5.2.1 Família estendida, família anaparental e família sem filhos Algumas configurações familiares são muito antigas e decorrentes da tradição histórica das composições familiares desde o Brasil colonial. O modelo de família estendida é uma delas. Trata-se da família que comporta outros membros além dos pais e filhos, tais como avós e tios que moram na mesma casa. Este modelo era muito comum no formato patriarcal, quando a mulher somente era autorizada a sair de casa para se casar, ficando sob a tutela moral de um irmão mais velho, na mesma casa, caso ficasse solteira. Outro modelo familiar é a família anaparental. Trata-se de família sem pais presentes, composta por dois irmãos que moram juntos e permanecem vinculados. Nesta classificação também se enquadram pessoas sem laços sanguíneos, mas que convivem em situação familiar, como amigas que moram juntas até sua morte (Lima, 2018). Um outro fenômeno cada vez mais frequente no Brasil é a família sem filhos por escolha própria (Brasil, 2015). Essa escolha de alguns casais repercute na sociedade por romper um forte paradigma da formação familiar, que é a reprodução. Demonstra de forma clara que o principal objetivo na união conjugal é o vínculo afetivo. O casal permanece unido porque se gosta, desfruta da companhia um do outro, mas não deseja filhos. Isso quebra um dos mitos do casamento que é a multiplicação da espécie. Nesse sentido, a legislação precisará ser revista quanto à permissão para procedimentos de esterilização voluntária, que atualmente somente é permitida acima de 25 anos desde que a pessoa já tenha dois filhos vivos. 5.2.2 Família reconstituída A possibilidade de divorciar-se e contrair novas núpcias gerou arranjos na organização familiar que precisam ser acolhidos pela sociedade, especialmente em famílias com filhos menores de idade. Não é raro observarmos atualmente 14 crianças que convivem com os pais e seus cônjuges, com os novos irmãos e com outras crianças que são filhas dos casamentos anteriores de seus próprios pais ou padrastos e madrastas. O convívio pode ser permanente ou considerado frequente, com acordos prévios, para que a criança permaneça convivendo com ambos os pais. A situação se constitui em problema apenas se os adultos envolvidos estiverem em conflito, mas se as situações estiverem pacificadas, a criança aprende a transitar entre as duas casas, considerando todos como sua família. Da mesma forma, os espaços institucionais frequentados pela criança devem ser acolhedores da situação familiar, como é o caso das escolas e creches, que têm importante papel na formação da criança. Nesse caso, seria importante deixar claro para a administração da escola que, além dos pais, outras pessoas podem estar presentes nas reuniões escolares, e quais seriam os melhores horários para que todos os envolvidos diretamente com a criança possam participar. É importante pactuar previamente com os adultos envolvidos o teor dos discursos na frente da criança, sobretudo se há situações pendentes no âmbito emocional. Falar mal do ex-cônjuge ou de sua família, além de ser considerado crime perante a lei, causa comprovadamente muito mal à criança, gerando medo e angústia, além de conflitos relacionados à lealdade. A criança não pode de forma alguma ser pressionada para que escolha um lado da família. Nesse sentido, todos os membros adultos da família devem ser advertidos para que controlem o seu discurso, incluindo os avós e tios, mesmo quando a criança não estiver presente ou quando aparentemente não estiver ouvindo. 5.2.3 Família homoafetiva Apesar das manifestações de pessoas intolerantes, as uniões homoafetivas já são reconhecidas em todos os aspectos semelhantes aos aplicados às relações heteroafetivas, inclusive quanto ao direito de guarda dos filhos de um dos cônjuges ou quanto à adoção de crianças. A organização familiar é semelhante a qualquer outra família e, quando há a presença de crianças, estas aprendem a se relacionar com seus pais e mães com naturalidade (Lima, 2018). A maior dificuldade que estas famílias enfrentam relaciona-se ao preconceito estruturado na sociedade contra os relacionamentos homossexuais. Na verdade, são relacionamentos tão julgados que por muito tempo foram escondidos ou relegados a uma condição de marginalidade social. A forma como 15 a sociedade lida com a homossexualidadecria uma “aceitação” artificial da pessoa homossexual, destinando-a a certos estilos de vida. Nada a estranhar-se nesse fato, considerando que é feito o mesmo com as mulheres na divisão de trabalho por gênero. Diante dessa análise, parece que a sociedade não consegue ainda enxergar a pessoa homossexual no papel natural de pai ou mãe. Uma mostra recente foi a repercussão nas mídias sociais quando o ator transgênero Thammy Miranda foi convidado para uma peça promocional do Dia dos Pais de uma conhecida empresa de cosméticos. Ele foi alvo de manifestações de intolerância e grosserias nas redes sociais. Por outro lado, recentemente uma voz de importância mundial se manifestou de forma sábia, coerente e compassiva. A voz do Papa Francisco, no documentário que narra os posicionamentos do papa sobre grandes questões sociais, soa inédita nesta questão, incluindo o reconhecimento do Papa ao direito de as pessoas homossexuais viverem em família, amparados legalmente pelo Estado, como todas as famílias devem ser, independentemente de modalidade de organização. A convivência com famílias de variados modelos e composições é uma ótima oportunidade para ensinar a diversidade e o respeito às diferenças. Independentemente do reconhecimento civil ou não, para os profissionais de saúde atuantes na prática, o que de fato importa é saber com quem uma pessoa pode contar no momento da doença, quais são os vínculos que sustentam o cuidado e quando o funcionamento da família produz saúde ou doença. 16 REFERÊNCIAS BARBOSA H. Os atuais conceitos de família: uma breve análise da família contemporânea sobe a égide da Constituição Federal de 1988. JusBrasil, 2016. Disponível em: <https://hugobp1.jusbrasil.com.br/noticias/418033042/os-atuais- conceitos-de-familia>. Acesso em: 31 dez. 2020. BRASIL. Constituição (1988). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 31 dez. 2020. BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 31 dez. 2020. BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa nacional por amostra de domicílios: síntese de indicadores 2014. Rio de Janeiro: IBGE, 2015. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv94935.pdf>. Acesso em: 31 dez. 2020. COSTA E SILVA, A; DA CUNHA, C. Representações sociais de família para um grupo de professoras. Rev Psic, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 01-09, dez. 2005. Disponível em: < http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1676- 73142005000200002&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 31 dez. 2020. JORNAL TODA BAHIA. Dicionário vai alterar o conceito de “família” com ajuda das redes sociais, 2016. Disponível em: <https://www.todabahia.com.br/dicionario-vai-alterar-o-conceito-de-familia-com- ajuda-das-redes-sociais/>. Acesso em: 31 dez. 2020. ONU MULHERES. Movimento Global ElesporElas. Disponível em: <www.onumulheres.org.br/elesporelas/movimentoglobal/>. Acesso em: 31 dez. 2020. LIMA E. S. Entidades familiares: uma análise da evolução do conceito de família no Brasil na doutrina e na jurisprudência. Rev Ambito Juridicio, São Paulo, n. 170, mar. 2018. Disponível em: <https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista- 17 171/entidades-familiares-uma-analise-da-evolucao-do-conceito-de-familia-no- brasil-na-doutrina-e-na-jurisprudencia/>. Acesso em: 31 dez. 2020. MENDES, E. O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde: o imperativo da consolidação da estratégia da saúde da família. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde, 2012. NEVES, G. Qual é a etmologia de família?. Disponível em: <https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/a-etimologia-do- substantivo-familia/32950>. Acesso em: 31 dez. 2020.
Compartilhar