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Sumário AGRADECIMENTOS PREFÁCIO — A MORTE: ESSE OBSCURO OBJETO DO DESEJO INTRODUÇÃO CAPÍTULO I — PALCO E CENÁRIO: MEDICINA SOCIAL E INSTITUIÇÕES MÉDICAS NO BRASIL DO SÉCULO XIX SABER E PODER NA MEDICALIZAÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA MEDICINA, ORDEM POLÍTICA E ESTADO INSTITUIÇÕES MÉDICAS DE ENSINO E SABER CAPÍTULO II — NA ÓRBITA DAS DOENÇAS E DOS DISTÚRBIOS MENTAIS LOUCURA E SUICÍDIO: HISTÓRIA, CAUSAS E EXPLICAÇÕES MÉDICOS À PROCURA DE PERIGOS E DE ORIGENS PATOLÓGICAS A REPERCUSSÃO DO PENSAMENTO MÉDICO FRANCÊS E SUA APROPRIAÇÃO PELO DISCURSO MÉDICO BRASILEIRO CAPÍTULO III — A RELAÇÃO ENTRE AS PAIXÕES E O SUICÍDIO AS DIVERSAS CONCEPÇÕES ACERCA DAS PAIXÕES O OLHAR MÉDICO BRASILEIRO SOBRE AS PAIXÕES: EXCESSOS, PERVERSÕES E MORTE A APROPRIAÇÃO BRASILEIRA DAS IDÉIAS DE ESQUIROL SOBRE A PAIXÃO COMO CAUSA DE SUICÍDIO CAPÍTULO IV — DIFERENCIAÇÕES SEXUAIS DO SUICÍDIO DIFERENÇA SEXUAL: ORIGEM BIOLÓGICA E COMPORTAMENTAL EDUCAÇÃO DIRIGIDA E DIFERENCIADA CASAMENTO, CELIBATO E RELAÇÕES SEXUAIS MULHERES SE SUICIDAM MENOS DO QUE OS HOMENS: UM PARADOXO DO SÉCULO XIX CAPÍTULO V — A LITERATURA VISTA COMO UM PERIGO À VIDA A BUSCA AOS EFEITOS DESASTROSOS DA LITERATURA A POSSÍVEL RESPONSABILIDADE DO ROMANTISMO A FEBRE WERTHERIANA: O ALCANCE DO SOFRIMENTO E SUICÍDIO DO JOVEM WERTHER O VALOR DO SILÊNCIO CONSIDERAÇÕES FINAIS BIBLIOGRAFIA Fontes Livros, Teses e Dicionários Obras Literárias Periódicos e jornais Sites da Internet Bibliotecas e Arquivos BIBLIOGRAFIA GERAL Fábio Henrique Lopes Suicídio & Saber Médico estratégias históricas de domínio, controle e intervenção no Brasil no século XIX Edição Digital Rio de Janeiro 2010 Copyright © 2008 Fábio Henrique Lopes Todos os direitos reservados Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida — em qualquer meio ou fórmula, seja mecânico ou eletrônico, por fo tocópia, por gravação e etc. — nem apropriada ou estocada em sistema de bancos de dados sem a expressa autorização da editora. Editora Responsável Rosangela Oliveira Dias Coordenação editorial Marcely Almeida Preparação Equipe Editora Apicuri Capa Margareth Bastos sobre Desenquadros, 2007, Paulo César Longarini, óleo sobre tela Editoração eletrônica e Projeto Gráfico Margareth Bastos Revisão M. Cunha Conversão Digital KindleBookBr Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblio tecária Responsável: Mara Rejane Vicente Teixeira CRB 775 Lopes, Fábio Henrique Suicídio & saber médico: estratégias históricas de domínio , contro le e intervenção no Brasil do século XIX / Fábio Henrique Lopes. — 1ª reimpressão — Rio de Janeiro : Apicuri, 2008. Inclui bibliografia. ISBN 978-85-61022-02-0 1. Saúde e Estado — Brasil — Séc. XIX - História . 2. Suicídio — Brasil — Séc. XIX. 3. Saúde pública — Brasil — Séc. XIX. I. Título . CDD (21ª ed.) 614.0981 [2010] Todos os direitos desta edição reservados Editora Apicuri Telefone/Fax (21)2533-7917 editora@apicuri.com.br www.apicuri.com.br AGRADECIMENTOS Ao iniciar um trabalho como este, sabia que só seria possível concluí-lo com ajuda, incent ivo, colaboração e solidariedade de muitos. Conversas, e-mails, bate-papos, telefonemas e cartas foram os meios pelos quais recebi palavras de apoio, dicas de livros e art igos que hoje compõem o texto, além de pistas para responder minhas inquietações. Aproveitei ao máximo os momentos de troca, diálogo e intercâmbio com intelectuais e amigos que, direta ou indiretamente, provaram não ser necessariamente solitário o t rabalho intelectual. Cientes ou não, todos aqueles que receberão o muito obrigado já fazem parte da minha história de vida, pois part iciparam dela como coadjuvantes, interlocutores, orientadores, conselheiros e ouvintes. E por que não citar os analistas, se é por meio deles que penso e construo minhas histórias? Agradeço aos professores Í talo Tronca, do Departamento de História do Inst ituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, Luzia Margareth Rago, livre-docente do Departamento de História do Inst ituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp e Gabrielle Houbre, da Université Paris VII — Denis Diderot . O Prof. Í talo Tronca permit iu o início do meu doutorado, em 1998, logo após defesa da minha dissertação de mestrado. A Profª Margareth Rago, intelectual das mais brilhantes que conheço, foi quem mais exigiu de mim e é a quem devo a realização do trabalho que originou este livro. Agradeço a ela, na esperança de que um dia possa saber o quanto acrescentou à minha formação intelectual. A Profª Gabrielle Houbre gent ilmente recebeu-me em Paris e orientou meu estágio na Université Paris VII, uma experiência que permit iu o aprofundamento da pesquisa documental, das análises sobre o tema e mudou minha visão do que é a universidade brasileira. O resultado foi posit ivo porque compreendi que, ao invés de comparar as universidades brasileiras com as francesas, é mais út il perceber a “diferença” entre elas, além de buscar constantes t rocas e o necessário intercâmbio intelectual. Às agências de fomento, CNPq e CAPES, por terem financiado, respect ivamente, o meu doutorado no Brasil e o doutorado-sanduíche com a Université Paris VII. Aos colegas Andréa Delgado, Nanci Vieira de Oliveira e Benito Schmidt, entre outros, que me ajudaram a (re)pensar o projeto, a pesquisa e eu mesmo — historiador da linha de pesquisa História, Cultura e Gênero. Aos amigos e amigas que conheci na Unicamp: Nádia, Flávia, Antonio Paulo, Ema, Alexandra, Andréa Mara, Edmilson e, sem dúvida, Lucinete, por todo o apoio e por terem compart ilhado comigo muitas angúst ias e sonhos. Aos amigos Raymond, Kleber, Aldo e Maryvonne, que me suportaram enquanto est ive em Paris. Aos amigos-irmãos José Maria, Marcos, Renato, Miriane, Iara, Danilo, Ângela e Paulinho, que compart ilharam projetos e conquistas. A Paulo César Longarini, amigo e companheiro em todas as estações, seja embaixo de neve em Amsterdã ou no tórrido calor de Catanduva; nos momentos mais difíceis e nos mais prazerosos; pela opção de estar ao meu lado mesmo quando eu parecia uma metamorfose ambulante. À minha querida família — pai, mãe, irmã, irmão, cunhada, cunhado, sobrinhos, t ias, t ios e avó. Sei que tudo só foi possível pelo suporte e pela colaboração recebida, mesmo que à distância. Sou feliz por ser Beck e Lopes. Mais uma vez, agradeço a meu exemplo de vida: Evanir Beck Lopes. Mãe, mulher forte, quase sempre incansável, batalhadora que dedicou voluntariamente sua vida aos filhos. A ela devo minha existência, persistência e sonhos. Emocionado por lembrar de tantos companheiros, agradeço e digo MUITO OBRIGADO! A abertura para o novo só é possível quando dispensamos toda idéia de essência; universalidade; “realidade da coisa em si”; conceitos indubitáveis e incorrigíveis; verdade como uma misteriosa “propriedade” das coisas e eventos “verdadeiros”, etc. Quando abrimos mão desta herança do idealismo e do racionalismo filosóficos de épocas passadas, conseguimos imaginar o “sujeito” ou as “subjet ividades” como produto das prát icas lingüíst icas e de nossas circunstâncias. A questão, então, não é a de saber como o “não-ident ificado” entra no leito de Procusto, do familiar ou do já sabido; é a de saber como reagir à surpresa; ao inusitado; ao que nos obriga a reinventar o que somos e o que os outros são. Jurandir Freire Costa PREFÁCIO — A MORTE: ESSE OBSCURO OBJETO DO DESEJO Com a mente e o corpo sadio , mato-me antes que a impiedosa velhice, que me tira um a um os prazeres e as alegrias da vida e me despo ja de minhas forças físicas e intelectuais, acabe por paralisar minhas energias e quebre minha vontade, fazendo de mim um peso para os outros e para mim mesmo. Há anos prometi a mim mesmo que não passaria dos setenta; marquei a época do ano para minha partida da vida e prepareio modo de execução de minha reso lução: uma injeção hipodérmica de ácido cianídrico . Morro com a alegria suprema de ter a certeza de que, num futuro próximo, a causa a que me dediquei durante quarenta e cinco anos triunfará. Viva o Comunismo. Viva o Socialismo Internacional. Paul Lafargue1 Paul e Laura Lafargue suicidaram-se em dezembro de 1911. O pacto de uma morte planejada, desejada e executada com maestria nos moldes de uma das novelas românt icas do século XIX, provocou um grande mal-estar na sociedade da época, em especial entre os intelectuais e militantes comunistas. O discurso de Lênin em nome do Part ido Social Democrata Operário Russo nos funerais, em 3 de dezembro, expressava o sent imento de dor, procurando exaltar a t rajetória do militante comunista, sua coragem construída na experiência da luta de classes, na revolução e na contra-revolução; porém silenciava sobre o suicídio. Como just ificar esse duplo suicídio? Irracionalidade? Essa argumentação não se sustentaria diante de uma carta tão lúcida, de uma preparação tão cuidadosa, cumprindo uma extensa agenda pública nos dias que antecederam o projeto maior, de dar fim a suas vidas. Loucura? Doença? Desespero? Paixão, impregnada da tão combat ida lógica burguesa? Covardia ou uma grande coragem? Coragem de homem? Covardia de mulher? Se a vida me pertence, eu posso terminá-la no momento que assim desejar. O direito de morrer dignamente foi o argumento ut ilizado em outro tempo, em outra situação, pelo espanhol Ramon Sampedro.2 Na condição de tetraplégico, impossibilitado de cometer o suicídio, lutou durante vinte e nove anos nos tribunais pela legalidade da eutanásia, pedido que lhe foi negado. Na carta de Sampedro dest inada aos juízes, em 13 de novembro de 1996, ele afirmava que viver é um direito, não uma obrigação. Ramón colocava em xeque a regulação da vida e da morte pelo Estado e pela Igreja, e acusava a hipocrisia do Estado laico diante da moral religiosa: Srs. juizes, negar a propriedade privada de nosso próprio ser é a maior das mentiras culturais. Para uma cultura que sacraliza a propriedade privada das co isas — entre elas a terra, e a água — é uma aberração negar a propriedade mais privada de todas: nossa pátria e reino pessoal, nosso corpo, vida e consciência, nosso universo. Os múlt iplos argumentos de verdade que condenaram o suicídio ainda codificam comportamentos; imprimem um silêncio constrangedor e significante sobre o tema e são fruto da incapacidade de entender o ato de desapego, que fere o considerado natural inst into de preservação da vida. Este livro é justamente sobre esse silêncio, sua construção e, em especial, sua desconstrução. Suicídio & Saber Médico: estratégias históricas de domínio, controle e intervenção no Brasil do século XIX é a tese de Doutorado de Fábio Lopes, que, após quatro anos de sua defesa, finalmente chega ao grande público. Um texto denso que expõe as subjet ivações e naturalizações do saber/ poder dos médicos no século XIX e que, apesar das novas contribuições, das quebras, dos esquecimentos e distanciamentos, cont inuam a orientar as contribuições, das quebras, dos esquecimentos e distanciamentos, cont inuam a orientar as produções discursivas. Um olhar atento que mora e demora no tempo, que dialoga sem a priori com diferentes textos, interrogando sobre a const ituição desse objeto de conhecimento possível, desejável e até mesmo indispensável, no dizer de Fábio. Foucault , o intelectual suicida em sua destruição criadora, que se nega em cada texto, que revoluciona a História com seu presente intolerável e sua crí t ica subversiva à normalização, é a inst igante matriz discursiva desvelada para analisar esse incômodo objeto do desejo, reafirmação constante de um pensamento como ação: De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida quando a questão de saber-se se pode pensar diferentemente do que se pensa e perceber diferentemente do que se vê é indispensável para continuar a o lhar a refletir.3 Na montagem de uma arqueo-genealogia, o suicídio e o sujeito que o cometeu foram analisados nos cinco capítulos do livro, em diferentes gêneros discursivos (t ipos de enunciados que correspondem a uma mesma esfera de prát icas sociais). Foram cuidadosamente t rabalhados no seu interior as teses médicas, os jornais, a literatura e os seus personagens da ficção publicada ou encenada nos teatros da cidade, do mesmo modo que os estudos de historiadores, sociólogos, antropólogos e psicólogos. No primeiro capítulo, Palco e cenário: medicina social e instituições médicas no Brasil do século XIX, a cidade é percebida como um recorte do social — espaço fért il para o crescimento de uma massa maligna a ser disciplinada numa ação higienizadora. Os ares da cidade libertavam, mas permit iam a perdição das paixões. A cidade-laboratório instrumentalizou a aquisição e a sistemat ização de novos saberes. Dentre eles, destaca-se o saber médico responsável pela temat ização cientí fica do suicídio, que passou de pecado a doença. No capítulo II, Na órbita das doenças e dos distúrbios mentais, o texto disseca causas e explicações patológicas em que, segundo Foucault4, o ato de conhecimento do médico em sua forma concreta não foi apenas o encontro do médico com o doente e nem o confronto de um saber com a percepção. Faz, também, o cruzamento sistemát ico de uma série de informações homogêneas, porém estranhas umas às outras, tais como o clima, a geografia e a história; julgamento e saber que, entre os anos setecentos e oitocentos, se deslocaram do indivíduo para serem aplicados à sociedade. Um saber médico que ordena, prescreve e cert ifica é solicitado nos tribunais para definir o normal e o patológico, e está presente nas teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro entre 1830-1900. Além da formação e valorização da medicina, como um saber que se estrutura como responsável pela gestão da existência humana, essas teses analisam e condenam o suicídio, procurando diagnost icar suas causas e t ratamentos. O capítulo III discute A Relação entre as paixões e o suicídio. No imaginário românt ico do século XIX, morrer de paixão, definhar lentamente por amor alimentava os devaneios de um determinado grupo social que prat icava o otium cum dignitatis. Fábio nos apresenta o grande espetáculo das chamadas paixões suicidas das tabernas, das bebidas, do jogo, das mulheres fáceis, e que foram encenadas e musicadas nas óperas exibidas nos teatros da Europa e da capital brasileira: Bellini, Verdi, Tchaikovsky, Puccini, entre outros. Os excessos, as perversões e as mortes direcionaram o olhar dos médicos brasileiros, que, ancorados nas taxonomias do médico Esquirol, hierarquizaram e separaram as boas paixões, aquelas que nasciam das relações sociais, das patológicas, que levariam ao suicídio: amor, cólera, terror e vingança. O capítulo IV, As Diferenciações sexuais do suicídio, problemat iza as subjet ivações e o estereót ipo da natureza feminina: frágil e emot iva, logo, susceptível às doenças mentais, às paixões avassaladoras e, naturalmente, ao suicídio. Porém, como explicar a incidência de suicídio entre oshomens? No exame das teses médicas e sua generalização do suicídio, Fábio propõe a inversão das evidências, os recortes discursivos que, no caso, constroem essa naturalização de papéis — o modo feminino e o modo masculino de suicídio. No últ imo capítulo, A literatura vista como um perigo à vida, o estudo passa da ficção da ciência dos médicos para a ficção de uma certa literatura, considerada verdadeiro agente de contágio, que est imulava as naturezas-mórbidas com suas narrat ivas do amor românt ico, uma das grandes causas dos suicídios. Essa temát ica subversiva está presente em escritores nacionais como Machado de Assis,Aluisio de Azevedo e, principalmente, em escritores estrangeiros como Flaubert e Goethe, nos sofrimentos por amor do jovem Werther. Convido o leitor a aceitar a provocação de Fábio Lopes que, num ato de coragem, propõe a morte das banalizações, das mesmices, dos julgamentos e das normalizações. Fábio, na recusa da regra, instaura a relação consigo mesmo e com outros, const ituindo-se como sujeito ét ico. Leia, discuta, crit ique, reinvente o conhecimento est imulado por esse intelectual, que bem pode ser aquele sonhado por Foucault : Sonho com um intelectual destruidor das evidências e das universalidades, que localiza e indica inércias e coações do presente os pontos fracos, as brechas, as linhas de força; que sem cessar se desloca, não sabe exatamente onde estará ou o que pensara amanhã, por estar muito atento ao presente; que contribui, no lugar em que está, de passagem, a co locar a questão da revo lução, se ela vale a pena e qual ( quero dizer, qual revo lução e qual pena). Que fique claro que os únicos que podem responder são os que aceitam arriscar a vida para fazê- la.5 Rio de Janeiro, 10 de novembro de 2007 Marilene Rosa Nogueira da Silva Coordenadora do Laboratório do Estudo Sobre as Diferenças e Desigualdades Sociais — LEDDES/UERJ INTRODUÇÃO Em novembro de 1995, com o t í tulo de A extrema dor, uma importante revista de circulação nacional publicou um ensaio de Mario Sabino sobre a negação da vida, elaborado a part ir do suicídio de duas jovens brasilienses.1 Ambas suicidaram-se com um t iro na cabeça. Uma delas t inha quatorze anos de idade e, segundo declarações da mãe após o suicídio da filha, fazia terapia para resolver probleminhas da adolescência. Achava-se muito gordinha e queria fazer uma plást ica para diminuir os seios. A outra jovem, de dezesseis anos de idade, estava, segundo a família, deprimida com o fim do namoro. De acordo com Sabino, essas jovens ricas e queridas t inham a vida inteira pela frente para realizarem seus sonhos, mas preferiram a morte à vida. Percebe-se em seu texto alguns quest ionamentos: como é possível alguém, ainda mais um jovem, perder tão irremediavelmente a esperança? Pode haver um absurdo maior do que o corpo de um jovem suicida estendido no chão, desfigurado por um t iro na cabeça? Para ele, costuma-se falar um monte de bobagens a respeito das razões que levam alguém a se matar. Sua crí t ica é direcionada aos jornalistas, sociólogos, filósofos, psicanalistas e literatos que não conseguem, segundo ele, apresentar a verdade sobre o suicídio. São aqueles que não são capazes de dar uma explicação verdadeira para a escolha de pôr fim à vida, isso porque cada área do saber produz e divulga suas verdades, muitas vezes conflitantes e contraditórias. Diante dessa pluralidade, Sabino não concorda com a visão de alguns que insistem em apresentar o suicídio como um ato de lucidez, ou corolário de uma obra ou de uma vida. Tampouco ele aceita a tendência de pensar o ato sendo movido por razões predominantemente sociais. Sabino recusa a possibilidade do suicídio ser uma saída gloriosa da prisão das convenções sociais; rechaça a propensão de pensá-lo como uma espécie de ascese moral, um instante de lucidez extrema. O quadro composto de desenhos, riscos, rabiscos, cores, tons e pinceladas, construído pelos vários discursos que pretendem apresentar a verdade sobre o suicídio, não deve, segundo o autor, tornar-se público, porque não consegue resolver o mistério do e sobre o suicídio. A pluralidade de possíveis causas, como as diversas e diferentes explicações imagináveis, permit iram que Sabino concluísse seu ensaio com uma mensagem clara, que pretende ser pedagógica. Ele espera que o vazio e o sent imento de culpa — herança dos pais e amigos do suicida — sejam suficientes para que façamos silêncio. Deveríamos nos calar perante tudo o que o suicídio provoca e produz: culpa, dor, quest ionamentos, revolta e incompreensão. O silêncio é buscado, solicitado e desejado, porque os casos de suicídio e os vários discursos produzidos a part ir deles estão presentes nas páginas dos jornais, das revistas, dos romances e contos, na tela do cinema, enfim, em nosso dia-a-dia. Muitos deles ganham grande repercussão, inclusive mundial. Entre os vários casos citados pelo autor no referido ensaio, um chama a atenção, pois ganha notoriedade, ousando romper as barreiras criadas por Sabino: a referência ao suicídio de Kurt Cobain, guitarrista e vocalista da banda norte-americana Nirvana. A notoriedade foi alcançada porque permit iu uma ampla cobertura e divulgação da morte por suicídio de um sujeito contraditório, famoso, conhecido mundialmente e reverenciado, diferentemente do suicídio das desconhecidas jovens brasilienses. Esse caso foi citado por Sabino para comprovar não só o monte de bobagens que se costuma falar a respeito das razões que levam alguém a se matar, mas, também, para reforçar o absurdo e a violência que seriam inerentes ao ato suicida. Apesar das explícitas diferenças — de gênero, data, contexto e meios ut ilizados — entre o suicídio de Cobain e o das duas jovens brasilienses, há um ponto em comum entre os três personagens: todos procuraram a morte, não puderam mais viver. Essa constatação aponta questões que causam perturbação: quais as razões do ato? O que teria provocado o suicídio do reverenciado roqueiro americano ou das ricas, belas e queridas jovens brasilienses? O suicídio do jovem americano e suas repercussões podem ajudar a esboçar uma resposta. Pelo fato de não aceitar o sugerido silêncio em torno do suicídio, ut ilizo a deixa do autor para discorrer um pouco mais sobre o ato de Cobain, que revela muito sobre as formas através das quais a sociedade contemporânea responde, ou não, aos seus problemas e mazelas. Morto em abril de 1994, Cobain deixa à posteridade sua carta de adeus, seu últ imo canto, sua inspiração final. De acordo com a mensagem, havia muitos anos que ele não vinha sent indo excitação ao ouvir ou fazer música, bem como ao ler ou escrever. Sua culpa por isso era indescrit ível. Imaginem o que representa para um jovem roqueiro não sent ir mais prazer e excitação ao ouvir um bom rock e ao tocar notas e melodias que, por muito tempo, lhe serviram de inspiração. Como poderia cont inuar a t rilhar o caminho da música, aquele jovem que não mais se alegrava com a arte das part ituras e com o fascínio da criação art íst ica? Deixarei que as palavras de Cobain criem vida: (...) quando estou atrás do palco, as luzes se apagam e o ruído ensandecido da multidão começa, nada me afeta do jeito que afetava Freddie Mercury, que costumava amar, se deliciar com o amor e adoração da multidão — o que é uma co isa que to talmente admiro e invejo . O fato é que não consigo enganar vocês, nenhum de vocês. Simplesmente não é justo para vocês e para mim. O pior crime que posso imaginar seria enganar as pessoas sendo falso e fingindo que estou me divertindo 100 por cento . Às vezes acho que eu deveria adicionar um despertador antes de entrar no palco. Tentei tudo que está em meus poderes para gostar disso (e eu gosto , Deus, acreditem, eu gosto , mas não o suficiente). Me agrada o fato de que eu e nós atingimos e divertimos uma porção de gente. Devo ser um daqueles narcisistas que só dão valor às co isas depo is que elas se vão. Eu sou sensível demais. Preciso ficar um pouco mais dormente para ter de vo lta o entusiasmo que eu tinha quando criança (...) Obrigado do fundo de meu nauseado estômago queimando por suas cartas e sua preocupação ao longo dos anos. Eu sou mesmo um bebê errático e triste! Não tenhamos mais a paixão, então lembrem, é melhor queimar do que se apagar aos poucos. Paz, Amor, Empatia.2 Jovem, americano, sensível, rico e famoso, mas também triste, confuso, temeroso em relação ao futuro da filha, angust iado pela falta de mot ivação, prazer e entusiasmo outrora constantes, perseguidopor ininterruptas dores de estômago e em conflito com a fama, Kurt Cobain, aos vinte e sete anos, inventando-se e sendo inventando por meio de tantas subjet ividades, foi encontrado morto na garagem de sua mansão. Após invest igações policiais e averiguações médicas, concluiu-se e atestou-se que o roqueiro usuário de drogas suicidou- se ingerindo alta dose de heroína. O caso obteve destaque na imprensa mundial. Muito se falou a respeito do suicídio de Cobain e das possíveis causas de sua morte, indicando assim que as observações de Sabino sobre a polissêmica produção discursiva acerca das causas de suicídio são recorrentes. A diversidade de possibilidades oferecidas para pensar o suicídio de Cobain, porém, permite inferir: se é possível perceber uma tendência que busca impor o silêncio em torno do suicídio, é observável uma outra que se dedica a tudo falar sobre o ato e suas causas, simulando abordar o problema de uma forma séria e cuidadosa. Várias razões que podem ter levado o famoso roqueiro ao suicídio foram divulgadas aos quatro cantos: drogas, problemas com os pais, fama, depressão, casamento conturbado, fortes dores de estômago, explícita falta de prazer no trabalho e, ainda, a sua indiscutível genialidade. Assim, a própria imprensa envolveu-se numa campanha para encontrar e definir a verdadeira causa do seu suicídio. Por meio de variados discursos, Kurt Cobain — agora classificado e definido como o suicida — foi apresentado como um jovem drogado, que desde os sete anos tomava tranqüilizantes e ant idepressivos. Para outros, ele era apenas fruto de lar desfeito; cresceu infeliz, sendo empurrado de um parente para outro. De acordo com muitos, a causa deveria estar relacionada com o incômodo provocado pela fama, que o desnorteava completamente. Vários intérpretes de sua morte consideraram o fato de ele ter perdido o contato com a maioria dos amigos de Seatt le como a razão para o seu suicídio. Cobain ficara isolado e sozinho em outro espaço de referências, diferente daquele do início de sua carreira. Disseram que as constantes e fortes dores de estômago, após inúmeras e infrut í feras visitas aos especialistas, poderiam também ser a causa de sua desistência. Ampliando ainda mais o campo explicat ivo, sugeriram que a culpa por não sent ir mais prazer em fazer música, o que afetava tremendamente sua relação com o público, com a imprensa e com as pessoas em geral, atormentava-o sobremaneira. Por fim, observaram que, como muitos outros considerados gênios, Cobain sofria os reflexos de sua hipersensibilidade e, por isso, como outros de mesma condição, preferiu part ir, ir embora. Essa polissemia, essa busca recorrente de causas e explicações para o ato suicida é, como já sugerido, produzida historicamente visando at ingir determinados fins e estratégias. Isso, porque muito se fala sobre as causas de suicídio, muito se produz sobre as mot ivações, mas não de maneira franca. Ao invés de centralizar os problemas no próprio indivíduo, na pretensão de que a causa seja sempre ele mesmo, é necessária outra at itude: pensar que todos nós somos, em parte, coadjuvantes de situações, pressões, cobranças, esperas e anseios que podem ser, às vezes, causas, desculpas ou até mesmo aquela última gota que falta para que pessoas ao nosso redor, ou até mesmo não tão próximas assim, desistam da vida. O refúgio nas evasivas da polissemia para evitar a discussão sobre o problema do suicídio não é aceitável. Ainda que não tenhamos o objet ivo de provar o que levou ou leva alguém a optar pelo suicídio, e tampouco condenar todo desejo e ato de pôr fim à vida, penso que, como várias outras pessoas que se suicidaram e que estão citadas ao longo deste trabalho, Kurt Cobain pode ter se suicidado pelas razões expostas anteriormente, ou ainda por nenhuma delas. Há também a possibilidade de ele ter produzido para si uma subjet ividade completamente diferente daquelas conhecidas e ligadas a ele. É portanto necessário, e acredito ser urgente, encontrar formas plurais de problemat izar e pensar o suicídio. É preciso discut ir, debater, estudar, analisar e interrogar o ato para, em seguida, compreender o que leva uma pessoa ao suicídio, a não mais querer a vida, pelo menos uma condição específica de vida, sem preconceitos e conclusões a priori. Ao sermos confrontados com a mult iplicidade oferecida pela alteridade, rompemos com a abordagem que propõe a naturalização do social e criamos formas de pensar que não negam a criatividade, a variabilidade e a imprevisibilidade da vida3, inclusive no que diz respeito ao suicídio. Assim, no lugar de reunir ident idades, encaixando todos os indivíduos que se suicidam num mesmo rótulo — o de doente mental ou desequilibrado, por exemplo —, devemos nos aplicar mais à alteridade. O silêncio proposto sobre o tema é visto como meio de ocultar as fugas, ruptura de ritmo de vida muitas vezes imposto, que poderia sugerir para uma sociedade medicalizada e ordenada a possibilidade da descont inuidade, da finitude e da fragilidade da vida, característ icas abafadas pela medicalização.4 Decidi falar, ousei estudar e analisar o tema. Delimitei a tarefa central como sendo a busca da experiência5 do suicídio no século XIX, focalizando a problemat ização do suicídio pelo discurso médico produzido no Brasil. Interroguei as formas com que esse tema foi problemat izado no Brasil, e analisei como se tornou objeto de conhecimento possível, desejável e indispensável. Centralizei toda a atenção no discurso médico porque a pesquisa documental sugeriu que foi esse discurso majoritariamente masculino que, durante a primeira metade do século XIX, possibilitou, pela primeira vez no Brasil, a visibilidade do suicídio no campo do saber cientí fico. Além do mais, a medicina teve um dos principais papéis na configuração do suicídio como o vivenciamos atualmente, ou seja, como um ato próprio de um sujeito desequilibrado, doente, desesperado, atordoado, irracional — referências e imagens sempre ligadas aos distúrbios e desarranjos mentais. Desse modo, o saber configurou-se como campo privilegiado de invest igação. O recorte temporal escolhido foi definido pela década de 1830 e pelo início do século XX. A década de 1830 foi o período histórico de criação das primeiras inst ituições médicas de ensino e pesquisa, que possibilitaram espaço inst itucional e elementos teóricos para o início da temat ização. O início do século XX foi o momento em que novas teorias — de Émile Durkheim e Sigmund Freud, por exemplo —, conceitos e prát icas começaram a alterar a visão médica brasileira sobre o suicídio. A baliza inicial é, portanto, marcada pelo surgimento das inst ituições onde foram desenvolvidas as teses médicas brasileiras ut ilizadas como fontes. A baliza final — o início do século XX — remete ao momento em que os médicos brasileiros começaram a mudar o viés ut ilizado para pensar e estudar o suicídio. Essa mudança teórica, percebida em trabalhos médicos do século XX, foi possibilitada pela difusão das teorias e conceitos do sociólogo francês Durkheim, pelos desafios do fundador da psicanálise, Freud, e inspirada pela doutrina eugênica. Émile Durkheim escreveu, em 1897, um clássico da literatura sociológica, O Suicídio. Por acreditar que os indivíduos são produtos de forças sociais complexas, e não podem ser entendidos fora do contexto social em que vivem, ele concebeu o suicídio como um fato social. Assim, no lugar de sugerir que o suicídio é um fenômeno psicológico ou patológico, tendência recorrente entre os médicos do século XIX, o sociólogo propôs outra perspect iva analí t ica: a de observá-lo e analisá-lo a part ir de dados estat íst icos para buscar as suas causas. Em suas palavras, as causas de morte situam-se fora de nós muito mais do que em nós e só nos atingem se nos aventuramos em sua esfera de ação.6 Segundo sua concepção, o suicídio é produto de um profundo conflito relacionadocom o meio social exterior ao indivíduo. Dessa maneira, cada sociedade possuiria uma inclinação colet iva ao suicídio e suas causas situar-se-iam mais fora do que dentro dos indivíduos: Qualquer ruptura de equilíbrio , ainda mesmo que dela resulte um bem estar maior e uma vitalidade geral, incita à morte vo luntária. Todas as vezes que se produzem no corpo social graves modificações, sejam elas devidas a um súbito movimento de crescimento ou a um cataclismo inesperado, o homem mata-se facilmente.7 Durkheim ident ificou uma natureza eminentemente social do ato de se dar à morte porque privilegiou o conjunto dos suicídios cometidos numa determinada sociedade durante uma unidade de tempo, em lugar de estudá-los como acontecimentos part iculares, isolados uns dos outros. Por focalizar a sociedade, Durkheim pôde concluir, a part ir das informações sugeridas pela estat íst ica, que cada sociedade tem, portanto, em cada momento de sua história, uma disposição definida para o suicídio. Mede-se a intensidade relativa dessa disposição tomando a razão entre o número total global de mortes voluntárias e a população de todas as idades e todos os sexos.8 Segundo o sociólogo, existe para cada grupo social uma tendência específica ao suicídio que depende de causas sociais, o que caracteriza o suicídio como um fenômeno colet ivo. Durkheim compôs os t ipos sociais do suicídio classificando as causas que o produzem e examinando as condições sociais de que dependem.9 Sugeriu, assim, a célebre t ipologia do suicídio: o egoísta, o alt ruísta e o anômico. O suicídio egoísta se explica pela desintegração social. Nesses casos, o grau de integração do indivíduo com o meio social não se apresenta suficientemente forte, afastando o sujeito do seu grupo de semelhantes. Nas palavras dele: Quanto mais os grupos a que pertence se enfraquecem, menos o indivíduo depende deles, e por conseguinte, mais depende apenas de si mesmo para não reconhecer outras regras de conduta que não as que se baseiam em seus interesses privados. Se, portanto , conviermos chamar de egoísmo esse estado em que o eu individual se afirma excessivamente diante do eu social, e às expensas deste último, poderemos dar o nome de egoísta ao tipo particular de suicídio que resulta de uma individuação descomedida.10 Para Durkheim, somente uma sociedade fortemente integrada consegue manter os indivíduos sob dependência, a seu serviço, e não lhes permite dispor de si mesmos conforme o capricho. Por assim pensar, redirecionou o olhar para os malefícios do individualismo excessivo, que leva ao suicídio porque apaga as obrigações que o indivíduo tem com a sociedade à qual ele serve e lhe é necessária para garant ir a vida. O suicídio alt ruísta se deve à individuação insuficiente. Em oposição ao egoísta, esse ato é prat icado por sujeitos que estão fortemente submetidos aos valores colet ivos, quando estão integrados demasiadamente na sociedade, acreditando assim ser necessário dar a vida por uma causa colet iva. Para Durkheim, essa fraca individuação só pode ter uma causa: para que o indivíduo tenha tão pouco espaço na vida colet iva é preciso que ele seja quase totalmente absorvido no grupo e, por conseguinte, esteja muito fortemente integrado. Para que as partes tenham tão pouca existência, salienta ele, é preciso que o todo forme uma massa compacta e contínua. Assim, concluiu que ao indivíduo (...) faltam os meios para constituir para si um meio especial, a cujo abrigo ele possa desenvolver sua natureza e construir-se uma fisionomia que seja só sua. Indist into de seus companheiros, ele seria parte aliquot do todo, sem valor por si mesmo. As principais diferenças entre o egoísta e o alt ruísta são assim resumidas: enquanto o egoísta se deve ao excesso de individuação, o alt ruísta tem individuação demasiado rudimentar; um ocorre porque a sociedade, desagregada em certos aspectos ou mesmo em seu conjunto, deixa o indivíduo escapar, e o outro, porque o mantém demasiada e estritamente sob sua dependência. Dessa maneira, ele chamou de egoísmo o estado no qual se encontra o eu quando vive sua vida pessoal e só obedece a si mesmo. O contrário foi expresso pela palavra alt ruísmo: o eu não se pertence, confunde-se com outra coisa que não ele; o pólo de conduta está situado no grupo do qual faz parte.11 Os suicídios anômicos estão, segundo o sociólogo, relacionados com uma situação de desregramento t ípica de períodos de crise, e a sua origem, na crença do homem de que seu mundo, seus valores sociais e regras estão desmoronando em torno dele. É possível perceber que a sociedade não é, para Durkheim, apenas um objeto que atrai para si, com intensidade desigual, os sent imentos e a at ividade dos indivíduos. Em suas palavras, também é um