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Suicidio & Saber Medico - Lopes_ Fabio Henrique - cpma comunidades net

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Sumário
AGRADECIMENTOS
PREFÁCIO — A MORTE: ESSE OBSCURO OBJETO DO DESEJO
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO I — PALCO E CENÁRIO: MEDICINA SOCIAL E INSTITUIÇÕES MÉDICAS NO
BRASIL DO SÉCULO XIX
SABER E PODER NA MEDICALIZAÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA
MEDICINA, ORDEM POLÍTICA E ESTADO
INSTITUIÇÕES MÉDICAS DE ENSINO E SABER
CAPÍTULO II — NA ÓRBITA DAS DOENÇAS E DOS DISTÚRBIOS MENTAIS
LOUCURA E SUICÍDIO: HISTÓRIA, CAUSAS E EXPLICAÇÕES
MÉDICOS À PROCURA DE PERIGOS E DE ORIGENS PATOLÓGICAS
A REPERCUSSÃO DO PENSAMENTO MÉDICO FRANCÊS E SUA APROPRIAÇÃO
PELO DISCURSO MÉDICO BRASILEIRO
CAPÍTULO III — A RELAÇÃO ENTRE AS PAIXÕES E O SUICÍDIO
AS DIVERSAS CONCEPÇÕES ACERCA DAS PAIXÕES
O OLHAR MÉDICO BRASILEIRO SOBRE AS PAIXÕES: EXCESSOS, PERVERSÕES
E MORTE
A APROPRIAÇÃO BRASILEIRA DAS IDÉIAS DE ESQUIROL SOBRE A PAIXÃO
COMO CAUSA DE SUICÍDIO
CAPÍTULO IV — DIFERENCIAÇÕES SEXUAIS DO SUICÍDIO
DIFERENÇA SEXUAL: ORIGEM BIOLÓGICA E COMPORTAMENTAL
EDUCAÇÃO DIRIGIDA E DIFERENCIADA
CASAMENTO, CELIBATO E RELAÇÕES SEXUAIS
MULHERES SE SUICIDAM MENOS DO QUE OS HOMENS: UM PARADOXO DO
SÉCULO XIX
CAPÍTULO V — A LITERATURA VISTA COMO UM PERIGO À VIDA
A BUSCA AOS EFEITOS DESASTROSOS DA LITERATURA
A POSSÍVEL RESPONSABILIDADE DO ROMANTISMO
A FEBRE WERTHERIANA: O ALCANCE DO SOFRIMENTO E SUICÍDIO DO JOVEM
WERTHER
O VALOR DO SILÊNCIO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
BIBLIOGRAFIA
Fontes
Livros, Teses e Dicionários
Obras Literárias
Periódicos e jornais
Sites da Internet
Bibliotecas e Arquivos
BIBLIOGRAFIA GERAL
Fábio Henrique Lopes
Suicídio & Saber Médico 
estratégias históricas de domínio, controle e intervenção
no Brasil no século XIX 
Edição Digital 
Rio de Janeiro
2010
Copyright © 2008 Fábio Henrique Lopes
Todos os direitos reservados
Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida — em qualquer meio ou fórmula, seja mecânico ou
eletrônico, por fo tocópia, por gravação e etc. — nem apropriada ou estocada em sistema de bancos de dados sem a
expressa autorização da editora.
Editora Responsável Rosangela Oliveira Dias
Coordenação editorial Marcely Almeida
Preparação Equipe Editora Apicuri
Capa Margareth Bastos
sobre Desenquadros, 2007, Paulo César Longarini, óleo sobre tela 
Editoração eletrônica e Projeto Gráfico Margareth Bastos 
Revisão M. Cunha
Conversão Digital KindleBookBr
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) 
Biblio tecária Responsável: Mara Rejane Vicente Teixeira CRB 775
Lopes, Fábio Henrique
Suicídio & saber médico: estratégias históricas de domínio , contro le e intervenção no Brasil do século XIX / Fábio
Henrique Lopes. — 1ª reimpressão — Rio de Janeiro : Apicuri, 2008.
Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-61022-02-0
1. Saúde e Estado — Brasil — Séc. XIX - História . 2. Suicídio — Brasil — Séc. XIX. 3. Saúde pública — Brasil — Séc.
XIX. I. Título .
CDD (21ª ed.) 
614.0981
[2010]
Todos os direitos desta edição reservados
Editora Apicuri
Telefone/Fax (21)2533-7917
editora@apicuri.com.br
www.apicuri.com.br
AGRADECIMENTOS
Ao iniciar um trabalho como este, sabia que só seria possível concluí-lo com ajuda,
incent ivo, colaboração e solidariedade de muitos. Conversas, e-mails, bate-papos, telefonemas
e cartas foram os meios pelos quais recebi palavras de apoio, dicas de livros e art igos que hoje
compõem o texto, além de pistas para responder minhas inquietações. Aproveitei ao máximo
os momentos de troca, diálogo e intercâmbio com intelectuais e amigos que, direta ou
indiretamente, provaram não ser necessariamente solitário o t rabalho intelectual.
 Cientes ou não, todos aqueles que receberão o muito obrigado já fazem parte da
minha história de vida, pois part iciparam dela como coadjuvantes, interlocutores, orientadores,
conselheiros e ouvintes. E por que não citar os analistas, se é por meio deles que penso e
construo minhas histórias?
Agradeço aos professores Í talo Tronca, do Departamento de História do Inst ituto de
Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, Luzia Margareth Rago, livre-docente do
Departamento de História do Inst ituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp e
Gabrielle Houbre, da Université Paris VII — Denis Diderot .
O Prof. Í talo Tronca permit iu o início do meu doutorado, em 1998, logo após defesa
da minha dissertação de mestrado. A Profª Margareth Rago, intelectual das mais brilhantes
que conheço, foi quem mais exigiu de mim e é a quem devo a realização do trabalho que
originou este livro. Agradeço a ela, na esperança de que um dia possa saber o quanto
acrescentou à minha formação intelectual. A Profª Gabrielle Houbre gent ilmente recebeu-me
em Paris e orientou meu estágio na Université Paris VII, uma experiência que permit iu o
aprofundamento da pesquisa documental, das análises sobre o tema e mudou minha visão do
que é a universidade brasileira. O resultado foi posit ivo porque compreendi que, ao invés de
comparar as universidades brasileiras com as francesas, é mais út il perceber a “diferença”
entre elas, além de buscar constantes t rocas e o necessário intercâmbio intelectual.
Às agências de fomento, CNPq e CAPES, por terem financiado, respect ivamente, o
meu doutorado no Brasil e o doutorado-sanduíche com a Université Paris VII.
Aos colegas Andréa Delgado, Nanci Vieira de Oliveira e Benito Schmidt, entre outros,
que me ajudaram a (re)pensar o projeto, a pesquisa e eu mesmo — historiador da linha de
pesquisa História, Cultura e Gênero.
Aos amigos e amigas que conheci na Unicamp: Nádia, Flávia, Antonio Paulo, Ema,
Alexandra, Andréa Mara, Edmilson e, sem dúvida, Lucinete, por todo o apoio e por terem
compart ilhado comigo muitas angúst ias e sonhos.
Aos amigos Raymond, Kleber, Aldo e Maryvonne, que me suportaram enquanto
est ive em Paris.
Aos amigos-irmãos José Maria, Marcos, Renato, Miriane, Iara, Danilo, Ângela e
Paulinho, que compart ilharam projetos e conquistas.
A Paulo César Longarini, amigo e companheiro em todas as estações, seja embaixo
de neve em Amsterdã ou no tórrido calor de Catanduva; nos momentos mais difíceis e nos
mais prazerosos; pela opção de estar ao meu lado mesmo quando eu parecia uma
metamorfose ambulante.
À minha querida família — pai, mãe, irmã, irmão, cunhada, cunhado, sobrinhos, t ias,
t ios e avó. Sei que tudo só foi possível pelo suporte e pela colaboração recebida, mesmo que à
distância. Sou feliz por ser Beck e Lopes.
Mais uma vez, agradeço a meu exemplo de vida: Evanir Beck Lopes. Mãe, mulher
forte, quase sempre incansável, batalhadora que dedicou voluntariamente sua vida aos filhos.
A ela devo minha existência, persistência e sonhos.
Emocionado por lembrar de tantos companheiros, agradeço e digo MUITO
OBRIGADO!
A abertura para o novo só é possível quando dispensamos toda idéia de essência;
universalidade; “realidade da coisa em si”; conceitos indubitáveis e incorrigíveis; verdade como
uma misteriosa “propriedade” das coisas e eventos “verdadeiros”, etc. Quando abrimos mão
desta herança do idealismo e do racionalismo filosóficos de épocas passadas, conseguimos
imaginar o “sujeito” ou as “subjet ividades” como produto das prát icas lingüíst icas e de nossas
circunstâncias. A questão, então, não é a de saber como o “não-ident ificado” entra no leito de
Procusto, do familiar ou do já sabido; é a de saber como reagir à surpresa; ao inusitado; ao que
nos obriga a reinventar o que somos e o que os outros são.
Jurandir Freire Costa
PREFÁCIO 
— A MORTE: ESSE OBSCURO OBJETO DO DESEJO
Com a mente e o corpo sadio , mato-me antes que a impiedosa velhice, que me tira um a um os prazeres e as
alegrias da vida e me despo ja de minhas forças físicas e intelectuais, acabe por paralisar minhas energias e
quebre minha vontade, fazendo de mim um peso para os outros e para mim mesmo. 
Há anos prometi a mim mesmo que não passaria dos setenta; marquei a época do ano para minha partida da
vida e prepareio modo de execução de minha reso lução: uma injeção hipodérmica de ácido cianídrico . 
Morro com a alegria suprema de ter a certeza de que, num futuro próximo, a causa a que me dediquei durante
quarenta e cinco anos triunfará. Viva o Comunismo. Viva o Socialismo Internacional.
