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A SÚMULA VINCULANTE Nº 5 DO STF E O PRINCÍPIO DA EFETIVA AMPLA DEFESA EM PROCESSOS ENVOLVENDO SERVIDORES PÚBLICOS COM DEPRESSÃO CESUSC – Direito Público – 8ª edição Disciplina: Servidores Públicos Nome: Pedro Adolfo Savoldi Introdução A Súmula Vinculante nº 5 do STF é clara ao determinar a possibilidade de que os servidores públicos representem sua própria defesa em Processos Administrativos Disciplinares, sem necessidade de constituição de advogado. Entretanto, tal súmula gera algumas controvérsias jurídicas, tanto de ordem prática como de ordem técnica, uma vez que sua aplicação desconsidera uma série de fatores e garantias constitucionais sob a égide do princípio do informalismo processual que é próprio dos procedimentos administrativos. Dentre tais problemáticas jurídicas decorrentes da dispensabilidade do advogado em prol do exercício da defesa pelo próprio servidor, destaca-se o caso de servidores públicos acometidos de depressão, uma doença marcada pela apatia, o que obviamente inclui sua relação com assuntos funcionais – especialmente nas hipóteses em que a depressão é causada ou agravada como uma consequência direta da instauração do procedimento disciplinar. Diante disso, o presente estudo visa realizar uma reflexão acerca do embate entre a Súmula Vinculante nº 5 do STF e o princípio da efetiva ampla defesa, notadamente em casos de servidores públicos acometidos de depressão, por se tratar de uma doença que prejudica a própria capacidade intelectual e de tomada de decisões. I. A Súmula Vinculante nº 5 do STF e o Princípio do Contraditório e Ampla Defesa Em breve síntese, a Súmula Vinculante nº 5, editada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no ano de 2008, estabelece que a falta de defesa técnica constituída em Processos Administrativos Disciplinares (PAD) não caracteriza ofensa à ampla defesa. Assim, uma vez que a legislação determina que o servidor poderá, e não que deverá constituir advogado, entende-se que a presença do servidor público investigado, em defesa própria, já preenche os requisitos da ampla defesa. Adicionalmente à todas as nuances que compõem o conceito jurídico de garantia ao contraditório e ampla defesa, ambas previstas na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, cumpre destacar, preliminarmente, que os processos administrativos são regidos, dentre outros, pelo princípio do informalismo procedimental. Nas palavras de José dos Santos Carvalho Filho, o princípio do informalismo procedimental significa que “não há para o administrador a obrigação de adotar excessivo rigor na tramitação dos processos administrativos, tal como ocorre, por exemplo, nos processos judiciais” 1. Contudo, o autor supracitado também destaca que a autoridade processante deve adotar tal postura como uma forma de “seguir um procedimento que seja adequado ao objeto específico a que se destinar o processo”2. Ainda sobre tal princípio, vale citar a lição de Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari3: O princípio da informalidade significa que, dentro da lei, sem quebra da legalidade, pode haver dispensa de algum requisito formal sempre que sua ausência não prejudicar terceiros nem comprometer o interesse público. Um direito não pode ser negado em razão da inobservância de alguma formalidade instituída para garanti-lo, desde que o interesse público almejado tenha sido atendido. Dispensam-se, destarte, ritos sacramentais e despidos de relevância, tudo em favor de uma decisão mais expedita e, pois, efetiva. (grifo nosso) Não obstante, portanto, o caráter de informalismo procedimental das sindicâncias e processos administrativos, obviamente existem limites e requisitos mínimos a ser atendidos. Diante destes limites, que serão demonstrados adiante, é que esta breve análise não vislumbra qualquer possibilidade de que um servidor público – que antes de mais nada, é um ser humano –, enquanto acometido de uma doença psiquiátrica grave como a depressão, seja capaz de representar sua própria defesa com a presteza e zelo minimamente aceitáveis dentro dos ditames do contraditório e da ampla defesa. 1 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 26ª ed. São Paulo: Atlas. p. 980. 2 ibid., p. 980. 3 FERRAZ, Sérgio e DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. 