Buscar

BANDEIRA, Manuel - Poesia e verso in Seleta em prosa e verso

Prévia do material em texto

r '-,r
, .
..;~,:.~ o:_. I
'," '~f
h ._~~~~0- .-~,"" .'. ..::::.... _~ ~P-lf&~~: .~
!I ~JI
/, /
/.
do Curvelo. Dum momento de tundo desânimo, da mais aguda
sensação de tudo o que eu não tinha leito Da minha vida por
motivo da doença, saltou-mede súbito do subconsciente esse grito
estapaIÚIdio: "Vou-me embora pra PasiÍrgada!" Senti na rcdon-
dilha a primeira c~lula de um poema, e tentei realizá-Ia, mas
fracassei. Já nessc tempo eu n50 forçava a mão. Abandonei a
idéi3. AlguDs anos d~pois, em id~:'lti::as circunstãncias de dc:;a-
lc:nto e t~dio, me ocorrclI o mesmo dl.:sabafode evasão da "vida
besta".8 Desta "cz o poema saiu sem esforço, corno se já esti-
\'esse pronlo dentro de miut. Gosto dcsse poema porque vejo
ndt!, em escorço, rvda a //linha I'ida; e tambémporqueparece
que nele soube transmitir a tantas OUltas pessoas a visão e pro-
messa da minha adolescência-essa Pas:írg:HJaonde podemos viver
pelo sonho o que a vjJa madrasta não DOSquis dar. Não sou
arquiteto, como meu pai desejava,n50 fil nenhumacas:t,mas
reconstruí,e "não como {arma impcrí~itanc~tc mundo de ap:m:n-
das", uma cidade ilustre, que hojl.!nfio é mais a Pasárgadade
Ciro, e sim a "plinha" Pasárgatla.
..
liA úllima Canção do B~co"Ué o melhorpoemaparaexem-
ptiCicarcvmo em minha poesia quasetudo resulta de uni jogo
de intuições. Não (aço poesia quando quero e sim quandoela,
poesia,quer. E da quer àsvezesem horasimpossíveis:no meio
dJ noitc, ou quando estou em cima da hora para ir dar lima aula
na Faculdade de Filosofia ou sair para 11mjantar de cerimô-
nia, ., "A última Canção do Dcco" nasceu num momentodes-
tes, só que o j:.mlar,n50 era de ccrimüniJ. Na vesperade me
mudar da Rua MúrJis e \'ale, Ús sds e lanto Lia t;mk. tinha eu
acabado de arrumar os meus tnx;os e cairJ ~:<austona cama.
Exaustoda arrumaçiioe um puuco tambf:rud:l emn.;~ode ddxar
aqude ambiente, onde vivera nove anos. De repente a I.'nloção
se ritmou em rc:donJilhas,escrevi a prinlL'iraestrofe, mas era
hora de vestir-me parJ sair, vesti-me com os VLT~()Ssurdindo na
cabeça, desci à rua, no Beco das Carrnclitasme Icmhrd d~ R;lul
de uoni, e os wrsouintlo sempre, e eu <.:umIIII.:dl)de esquecê-
-Ios,tomd um bonde, saqueido bolso um pedaço óe papel c um
lápis. fui tomando ~ minllas nol.1s numa estenogiaria improvi-
sada, senão quando lá se quehrou a pon!J do lápis, os versos
não paravam. .. ~?a~~o í1.-0!!!~ d~gw.Q,e::~i u]n lápisc e!>Crevi
~)
26 m.b.
-4
Seleta em ProDs e Verso de ~3nuel.
Or;$ E~anuel de ~orae~-
Livraria José Olympio EU$
Rio de Janeiro,1975,2êed.
-~
i
E~nde i::.u .
,"
. .---------.
o que ainda guardava de cor. .. De ,,'oltaa casa, bati os versos
na máquina e fiquei espantadíssimoao veriticar que o poema se
compusera,à minha revelia, em sete estrofesde sete versosde
sele si/abas. .(Itinerário de Pasárgada)
1.Poema do livro Belo Belo.-2. Ver pág. 133.-3. Ver pág. 151.-C.
Ver pág. 146.-5. Ver pág, 133.-6. Ver págs. ~5 c 156,-7. Ver pág.
146.-8. Aêxprcs:>ãoé de Mário de Andr:ldc.AmeL~ordefiniçãoe a de
Carlos Drummorld ãe Ar.drade. no poema "Cidade-.:inhaQualquer":
"c.asas enlre bananp.iras/Mulheresentre larisl1jeiras,'iXlnlar3mQrcano
tar./Um homem vai devagar./Um cachorro vai devagar./Um burro
vaidevagar./Devagar...asjanelasolham.tEtavidabest3.mto:J04:us".