Paul Lafargue1
Paul e Laura Lafargue suicidaram-se em dezembro de 1911. O pacto de uma morte
planejada, desejada e executada com maestria nos moldes de uma das novelas românt icas do
século XIX, provocou um grande mal-estar na sociedade da época, em especial entre os
intelectuais e militantes comunistas. O discurso de Lênin em nome do Part ido Social
Democrata Operário Russo nos funerais, em 3 de dezembro, expressava o sent imento de dor,
procurando exaltar a t rajetória do militante comunista, sua coragem construída na experiência
da luta de classes, na revolução e na contra-revolução; porém silenciava sobre o suicídio.
Como just ificar esse duplo suicídio? Irracionalidade? Essa argumentação não se
sustentaria diante de uma carta tão lúcida, de uma preparação tão cuidadosa, cumprindo uma
extensa agenda pública nos dias que antecederam o projeto maior, de dar fim a suas vidas.
Loucura? Doença? Desespero? Paixão, impregnada da tão combat ida lógica burguesa?
Covardia ou uma grande coragem? Coragem de homem? Covardia de mulher?
Se a vida me pertence, eu posso terminá-la no momento que assim desejar. O direito
de morrer dignamente foi o argumento ut ilizado em outro tempo, em outra situação, pelo
espanhol Ramon Sampedro.2 Na condição de tetraplégico, impossibilitado de cometer o
suicídio, lutou durante vinte e nove anos nos tribunais pela legalidade da eutanásia, pedido
que lhe foi negado. Na carta de Sampedro dest inada aos juízes, em 13 de novembro de 1996,
ele afirmava que viver é um direito, não uma obrigação. Ramón colocava em xeque a
regulação da vida e da morte pelo Estado e pela Igreja, e acusava a hipocrisia do Estado laico
diante da moral religiosa:
Srs. juizes, negar a propriedade privada de nosso próprio ser é a maior das mentiras culturais. Para uma cultura
que sacraliza a propriedade privada das co isas — entre elas a terra, e a água — é uma aberração negar a
propriedade mais privada de todas: nossa pátria e reino pessoal, nosso corpo, vida e consciência, nosso
universo.
Os múlt iplos argumentos de verdade que condenaram o suicídio ainda codificam
comportamentos; imprimem um silêncio constrangedor e significante sobre o tema e são fruto
da incapacidade de entender o ato de desapego, que fere o considerado natural inst into de
preservação da vida. Este livro é justamente sobre esse silêncio, sua construção e, em
especial, sua desconstrução.
Suicídio & Saber Médico: estratégias históricas de domínio, controle e intervenção no
Brasil do século XIX é a tese de Doutorado de Fábio Lopes, que, após quatro anos de sua
defesa, finalmente chega ao grande público. Um texto denso que expõe as subjet ivações e
naturalizações do saber/ poder dos médicos no século XIX e que, apesar das novas
contribuições, das quebras, dos esquecimentos e distanciamentos, cont inuam a orientar as
contribuições, das quebras, dos esquecimentos e distanciamentos, cont inuam a orientar as
produções discursivas. Um olhar atento que mora e demora no tempo, que dialoga sem a priori
com diferentes textos, interrogando sobre a const ituição desse objeto de conhecimento
possível, desejável e até mesmo indispensável, no dizer de Fábio.
Foucault , o intelectual suicida em sua destruição criadora, que se nega em cada
texto, que revoluciona a História com seu presente intolerável e sua crí t ica subversiva à
normalização, é a inst igante matriz discursiva desvelada para analisar esse incômodo objeto
do desejo, reafirmação constante de um pensamento como ação:
De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa
maneira, e tanto quanto possível o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida quando a
questão de saber-se se pode pensar diferentemente do que se pensa e perceber diferentemente do que se vê é
indispensável para continuar a o lhar a refletir.3
Na montagem de uma arqueo-genealogia, o suicídio e o sujeito que o cometeu foram
analisados nos cinco capítulos do livro, em diferentes gêneros discursivos (t ipos de
enunciados que correspondem a uma mesma esfera de prát icas sociais). Foram
cuidadosamente t rabalhados no seu interior as teses médicas, os jornais, a literatura e os seus
personagens da ficção publicada ou encenada nos teatros da cidade, do mesmo modo que os
estudos de historiadores, sociólogos, antropólogos e psicólogos.
No primeiro capítulo, Palco e cenário: medicina social e instituições médicas no
Brasil do século XIX, a cidade é percebida como um recorte do social — espaço fért il para o
crescimento de uma massa maligna a ser disciplinada numa ação higienizadora. Os ares da
cidade libertavam, mas permit iam a perdição das paixões. A cidade-laboratório
instrumentalizou a aquisição e a sistemat ização de novos saberes. Dentre eles, destaca-se o
saber médico responsável pela temat ização cientí fica do suicídio, que passou de pecado a
doença.
No capítulo II, Na órbita das doenças e dos distúrbios mentais, o texto disseca
causas e explicações patológicas em que, segundo Foucault4, o ato de conhecimento do
médico em sua forma concreta não foi apenas o encontro do médico com o doente e nem o
confronto de um saber com a percepção. Faz, também, o cruzamento sistemát ico de uma
série de informações homogêneas, porém estranhas umas às outras, tais como o clima, a
geografia e a história; julgamento e saber que, entre os anos setecentos e oitocentos, se
deslocaram do indivíduo para serem aplicados à sociedade.
Um saber médico que ordena, prescreve e cert ifica é solicitado nos tribunais para
definir o normal e o patológico, e está presente nas teses da Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro entre 1830-1900. Além da formação e valorização da medicina, como um saber que se
estrutura como responsável pela gestão da existência humana, essas teses analisam e
condenam o suicídio, procurando diagnost icar suas causas e t ratamentos.
O capítulo III discute A Relação entre as paixões e o suicídio. No imaginário
românt ico do século XIX, morrer de paixão, definhar lentamente por amor alimentava os
devaneios de um determinado grupo social que prat icava o otium cum dignitatis. Fábio nos
apresenta o grande espetáculo das chamadas paixões suicidas das tabernas, das bebidas, do
jogo, das mulheres fáceis, e que foram encenadas e musicadas nas óperas exibidas nos
teatros da Europa e da capital brasileira: Bellini, Verdi, Tchaikovsky, Puccini, entre outros. Os
excessos, as perversões e as mortes direcionaram o olhar dos médicos brasileiros, que,
ancorados nas taxonomias do médico Esquirol, hierarquizaram e separaram as boas paixões,
aquelas que nasciam das relações sociais, das patológicas, que levariam ao suicídio: amor,
cólera, terror e vingança.
O capítulo IV, As Diferenciações sexuais do suicídio, problemat iza as subjet ivações
e o estereót ipo da natureza feminina: frágil e emot iva, logo, susceptível às doenças mentais,
às paixões avassaladoras e, naturalmente, ao suicídio. Porém, como explicar a incidência de
suicídio entre oshomens? No exame das teses médicas e sua generalização do suicídio, Fábio
propõe a inversão das evidências, os recortes discursivos que, no caso, constroem essa
naturalização de papéis — o modo feminino e o modo masculino de suicídio.
No últ imo capítulo, A literatura vista como um perigo à vida, o estudo passa da ficção
da ciência dos médicos para a ficção de uma certa literatura, considerada verdadeiro agente
de contágio, que est imulava as naturezas-mórbidas com suas narrat ivas do amor românt ico,
uma das grandes causas dos suicídios. Essa temát ica subversiva está presente em escritores
nacionais como Machado de Assis,Aluisio de Azevedo e, principalmente, em escritores
estrangeiros como Flaubert e Goethe, nos sofrimentos por amor do jovem Werther.
Convido o leitor a aceitar a provocação de Fábio Lopes que, num ato de coragem,
propõe a morte das banalizações, das mesmices, dos julgamentos e das normalizações. Fábio,
na recusa da regra, instaura a relação consigo mesmo e com outros, const ituindo-se como
sujeito ét ico. Leia, discuta, crit ique, reinvente o conhecimento est imulado por esse intelectual,
que bem pode ser aquele sonhado por Foucault :
Sonho com um intelectual destruidor das evidências e das universalidades, que localiza e indica inércias e
coações do presente os pontos fracos, as brechas, as linhas de força; que sem cessar se desloca, não sabe
exatamente onde estará ou o que pensara amanhã, por estar muito atento ao presente; que contribui, no lugar em
que está, de passagem, a co locar a questão da revo lução, se ela vale a pena e qual ( quero dizer, qual revo lução
e qual pena). Que fique claro que os únicos que podem responder são os que aceitam arriscar a vida para fazê-
la.5
Rio de Janeiro, 10 de novembro de 2007
Marilene Rosa Nogueira da Silva
Coordenadora do Laboratório do Estudo Sobre as Diferenças e Desigualdades Sociais —
LEDDES/UERJ
INTRODUÇÃO
Em novembro de 1995, com o t í tulo de A extrema dor, uma importante revista de
circulação nacional publicou um ensaio de Mario Sabino sobre a negação da vida, elaborado a
part ir do suicídio de duas jovens brasilienses.1 Ambas suicidaram-se com um t iro na cabeça.
Uma delas t inha quatorze anos de idade e, segundo declarações da mãe após o suicídio da
filha, fazia terapia para resolver probleminhas da adolescência. Achava-se muito gordinha e
queria fazer uma plást ica para diminuir os seios. A outra jovem, de dezesseis anos de idade,
estava, segundo a família, deprimida com o fim do namoro.
De acordo com Sabino, essas jovens ricas e queridas t inham a vida inteira pela frente
para realizarem seus sonhos, mas preferiram a morte à vida. Percebe-se em seu texto alguns
quest ionamentos: como é possível alguém, ainda mais um jovem, perder tão
irremediavelmente a esperança? Pode haver um absurdo maior do que o corpo de um jovem
suicida estendido no chão, desfigurado por um t iro na cabeça? Para ele, costuma-se falar um
monte de bobagens a respeito das razões que levam alguém a se matar. Sua crí t ica é
direcionada aos jornalistas, sociólogos, filósofos, psicanalistas e literatos que não conseguem,
segundo ele, apresentar a verdade sobre o suicídio. São aqueles que não são capazes de dar
uma explicação verdadeira para a escolha de pôr fim à vida, isso porque cada área do saber
produz e divulga suas verdades, muitas vezes conflitantes e contraditórias. Diante dessa
pluralidade, Sabino não concorda com a visão de alguns que insistem em apresentar o suicídio
como um ato de lucidez, ou corolário de uma obra ou de uma vida. Tampouco ele aceita a
tendência de pensar o ato sendo movido por razões predominantemente sociais. Sabino
recusa a possibilidade do suicídio ser uma saída gloriosa da prisão das convenções sociais;
rechaça a propensão de pensá-lo como uma espécie de ascese moral, um instante de lucidez
extrema.