poder que os regula. Há uma relação entre a maneira pela qual se exerce essa ação reguladora e a taxa social dos suicídios.12 Quando a sociedade é perturbada, seja por uma crise dolorosa ou por transformações favoráveis, mas por demais repent inas, ela fica provisoriamente incapaz de exercer a ação de frear, conter e regular o indivíduo e as suas ações. Daí provêm a brusca ascensão da curva de suicídio13 e a anomia como seu fator regular e específico. Durkheim diferenciou o suicídio anômico dos outros dois t ipos não pela maneira como os indivíduos estão ligados à sociedade, mas pelo modo como ela os regulamenta: O suicídio egoísta tem como causa os homens já não perceberem razão de ser na vida; no suicídio altruísta, essa razão lhes parece estar fo ra da própria vida; o terceiro tipo de suicídio(...) tem como causa o fato de sua atividade se desregrar e eles sofrerem com isso. Por sua origem, daremos a essa última espécie o nome de suicídio anômico.14 A mudança na temat ização do suicídio passa a ser evidente, após Durkheim apresentar t rês t ipos de suicídio onde a relação com a sociedade é fundamental. Como sociólogo, Durkheim part iu da esfera social para pensar o suicídio e a ela se limitou, criando alternat ivas para a problemat ização e sendo quest ionado por muitos estudiosos, não só pela metodologia do seu trabalho, como por suas conclusões. Contudo, a importância de suas análises é indiscutível, pois apresentam um olhar diferente daquele que, ao longo do século XIX, comumente era direcionado ao tema, ou seja, o olhar médico. Além de Durkheim, outro pensador que mudou as referências teóricas ut ilizadas para pensar o suicídio ao longo do século XX foi Freud. Sua principal inovação diz respeito ao seu método de invest igação e ao seu estudo do mental. Isso, porque Freud nunca teorizou sobre o suicídio, mas permit iu, com suas inquietantes propostas de estudo das estruturas mentais, que os médicos do século XX procurassem por respostas de maneira até então impossível. Freud tentou explicar o suicídio a part ir do conflito de Eros X Thanatos. Segundo sua concepção, Eros é o inst into de vida e Thanatos, o da morte. Assim, é necessário haver equilíbrio entre essas pulsões, entre esses inst intos, para que o suicídio não ocorra, para que a morte não triunfe sobre a vida. Logo, é possível concluir que, para Freud, o suicídio não é necessariamente um ato de loucura, mas uma imposição e uma vitória do impulso de morte.15 Note-se que, apesar de tantas inovações — inclusive a idéia de suicídio inconsciente —, manteve-se a tendência de, ao longo do século XIX, se buscar as mot ivações do suicídio no próprio indivíduo. Ao mesmo tempo algoz e ví t ima, o suicida cont inuou sendo o principal responsável pela a própria morte. Por fim, a últ ima ruptura provocada no pensamento médico brasileiro sobre o suicídio entre os séculos XIX e XX, que ajuda a indicar as razões da baliza final deste t rabalho, é definida pelo discurso eugênico. Importada da Europa, a doutrina eugênica teria chegado ao Brasil encoberta pelo tema e pela preocupação com a raça. Classificadas a princípio como temas culturais,as idéias eugênicas encontraram no país um terreno fért il, vindo ao encontro das preocupações que tanto atormentavam nossos intelectuais, não só no aspecto da definição de povo brasileiro mas também do país como nação. A entrada da eugenia no Brasil corresponde ao projeto de intervenção social das primeiras décadas do século XX, reunindo em torno do ideário a elite da psiquiatria nacional, diversos médicos, educadores, advogados, intelectuais em geral e, até mesmo, alguns empresários e polí t icos brasileiros.16 Assim, a psiquiatria, ao lado de vários outros saberes disciplinares, como a recente criminologia, a engenharia sanitária e a medicina higiênica, e tendo como principal campo de batalha os centros urbanos, buscava, como sinalizou José Roberto Franco Reis, intervir no corpo social de forma a esconjurar o crescente de riscos sociais.17 Para isso, invest iu poderosamente na ident ificação e isolamento daqueles indivíduos que se encontravam na linha de frente do risco degenerativo.18 Indivíduos suspeitos, portanto, de serem portadores e transmissores, até mesmo hereditários, dos germes da desordem e da desagregação social: delinqüentes, alcoólatras, prost itutas, imigrantes, negros e suicidas, entre outros. Dessa maneira, essa ruptura observada em trabalhos do início do século XX, que apresentavam outras referências tais como a preocupação com as esferas psíquica e social e a relação da medicina com outros saberes disciplinares, permit iram mudanças na temat ização do suicídio, exigindo, por assim dizer, um outro t rabalho de pesquisa, outras análises e referências. Para at ingir o objet ivo central, o de problemat izar a construção do suicídio pela medicina, dividi o livro em cinco capítulos. Em todos, por meio dos discursos apresentados e defendidos, principalmente em duas inst ituições médicas cariocas — a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e a Academia Imperial de Medicina —, t rabalhei com os discursos que iniciaram e construíram a temat ização cientí fica do suicídio no Brasil. Percebi que os discursos médicos podem ser analisados a part ir de quatro principais temas, e em todos eles o homem é a figura central, enquanto sujeito e objeto de conhecimento: a dimensão patológica; as paixões como causa de suicídio; as diferenças entre o suicídio masculino e o feminino e a influência da literatura na propagação do mal — entenda-se, o suicídio. Recortei, então, quatro séries temát icas para pensar a problemat ização médica brasileira ao longo do século XIX. Para cada uma delas propus um capítulo, além de outro, inicial, sobre o contexto histórico e inst itucional que permit iu o surgimento dos primeiros estudos médicos e cientí ficos no século XIX. Indaguei que t ipo de medicina foi essa que possibilitou o início da temat ização e quais inst ituições ofereceram espaço para tal produção discursiva. Analisei o contexto inst itucional e as condições históricas que possibilitaram o início da temat ização e da interpretação cientí fica do suicídio. Privilegiei os estudos de Roberto Machado e de Madel Luz, por serem os mais citados, estudados e indagados pelos historiadores que se ocupam com o surgimento da medicina social brasileira. No segundo capítulo, indaguei os modos de problemat ização do suicídio pela medicina brasileira: sua dimensão patológica. Analiso os t rabalhos médicos para interrogar como estes discursos, a part ir do século XIX, classificaram e apresentaram o suicídio como fenômeno naturalmente ligado ao universo das doenças, perturbações e distúrbios mentais, e o suicida como doente e anormal — nesse sent ido, patologizado, passível de tratamento e cura. No terceiro capítulo t rabalhei com as paixões. Muitas teses médicas e estudos sobre o tema dedicaram considerável número de páginas a descobrir os perigos das paixões, a nocividade de seus excessos, e apresentaram a inquietante análise que aponta os grandes centros e as cidades como meios facilitadores e, até mesmo, indutores de paixões, entendidas como causas de suicídio. No quarto capítulo, analisei a diferenciação, constante e recorrente em trabalhos médicos do século XIX, entre o suicídio cometido por homens e aquele cometido por mulheres. Busquei a base ut ilizada para sustentar tal diferenciação e quest ionei a possibilidade de pensar a diferença entre um modo masculino e outro feminino de se suicidar. Para problemat izar o tema, ut ilizei o gênero enquanto categoria de análise, focalizando e analisando a criação e o uso das idéias sobre os papéis próprios aos homens e mulheres. No quinto capítulo analisei as relações entre o saber médico e o literário. Indaguei em que consist ia a crí t ica médica em torno das obras literárias que narram algum t ipo de suicídio e desconstrui a base sobre a qual esta referência e prát ica foram criadas, suas conseqüências no que diz respeito à disputa de domínio do objeto por uma determinada área do saber — a medicina —, e as medidas propostas para silenciar as obras acusadas de fazer apologia ao suicídio. Escolhi esse percurso para problemat izar as formas pelas quais os médicos brasileiros estudaram e analisaram o suicídio, ou seja, para historicizar os discursos médicos — que cont inuam a produzir imagens, referências e verdades sobre e para o suicídio e, também, para buscar como se deu a experiência do suicídio; e, finalmente, para propor um novo olhar sobre o tema, que possa libertar o sujeito que se suicida de ser considerado e feito doente, desequilibrado, irracional e desesperado. Para tal, indaguei os modos de produção de verdades sobre o suicídio, muitos deles ainda presentes em nossa sociedade e cont inuando a produzir subjet ividades. Para percorrer esse caminho, ut ilizei questões, indagações e olhares da chamada análise arqueo-genealógica de Michel Foucault , porque tal perspect iva permite pensar o suicídio de outro modo, a part ir das relações entre saber, poder e subjet ividade, e estudar não só a construção de sent idos, como também explorá-los. Ao longo de todo o percurso, algumas obras, como Arqueologia do Saber, Microfísica do Poder e O Uso dos Prazeres de Foucault , foram vitais. Várias outras, tais como Foucault e a Norma e o Direito, de François Ewald, Como se escreve a história: Foucault revoluciona a história, de Paul Veyne, O microscópio de Michel Foucault, de Gérard Lebrun, A história da cultura de Michel Foucault, de Patrícia O’Brien e O efeito Foucault na historiografia brasileira, de Margareth Rago, me ajudaram pensar a pesquisa documental, t rabalhar com os documentos, estabelecer e organizar séries temát icas para estudar a problemat ização médica e, sobretudo, reflet ir sobre a História.19 Indaguei como apareceram os primeiros discursos e saberes sobre o suicídio no Brasil no século XIX. Busquei as condições de existência dos discursos médicos sobre o suicídio e perguntei: o que possibilitou o aparecimento histórico dos discursos médicos e cientí ficos sobre o suicídio? O que possibilitou o surgimento de um tema como o suicídio para o médico brasileiro, por exemplo? As respostas foram tecidas principalmente no primeiro capítulo. Problemat izei o jogo do verdadeiro e do falso, aquilo que poderia ser considerado como verdadeiro ou falso sobre o suicídio. Com esse jogo, foi possível destacar e interrogar um certo regime de verdade e o t ipo de poder e sujeição que lhe é correlat ivo. Sobre essa questão, François Ewald lembra que (...) já não é possível separar a verdade dos processos da sua produção, e que esses processos tanto são processos de saber como processos de poder. Que não há portanto verdade(s) independente(s) das relações de poder que a(s) sustentam e que ao mesmo tempo ela(s) reconduz (em) e reforça(m), que não há verdade sem política da verdade, que toda afirmação de verdade é indisso luvelmente peça, arma ou instrumento no interio r de relações de poder.20 Os discursos e as verdades são pensados como construtosde processos históricos. São provenientes de relações de poder e produzem sujeição, consent ida ou forçada. Essa perspect iva possibilita, também, a busca dos jogos da verdade, das exclusões, das invalidações, do interdito, dos esquecimentos e da busca de silêncio. Jogo esse marcado e const ituído por tentat ivas e estratégias de domínio de poder. Em relação ao poder, ou melhor, em relação aos exercícios de poder, devo sublinhar que é possível, e certas vezes necessário, analisar os modos de produção de poder e buscar seus efeitos, a produção de corpos, idéias e saber. Essa produção de poder é posit iva, produz relações disciplinares de controle, vigia, produz educação e cuidados, mas também algo real e, por fim, domínios de objetos e rituais de verdade sobre o e a part ir do suicídio.21 Nesse sent ido, a chamada análise arqueo-genealógica é ut ilizada porque oferece ferramentas analí t icas e possibilidades de pensar o suicídio de outro modo. Assim, posso indagar a const ituição de sent idos, a construção de ident idades para o sujeito que se mata e o processo que o culpabiliza, que o t ransforma no principal e muitas vezes único responsável por sua escolha e ato. Com essa perspect iva, pude trabalhar com os modos como a medicina brasileira problemat izou o suicídio ao longo do século XIX, como se apropriou de outros discursos médicos, como o francês, e em que medida estabeleceu relações de poder e de força com outras áreas do saber, como a literatura. Em lugar de part ir do discurso médico para just ificar o uso das ident idades por ele criadas, de part ir do sujeito suicida já const ituído, ou procurar uma ident idade primeira que estaria inscrita na natureza humana, a proposta é a de desconstrução de tais processos e ident idades. Em suma, uma pesquisa que agita o que se percebia imóvel, fragmenta o que se pensava unido e mostra a heterogeneidade do que se imaginava em conformidade consigo mesmo.22 Como o trabalho passa a ser o da desconstrução, nada mais pode ser reconhecido como dado óbvio ou até mesmo natural. Corpos, sexualidades, gestos, comportamentos, hábitos, desejos e, inclusive, o ato de se dar à morte são históricos, datados, produzidos por determinados contextos. A este respeito, Hayden White nos lembra que (...) nenhum acontecimento histórico é intrinsecamente trágico; só pode ser concebido como tal de um ponto de vista particular ou de dentro do contexto de um conjunto estruturado de eventos do qual ele é um elemento que goza de um lugar privilegiado. Po is na história o que é trágico de uma perspectiva é cômico de outra (...).23 Dessa maneira, a idéia de um cômodo passado organizado e pronto para ser detectado e t razido à tona é recusada. Estamos portanto diante de uma outra postura histórica e historiográfica. Agora trata-se de perceber como o passado foi elaborado para, em seguida, libertá-lo e não apenas procurá-lo, interrogá-lo, ou ambos. Em todos os momentos, prevalece a preocupação de trabalhar o discurso como prát ica inst ituinte e criadora de acontecimentos, imagens e referenciais de comportamento. Part indo dessa perspect iva, focalizo os discursos médicos brasileiros do século XIX, que cont inuam a gerenciar a produção discursiva e a temat ização contemporânea sobre o suicídio. A esse respeito, o levantamento bibliográfico sobre o tema permite perceber que a maioria absoluta dos estudiosos contemporâneos que se dedicam ao estudo do suicídio é de profissionais da saúde.24 Não que eu queira estabelecer uma cont inuidade entre a problemat ização médica do século XIX com a do final do século XX ou do início do século XXI. Afinal, como o próprio Foucault já advert ira, a história será efet iva na medida em que reintroduzir o descontínuo em nosso próprio ser, não esquecendo que o saber não é feito para compreender e sim para cortar.25 Recusando as cont inuidades históricas e atemporais, a pesquisa sugere que o saber que se fez responsável pelo início dos estudos e análises do suicídio no Brasil — o médico — é o principal produtor de conhecimento sobre esse ato em nossos dias. Mas há uma mudança na maneira como o suicídio é problemat izado. Um novo mundo conceitual foi criado e apropriado pelos médicos, entre eles o proposto por Durkheim e Freud. Hoje, os principais responsáveis pela produção de sent idos e verdades sobre e para o suicídio fazem parte da mesma área do saber, que desde o século XIX é dominante no que diz respeito à criação de sent idos, imagens e referências ao suicídio e ao sujeito que o prat ica. Mas eles não dizem, necessariamente, a mesma coisa, pois não seguem a mesma ordem do discurso, tampouco perpetuam as mesmas relações de poder e as mesmas tát icas e estratégias de domínio e intervenção. Como fica claro, assim como os acontecimentos, os discursos e o saber também são históricos. Nesse sent ido, aceito o desafio proposto por Hayden White: o historiador contemporâneo precisa estabelecer o valor do estudo do passado não como um fim em si, mas como um meio de fornecer perspect ivas sobre o presente que contribuam para a solução dos problemas peculiares ao nosso tempo.26 As análises desenvolvidas a part ir dos documentos e dados selecionados indicam a possibilidade e, porque não, a importância de pensar o suicídio e o sujeito que o prat ica a part ir de outros olhares, perspect ivas, teorias, conceitos e prát icas. Para isso, o primeiro passo é, sem dúvida, o da desconstrução: ident ificando, demonstrando e analisando como as referências, sent idos e verdades foram desejadas, buscadas, construídas e divulgadas. Ao evidenciar a historicidade de tais discursos médicos, saliento que é possível pensar diferentemente, para além das referências e verdades produzidas pelos profissionais da saúde. É possível que o sujeito que se suicida, ou que o tenta, não seja necessariamente doente, louco, desequilibrado e anormal. É importante pensar o suicídio a part ir de referências plurais, libertando assim o sujeito de ident idades que se pretendem naturais. É necessário criar espaços e possibilidades para que tais sujeitos possam apresentar suas reivindicações, desejos, sonhos, dúvidas, incertezas, conflitos, temores, ansiedades e sensibilidades, para que assim possamos nos ajudar mutuamente. Dessa maneira, torna-se menos árdua a tarefa de visualizar, propor e buscar outras formas de pensar o suicídio e de nos relacionarmos socialmente com as pessoas que tentaram pôr fim a seus dias, pois o poder exercido e efetuado por meio desses discursos — que cont inuam a gerir a vida dos homens e a controlar as suas ações, para que seja possível e viável ut ilizá-los ao máximo27 — não é absoluto ou totalizante. Ao indicar a possibilidade de linhas de fuga, frente ao t ipo de vida e de sujeito que são construídos por tais discursos, é possível fazer do nosso presente um momento que vale a pena ser vivido, para que ele seja múlt iplo, plural e diferente, permit indo assim outras possibilidades de ser e viver. Assim, contrapondo-se ao silêncio, à banalização da violência física e moral e à brutalização da sensibilidade, este t rabalho sobre o suicídio é, antes de tudo, um estudo da vida, posicionando-se contra qualquer t ipo de saber, discurso e inst ituição que se apresente com o único objet ivo de diminuir a capacidade humana de revolta, resistência e luta. No lugar de julgar, acusar, incriminar e culpar, este estudo espera ser út il para uma mudança radical de at itude: a de compreender, escutar, ajudar e colaborar. Um desafio; pois, como alertou Foucault , é sempre possível pensar de maneira diferente da que se pensa. CAPÍTULO I — PALCO E CENÁRIO: MEDICINA SOCIAL E INSTITUIÇÕES MÉDICAS NO BRASIL DO SÉCULO XIX Uma análise detalhada dos suicídios publicados pela imprensa sugere que a maior parte dos casos foram explicados a part ir das imagens, representações e est igmas das desordens mentais.1 A prát ica de relacionar ascausas de suicídio com o universo mental — distúrbios, alucinações, desarranjos e loucuras — pode ser detectada no início da temat ização médica brasileira sobre o suicídio, ocorrida na primeira metade do século XIX, quando os médicos começaram a produzir saber e conhecimento sobre o ato. A part ir daí , o suicídio e as desordens mentais passaram a ser indissociáveis. Foi sobretudo na segunda metade do século XIX que este fenômeno passou a ser observado, not iciado e analisado pela imprensa e por outras inst ituições e discursos. Esteve presente e visível em registros hospitalares, processos civis e criminais, romances, contos, poesias, jornais e em vários pontos do tecido social. O suicídio de homens e mulheres passou a ser percebido e concebido como um perigo. Era passível de ocorrer em qualquer momento, sem respeitar hierarquia social, cor, idade, sexo ou nacionalidade. Foi tornado tema e preocupação médico-cientí fica no Brasil quando a medicina começou a caracterizar-se como discurso da ordem e a desenvolver uma prát ica de ordenação social, buscando ident ificar e normalizar os indivíduos considerados portadores e t ransmissores da desordem e da desagregação. Vêm à mente as análises desenvolvidas por Luis Antonio Bapt ista a esse respeito, em especial essas palavras: A Medicina Social brasileira no século XIX nasce juntamente com o fortalecimento do capitalismo. Objetivando a prevenção e a higiene, esta nova ciência funda uma nova Ordem Social. A grande concentração urbana necessitará do apo io do saber médico para sua organização. Diferenciando-se das práticas médicas anterio res, que tinham como objeto a doença, esta nova ciência fabricará a saúde. Este novo objeto tem como principal ameaça os hábitos que precisam ser corrigidos.2 Própria de uma medicina prevent iva, que promoveu a normat ização da vida social no Brasil, a busca de respostas por parte dos médicos brasileiros para compreender o suicídio inseriu-se num quadro mais amplo, o da estratégia de medicalização da sociedade. Por esse motivo, para ident ificar e analisar os discursos sobre o suicídio, é preciso, em primeiro lugar, compreender esse t ipo de medicina implantada e prat icada no Brasil ao longo do século XIX, além de analisar as inst ituições de pesquisa e ensino médico, em especial a Sociedade de Medicina, a Faculdade de Medicina e a Academia Imperial de Medicina, todas com sede no Rio de Janeiro. Para buscar a historicidade dos discursos médicos sobre o suicídio, interroguei que t ipo de medicina possibilitou e t ransformou todos aqueles que se suicidaram em sujeitos doentes, desequilibrados, loucos e anormais. Part i de dois importantes estudos, de duas perspect ivas, a de Roberto Machado e a de Madel Luz, ambos com trabalhos históricos e datados que abordam o surgimento da medicina social brasileira no século XIX, além, é claro, de salientar o papel atribuído ao médico, sua inserção polí t ica e social. Essa últ ima questão é central, pois t rata de um sujeito dotado de saber e, por isso, de poderes, produtor de discursos, conhecimentos e sent idos sobre e para o suicídio. SABER E PODER NA MEDICALIZAÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA Para falar da const ituição da medicina social brasileira, é preciso fazer referência ao estudo pioneiro dirigido por Roberto Machado e publicado no final da década de 1970. Ele foi explicitamente inspirado pelas proposições do filósofo francês Michel Foucault , no qual buscou compreender a figura moderna da medicina, seu papel na sociedade e sua ambição de tornar- se instrumento cientí fico a serviço, direta ou indiretamente, do Estado.3 Em sua obra, Machado part iu de uma variada sorte de fontes para interrogar o processo de implantação de um t ipo novo de concepção e organização da medicina: a social. Analisou como a sociedade, a população, o Estado, as prát icas e o ensino médico foram ut ilizados, reinventados ou tomados como ponto de part ida para tal empreitada. Segundo essa perspect iva, a sociedade foi vista como lugar privilegiado de exercício do saber médico, que passou a registrar e acumular informações sobre o estado de saúde da população. Para que este saber se desenvolvesse, foi indispensável o acompanhamento de um t ipo de ação que possibilitou o controle do espaço no qual o homem estava inserido. Se a sociedade como um todo tornou-se passível de regulamentação médica, a saúde, por sua vez, passou a ser problema social. Daí a necessidade de autoridades serem const ituídas para agir no sent ido de preservá-la, assessorando e crit icando a execução de medidas de higiene. Segundo Machado, essa estratégia de controle projetou um desafio polí t ico da saúde e de vigilância constante da população, para que a saúde pública fosse mant ida. Vista como portadora de perigo, proveniente de um comportamento desregrado, a população citadina precisou, a part ir de então, ser observada, ordenada e medicalizada. Era preciso, a todo custo, promover o bem-estar da população. Quando se deu o começo da temat ização médica sobre o suicídio, os médicos ainda estavam longe, não só de conseguir controlar e regular a vida social, como, inclusive, de ter o próprio controle da higiene pública. O que foi observado por Machado é que tais profissionais estavam em luta por uma medicina sem fronteiras para suas análises e intervenções. No programa que começou a ser discut ido durante a primeira metade do século XIX, nota-se a presença da denúncia dos lugares de desordem, amontoamento e acúmulo, que figuravam como portadores de perigo urbano, médico e social. Foi proposta, então, a ext inção ou a t ransformação disciplinar de tudo aquilo que poderia ser obstáculo ao funcionamento ordenado da cidade. Temos, desse modo, o início da inserção da medicina em todos os recônditos da sociedade, com a finalidade de garant ir um funcionamento ordenado das cidades, de suas inst ituições e dos seus habitantes. Roberto Machado defendeu que a intervenção médica, na sociedade e em sua população, teve o homem como objeto fundamental. Tematizado não só em sua individualidade, mas também como população, vivendo em sociedade, ele foi encarado como alvo maior desse novo t ipo de conhecimento, como objeto maior e últ imo. A medicina social foi, segundo sua visão, um t ipo de saber polivalente, na medida em que temat izou o homem do ponto de vista físico e moral. Mas, por isso mesmo, ela não se limitou por seus contornos; prolongou-se, através de sua relação com o meio, a natureza e a sociedade. Ao ter sido feita um problema social, tornou-se indispensável um t ipo de autoridade const ituída com o objet ivo de preservar a saúde. Não por acaso, o momento em que o Estado se encarregou de maneira positiva da saúde dos cidadãos foi o mesmo em que a sociedade apareceu como passível de regulamentação médica. Para preservar a saúde, foram determinadas uma série de providências que não nasceram espontaneamente, mas foram impostas e conquistadas por meio de uma série de lutas polí t icas, muitas vezes no interior do próprio Estado. A esse respeito, Machado salientou que um dos campos privilegiados da intervenção médica na sociedade foi o aparelho de Estado. Agindo junto a ele e com o objet ivo de intervir na sociedade, a medicina se inseriu no movimento que fez do Estado brasileiro uma realidade bastante diferente do que fora a administração portuguesa, pelo menos no que diz respeito ao governo das populações e ao controle dos indivíduos. Machado ressaltou, assim, um duplo aspecto do debate dos médicos com relação ao Estado, ou seja, a assessoria e a crí t ica. Observou uma nít ida inadequação entre o projeto médico e o modo de atuação dos organismos estatais. Esse duplo aspecto teria sido o modo escolhido para desqualificar a maneira como se exercia a ação governamental em matéria de saúde, e de apresentação não só de soluções específicas dos problemas surgidos — como a constante presença de epidemias— mas também, e fundamentalmente, de um novo est ilo de exercício polí t ico que fosse apto a dar conta do objet ivo de manutenção, ou mesmo de estabelecimento do bem-estar social. A medicina social foi, dessa maneira, polí t ica. O que não significa, para Machado, que ela fosse um contra-poder ou um poder paralelo. Ela foi polí t ica tanto pelo modo como interveio na sociedade e penetrou em suas inst ituições, como pela sua relação com o Estado. Ela precisava do Estado para realizar seu projeto de prevenção das doenças da população porque, sem instrumento de poder próprio, seria ineficaz e vã. Ao mesmo tempo, ela foi út il ao Estado, por ter sido instrumento especializado capaz de assumir com ele e por ele as questões relat ivas à saúde, t razendo-lhe o apoio de uma ciência. A esse respeito, Micael Herschmann comentou que, ao se art icular à medicina no últ imo quartel do século XIX, o Estado republicano decretou o fim da autonomia da família e o incremento do controle social.4 Cada vez mais, a medicina tornou-se responsável pela orientação da vida privada dos indivíduos. O modelo almejado foi o modelo burguês de família. O corpo, o sexo, a própria vida ínt ima do casal, assim como a saúde e a higiene dos indivíduos, passaram a ser tema de art igos e teses. Em muitos desses art igos, alguns médicos dedicaram-se ao estudo do suicídio. Ainda, segundo ele, o objet ivo desses médicos foi, de forma geral, normat izar, conseguir que homens e mulheres desempenhassem papéis tanto de produtores como de reprodutores de proles sãs e de uma raça sadia e, na medida do possível, pura. Como veremos, a propensão ao suicídio, muitas vezes observada no seio das consideradas boas famílias, foi de encontro a esse objet ivo prevent ivo.5 No entanto, a normat ização proposta pela medicina não se limitou à família. A chamada medicalização da sociedade brasileira sugere uma intervenção social intensa, autoritária e sem fronteiras. Nas palavras de Herschmann, os inimigos do ‘corpo social’; segundo estes médicos, eram os ‘excessos’ e ‘desvios’; era preciso , portanto , disciplinar a sociedade, incutir valores, destruindo, desse modo, os ‘vícios’ e as ‘perversões’ que tanto ameaçavam os centros urbanos.6 No que diz respeito às perversões, cabe destacar que os médicos brasileiros, juntamente com outros profissionais — engenheiros e educadores, todos homens e em sua maioria brancos — definiram e implantaram as perversões que deveriam ser ident ificadas e erradicadas do meio social, para assim gerar e garant ir uma vida ordenada, medicalizada e civilizada. Ao lado dos loucos, vagabundos, prost itutas, criminosos, alcoólatras, ladrões, devassos, homossexuais e tantos outros considerados e feitos anormais, os suicidas também foram focalizados e enquadrados entre os infames, aqueles portadores e produtores de desordem, que precisavam ser ident ificados, curados, regenerados e normat izados. Foi nesse sent ido que Roberto Machado percebeu uma alteração na prát ica médica, ao longo do século XIX. De acordo com ele, a doença passou a ser considerada por meio de uma perspect iva social mais ampla, não mais considerada isoladamente, como uma essência independente. O fundamental passou a ser impedir o seu aparecimento e controlar a sua manifestação, e não mais a ação direta sobre ela para restabelecer a saúde. O objeto da medicina começou a se deslocar, portanto, da doença para a saúde, e o suicídio, uma vez tendo sido considerado uma doença, deveria, também, ser evitado, para gerar e garant ir a vida. A intervenção médica visou, não somente a cura de um paciente depois de ter sido at ingido pela doença, mas dificultar ou mesmo impedir que esta aparecesse. Essa prát ica foi, por sinal, observada em teses sobre o suicídio. Não bastava compreender o que ele seria, quais suas causas e sintomas, era preciso impedi-lo, erradicá-lo do meio social. Dessa maneira, uma medicina da saúde, como foi desenhada historicamente, passou a ser caracterizada como uma medicina das causas das doenças, o que permit iu que a própria figura do médico fosse recriada. Com essa nova medicina, o médico deveria atuar para proteger os indivíduos contra tudo o que, no espaço social, pudesse intervir no bem-estar físico e moral. Não deveria se limitar ao tratamento dos doentes, mas começar a supervisionar a saúde da população. Ao médico foi designada uma autoridade especial. Dali em diante, foi o responsável pelas medidas de controle da cidade. Ele próprio passou a ocupar o lugar de comando, como autoridade responsável por tudo que, na sociedade, dizia respeito à saúde. Faz-se necessário salientar que, no programa de tal medicina emergente, era imperat iva a necessidade de os indivíduos se sujeitarem ao que visava o bem de todos. De acordo com essa compreensão, ricos e pobres, homens e mulheres, jovens e adultos, brancos e negros t iveram, a part ir de então, deveres comuns. Por serem membros const ituintes de uma mesma sociedade, e por isso responsáveis por sua preservação, deveriam ter, antes de tudo, a preocupação com o bem comum, isto é, com a preservação da sociedade, de suas inst ituições, de seus costumes (pelo menos daqueles vistos e aceitos como bons) e de seus alicerces. Segundo Machado, foi através dessas prát icas, temas e inst ituições, que a medicina social se caracterizou por uma ação posit iva, t ransformadora e recuperadora, que, inst ituindo normas, impôs exigências a uma realidade vista como host il e diferente. Teve, em suma, um objet ivo de normalização.7 Resumindo o raciocínio do autor, pode-se concluir que em determinado momento de nossa história nasceu um t ipo específico de medicina. Pela maneira como temat izou a questão da saúde da população, e procurou intervir na sociedade de maneira global, pode ser chamada de medicina social, e o momento em que isso ocorreu, período privilegiado para este estudo, foi o século XIX. O trabalho de Machado inaugurou uma outra forma de problemat izar a medicina brasileira, e revelou uma descont inuidade entre a história da medicina social do século XIX e os três primeiros séculos de nossa história. Além do mais, demonstrou como a medicina do século XIX — com seus novos modos de atuação sobre os objetos, inclusive sobre o suicídio — foi legit imada por outro t ipo de condições: os princípios universais da razão, da ciência e do progresso. MEDICINA, ORDEM POLÍTICA E ESTADO Como outra leitura e perspect iva sobre a medicina brasileira, o t rabalho de Madel Terezinha Luz 8 sobre a Medicina e ordem polí t ica brasileira, publicado no ano de 1982, const itui-se referência e discussão bibliográfica presente na maioria dos estudos sobre o tema. Leitora da obra de Roberto Machado, Madel Luz concorda que a medicina é, desde suas origens inst itucionais na sociedade brasileira do século XIX, não só uma forma de conhecer o corpo social, mas também de intervir polit icamente neste corpo. Trata-se, segundo essa proposta, de cuidar não só da saúde dos cidadãos, mas também da saúde das cidades. Segundo a autora, as regras de higiene propostas, as normas de moral e costumes prescritos — sexuais, alimentares, de habitação e de comportamentos sociais — faziam parte, desde a const ituição do primeiro império brasileiro, da maioria das propostas que os médicos submeteram ao Estado, do qual eram consultores, assessores, conselheiros e crí t icos. Os discursos médicos sobre a saúde foram pensados pela autora como modelos de conhecimento sobre a estrutura das doenças e suas causas, mas também como propostas de intervenção saneadora e reorganizadora do espaço físico das cidades brasileiras, sobretudo nos centros urbanos portuários. Buscava-se, assim, higienizá-las, discipliná-las e organizá-las, adequando-as às relações sociais ascendentes na formação social brasileira. De acordo com a sua compreensão, cada discurso médico foi visto como expressão de um modelo específico de conhecimento,t raduzindo uma proposta de intervenção médico- social. Tais discursos caracterizaram-se sempre por tomarem como interlocutor central o Estado, const ituído em aparelho. Dessa maneira, propôs ser dele o discurso e a estratégia polí t ica dominantes. Em outras palavras, para Madel Luz, é visível a proposta médica de se tornar estratégia de hegemonia dominante.9 Por assim pensar, invest igou o processo de const ituição de várias inst ituições médicas, de suas ligações simultâneas com uma realidade que tentaram transformar, e com um Estado ao qual, ao mesmo tempo, serviam e que const ituiram historicamente como parte do corpo inst itucional. Foi o Estado que também crit icaram, na medida em que este, como poder central controlado por interesses mais imediatos e corporat ivos, não observou totalmente as suas propostas, não inst ituiu seu agente principal — o médico — como interventor privilegiado nesta realidade. Foi ao estudar a const ituição de diversas inst ituições de saúde pública, que Madel Luz teve a visão do papel histórico da medicina face às condições de saúde da população brasileira e dos movimentos sociais que se organizam em torno da questão da saúde e, ao mesmo tempo, de seu papel na formação do Estado e das políticas sociais.10 Para ela, a medicina demonstrou seu caráter historicamente ambíguo ao tomar