Essa pasmaceiracaracterizaa ida besl.1", E ela tl/nto pc.c!ede~c:'.
reI' da fali:!de s~nlidona vida.comoda contrarif:dadp.impú~tapeio
viver colidiano àquele que sonha viver cúm as v~rdadeira.s !x':e:;C,IS
do mur,do. (Ver péÍgs.45. 4Ge 47.1-9. Ver pág, 14~,
POESIA E VERSO
/ .
.Y' UM DIA,ao comcç3r a escreverum Ih'ro didático sobre iitera-
..0 .,~ lura, tive que dar uma definiçãoda poe~i3e embatuquei.
',.;. Eu,quedesde os dez anos de idade faço verSOSieu, que tantas
vezes sentira a poesi:l.passar em mim como uma corrc:nte el~!ric3
e aOuir aos meus olhos sob a forma de: mi~teriosasláenmas de
alegria: não soube no momentoforjar já não digo uma-definição
racional dessas que. segundo a regra 133. 1.6~ca. d::vem con..-ir a
todo o dcfinido e s6 ao definido, mas uma d~finição puramente
empinea, arti5tica. literária. No aperto me sOI:orride Schillc:r, em
quem o crítico era tão grande quanto o poeta, e dbse com eI::_
"Poesia é a força que atua de maneira dh'ina e in3pre::noida, Jalém e acima da conscicncia," .
Sabeiso que é atuar de mant'ira divina? Confessolisamente
que 1'150 sei. Mas conheçoda po.:siJ. por experiênciapr6ptia,
essa mandra inaprc~mJidad~ açiio: nunca puuc' explic3r, em
muitoscasos,a emoção4uC me a~sÍllta\'a ao ouvir ou ao ler Cl:rtClS
versos, certas combinaçõesde p3Ia\'ras.A propósito, vou con-
tar-vos uma an~dota. Havia na Avenida Marechal Floriano u~
hotel que se chamavaHotel PenínsulaFc:rnancJes.Tod:1 w:%.q~e
eu passava por ali e via na tabuleta aqufl~ n"me Hotel PenimulJ
ultto. 27
(81
Fernandcs, sentia não sei que pcquenillo alvoroço-alvoroço em
suma de:qualidade poética.E ficava intriga<.líssimo.Por que aquele
botei se: chamava Península Fernandcs'! Urna tarde meu primo
António Bandeira, igualmente invocado pelo estranho nome, não
se conteve, subiu as escadas e foi falar ao proprietário, que era
um português terra-a-terra e sem nenhuma fumaça de literatUra.
-O senhor m~ desculpe a curiosidade, mas por que é que o
seu boteI se chama Península Fernandes?
-Muito simples-respondcu o bomem.-F'rnandes porque é
o meu Dome, e P'llÍnsula porqu~ é bonito!
O nome estava realmente explicado, mas a emoção poética
não: atuava de maneira inaprccndida.
}; assim que muitos fatos de rua atuam sobre a nossa sensibi-
lidade. Dois automóveis colidem, ou uma senhora desmaia, ou um
homem é assassinado,ou uma estrangeiraem trânsito para Bucnos
Air~s desembarcana PraçaMauá em trajc~ pouco mais que me-
nores; lorma-se logo um ajuntamento e os que vão chegando e
aderindo ao grupo e os que olham de longe não sabem ainda o
que se passou. Paira no ar um certo tumullo emocional, criando
uma como que atmosCerade poesia.Pois bem, o poeta suscita a
mesma coisa, só que mediante apenas uma colisão de palavras.
Quando Schillerdisse quea poesiaé uma força que atua além
c acima da consciência,pareceque queria reCerir-seàquele mundo
do subconscienteque todostrazemosdentro de nós. A poesiaseria
cntão a ponte entre o subconsciente do poeta e o subconsciento
do leitor, Se adotei DOmeu livro a definição de Schillef.foi porque
ela esclarece, a meu ver. a poesia menos acessh'el, a que não ocorre
no foco da consciência.Mas é evidenteque a poesia pode nascer
também em pleno Cocoda consciência,e portantoatuar de ma-
Deiraclaramenteaprcensíve!.Em meu poema "Palinódia"l a cstrcrf
fe central é perfeitamenteinteligível. Mas eu mesmonão saberia
e"plicar as estroCesinicialc íiua!. Elas pertencema um poema
que fiz durante um sonho.Ao despertartentei recompô-Ioe não
me loi p0ssível fazê-Io senão parcialmente.A estroCe Inteligível
resultou de um trabalhomentalem pleno Cocoda consciência;as
outrasduas foram elaborauasde maneira inapreendidana franja
da consciência.Tenho a minha interpretaçãodelas,masDãovo-la
comunicarei: é segredo profissional.
