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AULA 4 FAMÍLIA, SAÚDE E SOCIEDADE Profª Tânia Maria Santos Pires 2 CONVERSA INICIAL A mudança do paradigma assistencial, do indivíduo para a família, trouxe certa dose de insegurança aos profissionais de saúde. Afinal, o paciente agora é a família, com todas as suas dificuldades e incongruências, tornando-se um desafio ainda não dominado. Faz-se necessário um conjunto de novos elementos de aprendizagem para instrumentalizar aqueles que estarão no envolvimento diário com os problemas de saúde da população. Nesta aula, pretendemos trazer elementos que são fundamentais na abordagem das famílias e na compreensão do seu funcionamento. TEMA 1 – FAMÍLIA COMO SISTEMA O primeiro pensamento que temos quando nos deparamos com as situações-problema nas famílias que atendemos é que não conseguiremos ajudá- las. E mesmo durante anos de experiência em atendimento médico na Unidade de Saúde, lidando com famílias, sentimos a frustração de encarar que estávamos conseguindo pouco resultado. Esse pensamento decorre da nossa prática intervencionista, que espera a melhora do quadro clínico, da febre, da tosse em uma semana. Quando nos deparamos com os problemas familiares, as soluções não são rápidas, e muito menos acontecerão em uma semana. As mudanças são poucas e lentas e por isso temos a impressão de não ver resultado, porém, todas as vezes que de alguma forma provocamos uma ação na família, geramos uma reação que se repercute em todos os seus membros. Isso acontece porque a família é um sistema. 1.1 Entendendo um sistema Ao falarmos de sistema, nos ocorre a ideia de um conjunto, com elementos que interagem. Dentro da biologia, estudamos os sistemas orgânicos, como o sistema digestivo, neurológico, circulatório. Os órgãos têm suas funções específicas, porém interagem e ajustam o seu funcionamento com o objetivo de trazer estabilidade ao corpo, que é o sistema maior. Quando um sistema sofre uma agressão, ou uma intervenção, ele entra em desequilíbrio (doença) e se expressa externamente por alguma manifestação (sintoma). 3 Por meio do sintoma, percebemos que algo está errado no sistema. Porém, às vezes o sintoma demora a se manifestar, por causa dos mecanismos autorregulatórios do sistema. No caso do corpo, temos, por exemplo, o período de incubação dos vírus e bactérias, momento em que o corpo ativa suas defesas para combater a agressão, ou a fase compensatória da insuficiência cardíaca, ou da insuficiência hepática, quando todo o corpo está atuando na tentativa de equilibrar o sistema, antes dos sintomas maiores se manifestarem. Na tentativa de equilibrar a pressão e manter o batimento cardíaco estável, o coração aumenta de tamanho, assim como o fígado, tenta equilibrar sua produção de enzimas aumentando seu volume, até que os esforços naturais se esgotem, e os grandes sintomas apareçam demonstrando que há uma doença naquele sistema. Da mesma forma, o sistema familiar luta diariamente para preservar o seu equilíbrio interno, mesmo estando muito adoecido. 1.1.1 Equilíbrio, autorregulação, retroalimentação e sintoma O modelo sistêmico de se compreender a família foi definido na Teoria Geral dos Sistemas, de autoria de Ludwig von Bertalanffy. Ele desenvolveu um modelo teórico que combinava os conceitos de pensamento sistêmico e da biologia que poderia ser aplicado a todos os seres vivos e aos sistemas sociais (Costa, 2010). Como principais características dos sistemas, destacam-se a busca constante pelo equilíbrio, por meio de mecanismos de autorregulação e retroalimentação. As informações circulam dentro do sistema, alimentando-o e estabilizando-o. Quando essa fase se esgota, aparece o sintoma. À semelhança do corpo e de diversos outros sistemas na natureza, como também nas relações sociais, a família é um sistema que se autorregula, que busca o equilíbrio e que manifesta sintomas quando adoece. Algumas situações passam por períodos de incubação, e, em outros momentos, os mecanismos compensatórios são ativados, de modo a acomodar situações graves, embora nem sempre consigam ser acomodadas. Nessa condição, manifestam-se os sintomas, por exemplo, a criança que vai mal na escola, o filho adolescente que busca as drogas, a filha que engravida antes do tempo, o idoso que entra em depressão, a mulher que adoece constantemente, ou o marido alcoolista. A forma sistêmica de analisar a família muda a nossa compreensão do problema, desviando o foco exclusivamente do sintoma e focando no sistema familiar. O sintoma expressa