como interlocutor privilegiado o Estado, no seu sent ido mais restrito de aparelho const ituído, pois não deixava de responder a duas realidades básicas da sociedade brasileira: as condições de saúde objet ivas da população — suas condições de vida — e os movimentos sociais gerados nessas condições. Dessa forma, contribuiu para inst ituir no país uma ordem polí t ica considerada centralista e socialmente excludente, para const ituir o Estado nacional brasileiro com seus traços estruturais ainda dominantes, dele tornando-se um setor inst itucional dos mais importantes, e, finalmente, ajudou a inst ituir as primeiras polí t icas sociais do país, por meio das polí t icas de saúde e, sobretudo, das inst ituições de saúde pública. Um outro aspecto muito importante de seu trabalho é a sua visão da ciência como parte do Estado, fruto histórico da necessidade de intervenção na vida social. No capitalismo, segundo a sua posição, a ciência não fez parte das idéias dominantes. Ela foi a sua idéia dominante, sua mais brilhante idéia. A ciência ordenou progressivamente a produção das idéias, além de organizar racionalmente a produção econômica. Tendeu a racionalizar o comportamento das classes e grupos sociais subordinados, e ditou modelos de concepção em todos os campos da at ividade humana. Por essas razões, a ciência guardava o privilégio de que só a ideologia pode desfrutar: o de, nascendo de interesses part iculares e concretos e reproduzindo-os, até certo ponto, ostentar uma face universal e abstrata, a face do estar acima da história, de ser em face dela neutra, objet iva e, portanto, verdadeira. Segundo Luz, a história da const ituição das inst ituições de saúde pública é a história da tentat iva de uma ampla resposta da medicina à ordem social, que se instaurou no Brasil com a estrutura capitalista de produção, às suas contradições no plano da saúde e do poder const ituído nessa estrutura com o Estado Nacional. O caráter fundador dos discursos cientí ficos brasileiros, principalmente o médico, também foi analisado por Herschmann. Segundo o autor, sobretudo no início do século XX, ao longo das três primeiras décadas, a geração intelectual de caráter cient ificista e o Estado procuraram argumentar, junto à sociedade, que aquele era um momento histórico, de fundação ou de (re)fundação do país. Era um momento oportuno para o povo e a nação regenerarem-se, sendo assim, portanto, necessário intervir, curar, sanear, educar , a fim de se alcançar esse objet ivo.11 Herschmann constatou duas estratégias complementares que permit iram, em certo sent ido, que esses médicos envolvidos na tarefa de modernizar o país reivindicassem e legit imassem o seu campo como uma importante ramificação do campo intelectual, ao lado de educadores, engenheiros e literatos, enquanto espaço de militância e fundação do ideário moderno: a constante referência a um diagnóst ico grave e, portanto, à necessidade de mudanças urgentes; e, ainda, como salienta o autor, a construção de bipolaridades. Assim, enquanto os diagnóst icos construíam um quadro alarmista, as bipolaridades estabeleciam referências e metas. Em geral, os diagnóst icos mais recorrentes eram os de insalubridade, ignorância e atraso. As bipolaridades mais comuns em tais discursos eram saúde/ doença, vida/ morte, progresso/ atraso e limpo/ sujo. Ambas as estratégias permit iram que esses discursos abrissem caminho para a legit imação da intervenção, para a criação de sustentação legal e moral para a atuação ostensiva do Estado na esfera pública e privada, de modo a colocar em prát ica seu projeto pedagógico e regenerador. No entanto, o autor indicou que, ao mesmo tempo em que esses médicos acenavam com mudanças sociais ou traziam uma nova leitura da realidade — bem como técnicas de tratamento, pelas quais eles se propunham a atuar como um misto de conselheiros e tutores de inst ituições importantes como a família, escola, Estado, entre outras —, seus discursos eram quase sempre revest idos de conteúdo moral e religioso. A questão era, segundo Herschmann, regenerar a sociedade, encontrar remédios que fort ificassem o corpo e o espírito, inclusive contra o suicídio. Em outras palavras, os prognóst icos médicos colocavam a ciência ao lado da virtude e do bem estar social, ou seja, enquanto instrumento eficaz que impediria epidemias e a proliferação de casos patológicos que ameaçassem o organismo social.12 Toda essa preocupação em melhorar o país, torná-lo civilizado e próspero, foi formulada principalmente em algumas inst ituições. Por essas razões, Madel Luz sublinhou que as inst ituições médicas, tais como a Academia Médico-Cirúrgica, as Faculdades de Medicina, a Escola Tropicalista Baiana, as Sociedades de Medicina, as Academias de Medicina e a Sociedade Brasileira de Higiene, não escaparam dos processos sociais e polí t icos que modificaram e (re)criaram a sociedade brasileira. A história de cada uma foi marcada por tais transformações, como demonstrado pela autora na segunda parte de sua obra. Seus regimentos, o papel na sociedade e o t ipo de profissionais que agregavam ou formavam foram se modificando no século XIX, e, como observou Herschmann, também nas primeiras décadas do século XX. A ordem médica em formação representou o estabelecimento de formas centrais de controle da sociedade civil, que se fez não só por meio do controle dos corpos, como também da criação de prát icas prevent ivas, estabelecendo a perspect iva de um projeto de Estado sanitarista por meio de um conjunto de inst ituições. Entre os projetos de intervenção médica na sociedade naquele momento, exist iu um ponto em comum: o controle do Estado como forma de impor um modelo sanitário unificador, centralizador e concentrador de poder. Outra questão muito importante da obra de Madel Luz é sua análise em torno do posit ivismo. O século XIX assist iu, segundo ela, a uma luta feroz na medicina, t ravada entre aqueles que estavam ligados a filosofias como o Vitalismo e o Eclet ismo e aqueles outros ligados ao Posit ivismo. A teoria médica foi marcada pelo compasso da filosofia, nit idamente de caráter especulat ivo e espiritualista, progressivamente subst ituída pelo olhar empírico e experimental, pela introdução do elemento quant itat ivo e desenvolvimento da tecnologia médica.13 Para a autora, o estabelecimento da hegemonia posit ivista, que surgiu no Brasil em meados do século XIX, foi de fundamental importância para o êxito e aceitação dessas ciências. Essa filosofia propôs a ruptura com a imaginação e a argumentação, submetendo-as à observação e experimentação.Subst ituiu a procura de causas e essências pelo descobrimento de leis imutáveis, que seriam as relações constantes entre fenômenos observáveis: os fatos. Madel Luz defende que o posit ivismo introduziu o debate sobre as relações entre ciência e poder nacional, crit icando as teorias que associaram o subdesenvolvimento a fatores climát icos como responsáveis pelas doenças endêmicas, pelo temperamento passivo e sensual do homem brasileiro. Estes também exerceriam influência sobre a moral e inferioridade racial, agindo não somente como potencializadora dos efeitos climát icos, mas também como elemento de degradação da civilização branca. Em subst ituição ao pessimismo racial, social e climát ico, o posit ivismo propunha a confiança no status futuro do Brasil como potência mundial. Por isso, era necessário vencer a inferioridade tecnológica e polí t ica ut ilizando como arma a ciência, principalmente a médica. No entanto, foi dura a luta que os posit ivistas t ravaram, na segunda metade do século XIX, para essa orientação se tornar hegemônica. Isso porque, dentro da categoria profissional dos médicos, não havia um projeto monolí t ico de afirmação de poder — apesar de crí t icos de sua obra afirmarem o contrário —, não somente porque não eram homogêneas sua inserção no processo econômico e sua origem de classe, mas também porque havia modelos de saber dist intos, que correspondiam a bases sociais estratégias de poder também dist intas. Contudo, o modelo teórico das ciências posit ivas t razia no seu cerne a coerência com um novo Estado. Não se limitando à análise e às fontes de Machado, Madel Luz criou uma visão part icular da chamada História da Medicina Brasileira, ao sublinhar o processo por meio do qual se interligaram ciência, Estado, polí t icas sociais e movimentos sociais. A autora buscou analisar a const ituição do aparelho estatal de Saúde e as relações, dependência e t rocas entre a medicina e o Estado. Seu norte foi a certeza de ser impossível fazer uma análise das propostas da Medicina desvinculando o cientí fico do polí t ico. No que diz respeito ao papel e à inserção do médico na sociedade brasileira deste período, a autora deixa claro que o vê como um sujeito preocupado com questões polí t icas nacionais. Ele esteve presente, como assessor ou como protagonista, na const ituição do Estado brasileiro. Envolveu-se explicitamente em debates sobre a escravidão, o t rabalho livre e a República; quest ionou a ut ilidade das mais variadas inst ituições de saúde, conheceu as diversas correntes filosóficas européias e, ainda, colocou-se na linha de frente contra a desordem e o desregramento moral. Em suma, ele é personagem de extrema importância para a História do Brasil do século XIX, como responsável por boa parte das transformações que ocorreram na sociedade, na polí t ica e na economia do país. Para o meu objet ivo central, a obra de Luz, principalmente a part ir de sua segunda parte, é de visível importância para a compreesão do espaço inst itucional onde os discursos sobre o suicídio foram produzidos, ou seja, as Academias Médicas e as Faculdades de Medicina. Os estudos até aqui apresentados e analisados foram ut ilizados como narrat ivas escritas a part ir de certos vestígios sobre um determinado período, sobre um determinado saber e discurso. Como penso não exist ir uma visão única, verdadeira e objet iva de qualquer objeto histórico, percebo o que essas obras oferecem, que perspect iva interpretat iva foi ut ilizada e o que foi construído, a part ir de certas fontes, acerca desse saber majoritariamente masculino — o médico — que produziu conhecimentos e realidades sobre o suicídio. O próximo passo é apresentar e indagar sobre as inst ituições que forneceram o espaço inst itucional para pensar cient ificamente o suicídio. Esse palco, onde discursos foram produzidos, apresentados, defendidos e divulgados, assumiu, principalmente no século XIX, a tarefa de agremiar os principais responsáveis pelas estratégias de observar, estudar, gerar e garant ir a vida social, além de transformá-la em vida saudável, ordenada e, assim, medicalizada. INSTITUIÇÕES MÉDICAS DE ENSINO E SABER O ano de 1808 é referência obrigatória para todos que estudam e analisam a história das inst ituições médicas brasileiras do século XIX. Foi a part ir desse momento que algumas delas começaram a ser planejadas, e outras procuraram um estatuto considerado mais cientí fico e moderno, ou seja, nos moldes das européias. Além disso, é claro, por ser essa data um marco na produção e divulgação inst itucional do saber médico. A vinda da corte portuguesa para o Brasil provocou, abruptamente, uma modelação de várias cidades brasileiras — em especial do Rio de Janeiro — e de muitas inst ituições sociais. Pode-se falar, em geral, que as cidades brasileiras não se encontravam aparelhadas para receber aquele cont ingente de nobres e burgueses portugueses, de hábitos, costumes, necessidades e padrões culturais consoantes com as cidades européias da época.14 Foi preciso intervir no corpo social, nas cidades e em suas inst ituições, para que se efet ivasse um certo desenvolvimento do núcleo urbano, possibilitando melhores condições de vida para os ilustres europeus abastados que, a part ir de então, residiriam em terras t ropicais. Assim, analisei o papel e a importância de algumas inst ituições que sofreram essa intervenção: Escolas de Cirurgia, Academia Médico-Cirúrgica, Sociedade de Medicina, Faculdade de Medicina e Academia Imperial de Medicina, esta últ ima transformada posteriormente em Academia Nacional. Interrogo, desse modo, o processo de organização da formação acadêmica que possibilitou a criação de uma medicina oficial. Para adequar as cidades e suas inst ituições às novas exigências históricas, várias medidas foram tomadas. Entre elas, destaco a criação, em caráter emergencial, de duas Escolas de Cirurgia, uma delas na Bahia e outra no Rio de Janeiro. O objet ivo central dessas inst ituições era o de suprir a premente falta de médicos e, em especial, fazer com que esses profissionais zelassem pela saúde da elite portuguesa e dos estrangeiros em missão comercial. Madel Luz observou que para defender, em primeiro lugar, os interesses econômicos do Estado português, foi preciso vigiar não só as condições sanitárias da cidade como também dos portos, considerados portas do Brasil para a civilização. 15 Segundo Roberto Machado, a t ransferência da corte portuguesa para o Brasil desencadeou transformações importantes para a relação entre o Estado, a sociedade e a medicina. O poder central, ao instalar-se, atribuiu a si próprio determinadas funções, entre elas garant ir o enriquecimento, a defesa e a saúde do povo da nova terra. Seguindo essas metas, D. João instalou em terras t ropicais algumas inst ituições existentes em Portugal. Também criou outras, que procuraram fazer do território brasileiro e de sua população objetos de conhecimento e intervenção, além de se const ituírem como focos de difusão de saber. Em outras palavras, o Brasil tornou-se um local que encerrava milhões de objetos dignos de observação e exame, passíveis de serem empregados em benefício do comércio, da indústria e das artes. Conhecer e t ransformar seriam, a part ir daí , os objet ivos que passariam a orientar a criação de inst ituições.16 Os cirurgiões prat icavam os atos operatórios mais comuns da época, tais como amputar, reduzir luxações e t ratar ferimentos e fraturas. Ainda sangravam, sarjavam, aplicavam ventosas e sanguessugas e extraíam dentes. Havia, entretanto, uma hierarquia a ser respeitada entre os cirurgiões que atuavam no Brasil, o que possibilitava diferentes graus de reconhecimento social e relações de poder entre tais profissionais. Uns começavam como aprendizes ou ajudantes dos mais velhos, e depois de iniciados na Arte eram examinados e recebiam a carta de cirurgiões-barbeiros. Os cirurgiões-aprovadosseguiam um curso teóricoprát ico em hospitais, submetiam-se a exame e obt inham uma carta que dava o direito de exercer todas as cirurgias conhecidas e, em alguns casos, a própria medicina, onde não houvesse médico ou físico. Muitos daqueles que prat icavam a medicina nesse período histórico eram conhecidos como físicos, não sendo, necessariamente, médicos diplomados. Finalmente, havia também os cirurgiões-diplomados, formados em escolas européias e que, por isso, gozavam de maior reconhecimento e respeito sociais.17 No Brasil, esses cirurgiões recebiam instrução e formação em algumas Santas Casas da Misericórdia e em certos Hospitais Militares. Somente em 1808, em caráter emergencial, D. João se preocupou em alterar ou criar, ou ambos, as inst ituições que coordenariam e regulariam as prát icas de cura, assistência e socorro. Entre aquelas que foram fundadas no Brasil, logo após a chegada da família real, merecem destaque a Fisicatura — órgão do governo encarregado de regulamentar e fiscalizar as prát icas de cura no Brasil18 —, a Escola de Cirurgia da Bahia e a Escola de Cirurgia do Rio de Janeiro. As duas Escolas de Cirurgia, a baiana e a carioca, t ransformaram-se, alguns anos depois, em Academias Médico-Cirúrgicas. Essas Academias concediam o diploma de cirurgião- aprovado e cirurgião-diplomado aos alunos que, devidamente, cursassem as diversas cadeiras obrigatórias.19 Segundo Nancy Stepan, a t radição médica, até a t ransferência da corte para o Brasil, caracterizava-se pela escassez de médicos, pela ausência de instalações para o ensino no país e, acima de tudo, pela alta incidência de molést ias epidêmicas, cujas causas eram desconhecidas por cient istas médicos até o fim do século XIX. Além disso, fora das cidades prat icamente não havia organização de saúde part icular ou pública, e a maioria dos brasileiros vivia em condições de pobreza e doença. Esse contexto histórico facilita a compreensão das razões de, somente no século XIX, os médicos brasileiros terem começado a estudar o suicídio no Brasil. Segundo Stepan, o principal est ímulo ao estudo médico no Brasil antes de 1808 foi o desejo de compreender as doenças e descobrir plantas com propriedades medicinais. Poucos médicos vieram ao Brasil para estudar a doença de maneira sistemát ica, ou prat icar a profissão. Ela ressalta que a vastidão do interior, a escassez da população colonial e sua dispersão, pouco fizeram para atrair médicos. Ao contrário das colônias hispano-americanas, o Brasil não possuía nenhuma escola de medicina antes do século XIX. Assim, pode-se dizer que poucos médicos licenciados com diplomas universitários prat icaram na colônia.20 Apesar de terem sido criadas prat icamente ao mesmo tempo, as Escolas de Cirurgia e as Academias da Bahia e do Rio de Janeiro apresentavam diferenças importantes, não só na proposta como na produção médico-cientí fica. Diferenças que cont inuaram presentes nas posteriores Faculdades de Medicina, inst ituídas em 1832. De recursos orçamentários às instalações, da biblioteca à seleção dos alunos, da influência dos professores à aceitação pública e social, essas diferenças eram sent idas cot idianamente. A influência e o prest ígio das Academias de Medicina européias e sua influência sobre essas inst ituições eram provados pela hierarquia entre os médicos e baseados em critérios de conhecimento acadêmico, que valorizavam aquele com formação mais próxima da concepção acadêmica européia de medicina.21 De constantes viagens até assinaturas de periódicos especializados, doutores e professores brasileiros iniciaram um intercâmbio com tais Academias e Faculdades. Diferentemente do que acontecia no Velho Cont inente, as Academias Médico- Cirúrgicas brasileiras formavam nossos cirurgiões até 1832, quando a Regência as t ransformou em Faculdades de Medicina de acordo com um projeto aprovado pela Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro.22 A mudança provocou uma reestruturação geral do ensino médico, abrangendo novas matérias e cadeiras. No final dos estudos, após a defesa de uma tese, o aluno obt inha o diploma de doutor em medicina. Algumas dessas teses foram dedicadas ao estudo do suicídio. Desse modo, foi a part ir de 1832 que as Faculdades do Rio de Janeiro e da Bahia começaram a formar os primeiros doutores em medicina no Brasil, inst itucionalizando concomitantemente o que passou a ser chamado de medicina oficial. A formação se dava independentemente das precárias condições, tais como a inexistência do ensino prát ico e de instalações apropriadas para as preleções. Foram esses médicos, nessas instalações, que começaram a produzir saber sobre o suicídio no Brasil; um saber masculino, pois era produzido pelos doutores brasileiros. Mas qual seria o perfil do médico formado pelas primeiras inst ituições brasileiras? As palavras do médico Ludnero Lapa sugerem algumas pistas: O médico é, pela dignidade de sua pro fissão, o primeiro , e o mais necessário homem da sociedade: ele emparelha, se não sobrepuja, com os indivíduos revestidos dos mais brilhantes títulos, quando une à extrema habilidade na arte de conhecer e curar as moléstias (sic), nome já não vulgar senão respeitável por seu gênio e pro funda sabedoria. Este tal médico, pelo muito que promove os progressos da ciência é o benfeito r da humanidade, e pela espécie de império que tem sobre a morte, é como uma divindade na terra.23 Aos novos homens da ciência médica brasileira foi atribuída a tarefa de zelar pela saúde da sociedade. Mas as duas Faculdades responsáveis pela formação dos benfeitores da humanidade apresentavam profundas diferenças, não só estruturais. A Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro gozava de situação melhor, com maiores recursos orçamentários, por estar situada na capital do Império e por agregar os mais expressivos professores do Brasil. Mas, apesar de certos privilégios, segundo alguns médicos da própria Faculdade, muito precisava ser mudado na inst ituição carioca. Principalmente instalações e aparelhagem, além da urgente subst ituição da orientação teórica por uma mais prát ica. Por agregar os profissionais de renome no país, por estar na capital e por proporcionar intercâmbio com prest igiadas Academias, a Faculdade carioca seguia muitas das doutrinas e princípios de outros centros, em especial os da medicina francesa, considerada por muitos o modelo a ser seguido. A esse respeito, Madel Luz destacou que o ensino médico no Brasil contava com uma bibliografia basicamente importada, em sua maioria francesa. Isso, porque prat icamente não exist ia, até então, literatura médica em português.24 Tal influência é visível nas teses sobre o suicídio, onde há muitas citações e referências aos estudos e teses de médicos franceses. A lei que criou as Faculdades de Medicina exigia o conhecimento de lat im e permit ia ao aluno optar entre o francês e o inglês, provavelmente pelo fato de não haver literatura médica em português naquele momento25, salienta Edler. Ainda sobre as diferenças entre as Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia, Herschmann observou que a primeira t inha tradição clínica e influência francesa. A segunda ingressou mais facilmente no campo experimental — patologia e bacteriologia — e t inha como orientação as teses alemãs e italianas.26 De acordo com essa orientação, era preciso implantar uma teoria que propusesse a fusão do saber médico e do jurídico. O médico Nina Rodrigues é apresentado por muitos estudiosos como o responsável pela propagação desse ideal e pela implantação de uma Medicina Legal no Brasil, via Faculdade de Medicina da Bahia.27 A esse respeito, é possível perceber que as diferenças entre as Faculdades foram reforçadas principalmente no início do século XX. No Rio de Janeiro, a ruptura da tradição retórica e clínica, própria do século XIX, foi possibilitada principalmente pela influência e trabalho de Oswaldo Cruz, além da fundação do Instituto de Soroterapia de Manguinhos. A produção médica carioca passou a se concentrar sobre duas especializações: a Saúde Pública e a Higiene. Por outro lado, no caso da Faculdade de Medicina da Bahia, é possível perceber, segundo Herschmann, uma assimilação do discurso da Medicina Legal produzida na Alemanha e na Itália.28 As implicações de tais diferenças foram claramente resumidas por Herschmann ao observar que, enquanto a tendência entre os médicos cariocas (logo em seguida à geração de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas) é combater principalmente as doenças (as epidemias) e os “maus hábitos” co tidianos da população, a tendência entre os médicos baianos, tendo como referência a obra de Nina Rodrigues (muitas vezes se opondo a alguns de seus pressupostos), era a de concentrar-se sobre o doente e as características transmissíveis de forma hereditária.29 Para ingressar na Faculdade, o estudante de medicina prestava concurso ou se submetia a exames de caráter preparatório. Uma das disciplinas exigidas era a Filosofia Racional e Moral. Era tal a importância dada a essa matéria que alguns lentes achavam necessário que os alunos fossem julgados com a mesma severidade que em outras disciplinas básicas. Segundo Madel Luz, a Faculdade era o espaço privilegiado onde se veiculavam idéias posit ivistas. Além do mais, a Biblioteca da Faculdade era rica em volumes sobre filosofia, e quase todos os t rabalhos médicos da época eram extensos em mostrar o conhecimento filosófico de seus autores.30 Desse modo, pode-se afirmar que a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1832, começou a formar os profissionais que se responsabilizaram pela saúde no e do Brasil. Mas uma outra inst ituição, a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, desempenhou um importante papel na História da Medicina no Brasil do século XIX. Criada por um seleto grupo de médicos em 1829, a Sociedade de Medicina, primeira associação médica brasileira, caracterizou-se por promover calorosos debates e discussões acerca dos distúrbios polí t icos e urbanos, para os quais acenava com uma proposta: uma sociedade ordenada e disciplinada. Para tal, denunciava os lugares da cidade que deveriam figurar como portadores de perigo urbano. Para Roberto Machado, a Sociedade foi, sem dúvida, o grupo mais representat ivo desse novo est ilo de medicina que lutou, de diversas maneiras, para impor-se como guardião da saúde pública. Criada sob inspiração francesa, buscou um projeto de medicina social inteiramente firmado naquele realizado na França pelas sociedades de medicina. Mas as novas concepções, tanto no que diz respeito à sua organização quanto à sua inserção na sociedade, art icularam-se às condições históricas da sociedade brasileira. Assim, a Sociedade de Medicina elaborou o saber da nascente medicina social brasileira e ajudou a planejar sua implantação na sociedade. Foi a part ir da sua criação que se formou o espaço cultural da medicina brasileira, quando os médicos, lutando em duas direções convergentes, elaboraram o conteúdo da medicina social e t raçaram os planos de sua implantação na sociedade. Além do mais, defenderam ferozmente o controle da formação e do exercício médicos, opondo-se ao que chamavam de charlatães. Ainda sobre essa inst ituição, Madel Luz destacou que a preocupação central da Sociedade não era devolver a saúde aos indivíduos, mas sim às cidades. Isto é, instaurar a ordem urbana, porque a doença das cidades, diferentemente da doença dos homens, não possuía, segundo tal posição, um substrato biológico. Possuía, sim, um mau funcionamento das inst ituições, a desordem, o desregramento moral do t ipo “apet ites pervert idos”, o crescimento desordenado, montanhas e pântanos que exalavam miasmas. São estes, segundo a autora, os problemas que mot ivaram as discussões e estudos da Sociedade. Cabe salientar que foram tais preocupações que const ituiram, também, o projeto de medicina social. Mudanças na cena polí t ica nacional possibilitaram um redirecionado das funções e do papel da Sociedade. Em 1835, a Regência t ransformou essa associação médica em Academia Imperial de Medicina. Depois de seis anos atuando como uma organização privada, a Sociedade foi reconhecida pelo Estado e t ransformada em Academia Imperial de Medicina — AIM. A part ir desse momento, ela estaria ligada aos aparelhos do regime que a promovera, à disposição de um Estado que atravessava um período conturbado durante o qual a ordem polí t ica e urbana era veiculada como necessidade fundamental. Toda a sua produção foi pautada pelo estudo do clima, da habitação, dos costumes e das condições sociais e geográficas, fazendo do corpo social, e não só do indivíduo enfermo, seu objeto de trabalho. Ao se preocupar com o esquadrinhamento do social, para alterá-lo a ponto de proporcionar e garant ir a promoção da saúde, a AIM transformou-se em peça-chave desse novo t ipo de medicina e dela dependeu, enquanto espaço inst itucional indispensável à produção, reprodução e divulgação do saber médico.31 Subvencionada pelo Tesouro Público, passou a ser considerada inst ituição oficial. Assim, deveria promover a ilustração, o progresso e a propagação das ciências médicas, socorrer os pobres nas suas enfermidades e beneficiar geralmente a humanidade, zelando pela conservação e melhoramento da saúde pública, além de favorecê-la . Tudo isso, porém, deveria ocorrer com a autorização e proteção do governo. Apesar de tamanha influência nos primeiros anos de vida, a AIM não conseguiu preservar essa sua característ ica. Um dos principais mot ivos do descrédito teria sido a centralizadora e majoritária dependência do governo. Além desses fatores, alguns outros impediram o consenso entre os médicos sobre a atuação e o papel da inst ituição. O desprestígio da corporação oficial, sua inoperância e a falta de recursos oficiais para a sua manutenção, foram fatores que minaram a inst ituição surgida da ant iga e produt iva Sociedade de Medicina. Muitos desses problemas da AIM foram denunciados pela imprensa especializada, como a Gazeta Médica do Rio de Janeiro, que periodicamente divulgava a crescente insat isfação da classe médica.32 Criadas pela AIM, as Faculdades de Medicina não passaram ilesas, e também foram alvo de crí t icas. Um exemplo foi o desconforto quanto à organização interna e à seleção de professores e alunos. O fato de os diretores das Faculdades de Medicina serem nomeados pelo governo, a part ir de listas feitas pelos professores, causava constantes desentendimentos. Muitos não concordavam com o poder usufruído pelo governo, de aceitar ou rejeitar os candidatos apresentados. Durante o século XIX, a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro teve momentos de replanejamento que a alteraram profundamente. Como sugeriram vários estudiosos já citados, da sua criação em 1832 até a Reforma de 1884, atuando a part ir de muitos outros regimentos e estatutos, a Faculdade passou por t ransformações, oriundas de muitos conflitos, debates e embates. No final do século, a inst ituição, que era o principal núcleo cientí fico de produção discursiva sobre o suicídio, apresentava a seguinte estrutura: ensino livre, não mais controlado irrestritamente pelo Governo; currículo ampliado, com o ensino deixando de ser quase que exclusivamente teórico e ampliando o leque para o ensino prát ico das disciplinas médicas; exames preparatórios mais rigorosos e um planejamento mais t ransparente da carreira docente, negando assim a ant iga rede de patrocínio no tocante à carreira dos professores e à incapacidade de um sistema selet ivo eficaz para os alunos; autonomia didát ico-pedagógica; regulamentação rígida e severa do exercício profissional; tendência à especialização e à constante segmentação dos objetos de pesquisa relacionados ao conhecimento sobre a natureza dos fenômenos fisiológicos e patológicos; perceptível melhoria das condições materiais; t ransformações estruturais quepermit iram o surgimento de novas especialidades clínicas, coadjuvadas pelas disciplinas médicas experimentais; criação de novas clínicas e laboratórios devido à ampliação do pessoal docente e por um t ipo de ensino que privilegiava a especialização e contato recorrente com as Faculdades e Academias européias, em especial as francesas. De uma forma geral, posso dizer, concordando com Machado, que foi implantado, por meio das inst ituições médicas até aqui relacionadas, um novo t ipo de concepção e de organização da medicina, a social. Mas é óbvio que essa implantação não se deu sem resistência, debate e lutas por poder. A cidade e seus habitantes t ransformaram-se em objetos de estudo e intervenção de saber médico. Esse saber permit iu e orientou a tarefa de esquadrinhar a sociedade na busca de perigos e de perigosos. A part ir desse momento, passou ser necessário garant ir a saúde. Homens, mulheres, brancos, negros, casados, solteiros, prost itutas, loucos, suicidas, jovens, idosos e alcoólatras, entre tantos outros sujeitos, tornaram-se objetos de um t ipo de medicina a que se deu a tarefa e a responsabilidade de impedir o aparecimento das doenças e controlar sua manifestação. Foi exatamente esse t ipo de medicina que permit iu a produção discursiva acerca do suicídio. Todas essas transformações apresentadas e analisadas colocam em xeque uma certa corrente historiográfica, que insiste em afirmar que estudos como os de Roberto Machado e Madel Luz, além de tantos outros que foram de alguma maneira influenciados por eles, encaram os discursos médicos produzidos no decorrer do século XIX como hegemônicos, monolí t icos e atemporais. Contrariando essa visão, penso que tais estudos salientam os processos por meio dos quais a medicina social se implantou, fez-se necessária e indispensável para garant ir a vida e a saúde das cidades e de seus habitantes. Esse processo foi possível graças às inst ituições médicas, em especial a Faculdade de Medicina; à atuação e ao combate de certos médicos brasileiros; às influências européias, suas filosofias e teses; às condições das cidades brasileiras; ao poder que era garant ido pelo saber cientí fico da nova medicina. A part ir do momento em que o ensino e a formação de médicos brasileiros foram efet ivados pelas inst ituições nacionais, todas as formas de medicina que não se enquadravam naquelas propostas foram consideradas ilegais. A esse respeito, Gabriela Sampaio destacou que os médicos cientí ficos, em oposição aos outros, feitos e considerados charlatães, tentaram fortalecer sua corporação em inst ituições existentes, como a Sociedade de Medicina, e t ravaram diversas batalhas para legit imar a autoridade, o poder e o prest ígio junto ao governo.33 A medicina legalizada e oficial, const ituída por médicos habilitados por escolas de medicina, criou e perseguiu aquela outra, agora mais do que nunca marginalizada e não autorizada a curar. Ao mesmo tempo que era preciso formar uma classe de profissionais iniciados na ciência e diplomados, buscou-se apresentar uma única tarefa para esse grupo: a de conduzir o país ao progresso cientí fico, rumo à modernidade e à civilização. Apesar das divergências teóricas e polí t icas, muitos dos médicos que circularam na Academia Imperial de Medicina e na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro concordavam quanto à urgência em criar a classe profissional que ajudaria a modernizar a cidade, tornando- a mais saudável. Mais uma vez, cabe ressaltar que modernizar a cidade significava não apenas realizar reformas urbanas, mas também medicalizar toda a sociedade, ou seja, intervir nos hábitos e costumes das pessoas, ditando novas formas de relações familiares e novos padrões de comportamento. Outro aspecto a ser retomado como conclusão é a presença, que pode ser menosprezada, da classe médica — independente de suas divergências, debates e lutas polí t icas internas — no governo, como membro ou aconselhando-o em períodos de epidemia. No caso específico do Rio de Janeiro, Nancy Stepan salienta que as autoridades nacionais e municipais, cujas responsabilidades pelo saneamento se superpunham em muitas áreas, combinavam-se com os médicos da Esco la de Medicina e os membros da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro para cuidar das epidemias quando elas surgiam.34 Os médicos part iciparam at ivamente, e não só ao longo do século XIX, dos principais debates nacionais, e ajudaram na tarefa de civilizar e modernizar cient ificamente o país. Isso se deu durante um processo que não se efet ivou da noite para o dia, mas que foi forjado em meio a conflitos, disputas e constantes intervenções na e da vida pública e privada. As inst ituições médicas brasileiras se preocuparam em propor um t ipo de ordem urbana que convinha e solidificava o t ipo ideal que o Estado necessitava naquele momento histórico. As relações de poder permit idas e const ituídas pela medicina social, formulada e proposta por inst ituições nacionais a part ir do século XIX, permit iram que essa nova medicina ampliasse seu olhar para um vasto horizonte. Essas possibilidades transformaram a cidade, a paisagem, o clima, as moradias, os indivíduos, seus gestos, comportamentos, hábitos e, de uma fora geral, as formas de viver e morrer, em temas de estudo e intervenção, para garant ir a vida social e individual. Assim agindo, criaram e difundiram significados, modos de ver, pensar e intervir que corroboraram e legit imaram historicamente novas formas de saber e de poder. CAPÍTULO II — NA ÓRBITA DAS DOENÇAS E DOS DISTÚRBIOS MENTAIS Numa passagem do livro Suicídio: Modo de Usar, os autores anarquistas Guillon e Le Bonniec tentaram estabelecer alguma ligação entre duas