3ª ed. São Paulo: Malheiros. p. 125/126. Primeiramente, faz-se importante elucidar que os termos “contraditório” e “ampla defesa” representam dois conceitos distintos. O contraditório implica na bilateralidade do processo, abrangendo a ideia de que há uma necessidade de que seja ofertada à parte investigada o pleno conhecimento daquilo que lhe é imputado, bem como o direito à resposta4. Assim, evidencia-se que o contraditório não se confunde com o conceito de ampla defesa, senão vejamos: O contraditório é um dos meios de garantia da ampla defesa. Dessa forma, além de a ampla defesa englobar a possibilidade de os interessados sustentarem suas razões, de produzirem provas e de influírem na formação do convencimento de quem decide, exige ainda: aspectos de regularidade do processo, a presença de defesa técnica, a imparcialidade de quem decide, justiça nas decisões estatais, que consubstancia o devido processo substantivo. Sendo assim, ampla defesa é noção mais abrangente que contraditório.5 A ampla defesa, conforme leciona Marinela6, trata-se, portanto, de um princípio inerente ao próprio direito de ação, como uma consequência do devido processo legal e, desta forma, depende de algumas exigências para que tenha sua eficácia garantida. De tal modo, ainda acerca da ampla defesa especificamente, torna-se de suma importância destacar o que se segue: O princípio da ampla defesa assegura às partes, que debatem procedimentalmente em contraditório, a otimização do desenvolvimento de teses argumentativas, de produção e análise de provas, bem como da interposição de recursos, nos limites do tempo legal.7 Ainda: [...] Todavia, para que seja observada a ampla defesa de direitos, faz-se necessária a participação do advogado, levando-se em consideração seus conhecimentos jurídicos.8 (grifo nosso) Cumpre ressaltar, de tal forma, que os princípios do contraditório e ampla defesa acima delineados, para além de se tratarem de princípios constitucionais – o que, por si só, já os posicionariam em condição hierárquica superior às 4 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; e GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo. 19. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 55. 5 NOHARA, Patricia Irene. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas. S.A, 2011. p. 252. 6 MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 1075. 7 TOLENTINO, Fernando Lage. Princípio constitucional da ampla defesa, direito fundamental ao advogado e estado de direito democrático: da obrigatoriedade de participação do advogado para o adequado exercício da defesa de direitos. 2007. Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Direito. p. 107. 8 ibid., p. 107. normas infraconstitucionais – também detêm a condição de cláusulas pétreas, uma vez que conservam uma garantia constitucional. Assim, resta claro que todo o desenvolvimento da fase de instrução em procedimentos administrativos disciplinares sem que haja a presença de defesa técnica constituída por pessoa capacitada, ou seja, por advogado, caracteriza uma anomalia na necessária aplicação dos princípios inerentes à garantia do devido processo legal, o que viola diretamente o texto disposto no inciso LV, do art. 5º, da Constituição Federal9, conforme será demonstrando adiante. II. Da necessidade dedefesa técnica exercida por advogado É inegável que, embora o Estado seja detentor da prerrogativa e obrigação de investigar e punir servidores públicos por eventuais irregularidades, da mesma forma lhe é imputado que observe, assegure e promova a garantia constitucional da ampla defesa e do contraditório. De tal modo, tem-se que a presença do advogado é essencial para que seja proporcionada, ao investigado, uma defesa adequada, uma vez que é o profissional qualificado para exercer tal função de maneira técnica, condição que as demais carreiras, naturalmente, não possuem. A título de exemplo, destaque-se que vários estatutos que estipulam a necessidade de acompanhamento por defensor com aptidão técnica durante a fase de instrução em Processo Administrativo Disciplinar. Contudo, na prática essa prerrogativa é relativizada, com base na Súmula Vinculante nº 5 do STF. Nesse mesmo sentido, vejamos o que dispõe o art. 133, da Constituição Federal, in verbis: Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei. Assim, em relação à garantia do devido processo legal, é evidente que há uma distinção clara entre o que pode ser conceituado como uma defesa comum e uma defesa técnica. De tal maneira, muito embora os mais diversos estatutos que definem os regimes dos servidores públicos não contemplem tal distinção, a conjuntura constitucional é clara ao estabelecer que o exercício do contraditório 9 Art. 5º [...] LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. e da ampla defesa perpassa, necessariamente, pela atuação técnica do advogado. Isso se dá ao fato de que a defesa comum, sem representação apta para tanto, poderia ocasionar uma série de problemas, desde a perda de prazos, atendimento insuficiente às respostas, a própria produção de provas contra si mesmo, até a