o sofrimento familiar, a doença geradora, entretanto, 4 ele em si não é a principal causa da doença, mas a manifestação sintomática do adoecimento do sistema. Por esse motivo, quando apenas o sintoma é o foco da abordagem, a efetividade é muito pequena. Dentro do sistema familiar estão os gatilhos desencadeadores dos sintomas, portanto, pouco adianta encaminhar apenas a criança para o tratamento, ou internar o alcoolista, porque quando ele voltar para casa, para a família que está adoecida, os conflitos presentes, as situações abafadas e mal resolvidas, o papel reservado para ele, ainda estarão lá, prontos para desencadearem novamente o sintoma. Ao compreendermos o funcionamento familiar por meio do pensamento sistêmico, evitamos achar culpados e criar rótulos para as pessoas. É importante pontuar que a abordagem sistêmica não exclui outras análises associadas. Se um paciente tem dependência química, ele está sujeito às características dessa doença específica, com repercussões individuais sobre a sua saúde. A pergunta a se fazer nesse caso é: como a família reage diante dessa dependência? Quais atitudes dentro do padrão familiar são alimentadoras da dependência? Será que essa dependência cumpre algum papel dentro da família? Quais passos podem ser dados para romper com o tema da dependência que se sobrepõe e domina a família? As respostas a essas perguntas vão nos ajudar a compreender quais os ciclos de retroalimentação interna do sistema e de que forma eles podem ser quebrados, provocando a mudança necessária. TEMA 2 – GRAU DE ENVOLVIMENTO DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE COM FAMÍLIAS ATENDIDAS Trabalhar com famílias requer envolvimento do profissional de saúde com estas, bem como formação de vínculos, que faz parte da resposta terapêutica, mesmo quando não percebemos que se processa dessa forma. Porém, sabemos que o paradigma de formação que nos é ofertado não nos prepara para essa tarefa. Na maioria das vezes, nos atendimentos de saúde prestados aos usuários, vamos ter pouco contato com o paciente e menos ainda com seus familiares. Essa realidade muda quando se refere à Atenção Primária, em que o contato é prolongado em decorrência das características das condições crônicas. Justamente por esse motivo, torna-se quase impossível não se aproximar da história familiar, de sua dinâmica relacional e de alguma forma, envolver-se. 5 2.2 Espelhamento das vivências Outra situação importante a ser analisada é a nossa reação emocional e relacional quanto aos problemas com os quais nos defrontamos. Afinal, somos humanos, e nossas famílias não diferem daquelas que atendemos, mesmo que sejam economicamente diferentes. Sendo assim, a primeira barreira que temos que enfrentar é o espelhamento dos nossos problemas pessoais, diante dos problemas que atendemos, e como nos preparar para enfrentá-los. Quando, por exemplo, uma mulher se torna mãe, ao vivenciar a gestação, o sofrimento das cólicas do bebê, a angústia de imaginar os riscos para a saúde do recém-nascido, tornam-na muito mais empática ao atender mulheres com os mesmos problemas. Em contrapartida, é possível que ocorram situações as quais despertem sentimentos negativos, por exemplo, raiva, no atendimento de uma pessoa qualquer pelo fato de essa ação, de alguma forma, ter acionado gatilhos emocionais pessoaismal resolvidos e que se manifestavam na situação vivenciada pelo paciente. Chamamos isso de espelhamento de vivências. Sempre que atendemos alguém e essa pessoa, ou família, nos provoca sentimentos negativos, como irritabilidade, raiva, rejeição, os quais não sabemos exatamente a razão, devemos revisar com honestidade a nossa história e tentar entender a razão daqueles sentimentos negativos. É importante lembrar que não se trata da nossa família nem da nossa vivência. Mesmo que as histórias sejam semelhantes, os desfechos podem ser diferentes. Há situações extremamente mobilizadoras do nosso emocional, que não são propriamente espelhos de nossa vivência, mas mexem com os nossos sistemas de crenças. Em uma situação hipotética, por exemplo, seria quando, em uma orientação sobre o manejo de uma família cuja mãe é extremamente rígida e cuja religião a que pertencem é igualmente rígida em termos de costumes e regras, essa família acolher uma parente e esta engravidar, resultando em sua expulsão da residência porque, de acordo com a fé da mulher, a moça teria que pagar pelo seu pecado. É necessário muito controle para continuar tentando ajudar uma pessoa que se demonstra intolerante, rígida e adoecida, como essa mulher. Principalmente ao ouvir seu relato durante o atendimento, irredutível na sua decisão, de que a jovem suplicou para não ser expulsa de casa, por exemplo, porque não tinha para onde ir, uma situação extremamente mobilizadora das emoções e dos sistemas de crenças. 