prát icas consideradas interditas, que buscavam no corpo humano a prova do pecado, do crime e da ignomínia: Na Idade Média, os carrascos se empenhavam em achar no corpo das mulheres acusadas de bruxaria o ponto da epiderme insensível à dor, cuja existência provava a relação das supliciadas com Satã. Inútil dizer que, após horas de tortura, era fácil descobrir a famosa marca da infâmia. Os médicos do século XIX, que destroçam os cadáveres dos suicidas, também acabam achando aquilo que procuram, a marca, o sinal, a prova. Gall considera o crânio dos suicidas mais espesso, Loder observa um corpo caloso e mole, Cabanis percebe um teor de fósforo superior à média, Calmeil encontra marcas certas de amolecimento cerebral. Jousset, Bourdin, Esquiro l (este último reconhece que suas dissecações não deram resultado) declaram todos que o suicídio é uma doença mental ou um sintoma da doença. O suicídio não passa de uma categoria de loucura.1 O descrito pelos autores indica que na Europa, desde o final do século XVIII, era nos corpos daqueles que se matavam que os médicos procuravam as respostas, os sinais e/ ou as provas para as suas teorias sobre o suicídio. Ao longo do século XIX, a maioria dos estudos médicos brasileiros sobre o suicídio part iu da seguinte questão: o suicídio é um t ipo de doença, molést ia ou distúrbio mental? Uma tendência notada nos estudos é a de vincular o suicídio a um referencial patológico. Após buscarem respostas e esboçarem conclusões, procuraram apontar as causas e os respect ivos sintomas do suicídio. Para os médicos brasileiros, os indivíduos que se matavam — os chamados “suicidas” — podiam ser alienados, loucos ou pessoas que não agiam de acordo com o livre arbí t rio. Em outras formulações, t ratava-se de doentes que, sem necessariamente serem loucos ou alienados, apresentavam algum t ipo de alteração em suas faculdades mentais. Eram vistos como portadores de vários t ipos de perturbação mental, indivíduos sem inst into de conservação, doentes que sofriam de algum t ipo de neurose, como a histeria ou algo semelhante. Com essas referências, muitos médicos no século XIX afirmaram que os casos sem nenhuma explicação ou causa aparente teriam sidoproduzidos por algum t ipo de desarranjo, distúrbio ou desequilíbrio mental. Direcionaram, assim, o olhar e a atenção para as dimensões patológicas do fenômeno, e era nessa esfera que a resposta deveria ser formulada. Como observou Herschmann, a medicina do século XIX em vez de anunciar a morte passou a cuidar da ‘saúde dos corpos’; assim agindo foi possível buscar e encontrar o perigo, que não estaria mais no clima e nem na saúde, em nós mesmos.2 Por ser o referencial patológico importante na temat ização do suicídio, problemat izei o jogo de regras, os conceitos e as verdades produzidas pelo saber médico na invest igação desse ato, t ransformando-o, assim, em objeto de estudo e intervenção. Apesar dessa temat ização ter procedido da produção acadêmica e intelectual das primeiras inst ituições médicas brasileiras do século XIX, a tendência de reconhecer no ato de se dar à morte algum t ipo de doença, molést ia ou sintoma mental, como por exemplo a loucura ou a melancolia, era recorrente na Europa desde o século XVI, onde se localizavam as principais Academias Médicas que influenciaram a produção médica cientí fica brasileira. LOUCURA E SUICÍDIO: HISTÓRIA, CAUSAS E EXPLICAÇÕES Vários estudos sugerem que a loucura foi, desde o século XVI, ut ilizada como causa para explicar a morte voluntária.3 Contudo, essa “loucura” é diferente daquela outra que se configurou na e pela medicina social, ou seja, entre o final do século XVIII e início do século XIX. Até meados do século XVIII, e, portanto, anteriormente à modernidade, a loucura ainda não t inha sido instalada na ordem das doenças que exigiam tratamento médico. Ela ainda não era um objeto considerado “exclusivo” desse saber.4 A esse respeito, o historiador Georges Minois foi taxat ivo, ao afirmar que um t ipo específico de loucura foi ut ilizado em grande escala para explicar a morte voluntária desde o século XVI, quando passou a ser possível empregá-la como desculpa e fuga diante do pungente problema do pecado, que nutria e fermentava o imaginário acerca da morte voluntária daquele período histórico. Perseguida pela miséria, morte, obsessão do pecado e medo do inferno, a humanidade teria, segundo Minois, embarcado na Nau dos Loucos.5 Após essa problemat ização inicial, os estudiosos do tema detectaram no crescente domínio da razão sobre a loucura — característ ico do século XVIII — uma descont inuidade, uma nova maneira de problemat izar o ato de se dar à morte. A principal característ ica do debate sobre a morte voluntária, no chamado século das Luzes, foi a abertura para novas possibilidades de questões e respostas. Aos poucos, a morte voluntária tornou-se objeto de calorosas discussões filosóficas, contribuindo desse modo para a sua desmist ificação e secularização. A part ir do século XVIII, foram as explicações físicas, naturais, e até mesmo sociais, que subst ituíram as ant igas explicações sobrenaturais. Como argumentou Peter Gay, por mais de um milênio a Igreja condenou o suicídio como pecado, e no início do período moderno, seguindo essa orientação, o Estado colocou-o na lista de crimes.6 Após a Reforma, a Igreja anglicana e as seitas protestantes também não abriram mão de tal severidade: o impulso de autodestruição era uma tentação do demônio. Assim, por muito tempo, negaram ao suicida os ritos religiosos e o enterro cristão a que os mortais comuns, pecadores menores, t inham direito. Em lugar da perseguição e do peso do pecado, dos demônios e das forças malignas, a liberdade individual de decidir pela vida ou morte passou a encabeçar a lista das causas de morte voluntária. O fato de uma existência não ser considerada digna, junto de considerações em torno dos limites da liberdade humana, foram questões arduamente invocadas em diversos trabalhos, principalmente os filosóficos, sobre o tema. Entre os pensadores que se dedicaram ao estudo do suicídio no século XVIII, citados e/ ou crit icados em teses médicas, destacaram- se Charles de Secondat Montesquieu e François Marie Arouet, o iluminista dito Voltaire. Montesquieu desenvolveu sua análise sobre o suicídio a part ir de t rês questões gerais. Em primeiro lugar, crit icou a repressão jurídica, pois para ele o suicídio não era um delito. Depois procurou apontar que esse t ipo de morte não era uma falta cometida contra a sociedade, e concluiu indagando se esse t ipo de morte era ou não uma “perturbação” da ordem divina, da Providência. Estas questões são encontradas em suas Lettres Persanes — em especial a de número setenta e seis —, onde a crí t ica e o sarcasmo também estão presentes para desmantelar todas as argumentações contrárias.7 O filósofo salientou que as leis da época que puniam o suicida eram injustas. A única coisa que conseguiam fazer era matar pela segunda vez esses sujeitos, pois arrastavam os cadáveres pelas ruas, infamavam o morto e confiscavam seus bens. Ficou explícito em Montesquieu o uso que ele fez das indagações, para causar incômodo e interrogar os que viam no suicídio um ato nocivo à sociedade, no lugar de apresentar certezas e respostas prontas, racionais e acabadas: Por que querem que eu trabalhe para o bem de uma sociedade que decidi abandonar e que eu cumpra, contra a vontade, uma convenção que nem mesmo firmei? Respondeu ele: A vida me foi concedida como um favor; posso, pois, devolvê-la, quando ela deixa de sê-lo. Dessa constatação, surgiu uma posição possível: cessando a causa deve também cessar o seu efeito! Finalmente, para indicar que o suicídio não perturbava a suposta ordem divina, indagou: Quando minha alma estiver separada do corpo, haverá menos ordem e harmonia no Universo? Pensas que essa nova combinação será menos perfeita, estará menos sujeita às leis gerais? Que com essa mudança terá perdido alguma co isa? E que as obras de Deus serão menos elevadas ou, melhor dizendo, menos imensas?8 Com o mesmo propósito de crit icar as sanções religiosas e civis, analisar as razões que levavam um homem ao suicídio e apresentar as aberrações e absurdos nas condutas humanas sobre a questão, Voltaire se debruçou sobre o tema. Segundo Minois, o principal est ímulo do filósofo francês foi a vontade de denunciar a “execrável farsa” que é a história do mundo, de fazer os homens voltarem-se para si mesmos, além de fazê-los sent ir que nada mais são do que ví t imas da morte.9 Da miséria às paixões contrariadas, as causas do suicídio foram analisadas por Voltaire. Dentre elas, destaco três. Para desenvolver suas análises sobre a influência hereditária, ele estudou o caso de um homem considerado “sério” — sem paixões ou vícios —, que se suicidou com a mesma idade em que o pai e o irmão também se suicidaram. Como seria possível esse “efeito oculto” levar vários membros de uma mesma família ao suicídio, pelos mesmos meios e todos com a mesma idade? Esse viés para explicar o ato de se dar à morte, juntamente com outros já conhecidos por Voltaire, consolidou a descriminação do ato e reforçou a imagem do suicida enquanto um sujeito doente, e por isso não responsável por seus atos e escolhas. Destaco também a recusa por parte do filósofo em aceitar a recorrente acusação de covardia atribuída ao suicida. Isto porque, para Voltaire, seria preciso ter uma alma muito forte e uma extraordinária força de caráter para sobrepor-se ao inst into de conservação. Para ele, o suicida poderia ser muito mais do que um homem fraco ou um soldado desertor. Dessa maneira, as possibilidades de pensar o suicida deveriam ser abertas pelo próprio sujeito, durante sua vida. Ao estudar a loucura como causa de morte, Voltaire destacou a ociosidade como fator favorável ao desenvolvimento das tendências suicidas. Para provar sua teoria, ut ilizou o exemplo do trabalhador. Um homem que devidamente ut ilizasse o seu tempo para o cumprimento de suas at ividades profissionais não t inha ocasião para ficar melancólico ou para se matar. Assim, para este filósofo, um dosmeios seguros de não ceder à vontade de se suicidar seria o t rabalho, qualquer t ipo de at ividade que contribuísse para o desenvolvimento; estar sempre ocupado, t rabalhando ou fazendo qualquer coisa. O remédio para aqueles melancólicos e passíveis de cometer um ato como o suicídio era um pouco de exercício, de música, de caça, de comédia e, em últ imo lugar e de acordo com sua visão em torno dos campos masculino e feminino, uma mulher. Mas não qualquer mulher escolhida a esmo, porque ela deveria ser, antes de tudo, amável. Seu conselho final pode ser assim resumido: se você decidir se matar, deixe passar pelo menos oito horas antes de executar o ato. Será surpreendente como, por meio de seu inst into de conservação, você deixará de lado esta idéia! Naquele contexto histórico, Voltaire foi muito crit icado por proclamar a diversidade de razões individuais; por afirmar não ser o suicida “naturalmente um pecador” — o que agia contra a vontade de Deus —, uma vez considerado doente, hereditariamente contaminado ou um criminoso — que não respeitava as leis da sociedade —; por denunciar o absurdo das leis penais do chamado Ant igo Regime; por permit ir uma outra possibilidade interpretat iva e de classificação para o suicida, que poderia não mais ser visto exclusivamente como responsável por seus atos. Neste caso, teria a sua culpa, responsabilidade e penalidade reconsideradas, e seus atos seriam minimizados e/ ou negados. Voltaire apresentou questões que nutriram o debate, abriram perspect ivas e ampliaram algumas possibilidades desenvolvidas por filósofos que o antecederam.10 Por tudo isso, cont inuou sendo muito crit icado no século XIX, principalmente por médicos que se esforçaram em fazer do suicídio um objeto de sua ciência. O século XVIII marcou sua singularidade ao proporcionar uma abertura ao debate sobre o suicídio, permit ido em vários t ratados. Um dos resultados foi torná-lo público. Nunca falou-se ou escreveu-se tanto sobre a morte voluntária como ao longo do século XVIII; t ratados inteiros foram escritos a favor ou contra esse t ipo de morte. Os filósofos não ficaram indiferentes à questão, ao contrário, seus escritos inflamaram posições e provocaram fervorosas discussões. Com a ajuda inest imável das novidades do pensamento filosófico, a morte voluntária — até então problemat izada como crime contra Deus, sociedade e leis, ato destruidor de famílias e pátrias, causa da danação eterna e da infelicidade — passou a ser problemat izada a part ir do viés da liberdade de ser ou não ser. Nesse contexto de mudanças na problemat ização, o termo suicídio foi criado e ut ilizado pela primeira vez.11 A moral racional do século XVIII, considerada mais maleável e crí t ica que a da Igreja e a do Estado absolut ista, apoiou-se em aspectos e valores mais humanos que religiosos para pensar o ato de se dar à morte. Como bem destacou Minois, para os filósofos que se dedicaram ao estudo do tema, os homens se matavam porque sofriam física ou mentalmente, e não por pressões e induções sobrenaturais. Como para incitar as posições contrárias, muitos desses pensadores acusaram o clero de cult ivar o medo da morte por causa daquilo que a seguia — o julgamento divino, o inferno e a danação eterna.12 Neste sent ido, a questão filosófica delineada foi a de reivindicar ou não a total liberdade de dispor da própria vida, saber até que ponto o ato de se dar à morte seria uma at ividade da liberdade individual. Mas não foi fácil mapear as posições e os argumentos que permit iram o debate, e o que imperou foi o jogo de nuanças. Contudo, é possível observar, em quase todos os estudos, a preocupação em responder detalhadamente às crí t icas e censuras em torno da morte voluntária. Por isso, a repressão e a censura a priori de todos os casos de suicídio foram energicamente denunciadas e recusadas por filósofos do século XVIII. Ao mesmo tempo em que o olhar e os saberes passaram a privilegiar as razões individuais — os indivíduos —, o suicídio passou a ser, nas palavras de Minois, um dos favoritos objetos de reflexão.13 Em lugar de forças e das influências sobrenaturais, passaram a privilegiar os homens que viviam em sociedade, passíveis de doenças (como a loucura), desgostos, paixões, pobreza, t irania e superst ição: ordens históricas dos discursos, contextos e relações de saber-poder que const ituiram visibilidades e dizibilidades possíveis sobre o suicídio. Nesse sent ido, Peter Gay argumentou que, embora tenha sido denunciado por séculos como pecado e crime, o suicídio foi reclassificado duas vezes durante o século XIX e, para muitos, ficou livre do est igma moral. Segundo ele, os vitorianos descobriram ser o suicídio o resultado patético de desarranjos mentais14 e, após gozar por décadas desse diagnóst ico, teria sido juntado à delinqüência juvenil, à prost ituição e aos crimes contra a propriedade, enquanto problema social.15 Mesmo os filósofos considerados contrários à morte voluntária, como Diderot16, não aceitavam as punições impostas àquele que se matava. As causas então em jogo não eram mais suficientes para o debate que se delineava; as sanções contra o cadáver do suicida e suas famílias eram explicitamente repudiadas: tensões discursivas, sociais e históricas. É interessante observar que, prat icamente, nenhum teórico do suicídio se entregou à morte voluntária durante o século XVIII. Uma explicação plausível pode ser o fato de que os ilustres suicidas da Antiguidade lhes inspirassem ‘somente’ admiração .17 Dessa maneira, o limite para os filósofos era o próprio debate, pensar o ato de se dar à morte, suas causas, reações e respostas sociais. No século da Luzes, em meio ao debate sobre a liberdade humana, a loucura — uma outra causa do suicídio — gradat ivamente recebeu destaque. Submetida à ordem do racional e demarcada por oposição à razão, a loucura foi historicamente t ransformada em desrazão. Na e pela modernidade, a loucura foi t ransformada em doença mental, causa principal de suicídio, além de ser convert ida em objeto de conhecimento e configurada como patologia. Nas listas de causas de morte voluntária, tecidas e apresentadas pelos pensadores do século XVIII, a loucura estava presente ao lado de tantas outras causas, mas ainda não recebia o destaque e o interesse que marcaram o século seguinte. Desse modo, a loucura, ao se tornar uma forma relat iva à razão e ao ter sent ido e valor somente no próprio campo desta, permit iu o surgimento de novas questões18: como dist inguir, em uma ação considerada prudente, se ela foi comet ida por um louco? Como dist inguir, na mais insensata das loucuras, se ela pertence a um homem normalmente prudente e comedido?19 Não por acaso, indagações como essas começaram a surgir em estudos e análises, que tentaram explicar o suicídio de um indivíduo que aparentemente não t inha nenhuma causa razoável para cometê-lo. Ao longo do século XIX, a loucura começou a ser usada como just ificat iva ou condenação do ato. O sujeito que se matava pôde ser visto por meio de outra imagem aderida a ele: a do louco. A consciência da dist inção entre a loucura e a razão permit iu a (re)elaboração da problemát ica. A part ir de então, buscou-se dist inguir entre a responsabilidade ou não do ato. Com essa questão e dúvida, tornaram-se necessários olhares precisos e constantes diagnóst icos. Assim, em todos os casos de morte voluntária onde houvesse incerteza sobre o estado mental do sujeito, fazia-se necessário um exame médico-cientí fico para assegurar a exat idão do diagnóst ico, baseá-lo nas formas do conhecimento cientí fico. Foi, portanto, a experiência médica cientí fica, social e masculina do século XIX, que passou a ordenar os conceitos, as referências, os diagnóst icos e prognóst icos em torno do suicídio, visando encontrar sua verdade total e final. Para que fosse legit imado, o saber médico recusou todos os discursos que não se enquadravam emtais perspect ivas e orientações. Paulat inamente, como fruto de um minucioso processo, o saber médico rechaçou todo e qualquer saber sobre o suicídio que não fosse produzido no âmbito da medicina social, própria do século XIX. É preciso destacar que, na modernidade, denominou-se doença mental a união entre a incapacidade jurídica do indivíduo e um distúrbio que afetasse a vida social — duas questões presentes nas teses médicas que ut ilizaram o referencial patológico para invest igar a natureza do suicídio. De acordo com Peter Gay, o diagnóst ico do suicídio como o mais desesperado recurso da doença mental entrou em moda por volta de meados do século, e abriu a porta para esforços “humanitaristas” de prevenção. Reforçou, também, uma disposição para a piedade; clérigos e juízes simpat izantes havia muito se agarraram aos veredictos de melancolia incurável ou de insanidade momentânea, para liberar os suicidas da responsabilidade moral e, portanto, do pecado mortal. A part ir daí , as décadas vitorianas tornaram-se a idade clássica da alegação de insanidade para os suicídios.20 Com a modernidade, abriram-se outras possibilidades para explicar o suicídio e pensar o sujeito que o prat icava. Pode-se dist inguir no suicídio a parte da loucura e a parte da razão. Ao se dedicarem ao tema, os médicos da medicina moderna e cientí fica ut ilizaram e difundiram a já habitual e histórica oposição entre loucura e razão e, em conseqüência, a oposição entre irresponsabilidade e responsabilidade. Por agir sem o pleno uso da razão, o sujeito que se dava à morte poderia também não ser o responsável absoluto por seus atos. Concomitantemente à temat ização da morte voluntária provocada pela loucura, e por mais paradoxal que pudesse parecer, foi criada a alternat iva da inocência.21 Desse modo, o suicida podia ser visto e classificado como um sujeito não responsável por seus atos, por agir sem o pleno uso da razão. Essa inovação, presente em muitos t rabalhos médicos do século XIX, de fazer a diferenciação entre a morte provocada por loucura — que apresentava um sujeito não responsável por seu ato — daquela resultante da “deliberação racional” — que impunha culpa e penalidades ao sujeito que voluntariamente teria t ransgredido leis naturais e sociais —, sinalizou uma discreta, mas possível, oportunidade aberta ao sujeito de decidir pela vida ou pela morte, tendo como pano de fundo o pleno uso da razão ou da loucura, o desarranjo mental. Tal possibilidade classificatória, inst ituidora de sent idos e verdades, como veremos ao longo deste livro, foi fervorosamente combat ida em prol de uma postura regrada, de um comportamento disciplinado, de uma vida controlada e normat izada, para assim conjurar o perigo social representado pelo suicídio. O suicídio, visto por muito tempo como pecado mortal, pôde ser perdoado ao ser patologizado: uma visão muito invocada, principalmente pelos mais abastados, para evitar certas censuras, constrangimento para a família ou perda de privilégios. Podemos constatar que a loucura tem usos históricos para finalidades diversas, essas também históricas! Além disso, comprova que o próprio discurso é um acontecimento que deve ser explicado historicamente. O que os períodos anteriores ao século da medicina social permit iram e ofereceram foi o início de novas possibilidades de ser, exist ir e morrer. Se para muitos buscar a própria morte era pecado, para outros era uma loucura. Havia ainda aqueles que pregavam a importância da decisão individual de cont inuar vivo, pautada por uma moral histórica e passível de sanções. A temat ização do suicídio por diferentes áreas do saber é incontestável. Os discursos médico, religioso, polí t ico, jurídico e filosófico, entre outros, part iciparam do debate ao longo do século XVIII, principalmente na Europa, de forma pública, agremiando fervorosos defensores ou indignados acusadores. Já no século XIX, o debate foi prat icado por novos sujeitos e limitado por diferentes fronteiras. O “ser ou não ser”, repet ido durante o século XVIII, foi tornado “inconveniente, incongruente, chocante”, e os resultados alcançados durante toda a Renascença e o século das Luzes foram ofuscados ou transformados em problemas menores.22 Depois das inovações do século XVIII — de direcionar o debate para a liberdade individual, de tentar ver no suicídio uma afirmação da liberdade humana, de repudiar as sanções e as acusações aprioríst icas, de publicar inúmeros tratados sobre o assunto, de lutar para aqueles que tentaram por fim a seus dias não fossem penalizados, de ser aberta a possibilidade de falar crit icamente sobre a questão — , o século XIX impôs novas regras: o silêncio, as possibilidades restritas de fala, ou ainda, o princípio da interdição de quem podia, de fato, dizer algo sobre o suicídio. Mas esse silêncio e os procedimentos de exclusão de discursos t inham finalidades específicas: controlar, selecionar, valorizar e excluir. No século XIX, somente estariam autorizados a explicar o suicídio — origens e causas — aqueles que det ivessem o saber cientí fico para isso. Além do mais, se era possível buscar explicações, a legit imação do ato de se dar à morte estava fora de questão. Desde o início do século XIX, o suicídio passou a ser visto como um mal: mental, moral, físico e social. Nesse jogo de regras e regimes de verdade, a única forma negada para pensar o suicídio foi a manifestação da liberdade humana. Assim, novos enunciados foram produzidos e divulgados como verdadeiros; os ant igos foram proibidos e excluídos, t ransformados em anacrônicos. Quanto ao sujeito autorizado a falar e a se ocupar do tema, é necessário observar que, se no século XVIII t ínhamos o filósofo como o principal problemat izador da morte voluntária, no século XIX esse papel foi ocupado pelo médico, aquele que det inha o saber cientí fico sobre o corpo e as doenças. Desse modo, foi const ituído um novo domínio de objeto. A part ir daí , o médico social começou a afirmar ou negar proposições, verdadeiras ou falsas, acerca do suicídio, const ituindo-o como um tema cientí fico e masculino. Se houve uma ruptura em relação a quem estava autorizado a falar sobre o suicídio, houve também aquilo que se operou no nível dos conceitos, verdades e posit ividade do saber. O princípio sobre o qual a medicina moderna e social se organizou para temat izar o suicídio foi diferente daquele observado nos discursos do século XVIII. No lugar do debate em torno dos limites da liberdade humana, o foco foi direcionado para um saber do indivíduo como corpo doente, que como tal deveria ser t ratado e curado. É preciso ressaltar que não afirmo terem sido apenas os filósofos no século XVIII e os médicos no século XIX os produtores de saber e de conhecimento sobre o suicídio, ou mesmo que nenhum médico tenha se preocupado em responder se o ato era ou não fruto da liberdade humana. Em todos os estudos consultados, percebi uma mesma preocupação dos autores em apontar uma diversidade de áreas do saber — como a religião e a polí t ica — que se interessaram pelo estudo e debate. Contudo, admito que foram os filósofos no século XVIII e os médicos no século XIX os principais sujeitos que definiram, via saber, as regras e as verdades sobre o suicídio, seja pela autoridade atribuída às suas verdades ou até mesmo pelo prest ígio alcançado historicamente por suas áreas de saber. A esse respeito, Foucault advert iu, e é importante ressaltar, que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. Entre os procedimentos ut ilizados para o controle dos discursos, destaca-se a rarefação dos sujeitos que falam, ou melhor, dos sujeitos que podem falar. De acordo com essa posição,ninguém entraria na ordem do discurso se não sat isfizesse certas exigências, ou se não fosse, de início, qualificado para fazê-lo. A qualificação era, pautada pelos critérios da ciência, a posse do saber cientí fico sobre os corpos e sobre as doenças.23 Para definir o que poderia ser dito, que t ipo de questões e conceitos ut ilizar, era preciso deter um saber. A relação de saber/ poder que caracterizou esse período era marca, não acidental, da medicina social. Lembro, mais uma vez, que essa medicina social, através de sua racionalidade e programa, deveria impedir o aparecimento das doenças e controlar a sua manifestação. A população, vista como portadora de perigo proveniente de um comportamento desregrado, precisava ser observada, ordenada e medicalizada. Com essa finalidade posit iva do poder, o suicídio foi estudado para ser compreendido cient ificamente, para que fossem propostas medidas profilát icas para erradicar do meio social tudo o que pudesse impelir, favorecer ou até mesmo induzir à morte. Neste sent ido, o discurso médico sobre o suicídio foi discurso para e sobre a vida, mas uma vida controlada, regrada, ordenada, normat izada. Em outras palavras, atuando sobre uma massa confusa, desordenada e desordeira, o esquadrinhamento disciplinar faz nascer uma multiplicidade ordenada no seio da qual o indivíduo emerge como alvo de poder.24 O discurso médico começou a problemat izar o suicídio a part ir dos desarranjos, desequilíbrios e problemas mentais. Por incidir sobre os corpos, buscou e encontrou a maioria das causas, e mesmo da “sede” do suicídio no corpo humano, em seus órgãos, em sua economia, em seus desarranjos, imperfeições e anormalidades. Quando os médicos brasileiros começaram a temat izar o suicídio, no final da primeira década do século XIX, já havia uma tradição européia de pensar o tema. Se os brasileiros que part iciparam do projeto de implantação da medicina social no país ut ilizaram referências européias, para classificar e apresentar muitos casos de suicídio como fenômenos naturalmente ligados ao universo das doenças e perturbações mentais, é preciso sublinhar que as teorias européias associaram-se ao contexto brasileiro. Se muito da teoria sobre o suicídio veio do velho cont inente, o contexto analisado pelos médicos da Faculdade e da Academia de Medicina foi outro, o brasileiro. Com isso, nego a idéia simplista e ingênua de pura importação de idéias e modelos interpretat ivos. O que se percebeu foi a apropriação e a (re)valorização de nuanças, destaques e seus desdobramentos. Os médicos brasileiros tentaram responder ao problema nacional, apesar da influência européia. Devo, portanto, apresentar o como e o porquê da criação desse modelo de referência. MÉDICOS À PROCURA DE PERIGOS E DE ORIGENS PATOLÓGICAS Neste ponto da análise, pode parecer fora de lugar falar em Nietszche. Contudo, em sua Genealogia da Moral, ele me intrigou ao analisar como são inst ituídos os valores, as hierarquias e suas ut ilidades, além de sugerir uma maneira para quest ionar os modos por meio dos quais as apropriações são possíveis. Suas palavras me auxiliaram a problemat izar e a entender os discursos médicos brasileiros sobre o suicídio e a ânsia por estudar, compreender e intervir: Foram os ‘bons’ mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu. Desse pathos da distância é que eles tomaram a si o direito de criar valores, cunhar nomes para os valores: que lhes importava a utilidade! Esse ponto de vista da utilidade é o mais estranho e inadequado, em vista de tal ardente manancial de juízos de valor supremos, estabelecedores e definidores de hierarquias: aí o sentimento alcançou bem o oposto daquele baixo grau de calor que toda prudência calculadora, todo cálculo de utilidade pressupõe — e não por uma vez, não por hora de exceção, mas permanentemente. O pathos da nobreza e da distância, como já disse, o duradouro, dominante sentimento global de uma elevada estirpe senhorial, em sua relação com uma estirpe baixa, com um “sob” — eis a origem da oposição “bom” “ruim”. (O direito senhorial de dar nomes vai tão longe, que nos permitiríamos conceber a própria origem da linguagem como expressão de poder dos senhores: eles dizem “isto é isto”, marcam cada co isa e acontecimento com um som, como que apropriando-se assim das co isas).25 Como se percebe, os pensamentos de Nietszche e Foucault estão muito próximos, pelo menos quando problemat izam os lugares de fala, discurso, conhecimento e saber, e quando ident ificam os sujeitos considerados historicamente como “superiores” em posição e pensamento — como os médicos, que detêm o saber sobre o corpo, a doença e a saúde e que definem, julgam e avaliam atos, comportamentos, gestos, pessoas, população e cidades como sendo bons, úteis, necessários, normais, saudáveis ou não. Ao fazê-lo, os cient istas da medicina — homens, esclarecidos, cultos e, talvez por isso, considerados “superiores” — cunharam sent idos, possibilitaram verdades e divulgaram, em terras brasileiras, uma maneira específica de pensar o suicídio: por meio da esfera patológica. Assim, inserindo-se nessa perspect iva de trabalho, nessa ânsia de tudo invest igar para tudo aperfeiçoar e medicalizar, o médico Muniz Barreto26, no início da década de 1840, ou seja, quase uma década depois da criação da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, se propôs estudar as enfermidades dos homens de letras. Ao fazê-lo, destacou a possibilidade desses homens — ele não faz referência às mulheres —, se suicidarem em conseqüência do est ilo de vida escolhido. Mas se foi o suicídio temat izado biologicamente, como se deu tal temat ização? O suicídio foi definido como uma alteração do juízo, ou seja, como um distúrbio da faculdade intelectual, faculdade essa que, segundo o facultat ivo, compara e julga, que aprecia e avalia, inclusive, a conveniência ou não dos atos, das escolhas e decisões. O que causaria tal alteração? O Dr. Muniz Barreto recorreu ao estudo dos considerados por ele principais órgãos do corpo — o estômago, os rins e o fígado. A alteração do tecido desses órgãos modificaria a ordem e a natureza de suas funções. Assim, a desordem provocada pela alteração dos tecidos atrapalharia o bom funcionamento dos órgãos e, como conseqüência direta, afetaria as faculdades do entendimento, entregando o homem de letras ao suicídio. Em suas palavras: A alteração mais ou menos pro funda do tecido dos principais órgãos de vida interio r, cujos efeitos se fazem especialmente refletir sobre a natureza e o caráter das idéias, nos o ferece também provas as mais evidentes da ação que exercita cada um dos seus órgãos sobre o cérebro .27 Apesar de também estar preocupado com os fatores externos — a influência do meio social e a vida sedentária, sem movimento —, a atenção de Muniz Barreto foi centralizada nos órgãos, e o enfoque direcionado à esfera patológica. Se a causa primordial do suicídio entre os homens de letras foi encontrada na desordem de certos órgãos, devo salientar a influência que essa desordem exerceu sobre o cérebro — órgão que, como sublinhou o médico, comanda o raciocínio, o pensar e o reflet ir. Numa escala de valores — ou poderia até mesmo dizer — de acordo com uma hierarquia biológica, a desordem nos rins, estômago e fígado afetava o centro de controle do corpo humano, o cérebro, que uma vez afetado, levaria o sujeito a cometer atos que nunca ousaria em “estado normal”. A alteração do juízo fazia, por exemplo, um indivíduo evitar a companhia de parentes e amigos; cair em desânimo profundo; desconfiar de todos; t ransformar-se em ví t ima de receios quiméricos, chegando ao ponto de estar atormentado por uma tendência horrível para o suicídio.28 A mesma perturbação do juízo,e por analogia a alteração do órgão do pensamento, foi invocada pelo Dr. Fonseca Vianna, em suas Considerações Hygienicas e Medico-legaes sobre o casamento relativamente a mulher. Nesses escritos, o Dr. Fonseca Vianna discorreu sobre a constante impetuosidade dos desejos, que fazia moças inflamadas de amor caírem em um estado profundo de melancolia. A melancolia, também entendida como uma perturbação mental, arrastava as jovens, sobretudo as donzelas, à solidão, ao silêncio, à dor, ao desespero e, finalmente, ao suicídio.29 De acordo com a compreensão do Dr. Fonseca Vianna, somente em estados anormais — quando a regularidade do raciocinar e reflet ir não correspondessem ao naturalmente esperado — uma jovem, mesmo aquela que gozou de uma educação sabiamente dirigida, levantaria sobre si mesma a mão suicida.30 Como aconteceu no estudo do Dr. Muniz Barreto, o emblema de perturbação mental foi ut ilizado pelo Dr. Fonseca Vianna ao problemat izar o suicídio. Mesmo em teses sobre temas variantes, é possível observar a tendência de pensar o suicídio a part ir da referência mental, ou seja, da desordem, perturbação e desarranjo das faculdades intelectuais e do órgão mental — o cérebro. Outro médico, Dr. Bernardino José Rodrigues Torres, desenvolveu e apresentou suas análises à Faculdade, em 1843.31 Conhecedor das teorias francesas sobre o assunto, o autor elaborou um estudo profundamente influenciado por aspirações filosóficas para buscar as causas e a sede do suicídio.32 Nesse sent ido, o Dr. Rodrigues Torres começou seu estudo definindo o suicídio como uma enfermidade caracterizada pelo desapego à vida e pela tendência à destruição. A originalidade de seu trabalho estava na maneira como ele explicou esse t ipo específico de enfermidade e a sua causa. Como muitos outros, afirmou que as influências das paixões, de algumas causas patológicas e da própria lei da hereditariedade, não deveriam ser descartadas. Isto definido, centralizou o olhar e a atenção em outro fator, a chamada força vitae. Antes de qualquer coisa, é preciso entender o que era exatamente essa força vitae, encarada como sede e origem do suicídio. Em primeiro lugar, ele a definiu como idéia de viver, desejo de conservar a vida, amor pela existência, amor da vida, inst into da vida. Em suas palavras, (...) na verdade, nada tem tanto império sobre o homem, nem o determina a tão grandes sacrifícios, como o desejo de conservar a vida e de salvá-la em um momento de perigo.33 Esse autor assegurou que os estudiosos precisavam procurar a sede do suicídio na força que induzia o homem a lutar pela vida, no desejo natural e humano de cont inuar vivendo, exist indo. Em seguida, ele explicou