Nas mesmascondiçõcsde "Palinódia" estáo meu soneto"O
Lutador",' também elaboradoem sonho,
28 mob.
"
,
r";cle a intervençãoposterior em estado de \'igilia foi mínima.
O soneto,com tÍlulo c tudo é fielmenteo do sonho. Th'c de o
interpretar como se eu fosse um estranho a mim mesmo, como
qua!qucr um de vós o poderia interpretar segundo as sugestlXs
do seu sulx:onsciente estimulado. Para mim-mensag~m do mcu
subconscienteà minha consciência,mensagemmuito vag.amente
apre~ndida por csta e de novo reCrangidapara o seu mundo ori.
giDal.
Assenlado que a poesia pode atu3r dentro ou fora, acima ou
abaixo da consciência,comecei a registrar todas as definiçõesde
poesia que lui encontrando ao acaso de minhas leituras. Organizd
assim uma pequena antologia do assunto. São numerosíssimas e o
poeta Carl<,>iDrummond de Andradc depois de mim ainda assi-
n3lou numa crõlt.ÍI:auma porção del:1squ: eu não conhecia.M3S
é possívelreduzi-Iasa uma meia dúzia de tipos,que lhes facilitam
o exame. Se Dão, vejamos:.~, Cerlos aulores deCinema poesia comoJl.:-ç5Q,:"Poera", es.:rC\'eU
']I Jooson, grandedramaturgoinglês,contemporâneode Shakespeare
e um dos homensmais cultos do seu tempo, "é, não aqu~leque
escrevecom métrica, mas o que fiDsee forma uma f:íbula, pois
fábula e ficção são. por assim dizer, a forma e a alma de toda
obra poéticaou poema". E o mesmoconceitodc doisoutros gran-
~
díssimos poetas ingleses seiscentistas: Donne, que dissc "a poesia
é como uma simili-Criação e faz coisas que não existem, como
se existissem",e Dr)'den, para quem "a ficção é a, essênciada
poesia". .
Perguntoeu agora: não haverápoesiaquando realizoem p:Ua-
vras uma transposiçãoda realidade,sem inventarnada, s:m "fin.
gir" nada? Como neste poema':
O arranha-céll sobe r,q ar puro q/le foi la~'ado pela cJul\'a
E desce refletido na poça de lama do pátio.
Entre a realidade f! a imagem, no chiio seco que as separa,
Quatro pombar passeiam.
2:- Poema que é uma simples reprodução por imit3ção, para em-
pregar as velhas palavras de Arisl6leles.
li
Já o Dante acrescenta ao elemento Cicç30um r,\Jvo elemento-
a música, e diz: "Poesiaé ficção rel6rica posta em 'música'," O
clemento mú~ aparecer em numerosa! outras dc:finiç~s.
11 HA pocsi~":-escreveuCar1ylc,"chamaremospensameptomusical."
"l,lll 29
(
IE Rusbn, moralisla, cmina quc ela é "a arre~enlaçiío, em forma
lmusical, à imaginação, de nobres fundamentus às nubres emoções".
Não se pode negiJrque a música seja um ekmenlo da velha
poesia, da poesia ao tempo em que ela foi assim definida. Hoje
sabemos que pode haver poesia sem música, e poesia da melhor.
Sem música, bem eDt~ndido, no sentido de Dão procurar o pocta
fazer o verso cantar DO pacma.
Outro poeta, c que poeta! o grande romântico Coleridge, de.Ci-
. --. niu o poema "aquela espécie de composição que se opõe às obras
~ de ciência por visar como objeto imediato o p'~I e não/a ~Ç!:
dade". O objeto imediato, porque em profundidade ele é "a iden-
tidade de todos os oulros conhecimentos,a flor e o perfumede
I lodo o humano conhecimento". .
\~ E aqui entramos DO conceito de pocsia-coDhecimento, Mui-
tos são os que o afirmam.Para Lautréamõnt.eTaanunciaas rela-
ções existentes entre os primeiros principios e as verdades secun-II
V dárias da vida. No\'alisjá disseraque "a poesiaé o realabsoluto"."
E o modernoMaritain pn:cisa: "Poesiaé o conhecimento,incom-
paravelmeDte: conhecimento-cxperiência, conhecimento emoção,
~
CODheCimentoexistencial. Ela é o fruto do contacto do espírito
com a realidade em si mesma inefável e com a sua ronte, que
acreditamos ser DCU5."
O epíteto "inefável" leva-nos a um grupo de definiçõcs. onde
i
cuimina. O conceiro na definição de Edwin Arlington Robinson.
grande poeta norte-americano: "Poesia é a linguagem que nos
diz, em virtude duma reação mais ou menos emocional, alguma
coisa que não pode ser dita."