6 Temos uma tendência a julgar as situações por meio da nossa experiência e, na verdade, não há uma fórmula para impedir isso. Devemos estar atentos para diminuir o impacto da nossa pessoalidade no manejo das situações, ao mesmo tempo que continuamos olhando para nós mesmos e identificamos os pontos cegos que influenciam nossas ações e reações. 2.2 Graus de envolvimento na intervenção terapêutica Os pesquisadores Doherty e Baird descrevem cinco graus de envolvimento dos profissionais de saúde nas intervenções terapêuticas aplicadas às famílias, as quais passaremos a descrever (Falceto; Fernandes; Wartchow, 2005). • Grau 1: envolvimento mínimo nas questões familiares. O contato se restringe às questões legais, que eventualmente envolvam o atendimento, como as notificações obrigatórias em atendimentos de risco de vulneráveis. Isso é o que mais encontramos nos serviços de saúde, sobretudo nos profissionais atuantes nos hospitais, mas também há o mesmo modelo em Unidades de Saúde. O modelo biologicista se sobrepõe, limitando o contato às questões ligadas às doenças e à sintomatologia prevalente que são de natureza prática. • Grau 2: envolvimento de colaboração com a família. Nesse nível de envolvimento, os profissionais conseguem trocar algumas informações com as famílias, nos temas que envolvam aconselhamentos de saúde, como hábitos alimentares, condições de moradia, número de habitantes na casa, com o objetivo de aconselhamento. Não há entrada em temas mais aprofundados do funcionamento familiar, tais como fatores estressores ou demais condições do funcionamento familiar, porém, nesse nível, pode acontecer uma escuta solidária dos problemas e uma interação colaborativa entre o profissional e a família. Por exemplo: manejo de um paciente diabético, com difícil controle. • Grau 3: abordagem de apoio à família. Os profissionais de saúde dão atenção aos sentimentos da família, suas dificuldades de manejo de situações estressantes e elementos que fortalecem a família. Para uma atuação a contento, os profissionais devem ter conhecimento de algumas ferramentas de abordagem familiar, tais como o uso do genograma e características do ciclo de vida. A abordagem resulta em pactuações com 7 a família, além de aconselhamentos ou couching em algumas situações de muito estresse. Por exemplo: manejo de pessoas com transtornos mentais, etapas de separação de casais, entre outras condições. • Grau 4: abordagem sistêmica da família. Isso significa preparo para algumas intervenções e avaliações sistemáticas nas famílias. Na prática, o profissional de saúde deve estar apto para convocar reuniões familiares, planejar as intervenções e acompanhar a família de forma mais próxima. A família deve ser estimulada a falar sobre seus sentimentos e discutir os problemas que considera importantes. Requer o conhecimento de sistemas familiares e manejo de instrumentos de abordagem. Por exemplo: famílias em conflitos e sobrecarregadas com cuidados; famílias com pessoas vulneráveis em situação de risco aumentado. • Grau 5: terapia familiar. O profissional deve ter especialização em terapia familiar, sendo apto a abordar famílias com quadros disfuncionais importantes, que aceitem o acompanhamento pelo prazo de pelo menos seis meses. TEMA 3 – PRINCIPAIS ELEMENTOS PARA A ANÁLISE DO FUNCIONAMENTO FAMILIAR O funcionamento familiar é avaliado por meio de alguns parâmetros que são percebidos como adequados ou não, de acordo com a análise de seus membros e de observadores externos, incluindo nesse aspecto a percepção de parentes próximos, professores, vizinhos e outras pessoas em contato com a família. Passaremos a discutir os elementos de maior importância para essa análise. 3.1 Afeto As expressões de afeto dentro da família são, sem sombra de dúvidas, as primeiras manifestações de apreciação que detectamos. Ser reconhecido como alvo de carinho, amor e cuidado, traz a percepção do valor que temos dentro do sistema familiar. A construção do afeto parte dos pais em direção aos filhos, traduzido em palavras de reconhecimento de valor, enaltecimento de habilidades, de qualidades de caráter. 