possibilidade de que o servidor, em exercício de sua própria defesa, dê causa a nulidades das mais diversas formas. Assim, não obstante a edição e aplicação da Súmula Vinculante nº 5 do STF, pode-se naturalmente argumentar – em consonância com a CRFB/88 –, que há, de fato, a necessidade do cumprimento ao requisito da representação técnica constituída por advogado em procedimentos administrativos disciplinares. Isso porque, embora a legislação estadual muitas vezes defina que a representação da defesa por advogado seja meramente uma faculdade do servidor público investigado, tem-se que a defesa efetuada por uma pessoa sem conhecimento técnico-jurídico, mesmo que um dativo bacharel em direito, é uma defesa insuficiente, podendo assemelhar-se à própria inexistência de defesa. Cumpre destacar, nesse ponto, que os processos administrativos disciplinares se prestam para fins de apuração de faltas disciplinares ou violações de deveres funcionais, com a respectiva imposição de sanções administrativas. De tal modo, não é incorreto definir que seu objeto é a averiguação de infrações e a aplicação das correspondentes punições aos agentes responsáveis. Nessa senda, vejamos o que leciona Marinela10 acerca do princípio do devido processo legal: Representa um superprincípio norteador de todo ordenamento jurídico. Um direito fundamental previsto no art. 5, inciso LIV, da CF, segundo o qual: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, regra imune à alteração constitucional e de aplicabilidade imediata. Fazer processo conforme determina a lei é um princípio que rege todo o sistema jurídico, fundamentado no princípio da legalidade, que informa a maneira de serem realizados todos os procedimentos judiciais, assim como os administrativos. Entretanto, conforme foi apontado anteriormente, o STF, ao editar uma súmula vinculante, passou a entender que não há qualquer violação ao art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal diante da não obrigatoriedade de defesa técnica realizada por advogado em processos administrativos disciplinares. 10 MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 1073. Não obstante tal entendimento, tem-se que: [...] a fragilidade jurídica da Súmula nº 5 compromete a aplicação dos princípios constitucionais no processo administrativo disciplinar, visto que a ausência de advogado no trâmite processual culmina em desvirtuar a economia processual face às inúmeras nulidades provocadas justamente em razão da inexistência da técnica jurídica. A inobservância do devido processo legal provoca nulidades e afronta o direito de defesa do acusado. As nulidades podem ser arguidas quando resultantes de vícios de competência, relativos à citação, cumprimento de prazos, diligências, produção de provas, entre outros que requerem uma visão técnica para sua demonstração e cabimento.11 Caso se entenda de modo contrário, restará evidente a hipótese de cerceamento de defesa, resultando necessariamente na nulidade absoluta do procedimento administrativo. Para mais, não obstante a inexistência fática de defesa técnica, tem-se que, notadamente para casos envolvendo servidores públicos com depressão, tampouco se pode considerar que alguns atos processuais e procedimentais, como, por exemplo, a realização de intimações – tanto para comparecimento durante as oitivas, como para realização de interrogatório ou arrolamento de testemunhas de defesa – possam constituir sequer uma defesa comum, conforme será melhor analisado adiante. III. A depressão como patologia que impossibilita o exercício da defesa comum: Todas as discussões sobre a Súmula Vinculante nº 5 encontram uma complicação especial quando da análise de casos envolvendo servidores acometidos de depressão – esta muitas vezes agravada ou até originária da própria instauração e tramitação do PAD. Assim, uma vez que um dos sintomas da depressão é justamente a apatia e falta de interesse em praticamente todos os aspectos da vida, inegável, que tal servidor se torna absolutamente incapaz de realizar sua defesa durante a instrução de um procedimento administrativo. Dentre os sintomas da depressão, mister se faz trazer o destacado pela literatura médica, in verbis: 11 JUNIOR, José Ribamar Veloso. O princípio constitucional do contraditório e da ampla defesa no processo administrativo disciplinar. Disponível em: <http://ambitojuridico.com.br/site/index.php/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8497&revista_cader no=4>. Acessado em 25 de outubro de 2019. Sintomas psíquicos: Diminuição da capacidade de pensar, de se concentrar ou de tomar decisões. Decisões antes quase automáticas parecem agora custar esforços intransponíveis. Um paciente pode se demorar infindavelmente para