que, além desse impulso, exist iam elementos — como o calórico, a eletricidade e o magnet ismo — indispensáveis à vida, espalhados proporcionalmente pelos órgãos e sistemas. Por serem indispensáveis, deviam ser privilegiados por todos que estudavam o tema. Mas, infelizmente, não deixou claro o modo como os estudiosos deveriam abordar o problema do suicídio a part ir da observação e análise de tais elementos. Neste sent ido, o autor preocupou-se mais em criar uma nova possibilidade explicat iva do que em defini-la minuciosamente. De acordo com a compreensão do Dr. Rodrigues Torres, os corpos externos eram os estímulos da ação vitae, e as impressões deles sobre os nossos sent idos entret inham-na. Assim, todas as vezes que um corpo qualquer exercesse impressão sobre uma parte do nosso corpo, esta impressão seria t ransmit ida, est imulando com maior ou menor força os agentes da ação vitae existente neste ponto. Do est ímulo resultariam as funções de maior ou menor at ividade, que na mesma proporção se manifestariam na economia e, destarte, poriam em jogo todas as forças vitaes. Desse modo, se a impressão fosse proporcional às forças e à const ituição orgânica, resultaria o bem-estar e o sent imento de sat isfação para toda a economia. Por outro lado, se um obstáculo qualquer viesse a opor-se à cont inuação deste jogo, de sorte que as novas impressões não est ivessem em relação com as forças, resultaria o mal- estar e um acréscimo de ação local que estreitamente subordinaria as ações gerais. Esse acréscimo de forças e esse excesso de ação eram, de acordo com o autor, mais que suficientes para, em certas circunstâncias e em determinados casos, ocasionar a tendência à destruição pessoal. Depois de apontar a sede do suicídio — melhor seria dizer depois de apontar o caminho a ser percorrido para entender o que é o suicídio — ele redirecionou o olhar para outra dimensão do problema: os sintomas. De acordo com a sua hipótese de trabalho, somente ao apreciar e analisar os sintomas do suicídio é que qualquer estudo poderia conhecer “verdadeiramente” a natureza da molést ia, isso porque todo sintoma exprime desarranjo nas funções e só pode ser produzido pelo agente delas. Segundo o autor, dois sintomas opostos se manifestam em todo suicida: de um lado está a t risteza, o abat imento, o terror e a inclinação decidida pela solidão; no outro extremo, a excitação enérgica do físico e do moral. Esses dois t ipos de sintomas alterariam e desequilibrariam a força vitae, perturbariam e até mesmo anulariam o inst into da vida. Mais uma vez, o que estava em jogo era a manutenção do equilíbrio, cuja alteração era nociva. Mas como isso se daria? O primeiro grupo de sintomas traduziu a opressão ou diminuição das forças vitaes. Quando o sujeito que atentasse contra a própria vida apresentasse, momentos ou dias antes do ato, um comportamento diferente daquele que lhe era próprio, ou seja, quando a t risteza e a solidão dominavam-no completamente, era sinal de que o desejo de conservar a vida e o amor pela existência t inham sido oprimidos, causando um desequilíbrio da força vitae. Por outro lado, o segundo grupo exprimiu um aumento ou perversão dessas forças. Em oposição aos indivíduos do primeiro grupo, esses outros apresentavam uma excitação enérgica que não lhes era natural, mas sim, nociva. Desse aumento, caracterizado como estado anormal, resultaria a condição diferente para o organismo, alterando a formação e funcionamento de certos órgãos. O desequilíbrio afetaria não só a sensibilidade e as sensações, como o próprio corpo, visto a part ir de então como corpo doente. Ao analisar esses dois grupos de sintomas, concluiu que: é no predomínio da sensibilidade, na qualidade das sensações e na ação dos princípios vitaes e não nos instrumentos das funções nutritivas que reconhecemos a origem do suicídio . Para demonstrar esta proposição não iremos ao cadáver; a abertura dos corpos em muitas circunstâncias indispensável para conhecermos a natureza das moléstias é quase inútil neste caso; basta-nos para este fim a apreciação do sintomas.34 Ao invés de indicar em certos órgãos do corpo humano a sede do suicídio — prát ica médica que o próprio autor demonstrou conhecer bem —, ele inverteu a lógica ao mostrar que o desequilíbrio das forças vitaes afetava certos órgãos. Ele lembrou, para exemplificar sua tese, que muitos indivíduos que se deram à morte na força de paixões veementes não deixaram traços de lesão em nenhum órgão ou no sistema nervoso: (...) Quando nos órgãos submetidos à autópsia se não acham lesões que explique a causa da morte, mais arbitrário é dizer que ela deve residir na textura de tal ó rgão, que por delicada se torna inacessível a nossos sentidos, do que fazê-las sentar em algum dos elementos da vida, que pelos seus efeitos não deixam duvidar de sua existência.35 Para o autor, a análise dos sintomas test ificou que a origem do suicídio devia ser buscada nos elementos vitaes — em sua opressão ou aumento vert iginoso —, sugerindo que, isoladamente, as causas físicas não seriam capazes de provar a origem do ato de se dar à morte. Depois de ter dissertado sobre o que era o suicídio e de apresentar o local da sua sede — uma enfermidade com sedenas forças vitaes —, o passo seguinte foi enumerar as diversas causas que afetavam e conduziam o indivíduo ao suicídio, entendido como ato ant inatural. Essas causas foram dividas em predisponentes36 e ocasionais. As causas predisponentes — educação, diferenças entre os sexos, influência hereditária e certos temperamentos —, como o próprio termo indica, dependiam de uma regra que era geral nos estudos analisados: a predisposição individual. Quanto às causas ocasionais — como a paixão, vista como causa de quase todas as molést ias mentais —, que receberam mais atenção em seu estudo, também dependiam, em últ ima análise, da predisposição de cada um, mas não se limitavam a ela. Por essas razões, pensei que o estudo do Dr. Rodrigues Torres possuísse uma pretensão de inovar a temat ização e de apresentar uma advertência aos estudiosos do suicídio, mas observei que ele, assim como os demais autores, pensou todas as causas de suicídio ligadas à e/ ou dependentes da predisposição individual. O autor em questão não conseguiu escapar de uma tendência própria de seu tempo. Mais de uma década depois da defesa da tese de Rodrigues Torres, um outro médico, em outra inst ituição — a Faculdade de Medicina da Bahia —, discorreu sobre o ato de se dar à morte. Para os doutores Freitas Albuquerque e Rodrigues Torres, o suicídio era uma doença. Porém, ao contrário do médico carioca — que viu na relação com a força e com os elementos vitaes a origem do ato suicida —, o Dr. Freitas Albuquerque detectou, entre os vários t ipos que podiam subitamente invadir o ser humano, a monomania suicida. Segundo ele, também conhecedor das teses francesas sobre as doenças mentais e sobre o suicídio, a monomania era um delí rio da inteligência, com predomínio de uma idéia fixa, de um sent imento ou de uma paixão. Ela podia ser raciocinante — quando o doente obrasse com uma convicção ínt ima, sendo sua loucura evidente — ou inst int iva — quando não fosse encontrada ou observada nenhuma desordem das faculdades intelectuais. Nesse últ imo caso, o sujeito era levado a atos que ele mesmo reprovaria se est ivesse em seu estado “normal”, tendo sua vontade vencida pela idéia de roubo, incêndio, suicídio, entre outras. De acordo com o Dr. Freitas Albuquerque, em ambos os casos de monomania o conjunto de sintomas era muito variado, ampliando quase ao infinito a possibilidade de ocorrência e dificultando os “necessários” diagnóst icos. Quanto à ident ificação e definição dos sujeitos suicidas, ao mesmo tempo em que os doentes podiam apresentar a face afogueada e o olhar vivo e brilhante, também podiam apresentar a face macilenta, amarelada, lívida, contraída e o olhar fixo, sombrio e “ameaçador”. Além do mais, se muitos eram loquazes, expansivos e galhofeiros, outros tantos eram tristes, taciturnos e incomunicáveis. Estabelecendo dois extremos, o olhar médico foi responsável por localizar e ident ificar os suicidas, enquadrando prat icamente a todos. Porém, nessa diferenciação estabelecida pelo autor, que foi baseada em extremos, um detalhe devia receber atenção especial de todo médico que se aplicasse a esse t ipo de estudo: a apreciação da fisionomia, considerada como “espelho d’alma”. Isso porque, de acordo com a sua concepção, ela adquiriria um t ipo característ ico — um “quê” indefinido, que feriria à primeira vista o observador atento, um detalhe variável segundo a natureza da idéia delirante.37 No entanto, o autor não definiu o que seria esse “quê” característ ico dos sujeitos suicidas. Ainda assim, afirmou ser observável e dist inguível, pelo menos para aqueles iniciados e educados pela ciência médica, const ituindo dessa maneira novas relações de saber-poder. Da monomania suicida à erót ica, passando pela religiosa, em todos os casos, de acordo com o Dr. Freitas de Albuquerque, esse “quê” indefinível podia ser percebido. Os tristes, os eufóricos, os audaciosos, os medrosos, entre tantos outros, independentemente da monomania que os invadisse, apresentariam o mesmo sinal, que deveria ser percebido pelo olhar experiente e sábio do médico. Mas o que seria, segundo essa concepção, a monomania suicida? Segundo essa teoria, nesta espécie de monomania, a idéia fixa e constante era o suicídio. Assim, o doente, o monomaníaco suicida, derramava o seu próprio sangue por razões recorrentes: livrar-se de um estado físico e moral a que se supunha reduzido e a que só a morte era preferível; gozar da felicidade suprema após a vida; obedecer ao mandamento do Alto ou evitar uma morte desonrosa e atormentada. A monomania suicida ainda poderia ser raciocinante ou inst int iva. A raciocinante foi caracterizada, segundo o autor, pelo capricho dos doentes na escolha dos meios e do gênero de suicídio. A inst int iva foi caracterizada unicamente pelo desejo que o sujeito apresentava de pôr fim a seus dias. Neste últ imo caso, a escolha das técnicas, instrumentos e lugares não era importante, pois o suicida era guiado exclusivamente pela vontade de morrer, caracterizando assim o ato como “impensado”. Há, ainda, outro ponto a ser considerado, e que se refere diretamente à classificação acima. A monomania suicida podia ocorrer rápida ou lentamente. Em geral, as que ocorriam rapidamente eram as inst int ivas. As que ocorriam lentamente, corroendo a vontade do indivíduo, eram as do t ipo raciocinante, porque os suicidas arquitetavam o melhor meio para pôr fim à vida e renovavam periodicamente as tentat ivas e planos. Quanto às causas das monomanias, elas foram divididas em predisponentes — hereditariedade, idade, temperamentos e profissões — e determinantes. Segundo essa concepção, as determinantes eram as principais causas e, por isso, foram subdividas em físicas — temperatura, excessos de qualquer natureza, desordens, cessação da menstruação, prenhez e parto38 — e morais — paixões, ódio, amor; todas ut ilizadas para explicar origem, fonte e móvel da morte. Por assim pensar, o autor não desenvolveu nenhuma crí t ica explícita ao suicídio. Não dissertou sobre o fato de ser ou não o suicídio um ato que acarretasse qualquer t ipo de responsabilidade social, moral ou legal. Afinal, os sujeitos suicidas eram vistos como doentes, mesmo nos casos de monomania raciocinante. As causas apresentadas foram as mesmas observadas em todo t ipo de monomania, não só na suicida. Por estas razões, a singularidade do discurso do Dr. Freitas Albuquerque baseou-se no fato de ele ter part ido exclusivamente do conceito de monomania para pensar e explicar o ato suicida. Ele ut ilizou um conceito e um referencial próprios daqueles que se dedicaram ao estudo das doenças e distúrbios mentais para pensar tal ato. Talvez tenha sido essa opção a causa dos limites históricos de seu trabalho. O Dr. Nicoláo Joaquim Moreira, assim como os doutores Rodrigues Torres e Freitas Albuquerque, buscou reconhecer no ato suicida a porção ou grau de enfermidade ligado às faculdades mentais.39 Seu trabalho apresentou uma novidade, pela maneira como abordou o tema e os meios ut ilizados para buscar respostas. Sua principal tese foi a diferenciação entre os dois t ipos de suicídio: o “filho da loucura” e o “reflet ido”. O primeiro deles era cometido por um louco, e o segundo, por alguém que gozasse de excelente estado da razão: O suicídio , senhores, se uma vez é um ato filho da loucura, outras vezes verifica-se com a integridade da razão, e a prova encontramos no combate travado entre o horror da morte e o peso da vida, entre a desonra e a miséria e o instinto de conservação; nessa luta entre a existência e o aniquilamento , e cujo exame feito no tribunal da consciência do infeliz obtém uma so lução conforme seus sentimentos, suas crenças e os hábitos de sua vida inteira.40 Desse modo, independentemente de o ato ter sido cometido num momento de loucura ou com a perfeita integridade das faculdades intelectuais, o suicídio foi estudado sempre em relação ao mental e à razão. Presonas teias do mental, ou seja, nos conceitos, hipóteses e verdades produzidos pelo discurso médico sobre as doenças e distúrbios mentais, o facultat ivo problemat izou o ato “ant inatural” e “irracional” de se dar à morte. Ele considerou o suicídio ato “ant inatural”, uma transgressão das leis naturais, divinas e sociais. A transgressão das leis, a quebra do ciclo vital e o afrontamento ao Criador foram idéias ut ilizadas pelo autor para problemat izar o ato que conseguia, de um só golpe, cortar todos os laços que prendiam o homem à vida, à família e à sociedade. Tais idéias assinalaram a desordem provocada pelo suicida.41 O suicídio “filho da loucura”, segundo ele, part iria de um cérebro lesado, e sua origem estaria localizada no “seio da loucura”. Estes casos, segundo o facultat ivo, eram de fácil observação. O olhar médico conseguiria, sem dificuldade e seguindo os modelos da medicina social, localizar os doentes, preparar diagnóst icos e desenvolver um tratamento. As causas do ato suicida seriam, seguindo a mesma lógica, as mesmas da alienação mental. Indicar as causas do suicídio filho da loucura seria estudar a alienação mental e assinalar seus diversos caracteres, suas fases múlt iplas, e para isso era necessário mostrar o que era a razão, definir o que era a loucura: questões imensas pelo turbilhão de idéias que faziam surgir e pelos infrutuosos ensaios de solução até hoje apresentados por todos os psicólogos e médicos alienistas.42 A observação do “suicídio reflet ido” exigia do médico um olhar mais atento, detalhado e minucioso. Seu móvel permaneceria, muitas vezes, um impenetrável segredo. Então, como desvendar a origem, o móvel e as causas de um ato oriundo de um cérebro saudável e capaz, que dispunha de todas as faculdades mentais? De difícil observação, o suicídio reflet ido poderia ser comet ido por qualquer pessoa, independentemente de idade, sexo, cor, nacionalidade, estado civil, crenças religiosas e posições filosóficas. Um caminho, porém, foi desenhado pelo autor para facilitar o t rabalho: As causas, porém, do suicídio refletido são mais conhecidas e podemos mesmo dizer que são tantas quantos os moveis das paixões humanas; a má educação, a ausência de princípios religiosos, os costumes, as crenças, a leitura de livros licenciosos, a pobreza, o amor contrariado , os embaraços financeiros, o orgulho, a vaidade, enfim todas esses paixões que suscitadas pelo próprio homem e nutridas em seu próprio seio tornam-se depo is um veneno que inoculado em seu coração, corroe sua existência.43 Assim, as paixões que afetavam o homem, presentes e criadas nos e pelos grandes centros, alimentadas pelos vícios e abusos, foram apresentadas como importantes causas de suicídio. Ao ressaltar a necessidade de diferenciar causas e t ipos de suicídio — o cometido por um doente mental e o cometido por um homem saudável, gozando do pleno uso das faculdades mentais —, o Dr. Moreira dedicou atenção especial aos “reflet idos”. Sua análise foi guiada pela indignação e repúdio. Não considerava just ificáveis os casos reflet idos, de maior número, e por isso pregava a necessidade de serem empregados todos os esforços, não só os da classe médica, na luta contra o ato de se dar voluntariamente à morte. Esse ato seria sinal de desrespeito às leis criadas e impostas para garant ir o “bem viver”, ou seja, para garant ir uma vida ordenada, normat izada e medicalizada. Segundo o autor, na luta t ravada no “t ribunal da consciência” entre a existência e o aniquilamento, duas soluções se apresentavam: cont inuar vivendo ou colocar fim à existência. A segunda opção, se fosse fruto de um cérebro capaz, seria inaceitável. Contra tal opção, governos, leis, moral, filosofias, religião, literatura, imprensa e medicina, unidos e devidamente guiados pelos mais sábios e experientes no que diz respeito à temát ica, deveriam mostrar aos homens a necessidade de não se deixarem abater pela adversidade e/ ou pelas paixões. Sua posição é demonstrada na epígrafe de seu discurso: para conhecer o homem é necessário estudá-lo em sua alma e não em seu envoltório material; o médico que se volta ao serviço da humanidade deve unir a medicina, a moral, a filosofia, sem cujos conhecimentos imperfeitamente preencherá sua missão.44 Assim, o Dr. Moreira sublinhou sua posição de considerar o suicídio um erro, caso fosse “reflet ido”, ou uma doença, caso cometido por um doente mental. Em ambos os casos, a vida não pertenceria ao sujeito t ransformado em suicida. A dist inção elaborada por ele apresentava um importante fator, já analisado no primeiro tópico deste capítulo: o de definir o grau de responsabilidade do ato suicida. Ficou evidente que, nos casos de suicídio provocados por qualquer t ipo de doença mental, como por exemplo a monomania, o sujeito que o prat icava não era visto como responsável por seu ato. Em compensação, aquele que agisse seguindo um plano, devidamente arquitetado por uma mente considerada “sadia e capaz”, era responsável direto e único e, por isso, visto como transgressor. Por razões semelhantes, ele revelou uma certa nostalgia do período anterior ao seu, quando o suicídio era visto como crime e delito, acarretando conseqüências e responsabilidades àquele que ousasse prat icar um ato tão grave. Segundo ele, era preciso, a todo custo, impedir que o suicídio cont inuasse a ser prat icado, mesmo que para isso fosse preciso culpabilizar, incriminar e est igmat izar o sujeito que recusasse a vida em sociedade. Era urgente que o médico, historicamente t ransformado em responsável pela saúde, permanecesse vigilante diante do recorrente perigo à vida. O discurso do Dr. Moreira sugere que, durante o século XIX, o saber médico foi estruturado para pensar, agir e t ratar o suicídio interpretando-o como fruto da loucura, pois ut ilizava os mesmos parâmetros e teorias das doenças mentais. Ele indicou a necessidade de observar atentamente o social, para completar a tarefa de impedir que atos como o suicídio cont inuassem a perturbar a ordem e as leis que regiam a vida e foram criadas para garant ir o “bom funcionamento” da sociedade. Como em outros discursos apresentados, o do Dr. Nicoláo Joaquim Moreira também ut ilizou as balizas do patológico. Afinal, muitos sujeitos estavam inseridos e viviam em uma mesma sociedade, mas nem todos se suicidavam. Todos eram influenciados pelas mesmas forças e pelos mesmos vícios, mas somente alguns se matavam. Qual a razão disso? Depois de alargar o campo das causas de suicídio, o olhar do médico voltou-se para as balizas do próprio pensamento médico, ou seja, o patológico, o individual e as predisposições. Depois do trabalho do Dr. Moreira, outros médicos seguiram o mesmo percurso. O Dr. Nabuco de Araújo desenvolveu sua tese a part ir da diferenciação entre o suicídio cometido por um doente mental e o outro, seu oposto, “produto da reflexão”. Apresentou, assim, a possibilidade de concebê-lo de duas maneiras, como ato voluntário ou involuntário. Nos casos de suicídio voluntário, que receberam destaque no estudo do Dr. Nabuco de Araujo, o suicida foi apresentado como um sujeito que dispôs de tempo e astúcia para deliberar sobre a morte, de modo tal que se podia, segundo o autor, reconhecer em seu procedimento uma perfeita aplicação do livre arbí t rio. Nesse sent ido, é importante esclarecer que o facultat ivo relacionou “livre arbí t rio” às faculdades mentais, à razão. Assim, “perfeita aplicação do livre arbí t rio” queria dizer, nesse contexto, a capacidade de raciocinar, de reflet ir sobre os modos, os resultados e os desdobramentos do ato de se dar à morte. Em oposição, havia aquele const ituído pelo sujeito que prat icava o suicídio tão subitamente que era impossível deixar de pensar que o “infeliz” desvairou-se de repente e foi impelido a abandonar a vida. Esses suicidas revelavam em suas escolhas o grau de enfermidade, desrazão e loucura a que estavam presos.Feitos e t ransformados em sujeitos doentes, eram pessoas incapazes de optar pela vida, por isso se suicidavam. Como aconteceu com o Dr. Freitas Albuquerque (1858), para o Dr. Nabuco de Araujo (1883)45 a monomania era uma das causas de suicídio, entendido aqui como ato involuntário. Seu estudo também se aproximou muito da posição do Dr. Moreira, por reforçar a dist inção e a necessidade dos médicos estarem sensíveis à diferenciação do ato. Segundo ele, os médicos, ao invés de ficarem vendo em todos os atos suicidas manifestações de algum t ipo de doença mental, deveriam analisar todos os casos para encontrar as causas dos dois t ipos de suicídio, e não somente o involuntário, produto de algum distúrbio ou anomalia mental. É interessante destacar que todas as teorias médicas até aqui analisadas afirmaram a possibilidade dele ocorrer entre os doentes mentais; em nenhuma obra esse pensamento foi quest ionado. Isso demonstra a concordância do pensamento médico brasileiro do século XIX com a tese, muito difundida nas Academias médicas francesas, de ser natural e óbvio o suicídio de um sujeito doente e anormal. A preocupação do Dr. Nabuco de Araujo com a diferenciação do suicídio t inha uma just ificat iva. Para ele, na maioria dos casos, o suicídio era reflet ido e premeditado, e não um ato involuntário. Por isso, era urgente um estudo detalhado que ult rapassasse os limites do mental, que mostrasse o suicídio não necessariamente como molést ia, pois ele poderia ser, às vezes, sintoma mórbido ou inconstante, até acidental, de estados de alienação. Além disso, havia a possibilidade de ser um ato de livre arbí t rio, próprio de um ser pensante. Já as causas do suicídio voluntário seriam mais complexas, por serem exteriores ao indivíduo embora o influenciassem sobremaneira: uma resolução deliberada e influenciada por erros, vícios, excessos e publicidade do ato considerado criminoso, por negar, também, as conveniências sociais. Evidentemente, o autor abordou o problema do suicídio alargando as possibilidades dele ocorrer e ampliando o horizonte do olhar médico, ao rastrear as origens das suas causas. Ato próprio de um ser pensante, o suicídio cont inuava sendo dilema, à medida que nem todos os indivíduos se entregavam à morte, ainda que convivessem em um mesmo tempo, part icipassem da mesma sociedade e fossem influenciados por situações idênt icas. Ainda que tentassem, parecia ser impossível que as teorias médicas ut ilizadas fugissem das considerações e abordagens patológicas. Desse modo, ficou evidente o percurso ut ilizado por esses médicos brasileiros, que apresentaram seus estudos e análises em inst ituições cariocas — aqui e por mim privilegiadas —, além de algum outro estudo defendido em outra inst ituição, e por mim encontrado durante a pesquisa feita nos acervos da Academia Nacional de Medicina, ant iga Academia Imperial. Reunindo o que já foi apresentado, temos que inicialmente o suicídio foi problemat izado como uma alteração do juízo, um distúrbio das faculdades intelectuais. O passo seguinte foi pensá-lo no predomínio da sensibilidade, na qualidade das sensações, na opressão/ diminuição ou aumento/ perversão das forças vitaes. Nessa seqüência cronológica, o estudo seguinte classificou-o como doença — a monomania suicida —, ut ilizando todo o arsenal explicat ivo das doenças mentais. Já na segunda metade do século, a dist inção entre dois t ipos dist intos de suicídio — o reflet ido e o produto da loucura — norteou todos os demais t rabalhos e estudos sobre a temát ica. Essa dist inção possibilitou uma mudança na problemat ização do suicídio. Por isso, alguns pontos necessitam de reflexão. Em primeiro lugar, todos os discursos aqui apresentados e analisados são unânimes no que diz respeito às causas patológicas do suicídio. Todos, sem exceção, viram no ato de se dar à morte alguma relação — doent ia, anormal ou de desequilíbrio — com o mental, a razão. Mas havia uma diferença entre os discursos. Se alguns problemat izaram o suicídio exclusivamente a part ir das alterações patológicas, outros ident ificaram, também, as causas exteriores ao próprio indivíduo, que afetavam o corpo influenciando-o a ponto de acarretar mudanças comportamentais. A part ir do momento em que os médicos brasileiros começaram a explorar as causas de suicídio consideradas “exteriores” ao indivíduo, o olhar do médico responsável pela temat ização foi redirecionado para o social. Lembro ao leitor que tal postura estava de acordo com o t ipo de medicina prat icada no Brasil, principalmente durante a segunda metade do século XIX, a medicina social. Mas também é preciso lembrar que este “social”, considerado “exterior” ao indivíduo, podia perturbar, alterar e modificar o corpo, a esfera patológica. Um dos únicos trabalhos que apresentou dados estat íst icos sobre o suicídio foi o do jurista Francisco José Viveiros de Castro, O suicídio na Capital Federal. Estatística de 1870 a 1890. Ele indicou 633 suicídios e 925 tentat ivas do ato, totalizando 1.558 casos registrados no Rio de Janeiro, entre 1870 e 1890.46 Desse total, Viveiros de Castro destacou que 183 foram devidos à loucura, 174 devidos aos desgostos domést icos — sem indicar o que seriam tais desgostos — 133 à embriaguez e 92 às paixões, principalmente as amorosas. Observa-se assim a necessidade, já citada, de explorar as causas de suicídio consideradas “exteriores” ao indivíduo, mas sem esquecer das predisposições individuais. Saliento serem os casos devido à loucura os de maior número. Como já afirmei, isso sugere a histórica tendência de conceber o ato como naturalmente ligado aos distúrbios, desarranjos e desequilíbrios do mental. Dois caminhos necessários à compreensão do suicídio foram sugeridos. No primeiro, as alterações físicas/ patológicas foram analisadas como causas. No segundo, os doutores brasileiros, seguindo uma tendência comum a trabalhos franceses sobre o tema, começaram a observar e analisar outras causas, presentes e produzidas pelo meio no qual o indivíduo estava inserido, do qual era produto e, também, produtor. Por essas razões, o olhar médico foi obrigado a buscar nesse meio, passível de observação e alteração médica, tudo o que poderia fazer um indivíduo se matar. Ampliavam-se, assim, as formas de problemat izar o suicídio, o sujeito e o próprio meio social. Contudo, essa ampliação foi limitada pela necessidade de vincular direta ou indiretamente os casos de suicídio aos distúrbios, desarranjos e desequilíbrios mentais. De acordo com essa posição, o sujeito que se matava poderia ser um doente consciente das conseqüências e implicações de seu ato, ou um doente que colocou fim à sua vida sem saber, ou melhor, sem poder avaliar com precisão os desdobramentos do seu ato, por estar com as faculdades mentais e intelectuais em desordem, afetada por algum tipo de doença ou distúrbio mental. O primeiro sujeito foi, portanto, considerado responsável, e o segundo, irresponsável. Um caso exemplar de tal concepção foi o suicídio de Manoel Teixeira Maciel, médico, natural do Rio de Janeiro e residente na cidade de Amparo, em São Paulo, onde aconteceu a morte. As primeiras notas acerca da morte de Teixeira Maciel foram publicadas na Tribuna Amparense, no Diário de Campinas e na Gazeta de Campinas, em janeiro de 1878. Foi, contudo, o Diário de Campinas que publicou todas as reações provocadas pelo suicídio do ilustre facultat ivo.47 Ao ser not iciada, sua morte acabou produzindo um debate público sobre o suicídio, que logo foi t ransformado em embate e jogo de forças, envolvendo diversos saberes. Tal debate teve como meta principal a explicação daquele suicídio. Muitos amigos e companheiros de profissão de Maciel tentaram preservar a memória do indivíduo e a do médico, alegando que o suicídio dele t inha sido um ato de loucura. Por ser esclarecido e talentoso, ele não poderia ter se suicidado sem nenhum mot ivo aparente e nem ter dado aperceber o mal que supostamente o desnorteava. Preocupados com a imagem que seria construída e divulgada pela imprensa, vários médicos negaram a responsabilidade do suicida em relação ao ato. Para reforçar a tese de irresponsabilidade, os escritos deixados pelo suicida foram ut ilizados como prova, tendo em vista a construção do perfil e da personalidade de Maciel. A imagem que pretendiam legar era a do médico alentado pelas mais ridentes esperanças, moço alegre, sat isfeito e prest imoso, mas que ocultava em seu cérebro — órgão onde estaria depositada, segundo tais médicos, a razão, o pensar e o ponderar — uma fatal lesão. Criou-se, assim, uma ident idade para Teixeira Maciel, a do suicida louco. Afirmaram ser irresponsável o ato do colega; afinal, se o cérebro estava lesado, como conseguiria raciocinar, pensar e ponderar sobre as conseqüências de seu suicídio? Por outro lado, a Igreja proibiu o sepultamento do cadáver no cemitério da cidade, fazendo uso de um discurso exatamente oposto ao dos médicos amigos de Teixeira Maciel. Para a Igreja, representada pelo vigário Antonio José Pinheiro, que também publicou sua posição em jornais da região, o suicídio era considerado pecado imperdoável, se cometido com a integridade da razão, pois somente a Deus pertencia o direito de dispor ou não da vida e da morte. Ao mesmo tempo em que o Dr. Bit tencourt , amigo pessoal de Maciel, tentava construir nos jornais uma realidade que explicasse o suicídio em questão através das concepções médicas — indivíduo monomaníaco, louco e irresponsável por seu ato —, tentava, também, construir uma outra, que pudesse servir de base ao confronto com a Igreja. O suicida foi apresentado como uma pessoa esclarecida, homem bom, médico prest imoso e respeitado, que manteve o coração sempre aberto aos mais delicados sent imentos da caridade. Desse modo, como negar sepultura a um homem de virtudes cristãs, que por causa do estado doent io do cérebro havia se suicidado? Para just ificar sua conduta, o vigário Antonio José Pinheiro encaminhou ao jornal as suas explicações. Por meio de carta publicada no Diário de Campinas, em 1 de fevereiro de 1878, o vigário, após reiterar que a Igreja sempre negou sepultura em seu cemitério aos suicidas não loucos, afirmou possuir contundentes informações de um outro médico, o Dr. Caetano Monfort , que lhe teria dissipado toda e qualquer dúvida acerca do estado mental do suicida. Cabe ressaltar que o suicídio cometido em plena integridade da razão era um pecado imperdoável. Nesses casos, o suicida não poderia gozar, após a morte, dos benefícios oferecidos àqueles que sofreram, mas que, como Cristo, souberam carregar as suas cruzes. Contudo, nesses argumentos, percebi a presença significat iva do saber/ poder médico que percorria a sociedade — como as prát icas cot idianas — em busca do irracional e do anormal. Note-se que, ao se deparar com um fenômeno que necessitava de uma explicação, a Igreja ut ilizou o aval médico para se posicionar. Quem dissipou a dúvida sobre o estado mental do suicida, quem definiu os critérios de normalidade, quem deveria saber se o sujeito suicida era ou não um doente mental, era o médico — nesse caso, o Dr. Monfort —, portador do saber necessário para elaborar tal diagnóst ico. Assim, uma vez concluído pelo Dr. Monfort — amigo ínt imo do suicida e dest inatário de uma das cartas por ele deixadas — que Teixeira Maciel estava louco, a Igreja ut ilizou tal diagnóst ico para proibir o enterro, não respeitando o diagnóst ico contrário do Dr. Bit tencourt , para quem o ato havia sido cometido por um doente. Com esse caso foi possível perceber, uma vez mais, que o saber assegurou o exercício do poder, foi capaz de diagnost icar a normalidade e a anormalidade no tecido social e estabelecer, inclusive, os limites entre elas. Ainda expondo e analisando as duas possibilidades de suicídio — o reflet ido e o irreflet ido —, foi necessário sublinhar os casos daqueles que se mataram voluntariamente, após reflet irem sobre os meios, gênero de morte, lugar e conseqüências do ato e os daqueles que gozavam da perfeita capacidade do raciocínio, vistos como desertores, fracos, perigosos e até mesmo criminosos. O ato era considerado ant inatural e repugnante, por ter como causas certos fatores e influências presentes no próprio meio social, onde muitos outros também viviam sem ao menos cogitar a idéia de suicídio. Era preciso, então, avaliar porque alguns indivíduos submetidos a certos lugares e situações optavam pela morte e muitos outros, a maioria, pela vida. Essa questão teve início no século XIX, mas muito tumultuou o século seguinte. A resposta parecia estar em questões individuais, em predisposições. Convém, todavia, ressaltar que o suicídio não foi considerado crime pela just iça brasileira. O Código Criminal do Império do Brasil - 1830 ( Tí tulo II: “Dos crimes contra a segurança individual”; Capítulo I: “Dos crimes contra a segurança da pessoa e vida”; Seção I: “Homicídio”, Art .196), define ser crime ajudar alguém a se suicidar ou fornecer-lhe meios para esse fim, com conhecimento de causa. A pena, neste caso, era a prisão por dois a seis anos. No entanto, percebe-se que o ato em si não era considerado um ato criminoso, passível de pena. O novo Código Penal de 1890 alterou essa estrutura. Não havia mais um art igo sobre o suicídio dentro do capítulo dedicado ao homicídio, mas um exclusivo (Tí tulo X: “Dos crimes contra a segurança de pessoa e vida; Capítulo III: “ Do suicídio”, Art . 