8 Ser carinhoso com a criança não significa permitir que esta se comporte mal, que seja mal-educada com os outros, indisciplinada, desorganizada. Ao contrário, o afeto se expressa também na correta orientação da criança, para que ela encontre os parâmetros de certo e errado, bem como entenda que as escolhas geram consequências e sinta segurança na direção de seus pais. Em vários momentos da vida da criança, sua argumentação de defesa será “minha mãe não deixa”. Para isso, as regras da casa precisam ser claras e a criança precisa sentir a segurança do afeto dos pais para que aprenda a acatar a autoridade deles sobre si de forma autêntica e saudável. A criança que é alvo de afeto dentro da família cresce sentindo-se segura, tem uma visão de dignidade sobre si mesma e torna-se apta, por sua vez, a expressar também seu afeto, retribuindo-o aos pais e às demais pessoas do seu convívio. Como a vida é realmente um ciclo, mais tarde os pais estarão idosos e frágeis, necessitados de afeto, cuidado, reconhecimento de valor, será então a vez de os filhos retribuírem o afeto recebido, aquilo que foi construído dentro deles no seu desenvolvimento pessoal. Nesse momento, vemos a colheita do que foi plantado, a qualidade do que foi produzido no interior de cada um. 3.2 Comunicação “A forma com que se processa a comunicação é muitas vezes mais importante que o seu conteúdo” (Falceto; Fernandes; Wartchow, 2005, p. 120). A afirmação das autoras faz muito sentido quando analisamos a comunicação humana. Apesar de pensarmos nas palavras que usamos para nos comunicar, a comunicação humana consegue ser ainda mais complexa do que a escolha das palavras. Isso acontece porque a nossa comunicação é carregada com as nossas emoções e elas influenciam diretamente aquilo que dizemos e o que não dizemos. Além das palavras, a comunicação se processa por meio de todas as nossas atitudes. É o que chamamos de “linguagem não verbal”. Dessa forma, falamos com o nosso olhar, com a nossa forma de movimentar o corpo, com a respiração, com o caminhar, com a gesticulação das mãos e com a mímica facial. Todo esse conjunto não verbal comunica mais intensamente do que as palavras,porque são canais poderosos de expressões de sentimentos e emoções. A percepção do sentimento do outro está ativa no nosso inconsciente, como um instinto primitivo. É entendida como uma das causas da dor neuropática do recém-nascido (RN), sobretudo se é o primeiro filho, que chamamos de cólica 9 do RN. Ele sente a insegurança da mãe ao segurá-lo, percebe o medo e ansiedade dos adultos ao seu redor, e transforma essa percepção em dor. Quando todos se acalmam, acostumam-se ao novo papel de mãe e pai, aprendem a lidar com o bebê e, sobretudo, que ele não vai se quebrar ao ser movimentado, o choro passa. Na análise do funcionamento familiar, é importante entender a maneira como os membros se comunicam: costumam falar claramente o que querem ou a comunicação é evasiva, truncada, hostil? As diferentes opiniões são respeitadas, ou se alguém demonstra pensar diferente é ridicularizado, desacatado? As pessoas demonstram espontaneidade para falar, ou só falam se sentirem autorizadas? As pessoas falam por si mesmas, ou sempre há um autodesignado porta voz? 3.3 Expressão e manejo de sentimentos Este item condensa os outros dois anteriores, porque aplica-se na prática a qualidade do afeto em conjunto com a comunicação dentro da família. Famílias sentem raiva, medo, frustração, dor, decepção, arrependimentos, inveja e todos os outros sentimentos humanos comuns. A diferença entre as famílias funcionais e as disfuncionais está em como expressam esses sentimentos e angústias e como lidam com estes no seu cotidiano. Há famílias que inventam um mundo fantasioso e não permitem que os problemas sejam claramente expressos. Sentimentos de raiva e frustrações são contidos, jogados para “debaixo do tapete”. Nessa condição, a aparência pode não denunciar a fragilidade dessa família, que muitas vezes até se trata de forma polida e educada. O contexto de fantasia às vezes é a religiosidade, a vida pública ou outra condição que impede a autenticidade dos sentimentos da família, até que aconteça uma crise, que expõe sua real condição. Outras famílias não expressam amor, afeto, porque entendem que isso é sinal de fraqueza, “bobagens sem sentido”. A dureza das relações se expressa em constantes críticas e cobranças, sem apreciação das conquistas e com supervalorização dos erros. Nessas famílias, a hostilidade, a culpa, o medo e a falta de afeto são predominantes. As crianças crescem inseguras de seu potencial, não se sentem amadas nem respeitadas. As