O quadro composto de desenhos, riscos, rabiscos, cores, tons e pinceladas,
construído pelos vários discursos que pretendem apresentar a verdade sobre o suicídio, não
deve, segundo o autor, tornar-se público, porque não consegue resolver o mistério do e sobre
o suicídio. A pluralidade de possíveis causas, como as diversas e diferentes explicações
imagináveis, permit iram que Sabino concluísse seu ensaio com uma mensagem clara, que
pretende ser pedagógica. Ele espera que o vazio e o sent imento de culpa — herança dos pais
e amigos do suicida — sejam suficientes para que façamos silêncio. Deveríamos nos calar
perante tudo o que o suicídio provoca e produz: culpa, dor, quest ionamentos, revolta e
incompreensão.
O silêncio é buscado, solicitado e desejado, porque os casos de suicídio e os vários
discursos produzidos a part ir deles estão presentes nas páginas dos jornais, das revistas, dos
romances e contos, na tela do cinema, enfim, em nosso dia-a-dia. Muitos deles ganham grande
repercussão, inclusive mundial.
Entre os vários casos citados pelo autor no referido ensaio, um chama a atenção,
pois ganha notoriedade, ousando romper as barreiras criadas por Sabino: a referência ao
suicídio de Kurt Cobain, guitarrista e vocalista da banda norte-americana Nirvana. A
notoriedade foi alcançada porque permit iu uma ampla cobertura e divulgação da morte por
suicídio de um sujeito contraditório, famoso, conhecido mundialmente e reverenciado,
diferentemente do suicídio das desconhecidas jovens brasilienses.
Esse caso foi citado por Sabino para comprovar não só o monte de bobagens que se
costuma falar a respeito das razões que levam alguém a se matar, mas, também, para reforçar
o absurdo e a violência que seriam inerentes ao ato suicida.
Apesar das explícitas diferenças — de gênero, data, contexto e meios ut ilizados —
entre o suicídio de Cobain e o das duas jovens brasilienses, há um ponto em comum entre os
três personagens: todos procuraram a morte, não puderam mais viver. Essa constatação
aponta questões que causam perturbação: quais as razões do ato? O que teria provocado o
suicídio do reverenciado roqueiro americano ou das ricas, belas e queridas jovens
brasilienses? O suicídio do jovem americano e suas repercussões podem ajudar a esboçar
uma resposta.
Pelo fato de não aceitar o sugerido silêncio em torno do suicídio, ut ilizo a deixa do
autor para discorrer um pouco mais sobre o ato de Cobain, que revela muito sobre as formas
através das quais a sociedade contemporânea responde, ou não, aos seus problemas e
mazelas.
Morto em abril de 1994, Cobain deixa à posteridade sua carta de adeus, seu últ imo
canto, sua inspiração final. De acordo com a mensagem, havia muitos anos que ele não vinha
sent indo excitação ao ouvir ou fazer música, bem como ao ler ou escrever. Sua culpa por isso
era indescrit ível. Imaginem o que representa para um jovem roqueiro não sent ir mais prazer e
excitação ao ouvir um bom rock e ao tocar notas e melodias que, por muito tempo, lhe serviram
de inspiração. Como poderia cont inuar a t rilhar o caminho da música, aquele jovem que não
mais se alegrava com a arte das part ituras e com o fascínio da criação art íst ica?
Deixarei que as palavras de Cobain criem vida:
(...) quando estou atrás do palco, as luzes se apagam e o ruído ensandecido da multidão começa, nada me afeta
do jeito que afetava Freddie Mercury, que costumava amar, se deliciar com o amor e adoração da multidão — o
que é uma co isa que to talmente admiro e invejo . O fato é que não consigo enganar vocês, nenhum de vocês.
Simplesmente não é justo para vocês e para mim. O pior crime que posso imaginar seria enganar as pessoas
sendo falso e fingindo que estou me divertindo 100 por cento . Às vezes acho que eu deveria adicionar um
despertador antes de entrar no palco. Tentei tudo que está em meus poderes para gostar disso (e eu gosto , Deus,
acreditem, eu gosto , mas não o suficiente). Me agrada o fato de que eu e nós atingimos e divertimos uma porção
de gente. Devo ser um daqueles narcisistas que só dão valor às co isas depo is que elas se vão. Eu sou sensível
demais. Preciso ficar um pouco mais dormente para ter de vo lta o entusiasmo que eu tinha quando criança (...)
Obrigado do fundo de meu nauseado estômago queimando por suas cartas e sua preocupação ao longo dos
anos. Eu sou mesmo um bebê errático e triste! Não tenhamos mais a paixão, então lembrem, é melhor queimar
do que se apagar aos poucos.
Paz, Amor, Empatia.2
Jovem, americano, sensível, rico e famoso, mas também triste, confuso, temeroso em
relação ao futuro da filha, angust iado pela falta de mot ivação, prazer e entusiasmo outrora
constantes, perseguidopor ininterruptas dores de estômago e em conflito com a fama, Kurt
Cobain, aos vinte e sete anos, inventando-se e sendo inventando por meio de tantas
subjet ividades, foi encontrado morto na garagem de sua mansão. Após invest igações policiais
e averiguações médicas, concluiu-se e atestou-se que o roqueiro usuário de drogas suicidou-
se ingerindo alta dose de heroína.
O caso obteve destaque na imprensa mundial. Muito se falou a respeito do suicídio
de Cobain e das possíveis causas de sua morte, indicando assim que as observações de
Sabino sobre a polissêmica produção discursiva acerca das causas de suicídio são
recorrentes. A diversidade de possibilidades oferecidas para pensar o suicídio de Cobain,
porém, permite inferir: se é possível perceber uma tendência que busca impor o silêncio em
torno do suicídio, é observável uma outra que se dedica a tudo falar sobre o ato e suas
causas, simulando abordar o problema de uma forma séria e cuidadosa.
Várias razões que podem ter levado o famoso roqueiro ao suicídio foram divulgadas
aos quatro cantos: drogas, problemas com os pais, fama, depressão, casamento conturbado,
fortes dores de estômago, explícita falta de prazer no trabalho e, ainda, a sua indiscutível
genialidade. Assim, a própria imprensa envolveu-se numa campanha para encontrar e definir a
verdadeira causa do seu suicídio.
Por meio de variados discursos, Kurt Cobain — agora classificado e definido como o
suicida — foi apresentado como um jovem drogado, que desde os sete anos tomava
tranqüilizantes e ant idepressivos. Para outros, ele era apenas fruto de lar desfeito; cresceu
infeliz, sendo empurrado de um parente para outro. De acordo com muitos, a causa deveria
estar relacionada com o incômodo provocado pela fama, que o desnorteava completamente.
Vários intérpretes de sua morte consideraram o fato de ele ter perdido o contato
com a maioria dos amigos de Seatt le como a razão para o seu suicídio. Cobain ficara isolado e
sozinho em outro espaço de referências, diferente daquele do início de sua carreira. Disseram
que as constantes e fortes dores de estômago, após inúmeras e infrut í feras visitas aos
especialistas, poderiam também ser a causa de sua desistência.
Ampliando ainda mais o campo explicat ivo, sugeriram que a culpa por não sent ir mais
prazer em fazer música, o que afetava tremendamente sua relação com o público, com a
imprensa e com as pessoas em geral, atormentava-o sobremaneira. Por fim, observaram que,
como muitos outros considerados gênios, Cobain sofria os reflexos de sua hipersensibilidade e,
por isso, como outros de mesma condição, preferiu part ir, ir embora.
Essa polissemia, essa busca recorrente de causas e explicações para o ato suicida é,
como já sugerido, produzida historicamente visando at ingir determinados fins e estratégias.
Isso, porque muito se fala sobre as causas de suicídio, muito se produz sobre as mot ivações,
mas não de maneira franca. Ao invés de centralizar os problemas no próprio indivíduo, na
pretensão de que a causa seja sempre ele mesmo, é necessária outra at itude: pensar que
todos nós somos, em parte, coadjuvantes de situações, pressões, cobranças, esperas e
anseios que podem ser, às vezes, causas, desculpas ou até mesmo aquela última gota que
falta para que pessoas ao nosso redor, ou até mesmo não tão próximas assim, desistam da
vida.
O refúgio nas evasivas da polissemia para evitar a discussão sobre o problema do
suicídio não é aceitável. Ainda que não tenhamos o objet ivo de provar o que levou ou leva
alguém a optar pelo suicídio, e tampouco condenar todo desejo e ato de pôr fim à vida, penso
que, como várias outras pessoas que se suicidaram e que estão citadas ao longo deste
trabalho, Kurt Cobain pode ter se suicidado pelas razões expostas anteriormente, ou ainda por
nenhuma delas. Há também a possibilidade de ele ter produzido para si uma subjet ividade
completamente diferente daquelas conhecidas e ligadas a ele.
É portanto necessário, e acredito ser urgente, encontrar formas plurais de
problemat izar e pensar o suicídio. É preciso discut ir, debater, estudar, analisar e interrogar o
ato para, em seguida, compreender o que leva uma pessoa ao suicídio, a não mais querer a
vida, pelo menos uma condição específica de vida, sem preconceitos e conclusões a priori.
Ao sermos confrontados com a mult iplicidade oferecida pela alteridade, rompemos
com a abordagem que propõe a naturalização do social e criamos formas de pensar que não
negam a criatividade, a variabilidade e a imprevisibilidade da vida3, inclusive no que diz
respeito ao suicídio. Assim, no lugar de reunir ident idades, encaixando todos os indivíduos que
se suicidam num mesmo rótulo — o de doente mental ou desequilibrado, por exemplo —,
devemos nos aplicar mais à alteridade.