terminar um simples relatório, pela incapacidade em escolher as palavras adequadas. O curso do pensamento pode estar notavelmente lentificado. Professores experientes queixam-se de não conseguir preparar as aulas mais rotineiras; programadores de computadores pedem para ser substituídos pela atual "incompetência"; crianças e adolescentes têm queda em seus rendimentos escolares, geralmente em função da fatigabilidade e déficit de atenção, além do desinteresse generalizado.12 É exatamente em tal condição que se encontra, muitas vezes, o servidor público que figura no polo passivo de um processo administrativo disciplinar. De tal modo que toda e qualquer atividade – mesmo as mais simples -, passam a requerer de si um esforço extraordinário, o que, somado ao altíssimo grau de apatia que é própria da depressão,faz com que o estado de inércia seja uma constante em sua vida, mesmo com a ciência de que algum prejuízo dela decorrente poderia lhe ser causado. Durante a permanência deste quadro, é comprovado que o indivíduo não consegue sequer resolver os problemas mais comuns do dia-a-dia, uma vez que sua capacidade de concentração é diminuída, o rendimento nas atividades cai drasticamente e o isolamento social passa a preponderar. Ademais, os sentimentos de desesperança, descontentamento, tristeza, solidão, tédio e sofrimento emocional passam a ser constantes. Por isso, não há como se considerar que um servidor público acometido de depressão seja passível de realizar sua própria defesa em um procedimento administrativo, especialmente no que diz respeito aos atos procedimentais mais comuns, como o atendimento a uma intimação para comparecimento em interrogatórios ou apresentação de rol de testemunhas no prazo estabelecido. Do mesmo modo, faz-se evidente que é essa condição patológica o que prepondera quando o servidor é intimado para especificar as provas de seu interesse e, por fim, para apresentar sua defesa escrita em forma de alegações finais. Desta forma, além da falta de defesa técnica, resta indubitável a impossibilidade de que o servidor público acometido de depressão exercer sequer aquilo que pode ser denominado como uma defesa comum ao longo de um processo administrativo disciplinar, haja vista que a depressão se trata de 12 DEL PORTO, José Alberto. Conceito e diagnóstico. Rev. Bras. Psiquiatr., São Paulo, v. 21, supl. 1, p. 06-11, May 1999 . Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516- 44461999000500003>. Acesso em: 25 de outubro de 2019. uma doença psiquiátrica cujos sintomas causam, dentre vários outros, na permanência do servidor em um grau de impassibilidade cujo reflexo inevitável é total inércia para a prática dos atos mais comuns. IV. Conclusão: Diante dos fatores apresentados, torna-se eminente reconhecer que, muito embora se aceite a interpretação aplicada pela edição da Súmula Vinculante nº 5 do STF, compreenda que a presença do advogado seja um fator dispensável em procedimentos administrativos disciplinares, ainda assim, não é possível que se reconheça que, aos servidores acometidos de depressão, possa-se aplicar a mesma regra sem que haja quaisquer ressalvas. Conforme destacado, as controvérsias acerca do tema são válidas e geram inesgotáveis discussões, especialmente no que diz respeito à conceituação doutrinária e constitucional dos termos defesa técnica e defesa comum. Porém, há de se reconhecer que as condições decorrentes dos sintomas prolongados da depressão fazem com que o servidor seja desviado de forma absoluta da possibilidade de atuação como um agente promotor da sua própria defesa técnica. Assim, embora as discussões concernentes ao embate entre a Súmula Vinculante nº 5 e o princípio da efetiva ampla defesa gerem diversos desentendimentos no campo daquilo que se conceitua como defesa técnica, é inegável a necessidade de se reconhecer que, ao se identificar que o servidor público que figura no polo passivo de um processo administrativo disciplinar se trata de uma pessoa acometida de depressão, a discussão sofre um necessário desnivelamento, deslocando-se do campo da argumentação sobre a defesa técnica para o campo da discussão sobre a mera defesa comum. Diante dos sintomas psiquiátricos largamente demonstrados e reconhecidos pela literatura e prática médica, dentre os quais consta a diminuição da própria capacidade de concentração e, especialmente, a apatia – ou seja, um desinteresse generalizado e clinicamente justificado – faz-se imperioso reconhecer que a mera aplicação da Súmula Vinculante nº 5, mesmo com todos os contornos argumentativos possíveis, ainda assim não abarca a situação dos servidores públicos que se encontrem sob essa condição.
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