brigas podem se manifestar com palavras e atitudes violentas, como gritos, quebra de objetos, xingamentos e palavras depreciativas, até com violência física. Com frequência, 10 pessoas que convivem nesses termos manifestam depressão, ansiedade, desesperança. Famílias que funcionam adequadamente aprendem a expressar seus sentimentos, conversam sobre eles e também aprendem a pedir desculpas pelas ofensas. Os pais sabem lidar com as fragilidades dos filhos e os ajudam a superá- las. Destacam suas forças e habilidades por meio de elogios e encorajamento. Constroem os filhos com o seu afeto e os sustentam com boas atitudes que servem de exemplo para, no futuro, aprenderem a lidar com as dificuldades da vida. Os sentimentos de raiva e frustração podem ser expressos e trabalhados na família, mas sempre com o componente da esperança, a busca de soluções para os problemas e o conforto de estar em uma atmosfera de amor e confiança. Famílias que aprendem a lidar com os seus sentimentos, se comunicam bem e expressam seu afeto, são sempre famílias de sucesso, não importa sua condição social. TEMA 4 – ANÁLISE DO FUNCIONAMENTO DO CASAL Quando analisamos a família como sistema, é preciso lembrar que existem outros subsistemas que compõem o sistema maior. O mais importante desses sistemas é, sem dúvida, o casal. Na verdade, o subsistema casal assume essa posição a partir do momento em que a família se amplia com a chegada dos filhos. Essa mudança de fase exige adaptações que repercutem em toda a família, modificando as relações de liderança, responsabilidades e papéis. Na etapa anterior à chegada dos filhos, o funcionamento do casal costuma ser bastante diferente, porém, a maneira como o relacionamento é construído direciona a forma como as adaptações aos filhos vão acontecer no futuro. Por esse motivo, o casal que demora mais para ter filhos e tem mais tempo para se acostumar um ao outro, conciliando suas diferentes culturas, discutindo previamente seus princípios, tem mais chances de se ajustarem no momento em que os filhos chegam na família, diminuindo os conflitos dessa etapa. Para entender um pouco a dinâmica da família, é fundamental compreender o padrão do funcionamento do casal. É importante destacar que, embora estejamos falando de um casal, não significa que a análise aplique-se ao casal tradicional, homem e mulher. Na verdade, estamos nos referindo a qualquer tipo de conjugalidade. 11 Afinal, por que as pessoas se casam? É uma pergunta que tem respostas diferentes dependendo da época em que é feita. No decorrer do tempo, houve vários motivos para que as pessoas se casassem, que variavam desde a consolidação de acordos políticos, a manutenção de heranças e dinastias e mesmo por obrigação social. O entendimento de que o amor deveria fazer parte do casamento levou ao entendimento de que as duas pessoas deveriam escolher- se para que houvesse casamento. 4.1 Companheirismo, amizade e intimidade Mesmo sob a perspectiva sentimental, a união conjugal é composta de funções práticas e responsabilidades que são assumidas como implícitas no contrato pessoal e social do casamento. O companheirismo é uma dessas funções. O casal assume o cuidado um com outro – sobretudo nos momentos difíceis, como na doença –, proteção mútua, apoio social e segurança afetiva. Essa função proporciona crescimento pessoal a cada um dos cônjuges, como também ao casal enquanto unidade. Como parte do companheirismo está na prática a divisão de tarefas e o suporte financeiro. O modo como cada cônjuge contribui para o casamento deve ser fruto de uma pactuação prévia. Há situações em que um dos cônjuges apresenta situação financeira melhor do que outro. Em outros momentos, um dos cônjuges tem mais tempo livre em casa, o que facilita a realização das tarefas da casa. A forma como tarefas e finanças são divididas e organizadas demonstram muito a maturidade do casal e sua forma de relacionamento. A amizade faz parte do relacionamento conjugal, por isso é muito difícil para um casal manter sua união se não há muitas similaridades. Da mesma maneira que desenvolvemos outros relacionamentos de amizades, os cônjuges precisam reconhecer qualidades um no outro que proporcionam sincronia. São valores que repercutem na nossa maneira de ver o mundo, e que nos movem em algumas direções. Apreciação e valorização do outro são fundamentais para o desenvolvimento pessoal e segurança afetiva do casal. A análise da intimidade vai muito além da liberdade de se despir na frente do outro, mas compreende a liberdade de se expressar, de abrir o coração com o outro sem temer ser julgado, mal interpretado ou rejeitado. A verdadeira intimidade proporciona a comunicação com o olhar, a diversão de antecipar o que o outro vai pensar e dizer sobre determinado assunto, mas mesmo assim respeita 12 e tolera a opinião diferente porque não restringe a autonomia do parceiro (diferentemente das relações abusivas). A intimidade se traduz em liberdade de interagir com o outro, sem medo, por se saber aceito e pertencente. O casal que desenvolve intimidade está, de fato, vivendo uma conjugalidade. 