299). Assim, ficou definido que era crime induzir ou ajudar alguém a se suicidar, ou para esse fim fornecer-lhe meios, com conhecimento de causa. A pena para esse crime era de prisão celular por dois a quatro anos. O suicídio cont inuou não sendo crime e a pena máxima para a indução ou ajuda foi reduzida de seis para quatro anos.48 Apesar de alguns doutores defenderem a idéia de ser o suicídio um ato criminoso contra a própria vida e, em certa medida, contra a sociedade, não conseguiram aplicar tal posição no que diz respeito ao saber jurídico e suas normat izações. Se a just iça brasileira não impôs pena a quem tentou o suicídio ou a quem se matou, outros discursos, como o médico, encontraram formas de penalizá-lo, seja classificando o indivíduo como louco, incapaz, desequilibrado e doente, seja como fraco, desgraçado, criminoso, perdido e entregue ao vício e as paixões. Prova disso era o fato de os jornais se referirem ao suicida como infeliz, desgraçado, desesperado, louco, indivíduo que sofria das faculdades mentais, e ao suicídio, como ato de loucura, t riste acontecimento, ato de desespero: SUICÍDIO Em São Paulo suicidou-se, disparando contra si do is tiros de revo lver o moço Gustavo B. de Salles Guerra, victima ultimamente de pertinaz enfermidade. O infeliz suicida, segundo narram seus íntimos, algum tempo a esta parte dava claras demonstrações de sofrer das faculdades mentais.49 Mesmo naqueles casos em que não fosse relatada a causa do suicídio, essas imagens ligadas ao universo do mental estavam fortemente presentes: A 15 do corrente suicidou-se, na sua fazenda do município de Atibaia, o fazendeiro José Amaro Leite. Ignora-se os motivos que levaram o infeliz a esse ato de loucura.50 Ha dias desapareceu do Rio de Janeiro um moço muito conhecido no comércio , sendo baldados todos os esforços para encontra-lo . Segunda-feira, depo is de minuciosas pesquisas, fo i encontrado nas matas do Jardim Botânico um cadáver já em adiantado estado de putrefação, tendo a seu lado um revo lver. Verificou-se ser o cadáver do moço que havia desaparecido, Olympio Teixeira Leite. Olympio era um moço possuidor de regular fo rtuna; deixou uma carta, na qual segundo diz declarava que motivos particulares o tinham levado à prática daquele ato de desespero.51 A tendência de buscar diferenças entre os dois t ipos de suicídio foi observada no Brasil durantea segunda metade do século XIX. Na França, país que muito influenciou a medicina brasileira no período estudado, a busca já era evidente nos primeiros anos do mesmo século. Pelo fato de muitos médicos brasileiros revelarem profundo conhecimento de teorias e das obras francesas sobre o tema, penso ser importante apresentar e analisar o t rabalho de Esquirol, o mais citado em estudos médicos brasileiros do século XIX. A REPERCUSSÃO DO PENSAMENTO MÉDICO FRANCÊS E SUA APROPRIAÇÃO PELO DISCURSO MÉDICO BRASILEIRO A influência das teses, teorias, princípios e conceitos criados pelos médicos franceses era visível nas inst ituições de ensino médico no Brasil, como também nos trabalhos, teses e estudos produzidos e/ ou apresentados em tais inst ituições. Isto pode ser explicado de várias maneiras, seja pela vasta bibliografia francesa disponível na biblioteca das Faculdades e Academias médicas, pelas constantes viagens à França para aprendizado e estudo e, ainda, pelo respeito e seriedade internacionais de que gozavam alguns notáveis médicos e estudiosos franceses — como Esquirol —, além, é claro, dos vários filósofos que foram muitas vezes citados pelos autores brasileiros aqui apresentados, como, por exemplo, em teses de Rodrigues Torres, Nicoláo Joaquim Moreira e Nabuco de Araújo. De uma forma especial, o francês Jean-Ét ienne-Dominique Esquirol recebeu destaque em algumas citações brasileiras. Em sua obra Des maladies mentales, de 1838, um capítulo foi consagrado ao estudo do suicídio. Em setenta e duas páginas, Esquirol dedicou- se ao fenômeno, entendido como um dos objetos mais importantes da medicina clínica.52 A importância e a ressonância dos estudos e teorias de Esquirol sobre os t rabalhos médicos brasileiros foram, além das razões apresentadas, sugeridas por médicos e intelectuais franceses. Isso ficou evidente quando eu desenvolvi uma pesquisa documental em duas inst ituições francesas, a Bibliothèque Nat ional de France e o acervo da École de Médecine de Paris, e ao assist ir os seminários oferecidos pelo DEA da Université Paris VII. Recordo-me que, por várias vezes, encontrei citações em trabalhos médicos franceses sobre a repercussão e as apropriações do pensamento de Esquirol no meio médico francês e internacional. Por outro lado, em um seminário ministrado pela historiadora Yannick Ripa e outro, ministrado pela psicanalista Elisabeth Roudinesco, ambas indicaram a importância e a inovação do pensamento de Esquirol para a medicina, sobretudo a mental, do século XIX. Segundo Esquirol, o suicídio era um fenômeno provocado por grande número de causas, que se apresentavam com caracteres muito diferentes. Por isso, ele não concordava que este fenômeno fosse caracterizado necessariamente como uma doença. Por ter sido feito uma doença sui generis, foram estabelecidas proposições gerais para estudá-lo, muitas delas desment idas pela experiência médica. Assim, por exist ir uma variada sorte de causas, móveis, meios, finalidades para o ato e de diferentes possibilidades de definir o que era o suicídio, foi preciso, segundo o autor, ter cautela ao defini-lo com exat idão. Alguns casos foram invocados para explicar a diversidade de t ipos de morte agrupados em um mesmo conceito. Por exemplo, aquele que se sacrificou voluntariamente para obedecer às leis, para guardar a fé, para salvar seu país; as ví t imas de crenças religiosas, de costumes e hábitos de seu país; aqueles que acreditaram estar cumprindo um dever, fazendo uma ação memorável e digna de recompensa; ví t imas de guerras que se matavam para não serem capturados pelo inimigo, entre outros casos. Todos foram ut ilizados para indicar a necessidade de precisão. É importante notar que Esquirol apresentou sensibilidade histórica ao reflet ir sobre o suicídio. É claro que para ele t ratava-se de um fenômeno histórico e, por assim pensar, despertou no leitor a importância do contexto (temporal, social, religioso e polí t ico) na apreciação e estudo. Demonstrou, com convicção, algumas maneiras históricas de pensar e quest ionar o ato. Indicou o modo como cada período histórico problemat izou, não só o ato, como o sujeito que o prat icou. Ut ilizou, para tal, muitos exemplos e maneiras de representá-los. Cabe destacar que, no início do capítulo de sua obra, ele lembrou que o termo “suicídio” foi criado por Desfontaines, no século XVIII, ressaltando assim o caráter histórico do próprio termo ut ilizado em seu trabalho. Seu estudo privilegiou quatro principais temas: o suicídio provocado pelas paixões; o precedido de homicídio; os climas, estações, idades e sexos considerados como causas de suicídio; as alterações patológicas observadas nos suicidas. Neste momento, é importante destacar os fatores ut ilizados para pensar o suicídio: 1 - As paixões: fortemente excitadas e violentas, provocam perturbações no organismo, ou mesmo na inteligência; os indivíduos cometem, em certa medida, ações irreflet idas, contrárias aos seus inst intos, afeições e interesses, pois elas alteram, desordenam a razão, privam o homem da reflexão.53 2 - Dores físicas: alteram as sensações, concentram a atenção, abatem a coragem, privam da razão e alteram a sensibilidade. Aquele a quem a dor física não deixa de perturbar os sent idos, em nenhum instante lhe permite visualizar o final de sua cruel angúst ia e dor, mata-se após ter suportado seus males. Impaciente, subjugado pelos sofrimentos que o enfraquecem há tempos, age assim para pôr fim aos males intoleráveis, cede ao desespero reflet ido. 3 - Monomania: toda monomania pode conduzir à morte de si mesmo (meurtre de soi- même). Um monomaníaco escuta uma voz interior que incessantemente lhe repete: Mate-se, mate-se! Assim, ele se mata para obedecer a uma força superior, uma ordem da qual ele não pode se desviar. 4 - Nostalgia: as idéias, as lembranças, o pesar de não estar mais no país natal e a tristeza de estar longe dos objetos de suas primeiras sensações permitem o surgimento de um desespero violento, que domina todas as outras afecções e possibilita, assim, o suicídio. 5 - Diferença entre o tédio de viver e o ódio da vida: dois estados da alma bem diferentes, segundo Esquirol. O ódio da vida é um estado at ivo, que supõe uma sorte de irritação e exaltação da sensibilidade. Por outro lado, o tédio e o desgosto de viver são estados passivos, efeitos de atonia da sensibilidade. Feito presa de tristezas e melancolias reais ou imaginárias, o homem se aborrece com a vida e termina por odiá-la; e se mata. Odeia, na verdade, os sofrimentos que atravessam a vida, e por isso busca livrar-se das aflições, das contrariedades e t ristezas. Recorre à morte como o meio mais certo. Reconhece como causa, em especial nos estados de tédio de viver, a cessação de grandes ocupações, a passagem de uma vida muito at iva ao repouso e ociosidade. Desse modo, ociosidade ou excesso e abuso de emoções, prazer e at ividade podem conduzir ao suicídio, pois, entregue a um ou a outro caso, o homem pode se suicidar. A respeito dos suicidas, Esquirol explicou que alguns indicavam no comportamento, na aparência física e nas at itudes, os sinais de desordem grave da saúde. Por isso, admit iu que freqüentes mudanças comportamentais podiam ser observadas. O homem calmo e pacífico torna-se-ia impulsivo, impaciente e enérgico; o comedido transforma-se-ia em imprudente e suas ações seriam as mais instáveis e inesperadas; aquele que constantemente se entregava a ardentes conversações e debates fora visto rendido à solidão e lassitude. Outros, porém, não revelariam nenhum sinal do mal que os afligia e atormentava. Esses últ imos, para Esquirol, não evidenciavam as alterações que os conduziam, em muitos casos, ao suicídio. Por isso, o olhar médico deveria estar voltado, não somente para o sujeito que demonstrasse no dia-a-dia estar minado pelo mal, mas também para aqueles que vivessem cot idianamente sem revelar seus males, intenções,projetos e perniciosidade. Aqui fica visível a aproximação de Esquirol do projeto da medicina social. Além disso, havia indivíduos que se suicidavam mesmo vivendo no seio da fortuna, junto dos poderosos, gozando de prazeres e usufruindo de toda a capacidade da razão. Eram esses que conseguiam dar fim aos seus dias após abraçarem seus parentes e amigos, colocarem em ordem suas at ividades e deveres, escreverem suas cartas de despedida. Esquirol sugeriu que, mesmo vivendo em meio à felicidade, muitos indivíduos se matavam. Por isso, ele voltou o olhar para os aspectos individuais e patológicos. A respeito das causas exteriores aos indivíduos, Esquirol destacou que, sozinhas, elas não poderiam provocar o suicídio; havia, certamente, predisposições individuais, ou seja, certos estados físicos que modificavam, exaltavam ou enfraqueciam a sensibilidade. Somente no encontro da predisposição individual com causas exteriores ao indivíduo estas últ imas deflagravam o poder fatal. Ao mesmo tempo que o autor ampliou as possibilidades de pensar as causas que poderiam levar um indivíduo ao suicídio, ele voltou ao ponto central de sua análise, a relação com o mental e o patológico. Tal análise foi desenvolvida por Esquirol no capítulo da obra sobre as doenças mentais, temat izando o suicídio juntamente com doenças, molést ias e perturbações mentais. Ao explicar as alterações patológicas observadas nos suicidas, o autor afirmou que o ato de se dar à morte podia muito bem ser um sintoma de alienação mental. Ressaltou não ser necessário buscar uma sede única, porque ele podia ser observado em circunstâncias as mais opostas possível. No tocante aos recursos terapêut icos, corresponderiam aos mesmos das doenças mentais, e repousariam essencialmente na apreciação das causas e dos mot ivos determinantes da morte. Neste sent ido, ele lembra que alguns médicos chegaram a propor um tratamento mais específico contra o suicídio. Por exemplo, aqueles estudiosos persuadidos de que o fígado era a sede do mal e de que a bí lis era o princípio, aconselhavam purgat ivos hepát icos. Por outro lado, aqueles que acreditavam na tendência do suicídio surgir do enfraquecimento ou da opressão do princípio vital aconselhavam os tônicos em grande dose.54 Apesar dos tratamentos serem considerados “específicos”, poderiam ser ut ilizados para as outras doenças mentais; poderiam ser aplicados nos casos de tentat iva de suicídio. Mais uma vez, a análise retornou ao eixo principal, ou seja a relação entre o ato suicida e as doenças e os distúrbios mentais. Esquirol dissertou sobre as consideradas “causas de suicídio”, sobre as maneiras de teorizar o ato, e também, é claro, sobre o modo de ident ificar e localizar o sujeito doente (suicida), uma vez que nem todos exteriorizavam seus males e doenças. Indicou claramente a necessidade de pensar o fenômeno a part ir de quadros e referências plurais. Veja, a esse respeito, a amplitude de causas que foram invocadas pelo autor: do patológico e individual ao social e extra-individual, da hereditariedade aos climas, da loucura ao sexo. Mas nem tudo gravitou nesse campo de diversidade e pluralidade. Como aconteceu com quase todos os estudos sobre o tema, após alargar o horizonte de possibilidades de teorias e causas, o olhar foi redirecionado para uma mesma questão: a necessidade de pensar o suicídio a part ir de suas relações com o universo do mental, com teorias, conceitos, diagnóst icos, causas, t ratamento, representações, inquietudes e medo próprios, ou melhor, t ransformados em “próprios” das doenças e distúrbios mentais. Lembro que, para o autor, as causas exteriores só foram capazes de produzir suicídio em indivíduos predispostos. Para concluir, Esquirol indicou que, por ser “quase sempre” uma doença, o suicídio não era crime e, por conseqüência, o suicida não poderia ser punido. Pelo fato do homem atentar contra seus dias, na maioria das vezes em estado de delí rio, e de muitos suicidas serem alienados, a responsabilidade pelo ato de se dar à morte não lhes cabía. Doentes e não senhores de si eram levados ao suicídio, que, segundo o autor, se propagava de uma maneira apavorante, colocando em risco as famílias e a sociedade. Por isso, advert iu que, por interesse da humanidade e da sociedade, todas as providências deveriam ser tomadas contra o ato que ultraja as leis naturais, as leis religiosas e as sociais. Em outras palavras, era preciso prevenir o suicídio, e esta foi a tarefa de todo o seu trabalho. Em todos os discursos até aqui apresentados e analisados, o suicídio foi problemat izado a part ir de sua referência com o incerto — no sent ido de diversidade —, universo dos distúrbios, anormalidades e deficiências das capacidades mentais — raciocinar, reflet ir, pensar, ponderar e decidir. Uma referência historicamente construída, como demonstraram Georges Minois, Mart ins Monest ier, Pierre Moron e Marcos Veneu, autores que apresentaram formas diversas de problemat izar o suicídio em diferentes momentos. No século XIX, o debate em torno do suicídio foi delimitado pela oposição entre a razão e as doenças mentais. Neste debate, muito do que foi ut ilizado em teses brasileiras, no tocante às teorias e conceitos, baseou-se em estudos médicos de países que temat izaram o suicídio desde as últ imas décadas do século XVIII; a França inspirou predileção. Diante do exposto, e em especial no referente à apropriação dos estudos e análises de Esquirol, concluo que dois caminhos foram percorridos pelos médicos brasileiros durante o século XIX ao temat izarem o suicídio pensado como objeto pertencente ao universo das doenças e distúrbios mentais. O primeiro caminho foi desbravado por aqueles que pensaram o ato a part ir das alterações do juízo e dos distúrbios das faculdades mentais. Esses facultat ivos, leitores de Esquirol, problemat izaram o suicídio a part ir de tais distúrbios e das alterações provocadas pela monomania. Foram eles: Muniz Barreto (1841), Fonseca Vianna (1842) e, em especial, Freitas Albuquerque (1858), que desenvolveu toda sua tese exclusivamente a part ir do conceito de monomania. Outros, como Rodrigues Torres (1843), buscaram na diferença entre o tédio de viver e o ódio da vida — proposições de Esquirol —, inspiração para estudar o suicídio como uma enfermidade caracterizada pelo desapego à vida e pela tendência à destruição. O segundo caminho foi delineado pelos autores que discerniram dois t ipos de suicídio: aquele provocado por algum t ipo de doença mental, como a loucura, e por isso ato involuntário, e um outro, no extremo oposto, o suicídio reflet ido e voluntário. Os médicos brasileiros Nicoláo Joaquim Moreira (1867) e Nabuco de Araújo (1883), e o jurista Viveiros de Castro (1894) — note-se que foram trabalhos da segunda metade do século XIX , diferentemente de outros autores da primeira metade —, citaram Esquirol como uma importante referência para quem se dedicasse ao estudo do tema, mas observaram, em especial, o fato de o médico francês ter salientado que o suicídio era “quase sempre” uma doença. Ao enfat izar outra proposição do autor, os médicos brasileiros da segunda metade do século XIX just ificaram a necessidade de pensar não só a sede do suicídio, mas também, como fez Esquirol, pensar se o ato de se dar à morte era ou não um crime e, por conseqüência, se o suicida poderia ou não ser punido pela sociedade. Quanto às causas do suicídio, como aconteceu com Esquirol, esses médicos também entreviram uma pluralidade delas. Entre tantas, os excessos das paixões, vícios como o álcool, abusos sexuais, a diferença sexual, a idade, a leitura de certos romances, a cobertura detalhada por parte da imprensa e, também, a miséria. Até aqui, vimos, conforme a minha intenção para o capítulo, que a temat ização do suicídio esteve centrada em um problema, em uma abordagem onde, me parece, as causas para o suicídio dependiam de uma definição patológica. Assim,no jogo da temat ização e das relações das causas do suicídio com o “que o ser humano tem de mais concreto” — o corpo — é que foi definido o ato suicida; era no corpo que a “sede” do suicídio deveria ser encontrada e onde, também, se manifestaria o sinal da desordem e do desequilíbrio. Além disso, o jogo de regras, de nuanças e de forças foi configurado como lugar privilegiado de exercício de poder, ou de poderes, por um saber médico que assumiu historicamente o direito de falar, temat izar, problemat izar, diagnost icar, localizar e curar. Cabe lembrar que a prát ica médica desse saber fez parte do grande esforço de disciplinarização e de normalização realizado pelo século XIX55, e que as técnicas de disciplinarização do corpo t inham por objet ivo a criação de um sujeito apto a submeter-se às exigências econômicas, sociais e polí t icas da sociedade. Por fim, apesar de configurar-se como produto de uma mult iplicidade discursiva, a construção do suicídio exposta pela medicina pressupunha que o ato suicida devia ser sempre avaliado a part ir do uso, ou não, das faculdades mentais, da razão. O próximo passo diz respeito aos discursos médicos temat izando o suicídio a part ir dos excessos e abusos das paixões, das diferenças sexuais e da influência da literatura. Veremos também se o discurso médico modificou-se ou manteve-se no eixo patológico, já apresentado e analisado. CAPÍTULO III — A RELAÇÃO ENTRE AS PAIXÕES E O SUICÍDIO Os discursos, as teses e os estudos médicos brasileiros produzidos ao longo do século XIX privilegiaram as paixões como causas de suicídio. Em prat icamente todos os estudos consultados, desde as primeiras teses médicas, foi possível perceber que corações part idos, amores não correspondidos, frustrações provocadas por paixões impossíveis ou de uma variada gama de t ipos e formas incomodaram os nossos médicos. Estudos de autores e pesquisadores brasileiros ou franceses, fossem eles médicos, filosóficos, históricos e/ ou literários, tentaram explicar o suicídio a part ir das desordens mentais, sociais e morais, dos abusos e dos excessos provocados pelas paixões. Mas não foram somente os médicos-cient istas que se preocuparam ou narraram possíveis relações entre as paixões e a morte ou o suicídio. Poetas, romancistas, escritores dos mais diversos gêneros e t ipos também se intrigaram com as histórias permit idas por paixões e seus excessos. Um exemplo nacional foi Álvares de Azevedo, inquieto escritor que fez uso das palavras, belas por sinal, para narrar as experiências de homens e mulheres suicidas, envolvidos em histórias de amor, sexo, incesto, assassinato e t raições. E m Noite na Taverna, Azevedo deu voz a t rês homens — Bertram, Gennaro e Claudius Hermann —, que contavam suas aventuras e desventuras aos ébrios à mesa.1 Bertram, ao narrar para os seus companheiros as suas experiências na Itália, descreveu em detalhes uma noite em especial, quando já saciado de vinho e de mulheres, tentou suicidar-se. O cenário para o seu últ imo ato era lúgubre: A noite escura e eu chegara só na praia. Subi num rochedo: daí minha última voz foi uma blasfêmia, meu último adeus uma maldição (...).2 Gennaro, como os seus companheiros de Taverna, ao narrar uma das suas fantást icas histórias relatou como conseguiu sobreviver após a tentat iva de suicídio: depois de desonrar a filha virgem de seu mestre, foi perseguido para que pagasse com a vida o crime cometido. Encontrando-se à beira de um abismo, entre ser assassinado ou tentar o suicídio, optou pela segunda alternat iva. No entanto, salvo por camponeses, podia falar das suas aventuras em tom heróico e regado a bebida. O últ imo a embriagar os homens da Taverna com suas experiências fantást icas foi Claudius Hermann, que, envolvido com uma mulher casada — a duquesa Eleonora — e não tendo conseguido ver outra alternat iva à vida depois de tê-la em seus braços, encontrou somente uma solução: Uma idéia me perseguia. Depois daquela mulher nada houvera mais para mim. Quem uma vez bebeu o suco das uvas purpurinas do paraíso, mais nunca deve inebriar-se do néctar da terra... Quando o mel se esgotasse, o que restava a não ser o suicídio?3 Dessa forma, esses três personagens construiram — a part ir de suas fantasias e aventuras — situações, mot ivações e causas diretamente relacionadas com o considerado “perigoso” mas efervescente universo das paixões. Note-se o detalhe, não ocasional, de estarem eles em uma taverna, lugar de vícios e de paixões desenfreadas, relatando suas experiências entre muitos copos de bebida. Além das tavernas, bebidas e “mulheres fáceis” que freqüentavam esses “antros”, o ciúme, a t raição, a chantagem e o jogo eram invocados em outras histórias de paixão. Várias delas foram, inclusive, musicadas e encenadas em óperas apresentadas nos mais ilustres teatros europeus do século XIX. Vincenzo Bellini (1801-1835), Giuseppe Verdi (1813-1901), Carlos Gomes (1836- 1896), Piotr Ilyich Tchaikovsky (1840-1893), Giacomo Puccini (1858- 1924), entre outros, foram compositores e autores de ópera que fizeram uso das palavras, melodias e notas musicais para narrarem histórias de suicidas. Algumas dessas óperas são: de Bellini — Norma; de Carlos Gomes — Salvador Rosa; de Puccini (o meu preferido) — Madame Butterfly, Tosca, Soror Angélica, Turandot ; de Tchaikovsky — A dama de Espadas; de Verdi — Ernani. Entre tantas construções, é possível perceber como os sent idos e significados atribuídos às paixões como causa de suicídio foram const ituídos. Por assim pensar, selecionei algumas obras para, por meio delas, analisar tal relação const itut iva. Giuseppe Verdi estreou em 1844 a ópera Ernani, que se passa na Espanha do início do século XVI e narra a história de três poderosos homens apaixonados pela nobre dama espanhola Dona Elvira: Ernani, ou Juan de Aragon, um nobre transformado em chefe de bandoleiros, Don Ruy Gómez da Silva, noivo de Elvira, e o rei Don Carlos. A história é marcada por pactos e t raições provocados pelo desejo de possuir a bela Elvira. A ópera termina com o suicídio de Ernani, cumprindo um pacto firmado com Don Ruy para salvar a vida de sua amada.4 Piotr Ilyich Tchaikovsky, com a ópera que estreou em 1890, relatou uma história que tem o jogo e suas conseqüências funestas como eixo principal. Quatro personagens estavam envolvidos, movidos pelo amor e interesse: o oficial Hermann, a jovem Lisa, o príncipe Yeletsky e a condessa chamada “a dama de Espadas” — avó de Lisa. Hermann amava Lisa, mas não podia desposá-la por não ter condições financeiras para tal. Lisa era apaixonada por Hermann, mas ficou noiva de Yeletsky, que a amava mesmo sem ser correspondido. A dama de espadas possuía um estratagema, que recebeu em segredo de um de seus amantes, para ganhar no jogo com três cartas. Não podia revelá-lo a ninguém, nem mesmo a Hermann. Lisa suicidou-se, at irando-se no rio ao perceber que o seu amado estava perdendo a razão por pensar somente em como ganhar no jogo; Hermann, cumprindo o que Lisa havia anunciado, suicidou-se com um punhal, ao perder toda a esperança na mesa de jogo com o rival, no jogo e no amor, Yeletsky.5 Ainda sobre as funestas decisões tomadas à mesa de jogo, a imprensa brasileira, como o jornal Diário de Campinas, costumava not iciar casos semelhantes. Vejamos alguns exemplos: EM MÔNACO Durante o ano de 1897 suicidaram-se em Mônaco, após a perda de grandes quantias no Cassino daquele principado, trinta e cinco pessoas, ou seja, quase uma média mensal de três indivíduos que ali fo ram, buscar a fortuna e encontraram a morte.6 SUICÍDIO Suicidou-se anteontem em Santos o alfaiate Hugo Harris. O infeliz freqüentava há tempos assiduamente casas de jogo, e presume-se que foram as perdas na ro leta que o conduziu a tão desesperada reso lução.7 Esses casos sugerem em que medida a imaginação literária podia moldar e const ituir o imaginário social. Tantoem obras ficcionais, como em notas de “suicídios reais”, era possível perceber uma sintonia de causas, mot ivações e meios. Não por acaso, esse foi o principal medo dos médicos que estudaram o suicídio: a vida copiar a arte; pessoas reais imitarem os heróis literários.8 Em 1900, anos depois de Tchaikovsky, o italiano Giacomo Puccini nos levou a Roma, mas precisamente ao luxuoso Palácio Farnese e ao Castelo Sant ’Angelo, com a ópera Tosca. Neles desenvolveram-se a história e o romance entre a célebre cantora e grande diva da época, Floria Tosca, e o pintor Mario Cavaradossi. Além desses personagens, outros dois, o Barão Scarpia e o auxiliar Spolet ta, envolveram-se na vida e na morte de Tosca e Cavaradossi. Ví t ima de chantagem por parte de Scarpia, que a desejava ardentemente e havia capturado Cavaradossi, Tosca suicidou-se ao descobrir que o acordo firmado com seu algoz, para garant ir a vida de seu amado, não t inha sido cumprido. Cavaradossi estava morto. Sem razão para viver, preferiu saltar do parapeito do Castelo Sant ’Angelo, recusando a vida sem o seu amado. Muitas outras histórias relataram como e porque homens e mulheres deixaram de viver, preferiram a morte à vida. As diversas histórias sugeriram uma pluralidade de causas, de concepções acerca das paixões. Uma gama quase infinita de possibilidades, para pensarmos em que medida as paixões influenciavam e permit iam mortes por suicídio. Contudo, foi possível observar uma tendência presente em tais possibilidades: a de ident ificar e analisar as desordens provocadas pelas paixões, mentais e patológicas, mas também morais e sociais. Essa mesma tendência também foi percebida nos trabalhos médicos brasileiros. Antes de focalizá-los, o primeiro passo na tarefa de analisar os discursos médicos produzidos no século XIX foi compreender quais as definições construídas e ut ilizadas para as paixões. Por assim pensar, me dediquei à apresentação e análise de algumas obras que tentaram defini-las. O objet ivo não foi buscar uma essência ou definição para “paixão”, mas sim ident ificar a pluralidade de seus usos e significados, para compreender as formas de sua construção nesses saberes, fornecendo elementos para historicizar o conceito. AS DIVERSAS CONCEPÇÕES ACERCA DAS PAIXÕES Palavra que designa múlt iplos significados, conceito que denota at itudes, causas e objetos variados, a paixão é invocada em referências também plurais. Nada nesse campo é concreto, modelado, de simples definição e de fácil observação e análise. Mas, antes de tudo, é importante estabelecer critérios ao trabalharmos com as chamadas “paixões”. Segundo trabalhos recentes, como o Dicionário Aurélio, paixão é um sent imento ou emoção levados a um alto grau de intensidade, sobrepondo-se à lucidez e à razão; amor ardente; inclinação afet iva e sensual intensa; afeto dominador e cego; obsessão; entusiasmo muito vivo por alguma coisa; at ividade, hábito ou vício dominador; desgosto, mágoa e sofrimento; arrebatamento, cólera ou disposição contrária ou favorável a alguma coisa, e que ult rapassa os limites da lógica.9 De acordo com o dicionário francês Le Petit Robert, paixão é sofrimento; todo estado ou fenômeno afet ivo; estado afet ivo e intelectual muito forte que domina a vida do espírito pela intensidade de seus efeitos ou pela permanência de sua ação; uma viva inclinação a um objeto que se persegue e ao qual se dedica todas as suas forças; afet ividade violenta que anula todo o julgamento; opinião irracional, afet iva e violenta. São relacionados como seus antônimos a calma, o desapego, a lucidez e a razão.10 O dicionário enciclopédico Koogan Larousse define a paixão como sendo um movimento violento, impetuoso do ser para o que ele deseja; atração muito viva que se sente por alguma coisa, objeto dessa afeição; predisposição para ou contra; arrebatamento, cólera, afeição muito forte.11 Essas três obras destacam o caráter intenso, violento e impetuoso das paixões; at ividade, movimento, tendência, afet ividade e/ ou sent imento que domina, arrebata e subjuga o homem; força que transgride os limites prescritos pela razão; em últ ima instância, a dist inção entre paixão e razão.12 Essas definições e sent idos foram recorrentemente ut ilizados pelos médicos brasileiros no século XIX. Para eles, fez sent ido opor paixão a razão para explicar como as paixões conduziam os homens ao seu fim, à morte, ao suicídio. Segundo Delley, estudioso do tema, inclusive em seu aspecto histórico, as paixões podiam representar a irrupção na alma do homem de qualquer coisa mais forte do que ele mesmo, conferindo-lhe grandiosidade trágica, na medida em que o entregavam ao infortúnio do impossível. Escapavam ao controle: vontade e razão nada podiam contra o seu poder invasor.13 Em La passion, l’obstacle et le roman, Delley apresentou as paixões como força contrária à razão. Outra autora que estudou a temát ica e se aproximou da perspect iva de Delley foi Geneviève Dewulf. Ela definiu a paixão como violenta e intensa, de uma força que se exprimia literalmente por múlt iplas metáforas, inconcebível sem o desejo, que se manifestava sob múlt iplas formas. Assim, a paixão era ebulição interior, mas se traduzia às vezes, paradoxalmente, por uma dolorosa impotência de ação, excluindo toda possibilidade de análise, inclusive a racional.14 Mériam Korichi advert iu para a complexidade, e mesmo para o problema do uso da palavra e do conceito “paixão”. Desse modo, historicamente a instabilidade semânt ica da “paixão” permit iria muitas nuanças, que seriam, para Korichi, algumas tonalidades diferentes para a palavra: sofrimento, infelicidade, doença, desejo, comoção e afeto.15 Um outro aspecto a ser destacado é que essa riqueza semânt ica pode ter sido fator de tensão no seio da própria noção. Como exemplo de tensão, o autor citou a observável dimensão “erót ica” que implica e é explicável por um engajamento, ao menos parcial, do sujeito em seu movimento. Essa dimensão erót ica parece ser dificilmente conciliável com outra, também recorrente: a “designação de sofrimento”. Nessa perspect iva, o sujeito perece por causa de uma ação que lhe é exterior. Para salientar a historicidade da paixão, Korichi destacou, de início, que o importante seria perceber que o passional se definia, em primeiro lugar, por oposição ao racional e lógico. Essa observação é importante, pois foi permit ida pelos médicos modernos — profissionais que problemat izaram “modernamente” as doenças mentais a part ir do final do século XVIII —, inclusive por aqueles que se dedicaram ao estudo do suicídio. A oposição do pathos ao logos determina seus caracteres dist int ivos: o logos corresponde ao campo da razão, da ordem, da harmonia, da claridade, da universalidade, da vida; o pathos corresponde ao campo que é estritamente o negat ivo do primeiro, aquele do irracional, da desordem, da desarmonia, da obscuridade, do variável, da part icularidade, da doença, da loucura e da morte. Segundo a sua concepção, essas linhas de divisão encontravam-se até no uso contemporâneo, onde paixão no plural significava desordem e violência, de uma irritação — cólera considerada contrária ao que era esperado do indivíduo, ao que deveria ser “natural”. Note-se que, normalmente, o que se esperava do indivíduo era a constante e quase diária luta pela vida, pelo cont inuar vivo e at ivo e não o suicídio, considerado, portanto, ato ant inatural. Segundo Jérome-Antoine Rony, sempre se chamaram “paixões” as agitações da alma que escapavam à vontade. A história da noção nos moralistas, filósofos e psicólogos europeus mostrava uma oscilação constante entre os sent idos da palavra: idéia fixa, intensa e durável; inclinação exagerada; uma força semelhante ao inst into; uma das formas da vontade; situação limite; refúgio criado num mundo imaginário; situação de incômodo e indisposição consigo mesmo; violenta afet ividade; obsessão at iva e voluntária;possessão; necessidade imaginária e idealizada; est ilo de vida; verdadeira combinação de elementos psicológicos e morais. Mas havia ainda a vertente daqueles que descobriram nas paixões um elemento vesânico, chegando a encará-la, como fez Kant, como doença da alma.16 Apesar da intrigante diversidade de definições e sent idos, as variadas interpretações se aproximaram da relação entre as paixões e a razão. Em prat icamente todas as interpretações, a relação entre as paixões e o raciocinar, o reflet ir e o ponderar foram, de forma explícita ou tênue, referência obrigatória. A própria relação entre as paixões e a razão também seguiu um caminho marcado por várias definições e diferentes posições. Assim, as paixões poderiam resultar do caráter e das idéias do homem, mas também ser a causa da alteração dessas próprias idéias, ao perturbar as faculdades do entendimento ou impedir a sua ut ilização. Resumindo, poderiam ser fruto da razão tanto quanto a principal causa de sua perturbação, instabilidade, alteração, enfraquecimento ou, até mesmo, anulação, de forma parcial, total e/ ou definit iva, muitas vezes demonstrando uma certa “pitada” de loucura. Nesse sent ido, os objetos da paixão também eram variados: uma mulher, um homem, um filho, um bem, uma necessidade, o ouro, a prata, a fortuna, o poder e o sucesso eram objetos reais ou imaginários, em geral cultuados e t ransfigurados. De acordo com Jérome- Antoine Rony, o objeto deixou de ser um meio e foi t ransformado em um propósito, fim, termo, algo ou alguém a ser possuído, dominado e /ou conquistado. Como o que interessava era indicar que, em muitos momentos, a paixão foi pensada em relação direta ou não à razão, o passo seguinte foi a análise dos trabalhos médicos brasileiros sobre o suicídio, que privilegiaram a paixão como causa de morte. Saliento mais uma vez que as paixões foram invocadas para designar at ividade, movimento, tendência, afet ividade e/ ou sent imento que domina, arrebata e subjuga o homem, além de perturbar, confundir, enfraquecer ou anular a razão. O OLHAR MÉDICO BRASILEIRO SOBRE AS PAIXÕES: EXCESSOS, PERVERSÕES E MORTE Os modos por meio dos quais somos levados a dar sent ido e valor ao suicídio foram influenciados, ou, poder-se-ia dizer, sugeridos, ou ainda, permit idos pelo discurso médico. Essa influência, sugestão e/ ou permissão é ní t ida no que diz respeito às paixões e seus excessos como causa de suicídio. Assim, “um amor desenfreado”, “um relacionamento louco e sem limites”, “os prazeres ilícitos do jogo, do sexo e da fortuna”, entre tantos outros veredictos, foram esboçados, desenvolvidos e divulgados por discursos normat ivos, principalmente o médico, para pensar as causas de suicídio. Sobre essa questão, não poderia deixar de fazer referências às palavras de Foucault , quando ele advert iu que: A pretexto de dizer a verdade, em todo lado provocava medos (...) afirmou perigosos à sociedade inteira os hábitos furtivos dos tímidos e as pequenas e mais so litárias manias; no final dos prazeres insó litos co locou nada menos do que a morte: a dos indivíduos, a das gerações, a da espécie.17 Hábitos cot idianos e já vulgarizados socialmente passaram a ser nocivos. Neste contexto, as paixões começaram a dar mais volume à imensa lista das causas de suicídio. Mas, como foi inst ituído no Brasil o jogo nocivo e mortal entre paixões e suicídio? Como esse jogo permit iu e possibilitou vários casos de morte? Foi possível encontrar respostas interrogando os discursos “responsáveis” pela produção de sent idos e verdades sobre o suicídio, que, ao considerarem a doença sob uma perspect iva social, não mais isoladamente, t rouxeram consigo interditos e proibições, além de classificarem comportamentos, gestos, hábitos e sent imentos de homens