Devo esclarecerque todas cssnsdefiniçõese muitasoutras que
coligi, aparecemem contexto onde se procura apreendera essên-
cia do fenõmcno poético: não foram apresentadas isoladamente
como definiçãono sentido lógicoda palavra, c de isolá-Iascomo
fiz, resulta uma certa mutilaçãodo pensamentode seus autores.
Nada obstante, cada uma contém uma parcela de verdade,ilu-
mina um ângulodo problema,que é talvez insolúvel.Todasme
parecem falar em termos de poesia, cum o seu vago, o seu mis-
tério. Nenhuma se relere ao que é a matéria-prima da poesia
Da arte literária-as palavras, e tanto se podem aplicar à arte
literária como à música e às artes plásticas. Paul VaJéry men-
ciona-as Duma definição que é um pequenino poema: "Poesia é ,'-:.., ,
~ ~b. ~
'l
, .
.::
a tentativa'ue repr~senlarou de reslÍtuirpor meio da linguaccm
arriculada aquelas coisas ou aquela coisa que os geslos,-a~ l.f~i-
m~ carícias, os beijos, os su~piros procuram obscuramente
exprimir." E André Gide foi desenterrar de um prefácio esque-
cido de Danville esta definição, que espanta tcnha saído da cabe-
ça de um daquelesmestresque Thib:lUdetchamou os Tetrarcas
do Pamaso:."Poesia... essamagiaqueconsisteem despertar
_sensaçõespor meio de uma combinação qe sons... essesortiiégio
graças:10 qual idéias nos são nccesSariaiDêõi'é -comunic:adas.de
uma maneira cer.ta, por meio de palavras que todavia não as. "
expnmem.
Comentando largamente a definição de Banville,.comcça Gide
pelos voclbulos "magia" e "sortilégio" (sorcel1erit): "Valéf)", de
maneira volunhiriamente ambigua, dirá clJarme... O verdadeiro
poetaé ummago.Não se trata tantopara elede ser comovido,
mas de ~~~ o IcitoLa comQY-,[:!e: 'po~ m~~__~~..un".!.5ombi-
naçáQ~LJi~~ão palavras. Que a sIgnificação oess3s p3ta-
-vras importa, não será preciso dizer; não, porém, indepcnJ~nte-
mente da sonoridadedelas. O verso deliciosode Racine, tão !te-
qüentemene citado como exemplo de cncantaçãoharmoniosa:
IVous moura,es ali bord ou "'OILSjúli'S laissée.4 Mudai as palavras.
, dizei: Yow iles morte SUl lt ri~'age ou Thrseéroustn'ait aban-
donnÜ.aO signHicndocontinua o mesmo,OIas o 'encanto' desa.
~re~" \
Ma!lamlétinha razão: "Não é com idéiasque se fazem \'ersos:
é com palavras."Não que o sentidodc:lasn50 importe. lmp"rla,
mas não como advertiu Gide. independentementeda sonorid:uJe,
delas. Naturalmenteo sentimentoestá sulxntendido, é ele que
faz achar as combinaçõesde palavrassll$citadorasda cm~50
poétiC3.
/ b_.E.m.nJ;!e dificul~~.~çE!.' está_em .que.. uns se: co~o\.em
'_gi~t~~Jos versose Q..utr05..n@.Há pessoas que acham IDtc:"n-
53 poesianos versosde Murilo Mendes;outras Dãoa IIchamnc-
nhuma,encontram-D3é nos sonetosde Emüio de Meneses,oado
os admiradoresde Munia Dãovêemsequer a sombra d&:la.E h3
as que não suportamnem wn nem outro: gostam~ da s\u'\!e
músiC3de 01egárioMariano. Afinal em ~sia tudo é relativo;
a ~ia não existe em si: será uma ~relaç!o.~lre o mundo inle-
_.,-- .. -.--- __o-.. -. ... ~-- .. . .. "l,ra 31
J.
.'1;/'1r~ '" ,.
.' ;;1./".~.'
I~i.l
I . 1I
~: ,.~.
I
..., .
tO',"?': ~t1
I) rior do poeta, com a sua scn<;ibilidaJe,a ~ua cultura,as suas
.( vivências, e o mundo interior daquele que o lê. ~
Se passamos da definição úe poe5ia para a dcCiniçãodo verso, ~
as dificuldades diminuem, mas não desaparecem. Abri um tratado
de versifícação .qualquer, o de Dilac e Guimarães Passos, por
exemplo, e ali vereis deCinido o verso como "o ajuntamento de
pala\Tas, ou ainda uma s6 palavra. com pausas obrigadas c deter-
minado número de sílabas, que redundam em música". Em nota
traduzem os dois autores o francês Quitard: "A etimologialatina
das palavras 'prosa' e 'verso' claramente indica a diferença essen-
cial da sua significação: 'prosa' vem do adjetivo latino prosa (su-
\
bentcndcndo-se o substantivo oratio, discurso, oração)-cratio pro- ..,..(.\.
sa, discurso continuo,seguido, e respeitando a ordem gramatical 'y~)
direta; 'Verso' é derivadode verJUS,do verbo ~'ertere,tornar ou .:r-/.
voHar,-porque, uma vez esgotado um certo número de sílabas,
a oração se interrompee volta de novo ao ponto de partida,a fim
de começar outra evolução silábica."