O silêncio proposto sobre o tema é visto como meio de ocultar as fugas, ruptura de
ritmo de vida muitas vezes imposto, que poderia sugerir para uma sociedade medicalizada e
ordenada a possibilidade da descont inuidade, da finitude e da fragilidade da vida,
característ icas abafadas pela medicalização.4
Decidi falar, ousei estudar e analisar o tema. Delimitei a tarefa central como sendo a
busca da experiência5 do suicídio no século XIX, focalizando a problemat ização do suicídio
pelo discurso médico produzido no Brasil.
Interroguei as formas com que esse tema foi problemat izado no Brasil, e analisei
como se tornou objeto de conhecimento possível, desejável e indispensável. Centralizei toda a
atenção no discurso médico porque a pesquisa documental sugeriu que foi esse discurso
majoritariamente masculino que, durante a primeira metade do século XIX, possibilitou, pela
primeira vez no Brasil, a visibilidade do suicídio no campo do saber cientí fico. Além do mais, a
medicina teve um dos principais papéis na configuração do suicídio como o vivenciamos
atualmente, ou seja, como um ato próprio de um sujeito desequilibrado, doente, desesperado,
atordoado, irracional — referências e imagens sempre ligadas aos distúrbios e desarranjos
mentais. Desse modo, o saber configurou-se como campo privilegiado de invest igação.
O recorte temporal escolhido foi definido pela década de 1830 e pelo início do século
XX. A década de 1830 foi o período histórico de criação das primeiras inst ituições médicas de
ensino e pesquisa, que possibilitaram espaço inst itucional e elementos teóricos para o início
da temat ização. O início do século XX foi o momento em que novas teorias — de Émile
Durkheim e Sigmund Freud, por exemplo —, conceitos e prát icas começaram a alterar a visão
médica brasileira sobre o suicídio.
A baliza inicial é, portanto, marcada pelo surgimento das inst ituições onde foram
desenvolvidas as teses médicas brasileiras ut ilizadas como fontes. A baliza final — o início do
século XX — remete ao momento em que os médicos brasileiros começaram a mudar o viés
ut ilizado para pensar e estudar o suicídio. Essa mudança teórica, percebida em trabalhos
médicos do século XX, foi possibilitada pela difusão das teorias e conceitos do sociólogo
francês Durkheim, pelos desafios do fundador da psicanálise, Freud, e inspirada pela doutrina
eugênica.
Émile Durkheim escreveu, em 1897, um clássico da literatura sociológica, O Suicídio.
Por acreditar que os indivíduos são produtos de forças sociais complexas, e não podem ser
entendidos fora do contexto social em que vivem, ele concebeu o suicídio como um fato social.
Assim, no lugar de sugerir que o suicídio é um fenômeno psicológico ou patológico, tendência
recorrente entre os médicos do século XIX, o sociólogo propôs outra perspect iva analí t ica: a
de observá-lo e analisá-lo a part ir de dados estat íst icos para buscar as suas causas. Em suas
palavras, as causas de morte situam-se fora de nós muito mais do que em nós e só nos
atingem se nos aventuramos em sua esfera de ação.6
Segundo sua concepção, o suicídio é produto de um profundo conflito relacionadocom o meio social exterior ao indivíduo. Dessa maneira, cada sociedade possuiria uma
inclinação colet iva ao suicídio e suas causas situar-se-iam mais fora do que dentro dos
indivíduos:
Qualquer ruptura de equilíbrio , ainda mesmo que dela resulte um bem estar maior e uma vitalidade geral, incita à
morte vo luntária. Todas as vezes que se produzem no corpo social graves modificações, sejam elas devidas a
um súbito movimento de crescimento ou a um cataclismo inesperado, o homem mata-se facilmente.7
Durkheim ident ificou uma natureza eminentemente social do ato de se dar à morte
porque privilegiou o conjunto dos suicídios cometidos numa determinada sociedade durante
uma unidade de tempo, em lugar de estudá-los como acontecimentos part iculares, isolados
uns dos outros. Por focalizar a sociedade, Durkheim pôde concluir, a part ir das informações
sugeridas pela estat íst ica, que cada sociedade tem, portanto, em cada momento de sua
história, uma disposição definida para o suicídio. Mede-se a intensidade relativa dessa
disposição tomando a razão entre o número total global de mortes voluntárias e a população
de todas as idades e todos os sexos.8 Segundo o sociólogo, existe para cada grupo social uma
tendência específica ao suicídio que depende de causas sociais, o que caracteriza o suicídio
como um fenômeno colet ivo.
Durkheim compôs os t ipos sociais do suicídio classificando as causas que o
produzem e examinando as condições sociais de que dependem.9 Sugeriu, assim, a célebre
t ipologia do suicídio: o egoísta, o alt ruísta e o anômico. O suicídio egoísta se explica pela
desintegração social. Nesses casos, o grau de integração do indivíduo com o meio social não
se apresenta suficientemente forte, afastando o sujeito do seu grupo de semelhantes. Nas
palavras dele:
Quanto mais os grupos a que pertence se enfraquecem, menos o indivíduo depende deles, e por conseguinte,
mais depende apenas de si mesmo para não reconhecer outras regras de conduta que não as que se baseiam
em seus interesses privados. Se, portanto , conviermos chamar de egoísmo esse estado em que o eu individual
se afirma excessivamente diante do eu social, e às expensas deste último, poderemos dar o nome de egoísta ao
tipo particular de suicídio que resulta de uma individuação descomedida.10
Para Durkheim, somente uma sociedade fortemente integrada consegue manter os
indivíduos sob dependência, a seu serviço, e não lhes permite dispor de si mesmos conforme o
capricho. Por assim pensar, redirecionou o olhar para os malefícios do individualismo excessivo,
que leva ao suicídio porque apaga as obrigações que o indivíduo tem com a sociedade à qual
ele serve e lhe é necessária para garant ir a vida.
O suicídio alt ruísta se deve à individuação insuficiente. Em oposição ao egoísta,
esse ato é prat icado por sujeitos que estão fortemente submetidos aos valores colet ivos,
quando estão integrados demasiadamente na sociedade, acreditando assim ser necessário
dar a vida por uma causa colet iva. Para Durkheim, essa fraca individuação só pode ter uma
causa: para que o indivíduo tenha tão pouco espaço na vida colet iva é preciso que ele seja
quase totalmente absorvido no grupo e, por conseguinte, esteja muito fortemente integrado.
Para que as partes tenham tão pouca existência, salienta ele, é preciso que o todo forme uma
massa compacta e contínua. Assim, concluiu que ao indivíduo (...) faltam os meios para
constituir para si um meio especial, a cujo abrigo ele possa desenvolver sua natureza e
construir-se uma fisionomia que seja só sua. Indist into de seus companheiros, ele seria parte
aliquot do todo, sem valor por si mesmo.
As principais diferenças entre o egoísta e o alt ruísta são assim resumidas: enquanto
o egoísta se deve ao excesso de individuação, o alt ruísta tem individuação demasiado
rudimentar; um ocorre porque a sociedade, desagregada em certos aspectos ou mesmo em
seu conjunto, deixa o indivíduo escapar, e o outro, porque o mantém demasiada e
estritamente sob sua dependência.
Dessa maneira, ele chamou de egoísmo o estado no qual se encontra o eu quando
vive sua vida pessoal e só obedece a si mesmo. O contrário foi expresso pela palavra
alt ruísmo: o eu não se pertence, confunde-se com outra coisa que não ele; o pólo de conduta
está situado no grupo do qual faz parte.11
Os suicídios anômicos estão, segundo o sociólogo, relacionados com uma situação
de desregramento t ípica de períodos de crise, e a sua origem, na crença do homem de que
seu mundo, seus valores sociais e regras estão desmoronando em torno dele. É possível
perceber que a sociedade não é, para Durkheim, apenas um objeto que atrai para si, com
intensidade desigual, os sent imentos e a at ividade dos indivíduos. Em suas palavras, também
é um poder que os regula. Há uma relação entre a maneira pela qual se exerce essa ação
reguladora e a taxa social dos suicídios.12
Quando a sociedade é perturbada, seja por uma crise dolorosa ou por
transformações favoráveis, mas por demais repent inas, ela fica provisoriamente incapaz de
exercer a ação de frear, conter e regular o indivíduo e as suas ações. Daí provêm a brusca
ascensão da curva de suicídio13 e a anomia como seu fator regular e específico. Durkheim
diferenciou o suicídio anômico dos outros dois t ipos não pela maneira como os indivíduos
estão ligados à sociedade, mas pelo modo como ela os regulamenta:
O suicídio egoísta tem como causa os homens já não perceberem razão de ser na vida; no suicídio altruísta,
essa razão lhes parece estar fo ra da própria vida; o terceiro tipo de suicídio(...) tem como causa o fato de sua
atividade se desregrar e eles sofrerem com isso. Por sua origem, daremos a essa última espécie o nome de
suicídio anômico.14
A mudança na temat ização do suicídio passa a ser evidente, após Durkheim
apresentar t rês t ipos de suicídio onde a relação com a sociedade é fundamental. Como
sociólogo, Durkheim part iu da esfera social para pensar o suicídio e a ela se limitou, criando
alternat ivas para a problemat ização e sendo quest ionado por muitos estudiosos, não só pela
metodologia do seu trabalho, como por suas conclusões. Contudo, a importância de suas
análises é indiscutível, pois apresentam um olhar diferente daquele que, ao longo do século
XIX, comumente era direcionado ao tema, ou seja, o olhar médico.
Além de Durkheim, outro pensador que mudou as referências teóricas ut ilizadas para
pensar o suicídio ao longo do século XX foi Freud. Sua principal inovação diz respeito ao seu
método de invest igação e ao seu estudo do mental. Isso, porque Freud nunca teorizou sobre o
suicídio, mas permit iu, com suas inquietantes propostas de estudo das estruturas mentais,
que os médicos do século XX procurassem por respostas de maneira até então impossível.