e mulheres. Afinal, quais as questões desenvolvidas pelos médicos brasileiros sobre as paixões e o suicídio? O Dr. Figueiredo Jaime, em tese apresentada e defendia no ano de 1836, dist inguiu dois t ipos de paixões: as bem dirigidas e as nocivas à vida. Segundo sua compreensão, a Providência teria dado os afetos da alma para garant ir a conservação da nossa espécie e do indivíduo. Por essa razão, esses afetos seriam “a mola real da vida”, infundidos pelo Criador em nossa alma com o desígnio de nos dirigir nas “escabrosas sendas desta vida”.18 De acordo com sua posição, as paixões bem dirigidas produziriam as grandes ações, as grandes virtudes e os grandes heróis. Somente guiados pela razão, os homens poderiam encarar e discernir os acontecimentos e suas reações, buscar o bem, amar no prazer lícito e, congruentemente, fugir a tudo quanto se apresentasse avesso à sua conservação. Assim, as paixões “bem dirigidas” garant iriam a vida e seriam compatíveis com a razão. Por outro lado, como resultado da debilidade da organização das sociedades, de sensações depravadas, das idéias inadequadas ou obscuras, dos juízos errôneos ou fantást icos e de uma infinidade de outras causas, os afetos da alma poderiam se degenerar. Uma vez em desacordo com o que seria o seu “estado natural”, ou seja, uma vez degenerados, os afetos perturbariam a alma impedindo o alcance da felicidade. Nesse caso, a paixão poderia ser causa de morte e suicídio. Segundo o autor, a felicidade é o fim natural de todo homem. Dirigido pelos afetos da alma, ele deseja, invencivelmente, ser feliz. Porém, a razão incerta associada às paixões cegas o desvia do termo que aspira com tão vivo ardor. Com esse estudo, o Dr. Figueiredo Jaime esboçou uma sut il oposição entre o racional e o passional. A razão foi dada ao homem, segundo o autor, para que ele pudesse fugir de tudo que se apresentasse avesso à sua conservação. Com essas característ icas, a razão foi pensada como força de vida. Por outro lado, quando a alma era “perturbada” ou “afetada” por paixões nocivas e cegas, o homem era afastado da felicidade, das virtudes e da vida. O Dr. Muniz Barreto, em tese sobre as principais enfermidades dos homens de letras, já analisada em capítulo anterior, destacou, no considerado estilo de vida próprio dos homens que se entregam aos encantos da vida literária, alguns comportamentos oriundos desse est ilo de vida que, inflamados por certas paixões, poderiam conduzir ao suicídio.19 Como vimos, a principal crí t ica do autor se referia à disposição habitual de tais homens para tudo desprezar, nada mais atender do que aos encantos da vida literária. Assim agindo, esses homens comprometiam a saúde em virtude de uma aplicação total às letras e às ciências: (...) Longe de excitar os homens que se destinam à carreira das letras a abandoná-la, inspirando-lhes temores vãos ou exagerados sobre os perigos, que lhes possam sobrevir, nada mais farei que indicar os meios capazes de contrabalançarem os efeitos perniciosos da meditação e outros exercícios habituais do espírito , subtraindo- os às numerosas enfermidades que deles lhes possam resultar, e contribuindo ao mesmo tempo para pro longar sua existência.20 Com a finalidade de contribuir para prolongar a existência de tais homens, Muniz Barreto indicou os meios capazes de “contrabalançar” os efeitos considerados perniciosos da meditação e de outros exercícios habituais do espírito. Dessa maneira, o equilíbrio físico e mental passou a ser necessário, principalmente porque o desequilíbrio de tais forças provocaria distúrbios das faculdades intelectuais. Como conseqüência, o suicídio era prat icado por aqueles que se entregavam aos encantos da vida literária. Foi assim que o ato de se dar à morte foi temat izado como “alteração do juízo”. Como fator e causa de alteração do juízo, o autor observou em tais homens uma organização muito suscetível às impressões, contrastada por um sistema nervoso que vivia em um eret ismo permanente, em uma espécie de intempérie e irritabilidade. Esses fatores faziam com que, segundo sua compreensão, esses homens de letras caminhassem a passos largospara o termo de sua inquieta existência. De acordo com o Dr. Muniz Barreto era possível perceber a diminuição gradual da contrat ilidade, conspirando para a perda da faculdade de que é dotado o indivíduo de neutralizar a ação perniciosa de um grande número de agentes modificadores, muitos deles considerados externos a ele próprio. Por assim pensar, ele destacou como causa exterior de doença as vigí lias prolongadas e repet idas, a vida sedentária, a retenção de urinas e das matérias fecais, a solidão, os hábitos extravagantes, a falta de ar puro e renovado. Foi nesse momento que sublinhou o caráter das paixões e das afeições morais, entendidas como causas exteriores ao indivíduo, mas que o afetavam sobremaneira. É importante lembrar que, assim como o Dr. Figueiredo Jaime, o Dr. Muniz Barreto observou formas diversas de paixões. Essas paixões, consideradas exteriores ao indivíduo, dependeriam de outras causas físicas e patológicas para provocar o suicídio. É nesse sent ido que o autor estudou a alteração do tecido dos principais órgãos humanos, tais como estômago, rins e fígado, pois ela seria capaz de produzir desequilíbrio e desordem interna — causa patológica. Os efeitos se reflet iriam especialmente na natureza e caráter das idéias, podendo “auxiliar” as causas exteriores ao indivíduo, principalmente aquelas presentes nos meios sociais, a produzirem o suicídio. O estudo ofereceu provas evidentes da ação que cada um desses órgãos exercía sobre o cérebro, responsável pelas faculdades do entendimento. Assim, o cérebro foi visto como “ví t ima” imolada pelo literato no altar das letras e ciências. O mesmo órgão, que pode ser definido como fonte de prazeres e delícias para o intelectual, poderia também, segundo o Dr. Muniz Barreto, ser reputado em muitos casos como atrium mortis, como fonte perene de amargores e desprazeres, se devidamente observadas as suas afecções mórbidas. Dessa maneira, após ter sido at ingido, uma alteração global era observada. As faculdades do entendimento eram afetadas, o caráter das paixões e afeições morais era mudado e o espírito tornava-se sombrio e t riste. O caráter movediço, desigual e irascível, muitas vezes se transformava em feroz e cruel; as ações, discursos e interpretações tornavam-se extravagantes e malignos. Algumas vezes, todos os sent imentos ternos e afetuosos eram aniquilados, ou de tal sorte t ranstornados, por efeito desta alteração do juízo, que o indivíduo evitava a companhia dos parentes e amigos mais caros, e, muitas vezes, era também atormentado por uma tendência terrível para o suicídio. No que se refere às paixões, o Dr. Muniz Barreto demonstrou que os excessos provocados por elas — os também excessos de meditação, leituras, vigí lias, sensibilidade —, como também, entre outros fatores, a falta de exercício e de uma alimentação que proporcionasse uma boa nutrição, não permit iam o obrigatório equilíbrio da economia para manutenção da vida. Por outro lado, o Dr. Rodrigues Torres privilegiou as paixões entre as “causas ocasionais de morte voluntária” ao detectar nas forças e elementos vitaes a sede do suicídio. Mas, antes de analisar suas considerações, é preciso relembrar um aspecto muito importante do seu trabalho, a importância concedida aos sintomas.21 Segundo sua tese, era na observação dos sintomas que muito se avançaria no estudo do suicídio, pois eles t raduziam distúrbios, alterações e diferentes graus de anormalidade das forças e elementos vitaes. Muitas respostas seriam encontradas para compreender o suicídio somente nos comportamentos, at itudes, gestos e palavras daqueles afetados pelo desequilíbrio. No estudo das paixões como causa de suicídio, essa mesma regra foi ut ilizada pelo autor. Apesar de concordar com a existência de uma variada sorte de causas que podiam levar o homem ao suicídio, o Dr. Rodrigues Torres dividiu-as em inerentes ou alheias à sua const ituição. Ou melhor, entre causas que predispunham e causas que ocasionavam. As paixões fariam parte das causas que ocasionavam o suicídio. Problemat izadas como causa ocasional de quase todas as molést ias mentais, aquelas que alterariam o equilíbrio das forças e elementos vitaes seriam as paixões mais veementes, que com a força de seus excessos tumultuariam toda a economia. De acordo com a compreensão do Dr. Rodrigues Torres, os indivíduos que se davam à morte “na força de paixões veementes” não deixavam traços de lesão nos órgãos ou no sistema nervoso. Os sintomas eram visíveis somente nas at itudes, comportamentos, gestos e palavras daqueles avassalados por sua t irania. Dentre os excessos das paixões, o autor destacou a nocividade das bebidas alcoólicas, do amor e da fortuna. Entendida como causa ocasional, cada paixão poderia deteriorar o desejo de conservar a vida, proporcionando a ext inção total da consciência. Assim, o chamado “influxo das paixões” caracterizava um estado anormal. A esse respeito, Dr. Rodrigues Torres citou um estudo francês, apresentado na Academia Real das Sciencias de Paris, que mostrava o mais depurado egoísmo, ladeado por todas as paixões, como o principal móvel do infeliz cálculo (suicídio). Em suas palavras, Sem dúvida o ambicioso, que só cura de honras, que só de glória se alimenta, rasga com mão de homicida o próprio peito (...) Aquele que é vítima de amor porque suas o ferendas não são aceitas pela divindade que adora, ou porque má fortuna lhe põe estorvos, morre fantasiando melhor vida. O avarento que respira a atmosfera do interesse morre asfixiado se lhe falta esse manancial de vida, mas pondo-o em seu elemento , vereis que não há vida que lhe baste.22 Normalmente, os jornais divulgavam casos de suicídio que, segundo era especulado, teriam como causa principal algum t ipo de paixão, como aquelas descritas pelo Dr. Rodrigues Torres: Encontrado morto . Fo i encontrado morto hontem às 4 horas da tarde, à rua do Rosario , o allemão Guilherme Winder, cujo cadáver fo i conduzido à cadeia, a fim de a po licia proceder ao exame legal. Suppõe-se que a morte deste infeliz hontem teve por causa a embriaguez, segundo nos informam, po is que elle se dava em excesso ao uso de bebidas alcoó licas.23 De acordo com ele, o abuso de bebidas alcoólicas era de grande influência nos casos de suicídio, e deveria estar devidamente relacionado a algum t ipo de afecção moral. Da mesma maneira, os excessos de uma paixão amorosa não correspondida, os perigos provocados pelas grandes fortunas e o desejo de sempre estar ligado a elas, gozando de seus frutos e regalias, eram exemplos daquilo que poderia ocasionar a morte voluntária, ao provocar desequilíbrio e desarmonia das forças e dos elementos vitaes. É interessante observar que para o médico nem mesmo a razão nada podia contra a força destrut iva das paixões. Alguns casos not iciados pela imprensa, como o jornal Diário de Campinas, podem exemplificar a concepção do Dr. Rodrigues Torres: 1) Hontem às duas horas da tarde tentou suicidar-se, tomando 40 gramas de arsenico disso lvidos em vinho, João Guimarães, moço empregado na companhia do Gaz. As seis horas declarou o alludido moço que se achava envenenado, quando já sentia os effeitos do veneno. Ha esperança de salva-lo . Dera motivo à sinistra reso lução, segundo nos dizem, uma paixão amorosa.24 2) Suicidou-se ante-hontem disparando um tiro na cabeça, o allemão de nome Adolpho Rother, o fficial de torneiro cuja pro fissão exercia. O infeliz suicida morava no bairro de Santa Cruz segundo nos informam, o motivo que o levara a pôr termo à vida fora ve-se ho je reduzido à necessidade pela perda de alguns bens de fortuna que possuía.25 Da mesma opinião, o Dr. Mello Moraes discorreu sobre a fisiologia das paixões.26 Segundo ele, o fato do homem ser um animal sociável fazia da sociedade o lugar onde ele adquiriria mil padecimentos. Mas como se daria essa influência? Em que medida a sociedade era, para o autor,um lugar privilegiado, onde se inflamam todos os t ipos de paixões? Em suas palavras, (...) quanto mais simples é a sociedade em que o homem vive, tanto mais feliz é a sua existência como indivíduo; e que o contrário sucede, quando as circunstâncias se invertem, po is é sempre inseparável das grandes e mui populosas sociedades, a degeneração dos primeiros hábitos singelos e virtuosos. Povoando-se cidades, excessivamente pouco e pouco ficam ermos os campos e nelas se ateia o fogo das paixões mais vio lentas.27 O Dr. Mello Moraes destacou o papel dos grandes centros na formação das paixões. Sent imentos, desejos e ambições que proliferavam nesses centros afetavam diretamente a vida de seus habitantes: A insaciável ambição, o desmedido aferro às riquezas, as so lapadas intrigas, o luxo, a intemperança, tudo alteram e tudo perturbam(...) O mesmo prodigioso aumento de habitantes das populosas cidades produz grandíssimo males físicos.28 De acordo com essa concepção, a cidade era produtora e divulgadora de paixões que facilitavam o surgimento e condições de propagação de muitas enfermidades. Por assim pensar, acreditava que o homem não sofreria tanto se pudesse ser conservado no estado da Natureza, pois assim não estaria à mercê de tantas enfermidades oriundas da civilização. Já o homem citadino, dotado de razão e aperfeiçoado pela educação, não estava livre de impressões da mente que o impeliam a agir de acordo com a força dos impulsos e da irritabilidade. O est ilo de vida cult ivado nesses meios, como as diferentes profissões e ofícios e a vida sedentária, concorriam para o enfraquecimento das const ituições, degeneravam a espécie e entregavam o homem aos mais reprováveis atos. O meio social, como facilitador ou indutor de suicídio, foi tema recorrente, principalmente nos estudos da segunda metade do século XIX. Os grandes centros e as grandes cidades — em oposição ao campo e às pequenas comunidades —, permit iam que excessos, paixões, vícios e abusos proliferassem, entregando o homem aos mais terríveis e abomináveis atos, entre eles o suicídio. Segundo Raymond Williams, foi em torno das comunidades existentes, historicamente variadas, que at itudes emocionais poderosas cristalizaram-se e generalizaram- se. O campo passou a ser associado a uma forma natural de vida — paz, inocência e virtudes simples — e a cidade, às idéias de centro de realizações — saber, comunicações e luz — e de constelação de coisas negat ivas — barulho, mundanidade e ambição.29 Williams salientou também os diferentes graus de sensibilidade encontrados e permit idos na diferenciação entre a cidade e o campo. A primeira, acostumada e const ituída pelo luxo, conforto, mobilidade, complexidade social, saber, instrução e imagens de progresso e futuro; a outra, seu oposto, pela t radição, pelo bucólico, inocência e imagens de estagnação e passado: Trata-se, po is, não de questão etnográfica, mas, de grau de sensibilidade individual. O campesino rústico , o trabalhador das docas, embrutecidos na dura faina muscular e sem cultivo intelectual, aturam silenciosos uma dor física que, para o homem da cidade, da vida cerebral, to rnar-se-ia insuportável. Defrontam-se, po is, a duas sensibilidades dotadas de percepção inversa.30 Esse jogo de imagens e sensibilidades criava para as cidades uma atmosfera menos sadia e, assim, propícia à desordem, ao excesso e às paixões. De acordo com essa concepção, esses centros populosos e essas cidades permit iam e facilitavam a proliferação das paixões e, como resultado, o aumento dos casos de suicídio entre os seus habitantes. Paixões essas sempre consideradas violentas por agirem sobre o espírito, a imaginação e o coração de quem est ivesse exposto a elas. De acordo com a posição do Dr. Mello Moraes, o homem era um ser racional e sociável e, por viver em sociedade, estava vulnerável à degeneração de seus hábitos, costumes e até mesmo de suas idéias, juízo e raciocínio. Nesse momento, ao encarar as paixões como causa de desarranjos mentais, o médico redirecionou o olhar para aquelas que cegavam o indivíduo e anulavam a sua capacidade de raciocinar. Para ele, a importância das paixões como causa de desarranjos mentais não podia ser descartada. O eixo de seu trabalho foi a força produtora que se originava do encontro dos grandes centros e dos excessos das paixões. Assim, sua tese salientou a proposição: grandes centros possibilitando paixões, paixões definindo e criando grandes centros. Dessa união paixões/ grandes centros resultaria o aumento dos casos de suicídio. Se a temat ização do Dr. Mello Moraes foi discreta, a abordagem do Dr. Freitas Albuquerque foi direta e explícita. Para ele, as paixões eram temat izadas como causa direta de monomania, inclusive a suicida. Contudo, o autor advert iu para a necessidade de não confundir o suicídio do monomaníaco — sujeito considerado doente — com aquele perpetrado por um homem cuja paixão violenta o conduziu ao ato. Nos casos de suicídio provocado por excessos e pela violência das paixões não se observavam, segundo ele, afecções orgânicas, molést ias do encéfalo ou qualquer alteração “própria” do monomaníaco. Um caso de suicídio que pode exemplificar essa abordagem foi not iciado pelo jornal Diário de Campinas: José Feliciano de Azevedo empregado na Padaria do sr. Antonio Alves Pimenta, à rua Direita, tentou suicidar-se ante-hontem disparando do is tiros de revo lver em si mesmo. Uma das balas penetrou-lhe no peito ao lado esquerdo e fo i extraida pelo sr. Dr. Germano Melchert. Informam-nos que Feliciano sofria há tempos a esta parte em suas faculdades metaes, por causa de certa paixão amorosa. No domingo fo i ele à festa do Fundão e vo ltando para casa às 9 ½ horas da no ite um tanto embriagado, reso lveu pôr termo à existência a essa hora(...) 31 A notícia parece relatar um quadro t ípico, recorrentemente descrito nas teses sobre o suicídio que foram apresentadas nas inst ituições de ensino e pesquisa médica cariocas. A paixão amorosa, possivelmente não correspondida, teria provocado, segundo informam, um notável desarranjo ou o desequilíbrio das faculdades mentais. Para reforçar ainda mais o quadro, o jovem Feliciano teria se embriagado antes de tentar se suicidar. É preciso, contudo, indicar uma abordagem peculiar do Dr. Mello Moraes, que, ao explicar a chamada “monomania erót ica”, apresentou a resposta definit iva para entender como as paixões causavam o suicídio. Segundo sua compreensão, se o homem se restringisse aos limites impostos pela razão não seria dominado pela impetuosidade do amor, não se entregaria sem freio à sat isfação de sua necessidade “natural” de amar. Assim, o coração despedaçado por um amor, principalmente o não correspondido, por não obedecer aos limites impostos pela razão, permit iria o predomínio de uma paixão que poderia, inclusive, conduzir ao suicídio. Em outras palavras, guiado pela razão, o homem estaria imune às paixões e, por conseqüência, não se suicidaria. O lugar ocupado pelas paixões não foi secundário entre as causas determinantes de monomania. Os excessos de qualquer natureza, as paixões violentas, o ódio, o ciúme, a vingança, o amor ferido, o desejo não sat isfeito da união dos sexos e a exaltação da imaginação produzida pelas sociedades foram causas consideradas e invocadas de monomania, entre elas a suicida. As paixões, consideradas causas morais determinantes de monomania e de suicídio, tumultuavam a vida dos homens sem deixar lesões orgânicas. Sua intensidade, porém, era comprovada pelo grande número de casos provocados em situações onde imperavam absolutos os costumes da vida nas cidades, a exaltação dos sent imentos e dos desejos, a libert inagem e todo t ipo de excessos. Guiados por forças que anulavam o pensamento racional e ordenado, os homens agiam segundo um sent imento ou uma paixão. Explicavam-se assim muitos casos de suicídio: As impressõesmorais, súbitas e vio lentas exercem uma influência imediata perturbadora notável sobre as funções nervosas, cujo exercício elas modificam ou interrompem completamente. Sucumbe-se realmente de terror ou de alegria, pela suspensão abso luta da ação nervosa, e isto muitas vezes acontece a indivíduos robustos, sem que a autopsia tenha permitido provar lesão orgânica.32 Da mesma forma que a segunda metade do século XIX marcou o início da temat ização do suicídio a part ir da diferenciação entre dois t ipos específicos — o racional (voluntário) e o filho da loucura (involuntário) —, no que diz respeito às paixões esse período também foi marco importante. A part ir dele, paixões foram invocadas em prat icamente todos os estudos, numa tendência que não se limitou à segunda metade do século XIX, pois em estudos produzidos durante a primeira metade do século XX esse referencial também foi ut ilizado.33 A esse respeito, o discurso do Dr. Nicoláo Joaquim Moreira também foi marco importante. Ao dist inguir dois t ipos de suicídio, o autor destacou o papel e a influência das paixões como causa, embora tenha salientado que esse t ipo de causa era de difícil observação. Vejamos o porquê. Para compreender a influência das paixões, o Dr. Moreira focalizou o terreno e os meios favoráveis à proliferação do suicídio: os grandes centros, aqueles repletos de ilustração, lugar onde reinam a imoralidade, os abusos, os excessos, o desregramento, a dúvida, a ganância, a depravação e tantos outros elementos considerados nocivos à vida individual e social. Segundo ele, o meio possibilitava o surgimento de paixões que afetavam os homens, levando-os à t ransgressão, ao erro e à morte. Como exemplo, para comprovar a sua teoria, ele citou os grandes centros europeus: Os móveis geniosos do suicídio refletido que acabamos de apontar, se mostram por todas as cidades europeias, manifestando, porém, seu império nas capitais dos países que se dizem mais civilizados, e onde se reúne o que há de mais nobre e ilustrado, porém também onde se encontra a depravação, a licença, o orgulho e a vaidade tocando seu auge, e a estatística, esse precioso elemento , pronuncia-se em favor de nossa opinião mostrando em Londres 1 suicídio em 5,000 habitantes, em quanto no resto da Inglaterra a proporção é de 1: 15,000. Em Paris dá-se 1 suicídio em 2.175 indivíduos, nos demais departamentos da França 1: 13,864.34 O próprio conceito de civilização foi quest ionado pelo autor. Segundo sua tese, em lugar de permit ir a proliferação de paixões violentas, imprevisíveis e nocivas, essa “civilização” deveria proporcionar o bem-estar social, garant ir a vida e ordenar os habitantes para o progresso. “Infelizmente”, em lugar da ordem, o que o médico verificou nos centros civilizados foi o desregramento. Mas qual foi a razão apontada pelo facultat ivo? Por que exatamente esses grandes centros, sustentados pelas “melhores bases” — educação, ciência, intelectualidade, bom gosto e requinte, entre outros citados —, apresentavam numerosos casos de suicídio? Não deveriam essas bases sociais impedir o erro, a falta e a desordem, freando assim o suicídio? Segundo sua compreensão, o “falso brilho” desses grandes centros escondia sociedades corroídas: nunca as cifras falaram com tanta eloqüência, nunca pro testaram tão categoricamente contra essa má entendida civilização, que apresentando no exterio r o brilhantismo do ouropel, interio rmente se acha corro ída pela disso lução dos costumes e por todos os vícios e paixões imagináveis.35 Mas, no meio dessas imagens que caracterizavam a desordem “própria” desses centros, o Dr. Moreira destacou a desenfreada busca da felicidade material, e a doutrina dos interesses materiais, como marcas indeléveis e principais causas de paixões e de morte. Os alicerces dessas civilizações estariam, segundo o médico, corroídos pela busca desregrada da sat isfação material. Dessa maneira, nada respeitando, os homens entregar-se-iam a um único pensamento: Não é que nas capitais civilizadas a suscetibilidade do cérebro , aumentada pela exuberante atividade de suas funções dê lugar a esses desgraçados fenômenos; não é de certo a luta tenaz e muitas vezes terrível que em sua evo lução o elemento liberal se vê obrigado a sustentar contra as idéias retrógradas; não, senhores; a causa fundamental do aumento dos suicídios, nos centros onde reina a civilização, é a falsa base em que esta se firma (...) A felicidade material, tal é o pensamento dominante das nações civilizadas, e a preocupação de seus governos.36 Independentemente da posição social, o homem aprendia, nos grandes centros, a buscar a sat isfação individual. Assim, contribuía para a decadência moral e para a dissolução da moralidade pública: A doutrina dos interesses materiais tão nitidamente formulada na frase - Chacun pour so i et chez so i - é o maior dos obstáculos aos nobres sentimentos e as mais generosas ações; enraizando-se pro fundamente nas massas populares, se até certo ponto ela pode ser considerada a propagadora das operações industriais, também ao mesmo tempo constitui o mais poderoso disso lvente da moralidade pública e o mais ativo progenitor do orgulho e da vaidade. O desenvo lvimento puro e simples dos interesses materiais, senhores, não é sem perigo para os estados, e, muito pelo contrário , contribuindo para a decadência moral reage sobre as faculdades dos homens, arrastando por ultimo a decadência material.37 Segundo sua tese, as paixões entendidas como causa de suicídio eram observáveis principalmente nos grandes centros. Esses ambientes, onde deveria imperar a ordem, a educação bem dirigida, a ciência e os costumes regrados, exatamente por serem “centros do mundo”, eram corroídos por erros, ambições, excessos, desregramento e desejos que abalavam os alicerces sociais. Deterioradas por prát icas nocivas e costumes torpes, as bases dessas sociedades não podiam sustentar a moralidade pública e a ordem necessárias para garant ir a vida. Guiados por paixões descontroláveis e pela ânsia de sat isfação individual, os citadinos entregar-se-iam aos atos e comportamentos vis, entre eles o suicídio. Estaria o facultat ivo discursando contra a marcha do progresso, contra os avanços sociais e o est ilo de vida urbano? Não, pois ele pretendia mostrar que era preciso buscar a modernidade, mas com uma preocupação: Não penseis, porém, senhores que proclamando estas idéias pretendemos entravar os esforços da sociedade moderna em favor da sorte das populações. Venha, senhores, esse bem estar material, po is que ele favorece o instinto conservador, venha porém temperado pelos sentimentos morais, e nunca como o único fim a que fora votada a criatura humana.38 É necessário sublinhar que o Dr. Moreira não era contra o “bem-estar material”, nem tentava impedir a marcha do progresso, que considerava necessário para a modernidade. Ao se posicionar, o médico reforçou sua condição favorável à ordem e ao controle. Seu lema era: progresso e bem-estar material “temperados”. Crit icou os elementos e as forças presentes nas sociedades, que eram capazes de fazer proliferar as paixões, por ele entendidas como disposições e sent imentos que se sobrepunham à razão podendo inclusive anulá-la. Como fez ao definir o suicídio, ele estabeleceu uma relação direta entre o universo de excessos, criado pelas paixões possibilitadas pelos grandes centros, e a razão. Era preciso, segundo sua compreensão, que comungava com os ideais da medicina social, regular as paixões pela via da razão. O homem racional não devia t ranspor o limite t raçado pela linha do dever: As paixões em todos os entes animados devem corresponder aos meios que a natureza concedera para satisfazê-las; o seu limite se acha traçado pela linha do dever; franquear este limite é caminhar para o abismo (...) Quando nos pronunciamos por tal modo sobre as paixões, partilha inseparávelda criatura, não queremos dizer que elas se devam aniquilar; não: basta somente saber regulá-las, por quanto estamos convencidos de que as paixões podem ser como substâncias tóxicas, que preparadas por um hábil farmacêutico tornam-se proveitosos medicamentos.39 As paixões, como todos os outros sent imentos, ações, desejos e necessidades, deviam ser bem guiadas para at ingir o objet ivo comum de gerar uma vida ordenada. Dessa maneira, as paixões eram pensadas a part ir de um referencial posit ivo. Racional, o homem deveria ser capaz de controlar seus “apet ites”, obedecendo e cumprindo seus deveres. Inserido em uma ordem pautada pela noção “direitos/ deveres”, e direcionada para o t rabalho, o homem poderia, segundo a tese do Dr. Moreira, t irar proveito das paixões: Procuremos, portanto , diminuir senão acabar esses atos de desespero desenvo lvendo o conhecimento dos deveres do homem e dos seus direitos, fazendo com que ele não se curve brutalmente a seus apetites, que a sede das riquezas não sufoque sua consciência, que suas louváveis paixões, úteis auxiliares do gênio , fecundem seu talento , que o amor ao trabalho seja a condição da vida e que finalmente a emulação tornando- se o aguilhão da perfectibilidade venha a servir de ceifa, ao espírito e de alimento ao coração.40 Isto posto, é fácil compreender a definição de felicidade esboçada pelo Dr. Moreira, que atentava para a posit ividade dos seus efeitos, e sua negação da tendência, presente nos grandes centros — produtores de paixões e suicídio —, a colocar na fortuna, nas altas posições sociais e na sat isfação desenfreada dos desejos — esses também inat ingíveis — a sede da felicidade e da sat isfação pessoal: A felicidade do homem está antes na simplificação dos gozos do que em sua multiplicação, e a tranqüilidade do espírito se encontra mais depressa nas posições humildes do que nas elevadas, porquanto é sempre no meio das grandezas que nascem os mais terríveis reveses, os lugares os mais elevados são os mais batidos pelos temporais, e o raio que poupa o vale ataca quase sempre as montanhas.41 O Dr. Moreira produziu um discurso apontado para a necessidade de uma sociedade bem regrada e dirigida, capaz de controlar o aumento dos casos de suicídio, ou, poder-se-ia dizer, de erradicá-lo. Há no discurso uma preocupação com o social, entendido aqui como facilitador, e até indutor de causas de suicídio. A resposta do facultat ivo ao que poderia ser feito para modificar as bases dessas civilizações corroídas, e garant ir a vida, era clara: uma ação conjunta de governos e autoridades. A ação, devidamente guiada, deveria lutar pela moral e pela ordem, principalmente nos grandes centros e, assim, impedir que os membros da sociedade moderna se deixassem apoderar pelo desespero. Erro não just ificável, o suicídio reflet ido, causado pela força das paixões, deveria ser evitado. Os meios para isso já foram apresentados, mas algumas considerações devem ser retomadas como conclusão. O Dr. Moreira, seguindo a proposta da uma medicina social, afirmou que os grandes centros permit iam o surgimento e a proliferação de paixões desenfreadas, e, por isso, consideradas nocivas. Essas paixões não ordenadas e não controladas, presentes nesses centros, eram recorrentes causas de suicídio. As paixões deviam ser, contudo, bem guiadas e racionalmente aproveitadas, visando o bem da própria sociedade. Mas como isso seria possível? A primeira resposta foi desenhada pela via da razão. Somente ut ilizando os recursos da razão o homem poderia domar os perigos e os excessos das paixões. Além dessa ação individual, uma ação conjunta foi delineada pelo autor: todos juntos deveriam fort ificar os costumes públicos, proporcionar a harmonia social, desenvolver o conhecimento dos deveres e direitos dos homens e propagar os benefícios do trabalho. De acordo com esse discurso, uma sociedade bem alicerçada, sabiamente dirigida e racionalmente engendrada poderia diminuir, e até impedir, os casos de suicídio. É necessário relembrar que, para o Dr. Moreira, os casos de suicídio reflet ido, principalmente aqueles que apresentavam a paixão como causa, eram os de maior número e, por isso, exigiam uma atenção maior. O trabalho do Dr. Moreira, ressonante com o seu tempo, apresentou o discurso médico como responsável pela vida e com a tarefa de impedir a proliferação de tudo que pudesse possibilitar o suicídio, inclusive os excessos das paixões. Nas palavras de Roberto Machado, que bem sintet izaram a busca dos médicos brasileiros do século XIX, para que se preserve a saúde de uma população é necessário implantar uma sociedade onde não suscitem paixões, onde o caos tenha sido desfeito , onde reine a ordem, onde tudo funcione, onde não existam monstros e onde os costumes sejam doces.42 Muito das considerações apresentadas foi apropriado de outros estudos, principalmente os franceses. Dentre eles, o clássico estudo de Esquirol, onde, no que diz respeito às paixões, a ressonância é clara. Para responder em que medida o saber médico brasileiro teria se apropriado das análises e conclusões do médico francês, foi preciso saber quais as bases do pensamento de Esquirol sobre os efeitos das paixões. É disso que tratarei a seguir. A APROPRIAÇÃO BRASILEIRA DAS IDÉIAS DE ESQUIROL SOBRE A PAIXÃO COMO CAUSA DE SUICÍDIO Os médicos brasileiros que privilegiaram as paixões como causa de morte e de suicídio e receberam destaque foram: Figueiredo Jaime (1836), Muniz Barreto (1841), Rodrigues Torres (1843), Mello Moraes (1854), Freitas de Albuquerque (1858) e Nicoláo Joaquim Moreira (1867). Apesar das diferenças na construção dos argumentos sobre como as paixões acarretavam e/ ou permit iam o suicídio, eles foram unânimes quanto à importância de seus efeitos e a relação com os distúrbios mentais. Contudo, não foram os médicos brasileiros os primeiros a perceberem uma possível relação mortal e nociva entre as paixões e o suicídio. Apropriaram-se de teorias e conceitos desenvolvidos por outros médicos e pesquisadores, sobretudo os de Jean-Ét ienne-Dominique Esquirol. Sobre Esquirol, lembro-me de um dia em especial, uma fria tarde do inverno parisiense de 2000, quando decidi começar a analisar dicionários médicos do século XIX. Empolgado com a nova missão — até então eu só t inha trabalhado com teses médicas —, me entreguei à leitura daqueles opulentos e pesados dicionários. Ao começar a tomar nota de tudo que dizia respeito ao suicídio, algumas frases e argumentações sobre a nocividade das paixões me direcionaram para uma obra de Esquirol: Des passions, considérées comme causes, symptômes et moyens curatifs de l’aliénation mentale. Os dicionários confirmaram o que muitos médicos da Escola de Medicina de Paris sugeriram em suas teses, ou seja, as paixões causavam suicídio! Além disso, a referência a Esquirol era recorrente. Para melhor entender minhas fontes, saber como pensava Esquirol e porque foi tão citado e apropriado, eu deveria conhecer as suas obras.43 Para ele, o suicídio era um fenômeno provocado por um grande número de causas que se apresentam com caracteres muito diferentes. Ainda assim, Esquirol estabeleceu quatro principais temas que deveriam ser desenvolvidos, para que se pudesse compreender o suicídio. Entre eles estavam as paixões. No discurso desse autor, a paixões fortemente excitadas e violentas provocavam perturbações no organismo e na inteligência. Assim, os indivíduos cometiam ações contrárias aos seus inst intos; entre elas, o suicídio. Como issso acontecia? De acordo com sua compreensão, todas as paixões revelavam excessos e provocavam alterações de comportamento. Por isso, nos excessos característ icos das paixões, o homem colocaria fim a seus dias. É necessário sublinhar, uma vez mais, que para Esquirol eram as paixões “fortemente excitadas”que provocavam perturbações, e, conseqüentemente, o suicídio. Mas como as paixões provocavamessas perturbações? Para Esquirol, quando a alma era fortemente perturbada por uma afecção violenta e súbita, as funções orgânicas eram desordenadas, a razão era alterada e o homem perdia a consciência de si mesmo. Em um verdadeiro estado de delí rio, provocado pelas perturbações citadas, o homem cometia as ações mais irreflet idas, mais contrárias a seus inst intos e interesses, entendidas aqui como o suicídio. Os trabalhos dos doutores Muniz Barreto e