A definiçãode BiJace GuimarãesPassos,queé maisou menos
a de todos os outros tratadistas, podia servir para a nossalínguae ~_
. mais algumas outras mas s6 até o advento do verso livre. Que, '"
definiçãose pode dar do verso,de modo que ela se :-spliquea qual- l;~
quer idioma, vivo ou morto, e em qualquer tempo? Pedro Henrí-
quez-Urciia, o grande mestre dominicano, há pouco falecido, tcn-
tou, a meu ver com ê;dto, essa definição mínima. Poesia, poesia
11:10sentido formal, ensinou ele, é Jj!1g~lí~g~!p'_<!i.~~m unidades .I
" J!~ prosa é linguag~m..Ç.QIltin.~Scm dúvida, na linguageml
cODtlDuadada prosahá parágrafos.Mas o corte da prosa em pará-
grafos atende tão-somente à necessidade de ordenação das idéias.
O verso é a unidade rítmica do poema. Rifí11o.Jm sua fórmula
I "- O ~.- . é .cJd . .e ementar, e r~tlç:tCk. verso. em sua esscncla. uni a e rrlmlca
porque se repete e forma séri~~.Para formar séries podem as uni.
dades ser semelbantes ou dessemelhantcs. Podem ser unidades
flutuantes. Mas é nccessário que cada verso seja uma comoque
~id~~~ ou comodisseV.aJ~rylIum~ p~~~vr~..!9~~',vasta,J1ativa,/I
J'ErCéJta.DQY~~ ~s'!..anb~.h.~I1JSlJa"_ - 1/
O que diferencia os diversos tipos de versificaçiio através de
todos os idiomas e de todos os tempos são os expedientes de que
se valeram os poetaspara pôr em maior evidênciao ritmo. Expe.-.
dientes como: valores de sílabas (quantidade), acentos de inten.
32 m. b.
sidade bem marcauos, regulação dos tons ou dikrenç3s de 311ura
mu!;ical entre 3S snahas, número fixo de. snah:l~, rima, alitcr:lç50.
encadeamento, paralelismo, acróslico. Na versificação portuplC5a
os apoios rítmicos de que temos exemplos são o número fixo de:
sílao3s, a CeSllr:I,a rim:l, a aliteração. o enc30camcnlo, () p:1rale-
lismo e o acróstico. Talvez muitos de meus lcilores n50 cstej3m
a par do significadode rodasessaspalavras.Do encad~amenlo,do
paraIelismo,por exemplo.O encadeamentoconsisteem repetir de
verso a verso, ou de: estrofe a estrofe, Conemas,palavras c !rases.
Foi, com o paralelismo, muito usado Da poesia hebraica, c dele
se serve quase infalivelmente em seus poemas o nosso algo bíblico
Augustro Frederico Schmidt:
, ~'Porque ciwrar..,1eo céu cstá róseo,
~ j /.. Se as flores estão nas trepadeiras balançando, ao sopro Il!\'e do
[Vc!nto.
t
I
I
'. .
,
Porque clwrar se há leliciJadé nos caminhos,
Se há sinos batendo nas aldeias de Portugal?
Nesse poema do Canto da Noite o poeta só abandonaa inter-
rogação "porque chorar" para passar à locução cncadeadora "feliz
como~:
Porque chorar-meu Deus, se estoll leri: e pobre.
Felir. como os pobres desconhecidos dos IrClSpitais.\
Feli:, como os cegos para quem a rur. i mai.r bda do quc a lu:,
Feliz ('01110.,. ete.
O paraJelismo..é_ue~ti~~!c!:?lósica: Encadeamento e pJfJk.
lismo tiveram il Sua Casede ouro em linsua portUguC$3no tempo
dos cancioaeiros. O que chamaram "cossantc" era Unia cantiga
paraIcIística c cncadeada. Assim esta "barcarola" de MutilD
Codu:
.? 0l
)"v,Job'
Ondas do mar de Vigo,
Se vistcs meu amigo!
E ai, Deus, ~ ~'errdc(do!
Ondas do mar levado,
Se viste.r meu amado!
E ai, DeU.1,se rerrd ctdo! '.