Freud tentou explicar o suicídio a part ir do conflito de Eros X Thanatos. Segundo sua
concepção, Eros é o inst into de vida e Thanatos, o da morte. Assim, é necessário haver
equilíbrio entre essas pulsões, entre esses inst intos, para que o suicídio não ocorra, para que
a morte não triunfe sobre a vida. Logo, é possível concluir que, para Freud, o suicídio não é
necessariamente um ato de loucura, mas uma imposição e uma vitória do impulso de morte.15
Note-se que, apesar de tantas inovações — inclusive a idéia de suicídio inconsciente
—, manteve-se a tendência de, ao longo do século XIX, se buscar as mot ivações do suicídio
no próprio indivíduo. Ao mesmo tempo algoz e ví t ima, o suicida cont inuou sendo o principal
responsável pela a própria morte.
Por fim, a últ ima ruptura provocada no pensamento médico brasileiro sobre o suicídio
entre os séculos XIX e XX, que ajuda a indicar as razões da baliza final deste t rabalho, é
definida pelo discurso eugênico. Importada da Europa, a doutrina eugênica teria chegado ao
Brasil encoberta pelo tema e pela preocupação com a raça. Classificadas a princípio como
temas culturais,as idéias eugênicas encontraram no país um terreno fért il, vindo ao encontro
das preocupações que tanto atormentavam nossos intelectuais, não só no aspecto da
definição de povo brasileiro mas também do país como nação.
A entrada da eugenia no Brasil corresponde ao projeto de intervenção social das
primeiras décadas do século XX, reunindo em torno do ideário a elite da psiquiatria nacional,
diversos médicos, educadores, advogados, intelectuais em geral e, até mesmo, alguns
empresários e polí t icos brasileiros.16
Assim, a psiquiatria, ao lado de vários outros saberes disciplinares, como a recente
criminologia, a engenharia sanitária e a medicina higiênica, e tendo como principal campo de
batalha os centros urbanos, buscava, como sinalizou José Roberto Franco Reis, intervir no
corpo social de forma a esconjurar o crescente de riscos sociais.17 Para isso, invest iu
poderosamente na ident ificação e isolamento daqueles indivíduos que se encontravam na
linha de frente do risco degenerativo.18 Indivíduos suspeitos, portanto, de serem portadores e
transmissores, até mesmo hereditários, dos germes da desordem e da desagregação social:
delinqüentes, alcoólatras, prost itutas, imigrantes, negros e suicidas, entre outros. Dessa
maneira, essa ruptura observada em trabalhos do início do século XX, que apresentavam
outras referências tais como a preocupação com as esferas psíquica e social e a relação da
medicina com outros saberes disciplinares, permit iram mudanças na temat ização do suicídio,
exigindo, por assim dizer, um outro t rabalho de pesquisa, outras análises e referências.
Para at ingir o objet ivo central, o de problemat izar a construção do suicídio pela
medicina, dividi o livro em cinco capítulos. Em todos, por meio dos discursos apresentados e
defendidos, principalmente em duas inst ituições médicas cariocas — a Faculdade de Medicina
do Rio de Janeiro e a Academia Imperial de Medicina —, t rabalhei com os discursos que
iniciaram e construíram a temat ização cientí fica do suicídio no Brasil.
Percebi que os discursos médicos podem ser analisados a part ir de quatro principais
temas, e em todos eles o homem é a figura central, enquanto sujeito e objeto de
conhecimento: a dimensão patológica; as paixões como causa de suicídio; as diferenças entre
o suicídio masculino e o feminino e a influência da literatura na propagação do mal —
entenda-se, o suicídio.
Recortei, então, quatro séries temát icas para pensar a problemat ização médica
brasileira ao longo do século XIX. Para cada uma delas propus um capítulo, além de outro,
inicial, sobre o contexto histórico e inst itucional que permit iu o surgimento dos primeiros
estudos médicos e cientí ficos no século XIX. Indaguei que t ipo de medicina foi essa que
possibilitou o início da temat ização e quais inst ituições ofereceram espaço para tal produção
discursiva.
Analisei o contexto inst itucional e as condições históricas que possibilitaram o início
da temat ização e da interpretação cientí fica do suicídio. Privilegiei os estudos de Roberto
Machado e de Madel Luz, por serem os mais citados, estudados e indagados pelos
historiadores que se ocupam com o surgimento da medicina social brasileira.
No segundo capítulo, indaguei os modos de problemat ização do suicídio pela
medicina brasileira: sua dimensão patológica. Analiso os t rabalhos médicos para interrogar
como estes discursos, a part ir do século XIX, classificaram e apresentaram o suicídio como
fenômeno naturalmente ligado ao universo das doenças, perturbações e distúrbios mentais, e
o suicida como doente e anormal — nesse sent ido, patologizado, passível de tratamento e
cura.
No terceiro capítulo t rabalhei com as paixões. Muitas teses médicas e estudos sobre
o tema dedicaram considerável número de páginas a descobrir os perigos das paixões, a
nocividade de seus excessos, e apresentaram a inquietante análise que aponta os grandes
centros e as cidades como meios facilitadores e, até mesmo, indutores de paixões, entendidas
como causas de suicídio.
No quarto capítulo, analisei a diferenciação, constante e recorrente em trabalhos
médicos do século XIX, entre o suicídio cometido por homens e aquele cometido por mulheres.
Busquei a base ut ilizada para sustentar tal diferenciação e quest ionei a possibilidade de
pensar a diferença entre um modo masculino e outro feminino de se suicidar. Para
problemat izar o tema, ut ilizei o gênero enquanto categoria de análise, focalizando e
analisando a criação e o uso das idéias sobre os papéis próprios aos homens e mulheres.
No quinto capítulo analisei as relações entre o saber médico e o literário. Indaguei em
que consist ia a crí t ica médica em torno das obras literárias que narram algum t ipo de suicídio
e desconstrui a base sobre a qual esta referência e prát ica foram criadas, suas conseqüências
no que diz respeito à disputa de domínio do objeto por uma determinada área do saber — a
medicina —, e as medidas propostas para silenciar as obras acusadas de fazer apologia ao
suicídio.
Escolhi esse percurso para problemat izar as formas pelas quais os médicos
brasileiros estudaram e analisaram o suicídio, ou seja, para historicizar os discursos médicos —
que cont inuam a produzir imagens, referências e verdades sobre e para o suicídio e, também,
para buscar como se deu a experiência do suicídio; e, finalmente, para propor um novo olhar
sobre o tema, que possa libertar o sujeito que se suicida de ser considerado e feito doente,
desequilibrado, irracional e desesperado. Para tal, indaguei os modos de produção de verdades
sobre o suicídio, muitos deles ainda presentes em nossa sociedade e cont inuando a produzir
subjet ividades.
Para percorrer esse caminho, ut ilizei questões, indagações e olhares da chamada
análise arqueo-genealógica de Michel Foucault , porque tal perspect iva permite pensar o
suicídio de outro modo, a part ir das relações entre saber, poder e subjet ividade, e estudar não
só a construção de sent idos, como também explorá-los. Ao longo de todo o percurso, algumas
obras, como Arqueologia do Saber, Microfísica do Poder e O Uso dos Prazeres de Foucault ,
foram vitais. Várias outras, tais como Foucault e a Norma e o Direito, de François Ewald, Como
se escreve a história: Foucault revoluciona a história, de Paul Veyne, O microscópio de Michel
Foucault, de Gérard Lebrun, A história da cultura de Michel Foucault, de Patrícia O’Brien e O
efeito Foucault na historiografia brasileira, de Margareth Rago, me ajudaram pensar a pesquisa
documental, t rabalhar com os documentos, estabelecer e organizar séries temát icas para
estudar a problemat ização médica e, sobretudo, reflet ir sobre a História.19
Indaguei como apareceram os primeiros discursos e saberes sobre o suicídio no
Brasil no século XIX. Busquei as condições de existência dos discursos médicos sobre o
suicídio e perguntei: o que possibilitou o aparecimento histórico dos discursos médicos e
cientí ficos sobre o suicídio? O que possibilitou o surgimento de um tema como o suicídio para
o médico brasileiro, por exemplo? As respostas foram tecidas principalmente no primeiro
capítulo.
Problemat izei o jogo do verdadeiro e do falso, aquilo que poderia ser considerado
como verdadeiro ou falso sobre o suicídio. Com esse jogo, foi possível destacar e interrogar
um certo regime de verdade e o t ipo de poder e sujeição que lhe é correlat ivo. Sobre essa
questão, François Ewald lembra que
(...) já não é possível separar a verdade dos processos da sua produção, e que esses processos tanto são
processos de saber como processos de poder. Que não há portanto verdade(s) independente(s) das relações de
poder que a(s) sustentam e que ao mesmo tempo ela(s) reconduz (em) e reforça(m), que não há verdade sem
política da verdade, que toda afirmação de verdade é indisso luvelmente peça, arma ou instrumento no interio r de
relações de poder.20
Os discursos e as verdades são pensados como construtosde processos históricos.
São provenientes de relações de poder e produzem sujeição, consent ida ou forçada. Essa
perspect iva possibilita, também, a busca dos jogos da verdade, das exclusões, das
invalidações, do interdito, dos esquecimentos e da busca de silêncio. Jogo esse marcado e
const ituído por tentat ivas e estratégias de domínio de poder.
Em relação ao poder, ou melhor, em relação aos exercícios de poder, devo sublinhar
que é possível, e certas vezes necessário, analisar os modos de produção de poder e buscar
seus efeitos, a produção de corpos, idéias e saber. Essa produção de poder é posit iva, produz
relações disciplinares de controle, vigia, produz educação e cuidados, mas também algo real e,
por fim, domínios de objetos e rituais de verdade sobre o e a part ir do suicídio.21
Nesse sent ido, a chamada análise arqueo-genealógica é ut ilizada porque oferece
ferramentas analí t icas e possibilidades de pensar o suicídio de outro modo. Assim, posso
indagar a const ituição de sent idos, a construção de ident idades para o sujeito que se mata e o
processo que o culpabiliza, que o t ransforma no principal e muitas vezes único responsável por
sua escolha e ato.