4.2 Relacionamento sexual Como disse Arnaldo Jabor na letra da canção “Amor e sexo”, composição em parceria com Rita Lee e Roberto de Carvalho (2003), “amor sem sexo é amizade”; portanto, o relacionamento sexualé fundamental na relação do casal. Um casal que funciona adequadamente certamente estará satisfeito quanto ao modelo e frequência de suas relações sexuais, considerando esse momento o mais expressivo de sua intimidade conjugal. A OMS trata do tema da sexualidade na Declaração dos Direitos Sexuais e Reprodutivos e em sua mais recente publicação no Brasil. Sexualidade é um aspecto central do ser humano ao longo da vida; ela engloba sexo, identidades e papéis de gênero, orientação sexual, erotismo, prazer, intimidade e reprodução. A sexualidade é vivida e expressada por meio de pensamentos, fantasias, desejos, crenças, atitudes, valores, comportamentos, práticas, papéis e relacionamentos. Embora a sexualidade possa incluir todas essas dimensões, nem sempre todas elas são vividas ou expressas. A sexualidade é influenciada pela interação de fatores biológicos, psicológicos, sociais, econômicos, políticos, culturais, jurídicos, históricos, religiosos e espirituais. (OMS, 2020, p. 14) A relação sexual é integrante do contrato social implícito no casamento, com importantíssimo papel na autoestima, na satisfação emocional e no amadurecimento do casal, sendo o afastamento sexual um sintoma de problemas. Perdurando a situação de falta de sincronia sexual, as chances de o casal se desfazer aumentam proporcionalmente. O padrão das relações sexuais na verdade traduz na prática outros padrões de relacionamento do casal, como as relações de poder, que discutiremos adiante. Por se tratar de um ato de grande intimidade, é um assunto que não tem abordagem fácil. As pessoas tendem a responder de modo evasivo quando se pergunta durante a anamnese sobre o padrão da relação sexual. A maioria responde “normal”. Porém, o que é o normal? Certa vez, durante um atendimento a uma senhora no foco de saúde da mulher, esta queixou-se de ter pouco interesse nas relações sexuais. Após o 13 exame físico ginecológico, esta foi informada de que estava com boa saúde nessa área e que provavelmente seu desinteresse sexual estava ligado a alguma razão emocional dentro do seu relacionamento. Ao ser perguntada sobre como era o relacionamento sexual, a resposta padrão foi “normal”. Na tentativa de se aprofundar mais sobre a pergunta, checando alguns detalhes, percebemos a barreira que a paciente tinha para falar do assunto, mesmo sendo sua principal queixa. Quase no final da consulta, ao entregar o pedido de exames e prescrição, essa paciente perguntou se era normal um homem não gostar de fazer sexo, mas desejar ver a esposa fazendo sexo com outra pessoa. Esse tipo de momento exige o uso do controle emocional e experiência profissional para não demonstrar qualquer desconforto com a pergunta. Em resposta, ao perguntar-lhe sobre como se sentia com relação a esse desejo, ela começou a chorar, dizendo que se sentia muito mal e que esse era o motivo de não desejar intimidade sexual com o parceiro. As relações sexuais humanas estão atreladas a um modelo ético que envolve o respeito ao outro e à sua vontade, por isso devem envolver a aquiescência dupla, com condições completas para a decisão de ambas as partes, respeitando a complexidade emocional humana e não se restringindo apenas ao intercurso sexual físico. Por esse motivo, considera-se estupro a relação sexual entre adultos e adolescentes, mesmo que seu corpo tenha alcançado maturidade sexual reprodutiva, visto que maturidade sexual não é simultânea à maturidade emocional. Mesmo casados, a parceria conjugal pode não se expressar em equilíbrio, ocasionando até o estupro conjugal e outras relações abusivas, como a relatada anteriormente. Essa é uma condição de difícil comprovação, a não ser que seja acompanhada de outras violências físicas, porém, é muito frequente. Se a pessoa está em uma relação abusiva, a prevalência do estupro é maior ainda, assim como as relações sexuais forçadas e em desagrado de um dos cônjuges. A relação sexual normal para o casal é aquela que atende ao pleno acordo, conforto e satisfação para a parceria, dentro dos padrões éticos, sociais e dos valores morais de ambos. Se um dos parceiros não está satisfeito, então a relação sexual não é satisfatória. 