,tttra 33
tra, também versejou a~sim. O que :sdmira é quc até ,\lbcrlo de
Oüveira., mestrc de uma escola dc rigorosa métrica, haja proce-
dido da mesma mancira, talvez in3dvcrlid3mente, quando em "O
Exame de Hercilia" escrcvcu:
Subiu ao A tias de um ,salto
E ao Kilimandjaro,' logo
De tão alIo,
Ao Barh-al-AbialJde água clara .J
Baixou e (J()saibro de logo
Do Saltara.
O quarto verso ("Ao Barh-al-Abiah de água clara") tem oito sí-
labas, mas a primeira ("ao") se embebe Da última sílaba do verso
anterior, de: sorte que DOcontexto da estrofe se mantém o ritmo
do heptassíJabo.
Há ca.sos até cm que é forçoso quebrar o verso para manter o .
ritmo. Como fez Casimiro de Abrcu na célebre "Valsa". O poema
está distribuídoem versosde duassílabas:
Tu, ontem
Na dança
Que cansa,
Voavas
Co'as face.r
Em rosas
Formosas
De Vil'O,
Lascivo
Carmim
Mas na última estrofe pôs o poeta a palavra "pálida" no fim
de dou '\'ersos:
Na valsa
Cansaste,'
Ficaste
Prostrada,
Turbada!
Pensavas,
Cismavas,
E estcrvcu
36 m. b.
Tão pálida
Então;
I
o
./
Qual pálida
Rosa
Mimosa,
No \'a/e
Do ,'enio
Cruel/to
Batida,
Cawa
Sem vida
No chão!
O vocábuiõ prQparoxítono obrigava o poeta a abdr o \'erso se-
guinte por uma palavra começando por vogal ou a quebrar o
metro de duas sflabas para uma. Casimiro valeu-se de um e outro
recurso, um da primeira .'el, o outro da segunda. Se elc não
tivesse atendido à interrelação dos versos e em lugar de "então"
dissesse "DO inst3.Dte"e em vez de "rosa" escrevesse "camélia",
o ritmo seria sacrificado:
PeIUQ\,(U,
Cismavas,
E t'sta~'(U
TeG pálida
""0 instal/te;
Qual pálida
Camélia
Mimosa...
Foi em ob:;ervação:1 C5SC jogo de ressonânciasde um vcrso
em outro que eu no poema "Doi morto", escrito em octossiJabos.
quebrei a medida DOterceiro verso da última estr,,!e,
Disse atrás que o encadeamento é o principal apoio rítmko
de que se serve Augusto Frederico Schmidt nos seus poemas.
Adalgisa Nery, que também" emprega. ainda que menos assidua-
mente que Scbmidt, o encadeamento, começou a usar da rima em
versos não metrificados, :1 partir, creio que do seu livro Ar do
Deserto, que é de 1943:
ul,to 37
~
Se :'u'/~J I1It'U (L7:ig:).
O por q;,l' ,:1.1Ju.;p.:r.;'
E ai, Dr:/Lr, .re \'crrá ""f,,,
Se \Útcr 11Iell alllati!) ,
O por que ei gran c;Ú;'.;do!
E ai, Dms, se vem; ceGo!
Essa cantiga é parale1í5tica porque i:!3 C'il rofes pares repelem 11
a idéia das estrofes ímpares com 1i;~:~;!S alt~raçõcs de palavras
para variar o timbre da vogal tônica Ui:l5;:m~s (i e a); é encadcada,
porque o segundo verso de cada e:;t~~:~ ímpar s:: repetc como
primeiro verso da estrofe ímpar 5(;guj:1:~. .
Já a rima é apoio rítmico muito cr.;.;:c::ido. mas sÓ cClmo igual- 2-.:..~«..
dade de sons no fim das palavras a t-.~rti. da vor,al lL'nica - a I'.. .
châlDada rima CO;lSQ,lntc.Muita gcnt:: a:;1Ja n~() '~:l!J;: da~ rir.las"'; .: 1.
toantes, isto é, aquelas em que só 5:;:' :;Ja!s as vopis a partir i 1Í.; ~
oa lônica,como em "asa" c "cada", e:ho" c "quero". R3ros "',-,-,
sabem que no latim ccksiástko, n:l ;:-:csia inglesa e na aJem5 .
basta, para haver rima, a repetiçãoJ.l wltima sílaba átona c até
da última vogal átona. Lcmbrai-vos d:J Vem, SaneIe Spiri/Us:
Veni, Sancte Spiritur,
Et emitle coelit/l.r
Luci.! tuae radiurn. G
Lembrai-vos de Shakcspearc, que n() ~;:nc.:,oprcf:lciador de Ro-
meu e Ju[iela rima "dignity" com ",r::::;'I:)'''; de ~,Elton yue no
soneto "On Shak~pearc" escreveu:
Thou i/1 Ola' wond('r IJIIJ r :c)IlÜ!:mell(
lias b/lilt thyself a Iive/l1f1.:? mOllumml,T
rimando "astonÜhmfllt" com "mOI::m:I:Ilt", Lcmbrai-vos dI'
Heine, que rima "leh /icbe dich" com "bl!/t'fiich";
Doei. WCI1I1du sf"ichst: .. L-:: lit'be dich!"