Com essa perspect iva, pude trabalhar com os modos como a medicina brasileira
problemat izou o suicídio ao longo do século XIX, como se apropriou de outros discursos
médicos, como o francês, e em que medida estabeleceu relações de poder e de força com
outras áreas do saber, como a literatura.
Em lugar de part ir do discurso médico para just ificar o uso das ident idades por ele
criadas, de part ir do sujeito suicida já const ituído, ou procurar uma ident idade primeira que
estaria inscrita na natureza humana, a proposta é a de desconstrução de tais processos e
ident idades. Em suma, uma pesquisa que agita o que se percebia imóvel, fragmenta o que se
pensava unido e mostra a heterogeneidade do que se imaginava em conformidade consigo
mesmo.22
Como o trabalho passa a ser o da desconstrução, nada mais pode ser reconhecido
como dado óbvio ou até mesmo natural. Corpos, sexualidades, gestos, comportamentos,
hábitos, desejos e, inclusive, o ato de se dar à morte são históricos, datados, produzidos por
determinados contextos. A este respeito, Hayden White nos lembra que
(...) nenhum acontecimento histórico é intrinsecamente trágico; só pode ser concebido como tal de um ponto de
vista particular ou de dentro do contexto de um conjunto estruturado de eventos do qual ele é um elemento que
goza de um lugar privilegiado. Po is na história o que é trágico de uma perspectiva é cômico de outra (...).23
Dessa maneira, a idéia de um cômodo passado organizado e pronto para ser
detectado e t razido à tona é recusada. Estamos portanto diante de uma outra postura
histórica e historiográfica. Agora trata-se de perceber como o passado foi elaborado para, em
seguida, libertá-lo e não apenas procurá-lo, interrogá-lo, ou ambos. Em todos os momentos,
prevalece a preocupação de trabalhar o discurso como prát ica inst ituinte e criadora de
acontecimentos, imagens e referenciais de comportamento. Part indo dessa perspect iva,
focalizo os discursos médicos brasileiros do século XIX, que cont inuam a gerenciar a produção
discursiva e a temat ização contemporânea sobre o suicídio.
A esse respeito, o levantamento bibliográfico sobre o tema permite perceber que a
maioria absoluta dos estudiosos contemporâneos que se dedicam ao estudo do suicídio é de
profissionais da saúde.24 Não que eu queira estabelecer uma cont inuidade entre a
problemat ização médica do século XIX com a do final do século XX ou do início do século XXI.
Afinal, como o próprio Foucault já advert ira, a história será efet iva na medida em que
reintroduzir o descontínuo em nosso próprio ser, não esquecendo que o saber não é feito para
compreender e sim para cortar.25
Recusando as cont inuidades históricas e atemporais, a pesquisa sugere que o saber
que se fez responsável pelo início dos estudos e análises do suicídio no Brasil — o médico —
é o principal produtor de conhecimento sobre esse ato em nossos dias. Mas há uma mudança
na maneira como o suicídio é problemat izado. Um novo mundo conceitual foi criado e
apropriado pelos médicos, entre eles o proposto por Durkheim e Freud. Hoje, os principais
responsáveis pela produção de sent idos e verdades sobre e para o suicídio fazem parte da
mesma área do saber, que desde o século XIX é dominante no que diz respeito à criação de
sent idos, imagens e referências ao suicídio e ao sujeito que o prat ica. Mas eles não dizem,
necessariamente, a mesma coisa, pois não seguem a mesma ordem do discurso, tampouco
perpetuam as mesmas relações de poder e as mesmas tát icas e estratégias de domínio e
intervenção. Como fica claro, assim como os acontecimentos, os discursos e o saber também
são históricos.
Nesse sent ido, aceito o desafio proposto por Hayden White: o historiador
contemporâneo precisa estabelecer o valor do estudo do passado não como um fim em si,
mas como um meio de fornecer perspect ivas sobre o presente que contribuam para a solução
dos problemas peculiares ao nosso tempo.26 As análises desenvolvidas a part ir dos
documentos e dados selecionados indicam a possibilidade e, porque não, a importância de
pensar o suicídio e o sujeito que o prat ica a part ir de outros olhares, perspect ivas, teorias,
conceitos e prát icas. Para isso, o primeiro passo é, sem dúvida, o da desconstrução:
ident ificando, demonstrando e analisando como as referências, sent idos e verdades foram
desejadas, buscadas, construídas e divulgadas.
Ao evidenciar a historicidade de tais discursos médicos, saliento que é possível
pensar diferentemente, para além das referências e verdades produzidas pelos profissionais
da saúde. É possível que o sujeito que se suicida, ou que o tenta, não seja necessariamente
doente, louco, desequilibrado e anormal. É importante pensar o suicídio a part ir de referências
plurais, libertando assim o sujeito de ident idades que se pretendem naturais. É necessário criar
espaços e possibilidades para que tais sujeitos possam apresentar suas reivindicações,
desejos, sonhos, dúvidas, incertezas, conflitos, temores, ansiedades e sensibilidades, para que
assim possamos nos ajudar mutuamente.
Dessa maneira, torna-se menos árdua a tarefa de visualizar, propor e buscar outras
formas de pensar o suicídio e de nos relacionarmos socialmente com as pessoas que
tentaram pôr fim a seus dias, pois o poder exercido e efetuado por meio desses discursos —
que cont inuam a gerir a vida dos homens e a controlar as suas ações, para que seja possível e
viável ut ilizá-los ao máximo27 — não é absoluto ou totalizante. Ao indicar a possibilidade de
linhas de fuga, frente ao t ipo de vida e de sujeito que são construídos por tais discursos, é
possível fazer do nosso presente um momento que vale a pena ser vivido, para que ele seja
múlt iplo, plural e diferente, permit indo assim outras possibilidades de ser e viver.
Assim, contrapondo-se ao silêncio, à banalização da violência física e moral e à
brutalização da sensibilidade, este t rabalho sobre o suicídio é, antes de tudo, um estudo da
vida, posicionando-se contra qualquer t ipo de saber, discurso e inst ituição que se apresente
com o único objet ivo de diminuir a capacidade humana de revolta, resistência e luta. No lugar
de julgar, acusar, incriminar e culpar, este estudo espera ser út il para uma mudança radical de
at itude: a de compreender, escutar, ajudar e colaborar. Um desafio; pois, como alertou
Foucault , é sempre possível pensar de maneira diferente da que se pensa.
CAPÍTULO I 
— PALCO E CENÁRIO: MEDICINA SOCIAL E INSTITUIÇÕES
MÉDICAS NO BRASIL DO SÉCULO XIX
Uma análise detalhada dos suicídios publicados pela imprensa sugere que a maior
parte dos casos foram explicados a part ir das imagens, representações e est igmas das
desordens mentais.1 A prát ica de relacionar ascausas de suicídio com o universo mental —
distúrbios, alucinações, desarranjos e loucuras — pode ser detectada no início da temat ização
médica brasileira sobre o suicídio, ocorrida na primeira metade do século XIX, quando os
médicos começaram a produzir saber e conhecimento sobre o ato. A part ir daí , o suicídio e as
desordens mentais passaram a ser indissociáveis.
Foi sobretudo na segunda metade do século XIX que este fenômeno passou a ser
observado, not iciado e analisado pela imprensa e por outras inst ituições e discursos. Esteve
presente e visível em registros hospitalares, processos civis e criminais, romances, contos,
poesias, jornais e em vários pontos do tecido social.
O suicídio de homens e mulheres passou a ser percebido e concebido como um
perigo. Era passível de ocorrer em qualquer momento, sem respeitar hierarquia social, cor,
idade, sexo ou nacionalidade. Foi tornado tema e preocupação médico-cientí fica no Brasil
quando a medicina começou a caracterizar-se como discurso da ordem e a desenvolver uma
prát ica de ordenação social, buscando ident ificar e normalizar os indivíduos considerados
portadores e t ransmissores da desordem e da desagregação.
Vêm à mente as análises desenvolvidas por Luis Antonio Bapt ista a esse respeito,
em especial essas palavras:
A Medicina Social brasileira no século XIX nasce juntamente com o fortalecimento do capitalismo. Objetivando a
prevenção e a higiene, esta nova ciência funda uma nova Ordem Social. A grande concentração urbana
necessitará do apo io do saber médico para sua organização. Diferenciando-se das práticas médicas anterio res,
que tinham como objeto a doença, esta nova ciência fabricará a saúde.
Este novo objeto tem como principal ameaça os hábitos que precisam ser corrigidos.2
Própria de uma medicina prevent iva, que promoveu a normat ização da vida social no
Brasil, a busca de respostas por parte dos médicos brasileiros para compreender o suicídio
inseriu-se num quadro mais amplo, o da estratégia de medicalização da sociedade. Por esse
motivo, para ident ificar e analisar os discursos sobre o suicídio, é preciso, em primeiro lugar,
compreender esse t ipo de medicina implantada e prat icada no Brasil ao longo do século XIX,
além de analisar as inst ituições de pesquisa e ensino médico, em especial a Sociedade de
Medicina, a Faculdade de Medicina e a Academia Imperial de Medicina, todas com sede no Rio
de Janeiro.
Para buscar a historicidade dos discursos médicos sobre o suicídio, interroguei que
t ipo de medicina possibilitou e t ransformou todos aqueles que se suicidaram em sujeitos
doentes, desequilibrados, loucos e anormais. Part i de dois importantes estudos, de duas
perspect ivas, a de Roberto Machado e a de Madel Luz, ambos com trabalhos históricos e
datados que abordam o surgimento da medicina social brasileira no século XIX, além, é claro,
de salientar o papel atribuído ao médico, sua inserção polí t ica e social. Essa últ ima questão é
central, pois t rata de um sujeito dotado de saber e, por isso, de poderes, produtor de discursos,
conhecimentos e sent idos sobre e para o suicídio.