14 4.3 Relações de poder entre o casal Nos relacionamentos entre duas pessoas adultas e maduras, este tema sequer necessitaria de discussão, afinal, o que se espera em um relacionamento equilibrado é também o equilíbrio do poder. Quando um manda e o outro obedece, algo está muito errado. Apesar de esse modelo de comando ser mais relacionado ao homem, há muitos casais em que o domínio parte da mulher. O modelo dominação-submissão necessita de algumas estratégias para dominar; uma delas é pelo ciúme, com base no argumento do amor intenso. O outro vira objeto de vigilância constante, sob o comando do dominante. Todas as ações são passíveis de desconfiança e nada será feito sem uma autorização prévia do dominante. Em razão desse tipo constante de pressão, é frequente o lado submisso tomar decisões de forma escondida, fazer alianças com os filhos ou outros membros da família, como sogros e pais, tudo na tentativa de defender-se ou tentar manipular as decisões. Essa é uma atitude perigosa, porque, além de não resolver o problema central, acaba por arrastar os filhos para os conflitos diretos do casal, e ainda pode colocar os sogros e pais em posições difíceis. Aos poucos, o lado submisso vai perdendo sua identidade, passa a se enxergar sem condições de reagir e pode ser alvo dos mais variados tipos de violência, acreditando-se incapaz de tomar decisões. São famílias sob dominação, medo, em que há inflexibilidade e dificuldade para adaptação a situações novas. Quando o casal tem equilíbrio de poder, as decisões são compartilhadas, não há uma agenda oculta entre eles e não há necessidade de alianças inapropriadas com os filhos, fazendo-os escolher lados para se posicionar, contra ou a favor de um dos pais. Há confiança e reconhecimento da capacidade de ambos entrarem em acordo sobre qualquer tema importante para o casal, desde a divisão das tarefas domésticas até orçamento, compra de bens, educação dos filhos, entre outros. Quando há equilíbrio de poder, o amor não é usado como desculpa para dominar e despersonalizar o outro, porque, afinal, quando nos casamos com alguém, o fazemos porque gostamos da pessoa do jeito que ela é. Depois que a pessoa muda, na tentativa de agradar ao outro, muda também aquilo que foi o gerador da atração e, no final, destrói-se aquele a quem se disse amar. 15 TEMA 5 – CLASSIFICAÇÃO DO FUNCIONAMENTO FAMILIAR Com base nos itens analisados anteriormente, juntamente com as rotinas familiares, pesquisadores classificaram os níveis de funcionamento familiar de 5 a 1. Nesse momento, usaremos como base a análise de Falceto, Fernandes e Wartchow (2005), fruto de pesquisas com famílias atendidas na periferia de Porto Alegre (RS), para descrevê-los a seguir. • Nível 5: a família se organiza em funções e rotinas de modo a atender às necessidades de todos os seus membros. Consegue ser flexível e realizar mudanças e adaptações de acordo com as necessidades que se apresentam, por meio de negociações entre o casal de forma equilibrada. Os problemas são discutidos, os sentimentos são expostos e resolvidos. Os filhos são reconhecidos na sua individualidade e respeitados. Não há sistema de preferidos, mas todos importam igualmente na composição familiar. Há um sentimento de otimismo dentro da família. As relações sexuais entre o casal são satisfatórias. • Nível 4: a família consegue se organizar na maioria das rotinas, mas sofre para se adaptar a mudanças, demonstrando menos flexibilidade e maior dificuldade de negociação. Há situações mal resolvidas porque o diálogo não é totalmente aberto, variando com o humor dos adultos. Há muito esforço para conter alguns membrosda família em razão dos momentos de falha no diálogo, causando tensão. São famílias que até conseguem bons resultados na criação dos filhos, o casal permanece junto, mas há muitos bloqueios emocionais e situações mal resolvidas, geradoras de mágoas e desconfianças, permeando as relações. Existe carinho, mas também existe irritabilidade e frustração. As relações sexuais do casal variam, sendo satisfatórias em alguns momentos, mas insatisfatórias em outros. • Nível 