"' 1So I1If/.SS icll wdnen úitl<',:,:,h.&
Finalmente pouca gente já Ic.:rá reOc.::;.;,) que :1 ::;Llcl':!;joé, no
fim de contas, uma rima ao contra:I,). OIJ seja, uma rima dus
começos das pala'ms. Sei bem que n~o houve intt:nção, pelo
menos consciente, da pane: de Gonça!v:s Dias em rimar por ali-
34 m.b.
.: I
.~t. -
.,'/
[craç:iona ~eguntJae terceira ;:~Irofrs da "Canção do Exílio", m:u
a verdade é que ess::;:;rimas ao contrário d50 à pequena obra-pri-
ma n:.o sei que incfj';d mu,icalidade:
Não p&"fllita Ikus que ('li morra
S('m que \'olte para lá,'
Sem que dcsfrllle os primores
Que ,IJOdr.rfrUlO por cá;
Sem qlle indaavisteaspalmtiras,
OndeC!lf/;ao sabiá.
O número lixo de sílab:Js,com pausas obrigauas, é sem dúvida
o mais imperioso mwônomo do rilmo. Todavia não é preciso
ficar-!>e no mesmo metio para manter o me5mo ritmo. No poema
de Gonçalv~_s Dias int:tulado "Minha Vida e mcu~ Amorc:s" ocor-
re uma mudança...dem.:tro lDuito intcrcssH1te. O poeta vinha ...:.-
scjando em decassilat".1sacentuados na s~xta sílaba ou na quana
e oita\'a:
OUlra \'('': que lá fui, que o I'i, que a medo
Tmk:J ~'O':lhe csculei:-Sonhci cr.>r.ligo!-
lllefá~'d pra~er ballhou I1It'Upeito,
Se,,:; dâícia.s; m!1.Sa s6s comigo
Petl.rci-;::/I'e~!-e já "tio pude crc:.h
De súbito, nos versos 67 c 68. Caz cair as pausas na quarta
~ sétimassüabas, apro~imanJo o rilmo dcca5sil:íbico do ritmo do
verso de onze sílabas, que vai aparec::r nl\5 ,'"rsos 70 e 71:
ilhfc":.sse I','cé fala: "Eu 8(1S;.1 d,' "(I('é!"I Aí ('u (mito dr: d:or,1r MlüTj:('oI1I(II(f,
Ela ttio It:I'i}:a e ttio çhria de ef/Cllllto,
Ela tão 1:01'0, IdO pura e t:Wh'la. . ,
A rr:ar-mt:!-Eu que S()u~
M el/s O/!/(ISerLft:rgam, ellquanto cfudda
MinHa/ma scm Cfcmra,de !'''í(l e.wtirida,
Id farta da "h/a,
Qut' amor "ão .1,)irIJu.
O movimento ríunieo de um vcrso poJ: sdrer a influência Ul)
verso anterior ou do s::guinte. ~ sabiJo que na pOI:siaespanhola
e na poI1uguesa antiga a vogal inicial de um verso podia embe-
ber-se no verso pre:.:edenle.Gonçalves Di:1s,t50 lido numa e nou-
,tltla 3.5
Á medida que o ~',nio 110 li:,:, ("orpo C("OIl,
Cr~sce no meu c.spíriro o sentido da.r vidas Qcon.".cida.r,
BaJan.çando nos meu.> o/lvido,r o pen.ramento que apregoa
Os .soluços e a solidão das almas inuti/menl~ perli:r.cidcu.Ow-:>
j
..
Mas verso Jj\TCcem por cenlo é aquele que não se socorre-: I
de nenhum sinal exterior senão a da volta ao ponto de partida ..t.i.\"I'Io{!