SABER E PODER NA MEDICALIZAÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA
Para falar da const ituição da medicina social brasileira, é preciso fazer referência ao
estudo pioneiro dirigido por Roberto Machado e publicado no final da década de 1970. Ele foi
explicitamente inspirado pelas proposições do filósofo francês Michel Foucault , no qual buscou
compreender a figura moderna da medicina, seu papel na sociedade e sua ambição de tornar-
se instrumento cientí fico a serviço, direta ou indiretamente, do Estado.3
Em sua obra, Machado part iu de uma variada sorte de fontes para interrogar o
processo de implantação de um t ipo novo de concepção e organização da medicina: a social.
Analisou como a sociedade, a população, o Estado, as prát icas e o ensino médico foram
ut ilizados, reinventados ou tomados como ponto de part ida para tal empreitada. Segundo
essa perspect iva, a sociedade foi vista como lugar privilegiado de exercício do saber médico,
que passou a registrar e acumular informações sobre o estado de saúde da população. Para
que este saber se desenvolvesse, foi indispensável o acompanhamento de um t ipo de ação
que possibilitou o controle do espaço no qual o homem estava inserido.
Se a sociedade como um todo tornou-se passível de regulamentação médica, a
saúde, por sua vez, passou a ser problema social. Daí a necessidade de autoridades serem
const ituídas para agir no sent ido de preservá-la, assessorando e crit icando a execução de
medidas de higiene.
Segundo Machado, essa estratégia de controle projetou um desafio polí t ico da
saúde e de vigilância constante da população, para que a saúde pública fosse mant ida. Vista
como portadora de perigo, proveniente de um comportamento desregrado, a população
citadina precisou, a part ir de então, ser observada, ordenada e medicalizada. Era preciso, a
todo custo, promover o bem-estar da população.
Quando se deu o começo da temat ização médica sobre o suicídio, os médicos ainda
estavam longe, não só de conseguir controlar e regular a vida social, como, inclusive, de ter o
próprio controle da higiene pública. O que foi observado por Machado é que tais profissionais
estavam em luta por uma medicina sem fronteiras para suas análises e intervenções.
No programa que começou a ser discut ido durante a primeira metade do século XIX,
nota-se a presença da denúncia dos lugares de desordem, amontoamento e acúmulo, que
figuravam como portadores de perigo urbano, médico e social. Foi proposta, então, a ext inção
ou a t ransformação disciplinar de tudo aquilo que poderia ser obstáculo ao funcionamento
ordenado da cidade. Temos, desse modo, o início da inserção da medicina em todos os
recônditos da sociedade, com a finalidade de garant ir um funcionamento ordenado das
cidades, de suas inst ituições e dos seus habitantes.
Roberto Machado defendeu que a intervenção médica, na sociedade e em sua
população, teve o homem como objeto fundamental. Tematizado não só em sua
individualidade, mas também como população, vivendo em sociedade, ele foi encarado como
alvo maior desse novo t ipo de conhecimento, como objeto maior e últ imo. A medicina social foi,
segundo sua visão, um t ipo de saber polivalente, na medida em que temat izou o homem do
ponto de vista físico e moral. Mas, por isso mesmo, ela não se limitou por seus contornos;
prolongou-se, através de sua relação com o meio, a natureza e a sociedade.
Ao ter sido feita um problema social, tornou-se indispensável um t ipo de autoridade
const ituída com o objet ivo de preservar a saúde. Não por acaso, o momento em que o Estado
se encarregou de maneira positiva da saúde dos cidadãos foi o mesmo em que a sociedade
apareceu como passível de regulamentação médica. Para preservar a saúde, foram
determinadas uma série de providências que não nasceram espontaneamente, mas foram
impostas e conquistadas por meio de uma série de lutas polí t icas, muitas vezes no interior do
próprio Estado.
A esse respeito, Machado salientou que um dos campos privilegiados da intervenção
médica na sociedade foi o aparelho de Estado. Agindo junto a ele e com o objet ivo de intervir
na sociedade, a medicina se inseriu no movimento que fez do Estado brasileiro uma realidade
bastante diferente do que fora a administração portuguesa, pelo menos no que diz respeito ao
governo das populações e ao controle dos indivíduos.
Machado ressaltou, assim, um duplo aspecto do debate dos médicos com relação ao
Estado, ou seja, a assessoria e a crí t ica. Observou uma nít ida inadequação entre o projeto
médico e o modo de atuação dos organismos estatais. Esse duplo aspecto teria sido o modo
escolhido para desqualificar a maneira como se exercia a ação governamental em matéria de
saúde, e de apresentação não só de soluções específicas dos problemas surgidos — como a
constante presença de epidemias— mas também, e fundamentalmente, de um novo est ilo de
exercício polí t ico que fosse apto a dar conta do objet ivo de manutenção, ou mesmo de
estabelecimento do bem-estar social.
A medicina social foi, dessa maneira, polí t ica. O que não significa, para Machado, que
ela fosse um contra-poder ou um poder paralelo. Ela foi polí t ica tanto pelo modo como
interveio na sociedade e penetrou em suas inst ituições, como pela sua relação com o Estado.
Ela precisava do Estado para realizar seu projeto de prevenção das doenças da população
porque, sem instrumento de poder próprio, seria ineficaz e vã. Ao mesmo tempo, ela foi út il ao
Estado, por ter sido instrumento especializado capaz de assumir com ele e por ele as
questões relat ivas à saúde, t razendo-lhe o apoio de uma ciência.
A esse respeito, Micael Herschmann comentou que, ao se art icular à medicina no
últ imo quartel do século XIX, o Estado republicano decretou o fim da autonomia da família e o
incremento do controle social.4 Cada vez mais, a medicina tornou-se responsável pela
orientação da vida privada dos indivíduos. O modelo almejado foi o modelo burguês de família.
O corpo, o sexo, a própria vida ínt ima do casal, assim como a saúde e a higiene dos indivíduos,
passaram a ser tema de art igos e teses. Em muitos desses art igos, alguns médicos
dedicaram-se ao estudo do suicídio.
Ainda, segundo ele, o objet ivo desses médicos foi, de forma geral, normat izar,
conseguir que homens e mulheres desempenhassem papéis tanto de produtores como de
reprodutores de proles sãs e de uma raça sadia e, na medida do possível, pura. Como
veremos, a propensão ao suicídio, muitas vezes observada no seio das consideradas boas
famílias, foi de encontro a esse objet ivo prevent ivo.5 No entanto, a normat ização proposta
pela medicina não se limitou à família. A chamada medicalização da sociedade brasileira
sugere uma intervenção social intensa, autoritária e sem fronteiras. Nas palavras de
Herschmann,
os inimigos do ‘corpo social’; segundo estes médicos, eram os ‘excessos’ e ‘desvios’; era preciso , portanto ,
disciplinar a sociedade, incutir valores, destruindo, desse modo, os ‘vícios’ e as ‘perversões’ que tanto
ameaçavam os centros urbanos.6
No que diz respeito às perversões, cabe destacar que os médicos brasileiros,
juntamente com outros profissionais — engenheiros e educadores, todos homens e em sua
maioria brancos — definiram e implantaram as perversões que deveriam ser ident ificadas e
erradicadas do meio social, para assim gerar e garant ir uma vida ordenada, medicalizada e
civilizada. Ao lado dos loucos, vagabundos, prost itutas, criminosos, alcoólatras, ladrões,
devassos, homossexuais e tantos outros considerados e feitos anormais, os suicidas também
foram focalizados e enquadrados entre os infames, aqueles portadores e produtores de
desordem, que precisavam ser ident ificados, curados, regenerados e normat izados.
Foi nesse sent ido que Roberto Machado percebeu uma alteração na prát ica médica,
ao longo do século XIX. De acordo com ele, a doença passou a ser considerada por meio de
uma perspect iva social mais ampla, não mais considerada isoladamente, como uma essência
independente. O fundamental passou a ser impedir o seu aparecimento e controlar a sua
manifestação, e não mais a ação direta sobre ela para restabelecer a saúde. O objeto da
medicina começou a se deslocar, portanto, da doença para a saúde, e o suicídio, uma vez
tendo sido considerado uma doença, deveria, também, ser evitado, para gerar e garant ir a vida.
A intervenção médica visou, não somente a cura de um paciente depois de ter sido
at ingido pela doença, mas dificultar ou mesmo impedir que esta aparecesse. Essa prát ica foi,
por sinal, observada em teses sobre o suicídio. Não bastava compreender o que ele seria,
quais suas causas e sintomas, era preciso impedi-lo, erradicá-lo do meio social.
Dessa maneira, uma medicina da saúde, como foi desenhada historicamente, passou
a ser caracterizada como uma medicina das causas das doenças, o que permit iu que a própria
figura do médico fosse recriada. Com essa nova medicina, o médico deveria atuar para
proteger os indivíduos contra tudo o que, no espaço social, pudesse intervir no bem-estar
físico e moral. Não deveria se limitar ao tratamento dos doentes, mas começar a supervisionar
a saúde da população.
Ao médico foi designada uma autoridade especial. Dali em diante, foi o responsável
pelas medidas de controle da cidade. Ele próprio passou a ocupar o lugar de comando, como
autoridade responsável por tudo que, na sociedade, dizia respeito à saúde.
Faz-se necessário salientar que, no programa de tal medicina emergente, era
imperat iva a necessidade de os indivíduos se sujeitarem ao que visava o bem de todos. De
acordo com essa compreensão, ricos e pobres, homens e mulheres, jovens e adultos, brancos
e negros t iveram, a part ir de então, deveres comuns. Por serem membros const ituintes de uma
mesma sociedade, e por isso responsáveis por sua preservação, deveriam ter, antes de tudo, a
preocupação com o bem comum, isto é, com a preservação da sociedade, de suas inst ituições,
de seus costumes (pelo menos daqueles vistos e aceitos como bons) e de seus alicerces.