3: nesse nível, os períodos de bom funcionamento são poucos, sendo prevalentes os conflitos, que atrapalham com frequência a rotina da família. Há dificuldade adaptativa às situações de estresse, com agravamento de todas as condições emocionais envolvendo os membros. Com muita frequência, pessoas manifestam sintomas relacionados à ansiedade e depressão. Filhos adultos tentam se afastar. Dor, raiva e paralisia emocional dificultam o compartilhamento de eventuais sucessos e vitórias 16 entre os membros. As relações de poder são desequilibradas e há problemas sexuais frequentes entre o casal. • Nível 2: a família que está neste nível de funcionamento é considerada seriamente disfuncional. Não há organização de rotinas, de modo que as necessidades dos membros, sobretudo dos mais frágeis, são ignoradas. Não consegue adaptar-se às mudanças necessárias na vida, como a saída e entrada de membros na família, assim como perdas de emprego ou outras crises geram conflitos e confusões. As decisões são tirânicas, sem considerar as necessidades individuais. Há distanciamento, mágoas, hostilidade entre os membros. Tendência a casamentos precoces com o objetivo de sair desse lar em conflito. Casos frequentes de doenças mentais, sobretudo de dependência de substâncias entre os membros da família. Disfunção sexual grave entre o casal. • Nível 1: a disfuncionalidade da família é considerada excessiva, provocando com muita frequência a quebra de vínculos entre os membros. As rotinas são muito poucas, os membros da casa não sabem onde os outros estão. Não há compromisso de cuidado com os mais frágeis, havendo negligência com crianças e idosos. A comunicação é truncada, cheia de mal-entendidos, que provocam conflitos por ofensa ou falta de atenção ao que é dito. Pessoas nesse tipo de relação podem agredir uns aos outros. Ameaças e humilhações são frequentes. Com frequência há crimes sexuais acontecendo, sob o silêncio daqueles que percebem, mas que não têm forças para reagir, ou não se importam. Sentimentos como cinismo, ironias, desespero, são frequentes. Nessas famílias, há transtornos mentais com manifestações de gravidade. Pode haver tentativas de suicídio, automutilação, transtornos alimentares. Há risco de feminicídio. É dever da equipe de saúde se manifestar legalmente para a proteção dos mais frágeis, como comunicar aos conselhos de apoio ou ao Ministério Público, se tiver conhecimento de crianças, adolescentes ou idosos em risco. É importante ressaltar que a classificação de funcionamento não se relaciona às condições sociais, educacionais ou financeiras, mas a forma como a família demonstra seu afeto, sua ligação uns com os outros, sua comunicação, a forma como lida com os problemas. É evidente que boa educação, condições financeiras estáveis, saber comunicar-se bem com boas palavras, são 17 instrumentos que favorecem o relacionamento familiar, mas não são determinantes do sucesso ou fracasso da família; se assim fosse, não haveria famílias ricas e educadas extremamente magoada e desvinculadas e não haveria famílias pobres felizes. Mesmo assim, sabemos que condições desfavoráveis de vida angustiam as famílias, tornando-as mais frágeis e expostas a outros riscos, como criminalidade, dependência química, desnutrição e diversas outras doenças. Porém, quando há valores fortemente incutidos, mesmo com todas as barreiras, as pessoas conseguem se vincular e formar famílias fortes que os apoiam e sustentam mesmo em condições muito adversas, porque esse é o principal papel de uma família. 18 REFERÊNCIAS COSTA, L. F. A perspectiva sistêmica para a Clínica da Família. Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, v. 26, n. spe, p. 95-104, 2010. Disponível em: <http://www.scielo. br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-37722010000500008&lng=en&nrm=is o>. Acesso em: 5 mar. 2021. FALCETO, O.; FERNANDES, C.; WARTCHOW E. O médico, o paciente e sua família. In: DUNCAN, B. B. et al. Medicina ambulatorial: condutas de Atenção Primária baseadas em evidências. 3 ed. Porto Alegre: Artmed, 2005. p. 115 a 124. OMS – ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Saúde sexual, direitos humanos e a lei. Tradução de Universidade Federal do Paraná, Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Instituto Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2020. Disponível em: <https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/175556/ 9786586232363-por.pdf?ua=1>. Acesso em: 5 mar. 2021.
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