à esquerda da Colha do papd: verso derivado de vertere, voltar. I" li
A' primeira \'ista, parecemais Cácilde fazer do que o versometri- 11
ficado. Mas é engano. Basta dizer que no verso livre o poela'tcm ~
de ~~~~~~íIi~L~_e como o sujeilo que
'-SõTio no recesso da CJorestádeva achar o seu caminho e sem
bússola, sem vozcsque de Jong: o orientem, sem os grãozinhos
de Ceijãoda história de João e Maria. Sem dúvida não custa nada
escrcver um trecho' de prosa e depois distribul-Io em linhas irre-
gulares, obedecendo tão-somente~~E~J!s~~_do_ pensament~.Mas
isso nunca Coi verso livre. Se fosse, qualquer pc5So~qiõderia pôr
em verso até o último relatório do Ministro da Fazenda. Essa
enganosa facilidade é causa da supcrpopulaçãode poetas que in-
festam agora as nossas letras. O modernismoteve isso de catas-
trófico: trazendo para a nossa língua o verso livrc, deu a todo
o mundo a ilusão de que uma série de linhas desiguais é poema.
Resultado: hoje qualquer subescritur6.riode autarquia em crise
de dor-<!e-cotovelo, qualquer brotinho desiludido do namorado,
qualquer balzaquiana desajustada no seu ambiente familiar se jul- 1 .
gam habilitados a concorrer com Joaquim Cardoso ou Cecília ':"1...-
Meirelcs.
Por isso era semprecom delíciaque eu lia as críticas de Elói
Pontes no Globo e é sempre com prazer que leio as de Derilo
l'eves no Jornal do Comércio, críticos sem contemplaçãopara
com a poesia que não se exprimeem \'ersos medidos e rimados.
O que me entristeceé ver que eles nunca tenhamtido influência
bastantepara pôr um paradeiro nesse "babaréu de medíocres",
como costumava dizer o primeiro no seu curioso estilo.
Por isso tenho às vezes uma grande tentação de ~quecer tudo
o que aprendi com mestre Urefia e dizer e jurar para toda a gcnte
que "verso é o ajuntamento de palavras, ou ainda uma 56 palavra, /I
com pausasobrigadase det:rmiDado Dúmc:rode sílabas", como
ensinavam BUac e Guimarães Passos. Isto é, talvez substituísse
38 ,;." b.
a palavr,a "ajuntamcnto", que me ~oa vag:lrncnlC'a coisa ilícita,
e acrcscenta!:se a obrigação da rima e do duplo acróstico! Can-
conlais7(De Poctcu~ de P~sia)
" Poema do livro Llbertlnagem.-2. Po.::ma do Ii\'ro Belo Belo.--3. "A
Realidadec a L-nagcm",do U\'TOBelo Belo.-C. "Vós morrcstes à mar-
gem onde tostes deixada."-S, "Você morreu sobre a costa onde Teseu
a Unhadeixado "Vem.EspíriloSantc./E en\'ia do Céu/Oraio
da tua luz."-7. "Tu de nossopasmoe assombramento/Tumesmocons.
trulsle todo um monumenlo."-a. "Mas se você laia: 'Eu gosto de
você!'fAI eu tenho de chorar amargamente." (Trad. de Paulo R6nai).
.- A POESIA ESTA NAS PALAVRAS
......
MAS AO mesmo tempo compreendi,ainda antcs de conhecera
liçãode MaJlarm~,que em literaturaa poesiacstáD3Spala\'ras,
se faz com palavras e não com idéias e sentimentosmuito ~m-
bora, bem entendido, seja pela força do sentimento ou ~Ia ten-
são do espírito que acodem aO pocla as combinações de palavras
onde há carga de pocsi:1.Coisa que ucscobri nos lapsos de memó-
ria ou no c:tame de variantes. Qu:u\tas vezes, querendo rclen1br:u
uma estrofede poema,uma trova popular,e n50 conseguindo
reconstituí-Ias fielmente, fazia U..ImdhN maneira d rrmpli.fsag~.."
depois, cOlejando as duas vc:rs6es-õ\ minha e (1 origin:lI, \'eriCi-
cava qual delas era melhor, rc.~quisava o s::grl'do da sup.:-riori-
dadc c, descoberto, passava a ctiji.zj.lo nos ml'US\'l'rSl1S.QU:lOt3s
vezes tamb~m \'i, em poetas de gosto certeiro nas cm~ndõ\s.um
verso defeituosoou ine~pressi\'ocarregar-sede poesia pelo efeito
encantatório de uma ou de algumas pala\'ras, e:tprimindo no en-
tanto o mesmosentimentoou a mesma iJéia que as substituídas.
Compare-se, por exemplo, o poema "Mocidade e Mortc", de
Caslro AJves, como apareceu em Espumas FIll(/lanlrS,com a pri-
meira versão, de 1864, e publicada em São Paulo por volta de
1868-69 sob o título d: "O Tísico". Na oitava inicial ha\'ia o
verso "No seio da moreoa há tanIa amoral". Na versão defini-
tiva "amora" foi substituída por "aroma". Naturalmente o poct3
pondcrou quc as amoras do peito das morenas não são taDt:u.
Itltta 39

Continue navegando