Segundo Machado, foi através dessas prát icas, temas e inst ituições, que a medicina
social se caracterizou por uma ação posit iva, t ransformadora e recuperadora, que, inst ituindo
normas, impôs exigências a uma realidade vista como host il e diferente. Teve, em suma, um
objet ivo de normalização.7
Resumindo o raciocínio do autor, pode-se concluir que em determinado momento de
nossa história nasceu um t ipo específico de medicina. Pela maneira como temat izou a
questão da saúde da população, e procurou intervir na sociedade de maneira global, pode ser
chamada de medicina social, e o momento em que isso ocorreu, período privilegiado para este
estudo, foi o século XIX.
O trabalho de Machado inaugurou uma outra forma de problemat izar a medicina
brasileira, e revelou uma descont inuidade entre a história da medicina social do século XIX e os
três primeiros séculos de nossa história. Além do mais, demonstrou como a medicina do século
XIX — com seus novos modos de atuação sobre os objetos, inclusive sobre o suicídio — foi
legit imada por outro t ipo de condições: os princípios universais da razão, da ciência e do
progresso.
MEDICINA, ORDEM POLÍTICA E ESTADO
Como outra leitura e perspect iva sobre a medicina brasileira, o t rabalho de Madel
Terezinha Luz 8 sobre a Medicina e ordem polí t ica brasileira, publicado no ano de 1982,
const itui-se referência e discussão bibliográfica presente na maioria dos estudos sobre o
tema.
Leitora da obra de Roberto Machado, Madel Luz concorda que a medicina é, desde
suas origens inst itucionais na sociedade brasileira do século XIX, não só uma forma de
conhecer o corpo social, mas também de intervir polit icamente neste corpo. Trata-se, segundo
essa proposta, de cuidar não só da saúde dos cidadãos, mas também da saúde das cidades.
Segundo a autora, as regras de higiene propostas, as normas de moral e costumes
prescritos — sexuais, alimentares, de habitação e de comportamentos sociais — faziam parte,
desde a const ituição do primeiro império brasileiro, da maioria das propostas que os médicos
submeteram ao Estado, do qual eram consultores, assessores, conselheiros e crí t icos.
Os discursos médicos sobre a saúde foram pensados pela autora como modelos de
conhecimento sobre a estrutura das doenças e suas causas, mas também como propostas de
intervenção saneadora e reorganizadora do espaço físico das cidades brasileiras, sobretudo
nos centros urbanos portuários. Buscava-se, assim, higienizá-las, discipliná-las e organizá-las,
adequando-as às relações sociais ascendentes na formação social brasileira.
De acordo com a sua compreensão, cada discurso médico foi visto como expressão
de um modelo específico de conhecimento,t raduzindo uma proposta de intervenção médico-
social. Tais discursos caracterizaram-se sempre por tomarem como interlocutor central o
Estado, const ituído em aparelho. Dessa maneira, propôs ser dele o discurso e a estratégia
polí t ica dominantes. Em outras palavras, para Madel Luz, é visível a proposta médica de se
tornar estratégia de hegemonia dominante.9
Por assim pensar, invest igou o processo de const ituição de várias inst ituições
médicas, de suas ligações simultâneas com uma realidade que tentaram transformar, e com
um Estado ao qual, ao mesmo tempo, serviam e que const ituiram historicamente como parte
do corpo inst itucional. Foi o Estado que também crit icaram, na medida em que este, como
poder central controlado por interesses mais imediatos e corporat ivos, não observou
totalmente as suas propostas, não inst ituiu seu agente principal — o médico — como
interventor privilegiado nesta realidade.
Foi ao estudar a const ituição de diversas inst ituições de saúde pública, que Madel
Luz teve a visão do papel histórico da medicina face às condições de saúde da população
brasileira e dos movimentos sociais que se organizam em torno da questão da saúde e, ao
mesmo tempo, de seu papel na formação do Estado e das políticas sociais.10 Para ela, a
medicina demonstrou seu caráter historicamente ambíguo ao tomar como interlocutor
privilegiado o Estado, no seu sent ido mais restrito de aparelho const ituído, pois não deixava
de responder a duas realidades básicas da sociedade brasileira: as condições de saúde
objet ivas da população — suas condições de vida — e os movimentos sociais gerados nessas
condições. Dessa forma, contribuiu para inst ituir no país uma ordem polí t ica considerada
centralista e socialmente excludente, para const ituir o Estado nacional brasileiro com seus
traços estruturais ainda dominantes, dele tornando-se um setor inst itucional dos mais
importantes, e, finalmente, ajudou a inst ituir as primeiras polí t icas sociais do país, por meio das
polí t icas de saúde e, sobretudo, das inst ituições de saúde pública.
Um outro aspecto muito importante de seu trabalho é a sua visão da ciência como
parte do Estado, fruto histórico da necessidade de intervenção na vida social. No capitalismo,
segundo a sua posição, a ciência não fez parte das idéias dominantes. Ela foi a sua idéia
dominante, sua mais brilhante idéia.
A ciência ordenou progressivamente a produção das idéias, além de organizar
racionalmente a produção econômica. Tendeu a racionalizar o comportamento das classes e
grupos sociais subordinados, e ditou modelos de concepção em todos os campos da at ividade
humana. Por essas razões, a ciência guardava o privilégio de que só a ideologia pode desfrutar:
o de, nascendo de interesses part iculares e concretos e reproduzindo-os, até certo ponto,
ostentar uma face universal e abstrata, a face do estar acima da história, de ser em face dela
neutra, objet iva e, portanto, verdadeira. Segundo Luz, a história da const ituição das
inst ituições de saúde pública é a história da tentat iva de uma ampla resposta da medicina à
ordem social, que se instaurou no Brasil com a estrutura capitalista de produção, às suas
contradições no plano da saúde e do poder const ituído nessa estrutura com o Estado
Nacional.
O caráter fundador dos discursos cientí ficos brasileiros, principalmente o médico,
também foi analisado por Herschmann. Segundo o autor, sobretudo no início do século XX, ao
longo das três primeiras décadas, a geração intelectual de caráter cient ificista e o Estado
procuraram argumentar, junto à sociedade, que aquele era um momento histórico, de fundação
ou de (re)fundação do país. Era um momento oportuno para o povo e a nação regenerarem-se,
sendo assim, portanto, necessário intervir, curar, sanear, educar , a fim de se alcançar esse
objet ivo.11
Herschmann constatou duas estratégias complementares que permit iram, em certo
sent ido, que esses médicos envolvidos na tarefa de modernizar o país reivindicassem e
legit imassem o seu campo como uma importante ramificação do campo intelectual, ao lado de
educadores, engenheiros e literatos, enquanto espaço de militância e fundação do ideário
moderno: a constante referência a um diagnóst ico grave e, portanto, à necessidade de
mudanças urgentes; e, ainda, como salienta o autor, a construção de bipolaridades. Assim,
enquanto os diagnóst icos construíam um quadro alarmista, as bipolaridades estabeleciam
referências e metas. Em geral, os diagnóst icos mais recorrentes eram os de insalubridade,
ignorância e atraso. As bipolaridades mais comuns em tais discursos eram saúde/ doença,
vida/ morte, progresso/ atraso e limpo/ sujo. Ambas as estratégias permit iram que esses
discursos abrissem caminho para a legit imação da intervenção, para a criação de sustentação
legal e moral para a atuação ostensiva do Estado na esfera pública e privada, de modo a
colocar em prát ica seu projeto pedagógico e regenerador.
No entanto, o autor indicou que, ao mesmo tempo em que esses médicos acenavam
com mudanças sociais ou traziam uma nova leitura da realidade — bem como técnicas de
tratamento, pelas quais eles se propunham a atuar como um misto de conselheiros e tutores
de inst ituições importantes como a família, escola, Estado, entre outras —, seus discursos
eram quase sempre revest idos de conteúdo moral e religioso. A questão era, segundo
Herschmann, regenerar a sociedade, encontrar remédios que fort ificassem o corpo e o
espírito, inclusive contra o suicídio. Em outras palavras, os prognóst icos médicos colocavam a
ciência ao lado da virtude e do bem estar social, ou seja, enquanto instrumento eficaz que
impediria epidemias e a proliferação de casos patológicos que ameaçassem o organismo
social.12
Toda essa preocupação em melhorar o país, torná-lo civilizado e próspero, foi
formulada principalmente em algumas inst ituições. Por essas razões, Madel Luz sublinhou que
as inst ituições médicas, tais como a Academia Médico-Cirúrgica, as Faculdades de Medicina, a
Escola Tropicalista Baiana, as Sociedades de Medicina, as Academias de Medicina e a
Sociedade Brasileira de Higiene, não escaparam dos processos sociais e polí t icos que
modificaram e (re)criaram a sociedade brasileira. A história de cada uma foi marcada por tais
transformações, como demonstrado pela autora na segunda parte de sua obra. Seus
regimentos, o papel na sociedade e o t ipo de profissionais que agregavam ou formavam foram
se modificando no século XIX, e, como observou Herschmann, também nas primeiras décadas
do século XX.
A ordem médica em formação representou o estabelecimento de formas centrais de
controle da sociedade civil, que se fez não só por meio do controle dos corpos, como também
da criação de prát icas prevent ivas, estabelecendo a perspect iva de um projeto de Estado
sanitarista por meio de um conjunto de inst ituições. Entre os projetos de intervenção médica
na sociedade naquele momento, exist iu um ponto em comum: o controle do Estado como
forma de impor um modelo sanitário unificador, centralizador e concentrador de poder.
Outra questão muito importante da obra de Madel Luz é sua análise em torno do
posit ivismo. O século XIX assist iu, segundo ela, a uma luta feroz na medicina, t ravada entre
aqueles que estavam ligados a filosofias como o Vitalismo e o Eclet ismo e aqueles outros
ligados ao Posit ivismo. A teoria médica foi marcada pelo compasso da filosofia, nit idamente de
caráter especulat ivo e espiritualista, progressivamente subst ituída pelo olhar empírico e
experimental, pela introdução do elemento quant itat ivo e desenvolvimento da tecnologia
médica.13
Para a autora, o estabelecimento da hegemonia posit ivista, que surgiu no Brasil em
meados do século XIX, foi de fundamental importância para o êxito e aceitação dessas
ciências. Essa filosofia propôs a ruptura com a imaginação e a argumentação, submetendo-as
à observação e experimentação.

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