Rodrigues Torres retomaram essa tendência do estudo de Esquirol para procurar, nas alterações provocadas pelas paixões, nas funções orgânicas e nas desordens mentais, um estado propício ao suicídio. Essa perspect iva permit iu pensar que a t risteza impetuosa e inesperada, o amor traído, a ambição não alcançada, a honra comprometida e a perda de fortuna, entre outros fatores, perturbavam a razão e privavam o homem de qualquer reflexão. Quando a razão fosse subjugada, as capacidades de reflet ir, ponderar e raciocinar não corresponderiam mais ao “esperado”, o homem seria acometido por um delí rio agudo e suicidar-se-ia. Segundo Esquirol, as paixões mais violentas agiam lentamente e sem fazer ruído. Minado pelo ódio, pelo ciúme, pelos erros de cálculo da ambição e da fortuna, o homem aproximava-se das mais funestas resoluções. Ainda segundo sua concepção, embora agissem lentamente, as paixões não deixavam de enfraquecer os órgãos, alterar a razão e destruir a vida. Por pensar que as paixões perturbavam, alteravam e até anulavam a razão, ele pôde reforçar a possibilidade aberta ao sujeito de não ser ele o responsável absoluto por seus atos. Afirma que, assim, muitos que tentaram o suicídio e não t iveram êxito testemunharam não saber ao certo o que faziam, não entendiam bem o que os havia conduzido a tal ato. Essas eram as provas, para Esquirol, de que o suicídio podia ser comet ido por um indivíduo que não gozasse do pleno uso das faculdades intelectuais. Pois bem, se o suicídio provocado pela paixão era, em últ ima instância, um fenômeno irreflet ido, um ato provocado por alguém que não gozasse do pleno uso da razão, era necessário reforçar duas idéias decorrentes dessa compreensão. Em primeiro lugar, como aconteceu com quase todos os casos de alienação mental, abriu-se a possibilidade de cura para esses indivíduos, que tentaram o suicídio sem o uso pleno da razão. Durante todo o século XIX, a objet ividade do olhar médico-cientí fico buscou medidas para promover a cura daqueles que, em relação à ordem da razão e da sociedade, davam mostras de “alteração”. Nesse contexto, o indivíduo que tentava se matar, por influência ou por causa dos excessos e furor das paixões violentas, não era visto como um sujeito normal, pois a razão estava alterada. Em segundo lugar, em muitos dos casos de suicídio provocado pelas paixões o sujeito não era visto como responsável pelo ato: afinal, não gozava de sua razão. Como destacou Foucault , não nos espantemos que se tenha descoberto, desde o século XVIII, uma espécie de filiação entre as doenças mentais e todos os “crimes de amor”; que a loucura, por exemplo, tenha se tornado, a part ir do século XIX, a herdeira desses crimes, que nela encontraram a razão de ser e, ao mesmo tempo, de não ser crime.44 Desse modo, no que diz respeito àqueles que tentavam cometer o suicídio por influência de alguma paixão, principalmente as violentas, os sujeitos não eram vistos como responsáveis absolutos de seus atos. Neste caso, as paixões teriam alterado as faculdades intelectuais, privado o homem daquilo que seria o seu bem maior — a razão —, atrapalhado o bom e natural funcionamento dos órgãos e dos nervos, confundido a sensibilidade e levado o sujeito a cometer atos ant inaturais, ant i-sociais. De acordo com Esquirol, muitas paixões eram criadas na e pela sociedade. Penso que essa foi a principal apropriação dos médicos brasileiros que estudaram o suicídio. Mas era preciso ser cauteloso ao definir quais eram as paixões. O amor, a cólera, o terror e a vingança não podem ser confundidos com a ambição, a sede de riquezas, o orgulho da celebridade e tantas outras paixões que nascem das relações sociais. Como aconteceu tempos depois com os médicos brasileiros, Esquirol destacou a grande influência do meio social na produção das paixões.45 Segundo sua compreensão, nos lugares onde a civilização fosse mais avançada e as faculdades intelectuais est ivessem mais desenvolvidas, as paixões seriam mais veementes, impetuosas e variadas. Note-se aqui uma aproximação do pensamento do Dr. Nicoláo Joaquim Moreira com o de Esquirol. Nesses centros de civilização, as paixões desempenhavam seu principal papel e, não por acaso, a alienação mental, com todas as suas nuanças, assediava o homem. Em contraposição aos campos, a cidade representava o principal lugar onde reinavam, não só a civilização, como também as paixões impetuosas e nocivas, todo t ipo de alienação mental e o suicídio em grande número. Concluindo a análise da obra de Esquirol, destaco que, para ele, as cidades desordenadas e não disciplinadas eram lugares que permit iam todo t ipo de paixões e vícios, onde reinavam, também, o abuso de prazeres frívolos, a necessidade impetuosa de tudo desejar, as emoções violentas, o onanismo e o uso não moderado de bebidas alcoólicas. Tais fatores, dentre outros apresentados e analisados, compõem o quadro que permite a problemat ização das paixões como causa de suicídio no século XIX. Em todos os discursos apresentados, os temas recorrentes, quando o suicídio foi estudado sob essa ót ica, foram: as conseqüências do amor passional; o amor contrariado, traído ou não-correspondido; a sede de riquezas; a impetuosidade dos desejos; a deterioração da vontade; o perigo e o risco interno em uma sociedade que almejava a estabilidade, ordem e organização (como a medicalizada); a expressão egoísta e de sent imentos puramente individuais; os característ icos excessos, sejam os do amor, do desejo, do prazer, do sexo, do jogo, da sensibilidade, da libert inagem, do egoísmo, do egocentrismo; a recusa e o desprezo aos valores colet ivos; o ódio; a ambição sem freios; a busca incessante de sat isfação material; as paixões violentas e suas relações com a monomania — paixão como desordem intelectual. Como é possível perceber, ao falar das paixões e dos seus efeitos — benéficos ou nocivos —, os estudiosos do tema recorriam a um vasto campo, que permit ia, por sua vez, os mais diferentes sent idos e explicações para tal fenômeno. Contudo, percebi uma tendência a ut ilizar estudos que temat izaram as paixões para entender as causas de suicídio, principalmente os efeitos considerados nocivos à ordem, à saúde e à sociedade. Todas as obras analisadas destacaram o perigo das paixões e a possibilidade de desordem e descontrole que elas representavam. Por assim pensar, vários médicos colocaram as paixões na lista de perigos, ao lado de outras forças, de outros sent imentos e inclinações que deveriam, para o bem público, ser domados, disciplinados e controlados, conjurando assim um perigo interno. Outra questão importante presente nesses estudos foi a influência do meio social, visto por muitos doutores em medicina como facilitador ou indutor de suicídio, por permit ir o surgimento e a proliferação de uma gama quase infinita de paixões, bem como de inst intos irrefreáveis sobre a razão. Assim, em oposição ao campo e pequenas comunidades, os grandes centros e as grandes cidades permit iam, segundo tais estudos, que paixões, vícios e abusos proliferassem, entregando o homem aos mais terríveis e abomináveis atos. Em relação aos homens e mulheres que habitavam esses grandes centros e tumultuavam a vida citadina, eles eram vistos, geralmente, como marginais, prost itutas, criminosos, libert inos de toda espécie, ladrões, malandros, malfeitores, gananciosos, vadios, irresponsáveis, boêmios, imorais e amorais, sujeitos que se confundiam e se relacionavamnos grandes centros. Essa massa indisciplinada encontrava na cidade, t ransformada em palco trágico, o meio propício para atos reprováveis, para comportamentos desregrados, irreflet idos, irracionais e, portanto, ant inaturais. Foi assim que os grandes centros e seus habitantes foram tematizados pelos estudos selecionados durante a pesquisa documental. De acordo com as proposições analisadas, esses sujeitos aumentaram as estat íst icas de suicídio ao longo do século XIX. Um outro ponto importante, no que diz respeito às paixões, deve ser sublinhado. Segundo a concepção de vários médicos, as paixões eram mais freqüentes entre as mulheres; era quando a mulher tornava-se mais viva, mais animada e, principalmente, mais erót ica. A diferenciação entre o suicídio cometido por homens e aquele cometido por mulheres também será apresentada e analisada. O que interessa é perceber que a dist inção entre os sexos também perturbou os médicos do século XIX, além da preocupação com os excessos das paixões, entendidas como causas de suicídio, de alteração e anulação da razão. Por isso, o próximo passo é apresentar e analisar a terceira série de argumentos por meio dos quais o saber médico brasileiro sobre o suicídio está sendo estudado, ou seja, as diferenças entre o suicídio masculino e o feminino. CAPÍTULO IV — DIFERENCIAÇÕES SEXUAIS DO SUICÍDIO Em meio à mult iplicidade de teorias, causas, meios e conceitos desenvolvidos e divulgados em estudos médicos sobre o suicídio no século XIX, os médicos brasileiros balizaram e const ituíram as chamadas diferenças entre os sexos. Modelaram o homem e a mulher segundo uma interpretação específica, hierarquizadora de suas const ituições físicas e biológicas. Ao focalizar essa perspect iva, explorei a série const ituída para pensar a problemat ização médica brasileira sobre o tema: as diferenças entre o suicídio cometido por homens e aquele cometido por mulheres. Interroguei as const ituições das ident idades consideradas próprias aos homens e às mulheres, o que ajudou a perceber a diferença entre o que era e o que deveria ser considerado pertencente ao campo do “masculino” ou do “feminino”. Como provocação inicial, retomo as palavras de Jane Flax: Por meio das relações de gênero do is tipos de pessoas são criados: homem e mulher. Homem e mulher são apresentados como categorias excludentes. Só se pode pertencer a um gênero, nunca ao outro ou a ambos. O conteúdo real de ser homem ou mulher e a rigidez das próprias categorias são altamente variáveis de acordo com épocas e culturas. Entretanto , as relações de gênero, tanto quanto temos sido capazes de entendê-las, têm sido relações de dominação.1 Para interrogar essa criação, ut ilizo o gênero como categoria de análise, para apontar a não-naturalidade do feminino e do masculino na construção cultural e social dessas ident idades, desnaturalizando-as. Tal empreitada é possível, neste caso, a part ir dos estudos de Joan Scott sobre o gênero como “categoria út il de análise histórica”, de Rachel Soihet, Flax e Margareth Rago, entre outros. Segundo as pesquisadoras, o termo gênero tem sido usado para teorizar a questão da diferença sexual, desafiando ant igas concepções de que o biológico seria determinante. A palavra indica rejeição ao determinismo biológico implícito no uso de termos como sexo ou diferença sexual. Além do mais, o gênero sublinha também o aspecto relacional entre mulheres e homens, sugere que nenhuma compreensão pode exist ir considerando-os totalmente em separado. Assim, é possível levar em conta a dimensão sexualizada ou “engendrada” (engendered) das prát icas sociais e das experiências em torno do suicídio.2 Desse modo interrogo as idéias, argumentos e conceitos, t ransformados em prát icas por meio dos discursos médicos para classificar determinadas at itudes como “próprias” do referencial masculino e outras, do feminino. Evidencio também a construção da categoria homem/ mulher como oposição binária, e a tendência a achar que ela se auto-reproduz, estabelecida sempre da mesma maneira, universalmente. Exploro, ainda, a const ituição do campo masculino e do feminino, e quais os seus papéis na temat ização do suicídio. DIFERENÇA SEXUAL: ORIGEM BIOLÓGICA E COMPORTAMENTAL Antes de tudo, é necessário retomar a idéia de que o suicido era, pelo menos no século XIX, um tema masculino, pois foram os homens brancos e burgueses que se dedicaram ao estudo do tema. Por conseqüência, as próprias diferenças sexuais que foram const ituídas em discursos médicos brasileiros sobre o suicídio, e que se expandiram social e culturalmente, eram territórios masculinos, pois foram criados por homens, mais especificamente pelos homens de ciência, conferindo status de verdade masculina e cientí fica, ou melhor dizendo, de verdade cientí fica masculina. Essa constatação sugere que todos os conceitos criados, os modos de pensar o suicídio, as ident idades construídas (e que deveriam ser respeitadas) e as diferenças sexuais const ituídas em tais t rabalhos médicos eram, em primeiro lugar, excludentes, porque deixavam de lado tudo e todos que lhes escapavam. São territorializantes, pois apresentavam uma tendência que procurava cercar a mult iplicidade de t ipos e sujeitos que se suicidavam, classificando-os e catalogando-os para criar territórios masculinos de produção de saber, conhecimento e verdades. Por fim, eram criadores de ident idades sexuais, porque procuravam uma origem biológica para as diferenças sexuais, indicando a existência de uma possível “essência biológica pré-determinada” para pensar “homem” e “mulher”. Assim, o que se propõe saber é como os discursos médicos brasileiros — masculinos, normat ivos, excludentes e territorializantes — construíram, fundaram e legit imaram as diferenças sexuais a part ir de estudos sobre o suicídio e buscaram naturalizar os campos do “masculino” e do “feminino”. Entre os estudos médicos consultados, o do Dr. Alexandre José de Mello Moraes, de 1854, é o que melhor desenvolveu as diferenças biológicas entre homens e mulheres.3 Por esse mot ivo, é a part ir dele que inicio a desconstrução da const ituição biológica de tal diferenciação. Apesar de não se limitar exclusivamente ao estudo biológico das diferenças sexuais, o autor propôs as seguintes considerações iniciais: as fibras orgânicas da mulher são ordinariamente mais delgadas e suas formas mais bem torneadas que as do homem; os órgãos da mulher são delicados, flexíveis, fáceis de excitar e ferir. Disso resulta que elas são fracas, delicadas e prontas para ceder ao homem, considerado o sexo mais forte, composto por músculos firmes e rígidos; a carne do corpo do homem é dura e grosseira, a da mulher é branda e macia; as feições do homem são angulares e as da mulher arredondadas. A part ir dessas considerações, o Dr. Mello Moraes constatou que, em geral, a const ituição do homem é forte e a da mulher é fraca, e sugeriu que as diferenças biológicas produzem “naturalmente” diferenças de sent imentos, comportamentos e hábitos. Isso se dava, segundo ele, porque sendo as fibras orgânicas das mulheres mais delgadas e de formas mais bem torneadas, permit iam sent imentos agudos e sensações internas mais delicadas. Esta disposição natural seria a causa de preferirem os objetos sensíveis aos seres metafísicos, as qualidades amáveis às essenciais, o brilhante ao sólido, o luxo e o fausto à prosperidade. A impressão que nelas deixariam os objetos, não sendo assaz profunda, seria, segundo o Dr. Mello Moraes, facilmente apagada por uma outra. As mulheres seriam doces e dóceis, delicadas de espírito e de sent imentos e seriam guiadas pelo coração. Em suas palavras: (...) se o homem tem alguma vantagem, pelo lado do juízo e razão, vantagem que ele deve tanto à natureza, como à educação, importa convirse, que o tracto das mulheres bem nascidas, tem para ele um encanto que o não pode achar em outrosobjetos, ainda mesmo nos homens os mais bem educados e os mais amáveis. Este encanto , que sempre e em todo o tempo se encontra na mulher está na doçura e na delicadeza do espírito e dos sentimentos, que se nota em todas às suas palavras, em todas as suas ações. (...) as mulheres se guiam pelo coração.4 Assim, dizia o médico, as mulheres possuiriam espírito em maior grao que os homens. Elas o teriam naturalmente por receberem as idéias da impressão imediata dos objetos, pois pensariam e raciocinariam após as sensações. Por se relacionarem direta e int imamente com os homens, considerados seres de razão e juízo, as mulheres deveriam adoçar a aspereza de seus costumes; animar e sustentar os homens nos momentos de fraqueza, acalmar seus espíritos nos transportes mais violentos, dissipar os desgostos e o mau humor, encantar os dias e espalhar flores nos caminhos mais espinhosos da vida. Elas deveriam ser o adorno da vida do homem. Elas seriam, para ele, o reflexo do homem, presas dele, feitas para serem submetidas, para consolá-lo em seus desgostos e mit igar suas penas; seriam fracas e prontas para ceder ao sexo mais empreendedor e forte. As mulheres t inham esse papel porque eram naturalmente mais delicadas, ternas, sensíveis e pacíficas, além de serem criadas para tornarem-se, necessariamente, esposas e mães. A prova disso é que, para o Dr. Mello Moraes, todos os órgãos das mulheres seriam mais delicados, flexíveis, fáceis de excitar e ferir do que os do homem. A ventura de toda mulher deveria consist ir em procriar e educar os filhos na fé, esperança e amor. O autor concluiu sua incursão no campo das diferenças sexuais salientando, em tom heróico, que o homem pensa e a mulher sente. A força do homem reside na reflexão e a da mulher no sent imento. As mulheres, irritáveis por const ituição, pouco acostumadas a pensar, raciocinar e discernir, quando arrastadas por uma torrente de sent imentos tornam-se fanát icas e nada é capaz de curá-las. Cabe argumentar que as idéias desenvolvidas pelo Dr. Mello Moraes foram, alguns anos depois, apropriadas por outros médicos em seus estudos sobre o suicídio. Por meio delas, tentaram entender as diferenças entre os suicídios de homens e de mulheres. Em 1858, um estudo do Dr. Freitas Albuquerque sugeriu algumas dist inções entre as causas de suicídio de homens e mulheres.5 Para o autor, os homens exercem profissões e ocupam posições sociais que os expõem mais às vicissitudes sociais. Como exemplo, ele cita o caso dos diplomatas — homens públicos, sábios, bem educados, de porte dist into, representantes do Estado e, por isso, constantemente em contato com os mais variados t ipos de pessoas e diferentes culturas —, que, por estarem tão expostos e sofrerem muitas influências, podiam ser acometidos por um dos vários t ipos de monomania, inclusive a suicida. Outro exemplo que convém ser retomado é o caso dos homens de letras, que, segundo ele, se entregavam às meditações profundas sobre matérias metafísicas, possuíam imaginação exaltada e t inham vida sedentária. Assim, os homens, por viverem, circularem e part iciparem do espaço público e social muito mais do que as mulheres, estariam mais propensos a serem monomaníacos, inclusive do t ipo suicida. As mulheres, por sua vez, por não estarem aptas à vida social e polí t ica, restringir- se-iam “naturalmente” ao espaço privado da vida domést ica e, por isso, não sofreriam as pressões, as vicissitudes e as influências a que estavam sujeitos os homens, suicidando-se em menor número do que eles. Da mesma opinião, o Dr. Geraldo Franco de Leão afirma que os homens, por se dist inguirem nas ciências, nas belas artes, na filosofia e no governo dos Estados, apresentariam uma tendência inevitável à melancolia.6 Por estarem em tais cargos e exercendo essas profissões — diferentemente das mulheres, que estavam no espaço privado da vida domést ica — tornavam-se melancólicos. Por essas razões, ele propunha: (...) demo-nos ao trabalho de examinar a biografia dos maiores sábios, poetas, artistas, estadistas e veremos que a maior parte deles confirmam o que dizemos, e que maior analogia com a alienação mental, do que um estado que pelos seus progressos vai diretamente cair nele ou nesse toedium vitae, que a tempos tem conduzido a atentarem contra os seus próprios dias (...).7 Os médicos brasileiros que se dedicaram ao estudo do suicídio (re)criaram, reforçaram e impuseram dist inções entre os campos do masculino e do feminino. Ident ificaram o masculino com as imagens de força, resistência, t rabalho, intelecto, razão e todo t ipo de at ividade produzida em espaço público do trabalho e da vida social. Ao feminino, ligaram imagens de fraqueza, debilidade, limitação, sent imentos incontroláveis, emoção, docilidade, inferioridade física, mental e intelectual, frivolidade, at itudes e comportamentos considerados próprios do espaço privado — a casa, o lar. Havia ainda, no que diz respeito ao campo do feminino, um conjunto de desordens físicas consideradas determinantes do suicídio8 e que foram apresentadas como causadoras de distúrbios mentais e de morte. Entre elas estavam a cessação da menstruação, a prenhez e o parto. A esse respeito, o médico francês J. B. Pet it , em sua tese de doutorado Recherches statistiques sur l’etiologie du suicide, de 1850, e como fizera o Dr. Freitas Albuquerque, também considerou as perturbações provocadas pela menstruação como causa recorrente de suicídio.9 A tendência ao suicídio durante a gravidez e na época do parto, segundo o pensamento médico brasileiro do século XIX, é comentada por Magali Engel. Ela observa que, segundo esse pensamento, as predisposições à doença mental estariam inscritas no organismo da mulher, em sua fisiologia específica. Assim, a menstruação, a gravidez e o parto seriam os aspectos essencialmente priorizados na definição e no diagnóst ico das molést ias mentais que afetavam as mulheres mais freqüentemente, ou de modo específico.10 Ainda segundo a historiadora, a menstruação era valorizada pelos psiquiatras no diagnóst ico de doenças mentais em mulheres. O início e o fim do período menstrual seriam, freqüentemente, considerados como momentos extremamente propícios à manifestação dos distúrbios mentais.11 Na mesma direção, a historiadora Yannick Ripa, em seu estudo La ronde des folles, sugere que existem alguns períodos na vida das mulheres considerados propícios ao surgimento de problemas mentais, em especial a puberdade e a menopausa.12 A puberdade — passagem do mundo infant il para o adulto, do mundo da inocência para aquele da responsabilidade e da sociabilidade —, pode provocar, de acordo com os estudos médicos observados por ela, problemas mentais que são incompatíveis com as regras do mundo adulto. Além do que, o internamento das adolescentes francesas, ocorrido entre t reze a quinze anos de idade, teria, também, uma causa patológica. Seria inegável que no período da puberdade os estados doent ios, latentes ou menores, eclodiriam e se acentuariam. A puberdade era, antes de tudo, vista como um fator agravante, detonador de uma força incontrolável e preexistente. Ainda sobre a puberdade, é importante sublinhar a idéia recorrente de que os delí rios das jovens fossem possibilitados pelas regras, pela perda do sangue, pelo fluxo menstrual que desempenharia duplo papel: revelaria à jovem donzela a sua condição em potencial de ser mãe, como também poderia indicar um possível estado doent io, de desequilíbrio e, até mesmo, de putrefação do seu corpo. Dessa maneira, imagens negat ivas e est igmat izadas foram ligadas à menstruação, fazendo das regras mot ivo de alarde, medo e desconforto. Se a menstruação podia provocar muitos problemas mentais e, inclusive, ser período propício para atos irracionais como o suicídio, a sua ausência — a menopausa — poderia acarretar sérios problemas mentais para as não mais jovens mulheres. A aparição ou o desaparecimentodo sangue, momentos decisivos, únicos, singulares na vida das mulheres, foram feitos momentos de vergonha, medo e doença. Segundo indica Ripa, a mulher que at ingia a idade da menopausa, principalmente entre quarenta a quarenta e cinco anos, era, e pode-se dizer que ainda é, menosprezada, ridicularizada e est igmat izada. Isso porque, se ela não pode procriar, a sua finalidade suprema desaparece. Acreditavam, e alguns ainda acreditam, que a mulher na menopausa perde a sexualidade, deixa de ter relações amorosas. Esta concepção da menopausa deriva daquela mais global, da sexualidade, de que não há vida sexual feminina na terceira idade. Sem a finalidade reprodutora não exist iriam desejo e prazer femininos. Disso a autora conclui que, ao perder a função de reprodutora, a mulher tornar-se-ia inút il ao mundo: la ménopause fait de la femme, l’ombre d’une ombre, celle qu’elle était déjà de par sa ‘nature’!13 Lembro, como também fizera Ripa, que os discursos que permit iram tal construção para as mulheres que vivenciavam a menopausa eram majoritariamente masculinos. Assim, o exame da discursividade médica sugere que um dos pontos fundamentais para pensar o suicídio eram as diferenças físicas e biológicas entre homens e mulheres. No século XIX, para pensar as dist inções entre os comportamentos, hábitos e sent imentos de homens e mulheres, a esfera biológica foi retomada e ut ilizada quase à exaustão. Outro fator contemplado foi a Educação, pois ela deveria reforçar o lugar e os papéis de cada sexo. Produto, efeito e construtor da modernidade, pelo menos de uma determinada “modernidade”, o saber médico social se dedicou ao estudo e análise de temas ligados à Educação. EDUCAÇÃO DIRIGIDA E DIFERENCIADA Se hoje é possível perceber imbricações e entrecruzamentos entre os campos médico e pedagógico, essa relação emergiu no Brasil no século XIX. A esse respeito, Maria Stephanou argumenta que, pelo menos desde o final do século XIX, discutia-se que Educação e saúde seriam as investidas mais importantes para ‘salvar o país’ do atraso, da degeneração, da catástrofe.14 Assim, da aproximação e t rocas entre esses dois campos do saber, não só a atuação educat iva e saneadora da medicina foi reforçada, como a própria maneira de pensar a Educação foi gerida e inst ituída. A Educação não “corretamente dirigida” foi muito citada pelos médicos como causa de desordens mentais e de suicídio. Além de determinar preceitos de higiene e saúde, a Educação deveria fundamentar e reforçar os papéis próprios aos homens e às mulheres em sociedade e, por isso, deveria ser diferenciada de acordo com o sexo. Meninos e meninas precisavam receber t ratamento condizente com a natureza biológica. Buscava-se, por exemplo, que os meninos se afastassem de tudo que pudesse efeminá-los, que pudesse deixá-los com característ icas consideradas “próprias” das meninas desde os primeiros tempos. Neste sent ido, o Dr. Bernardino José Rodrigues Torres argumenta que: A experiência quotidiana mostra que uma educação efeminada torna os meninos impertinentes, irascíveis e imperiosos em seus desejos: costumados desde a infância a ser prevenidos em todas as suas vontades e satisfeitos em seus caprichos, quando adultos, a menor contrariedade, o mais insignificante infortúnio os torna suicidas.15 Por outro lado, o médico sugeria uma especial precaução com esses meninos, pois não era por evitar excesso de cuidados e a sat isfação dos desejos que se poderia agir de maneira oposta, ou seja, com agressividade, sem prudência ou moderação. Ele defendeu que os extremos deveriam ser evitados, como forma de impedir que os meninos, diante da severidade extrema, se predispusessem à melancolia: as repreensões amargas, os castigos desumanos e ameaças contínuas exasperam o caráter, produzem inclinações perversas e levam não poucas vezes a infeliz mocidade à alienação mental, caracterizadas pela tendência ao suicídio .16 Se os meninos deviam ser “sabiamente” educados para se afastar de tudo que diz respeito ao campo do feminino, as meninas deveriam ser educadas, segundo o Dr. Torres, de forma específica, pois Mais digna de compaixão é ainda a sorte das míseras mulheres, e aqui não podemos deixar de lastimar nossas jovens patrícias, cujos pais e maridos, descuidando-se de enriquecer-lhes a inteligência, procuram-lhes músicas, bailes, teatros, danças como passa-tempos os mais próprios de excitar- lhes a vivacidade, e prodigalizando nestas futilidades tempo e fortuna, deixam à sedução o cuidado de formar-lhes o coração. Nem se diga que somos exagerados quando asseveramos que tal educação deve resultar de outros inconvenientes a propensão ao suicídio .17 Note-se que, segundo o médico, os pais e maridos são os responsáveis por “enriquecer” a inteligência não só de suas filhas, como de suas esposas. Part iria do homem — ser racional, forte e superior — o comando e o controle do grau de inteligência a ser adquirido e/ ou aperfeiçoado pela filha e/ ou mulher. Essas filhas, mulheres e esposas, principalmente as de família burguesa e de condições financeiras para freqüentarem bailes, teatros e danças, estariam sendo influenciadas por sent imentos, paixões e, inclusive, perversões geradas nesses ambientes. Contra isso, e muitas vezes, a educação sabiamente dirigida pelo homem nada podia. Um exemplo é o caso, citado pelo Dr. Torres, de uma mulher que sent ira, em três épocas diferentes, violentas comoções do sistema nervoso, seguidas de tendência ao suicídio, ocasionadas por duas ou três árias da ópera Nina.18 Uma outra diferença muito observada sobre a educação diz respeito aos exercícios físicos. A predominância de uma educação exclusivamente física poderia alterar a sensibilidade feminina. Segundo o médico francês J. A. Durand, em sua tese De l’influence de la puberté, de la menstruation et du mariage sur la santé et sur les maladies des femmes, de 1816, o excesso de exercício físico poderia provocar, inclusive, reversão da “ordem natural”. Disso resultariam as femmes hommasses19, mulheres de const ituição muscular do sexo que não lhe era próprio e natural, desenvolvida por meio da educação dirigida ao físico. De acordo com o pensamento médico da época, os músculos firmes e rígidos eram os do masculino. Mas, ocorreria o suicídio somente entre aqueles que não gozassem de uma educação devidamente dirigida e diferenciada? O Dr. Antonio da Fonseca Vianna respondia que não. Segundo ele, principalmente as mulheres, que por sua const ituição se entregavam mais facilmente às impetuosidades dos desejos, poderiam se suicidar mesmo tendo gozado de uma boa educação.20 (...) algumas vezes mesmo de uma educação sabiamente dirigida têm-se visto moças inflamadas de amor, cedendo em fim à impetuosidade dos desejos, que sem cessar as importunam, cair em um estado de melanco lia pro funda, procurar a so lidão e o silêncio , para se entregarem livremente à sua dor e a seu desespero e no excesso de sua perturbação levar sobre si mesmas a mão suicida.21 Recorrer a Peter Gay é út il, principalmente para elucidar questões sobre a educação das mulheres. Isso porque, em vários momentos de sua obra, Gay analisou muitos discursos que se dedicaram ao tema. Segundo ele, os argumentos daqueles que se posicionavam contra a educação das mulheres, principalmente a universitária, iam da sutileza à grosseria, de uma fala de tato condescendente à rejeição sumária e rude. Assim, argumentavam que as mulheres não tinham necessidade de uma formação superior; não tinham como tirar proveito dela; poderiam não sobreviver a ela.22 De acordo com Gay, médicos e intelectuais de várias áreas quest ionavam, no século XIX, o que eles chamavam de abandono por parte das mulheres “da verdadeira vocação”. Mas o autor destaca que, em sua maioria, eram os homens que colocavam em xeque a instrução das mulheres. Eles lutavam pela manutenção de seus papéis e de seus espaços masculinos, econtra um perceptível “clamor das mulheres”. É nesse sent ido que tais discursos devem ser analisados, porque afirmavam que a educação arruinaria a saúde das mulheres, principalmente quanto à sua nobre capacidade de reprodução da espécie. Além do mais, acreditava-se que a força vital e construt iva das mulheres deveria estar em seus “ovários e acessórios”, não no cérebro. Em lugar de pretender freqüentar as Universidades, exercer profissões consideradas masculinas e estar presente em espaços públicos, também considerados como próprios dos homens, a mulher deveria se preocupar com a vida conjugal, com a procriação, com a educação dos filhos e com a manutenção do espaço privado. Uma educação que levasse a mulher à esfera das prát icas e comportamentos considerados como próprios do campo masculino era vista como nociva à saúde, por não respeitar sua natureza biológica. Com a mesma sensibilidade, Margareth Rago também observou que a educação dirigida às mulheres visava prepará-las para exercer sua função essencial, ou seja, a carreira domést ica.23 Mesmo quando as mulheres começaram a invadir o cenário urbano do trabalho, o movimento operário — liderado por homens — tratou de fortalecer a intenção disciplinadora de deslocamento da mulher da esfera pública do trabalho para o espaço privado do lar. Assim, demandaram o seu retorno ao campo circunscrito pelo poder masculino: o espaço da at ividade domést ica e o exercício da “função sagrada” da maternidade. A preocupação com a educação que deveria ser ministrada aos homens e às A preocupação com a educação que deveria ser ministrada aos homens e às mulheres permit iu que outros temas fossem privilegiados pelo discurso médico. O casamento, o celibato e as relações sexuais foram focalizados, na tentat iva de melhor compreender o suicídio. CASAMENTO, CELIBATO E RELAÇÕES SEXUAIS A respeito da maneira como o casamento, o celibato e as relações sexuais poderiam provocar ou impedir os casos de suicídio, Dr. Fonseca Vianna argumentou ser o casamento um pacto solene, inst ituído para que os dois sexos pudessem sat isfazer necessidades naturais, homem e mulher socorrerem-se mutuamente durante o curso da vida, perpetuar a espécie, permit ir a existência e a felicidade dos filhos que deviam nascer da união.24 Vale notar que, para essa concepção médica e burguesa, um sólido ambiente familiar, um lar acolhedor, filhos educados e a esposa dedicada ao marido, considerada sua companheira na vida social, eram considerados um verdadeiro tesouro.25 Esse ambiente proporcionado pelo casamento sadio e normat izado agiria como um meio profilát ico e curat ivo de várias doenças, inclusive as mentais. Assim, é possível perceber que para esse médico, e segundo uma ót ica masculina, o casamento seria uma importante arma contra os distúrbios mentais e, por isso, contra o suicídio. O casamento seria a realização definit iva e absoluta dos papéis sociais, sexuais e naturais dest inados aos homens e mulheres. O homem, envolvido com as responsabilidades de chefe da família, marido e pai, não se entregaria tão facilmente ao suicídio, não preferiria a morte à vida por saber que sua família dependia dele. Seus deveres como pai e marido apontavam na direção de ganhar dinheiro para o sustento da família. A mulher, por sua vez, ocupando-se de suas tarefas de esposa-dona-de-casa-mãe-de-família26, afastar-se-ia do suicídio por respeitar e cumprir o que se esperava dela27 — se ocupar com os deveres de ser esposa, tendo ainda que cumprir sua finalidade reprodutora e, em seguida, responsabilizar-se pelos cuidados e supervisão da educação dos filhos. Segundo o pensamento médico da época, com a sat isfação, socorro e cumprimento das “obrigações naturais”, a ordem social, familiar e sexual seria mant ida, as perversões seriam controladas e as paixões seriam dominadas. Por outro lado, mas seguindo o mesmo raciocínio, o celibato era visto como risco constante de doenças, morte e suicídio entre os homens solteiros. Eles estariam muito mais propícios ao suicídio do que os homens casados, por não const ituírem família, por viverem relações sexuais ilícitas, por freqüentarem lugares de tolerância para saciar seus desejos, por viverem fora da ordem natural, por desperdiçarem seus espermas e por se entregarem aos excessos sexuais. As mulheres solteiras, por recusarem a imagem de mãe ideal, não cumprir com o papel que a sociedade lhes dest inava e por recusarem a dádiva de part icipar da divina função de preservação da espécie, poderiam mais facilmente pôr fim a seus dias pelas próprias mãos. Segundo a historiadora Magali Engel, de acordo com a perspect iva médica, a maternidade const ituía um dos remédios mais eficazes — senão o mais eficaz — para evitar ou curar as molést ias femininas, em especial, acrescento, as mentais e o suicídio.28 Isso porque, ainda segundo Engel, as origens de muitos distúrbios mentais encontram-se estritamente vinculadas ao fato de as mulheres terem manifestado recusa radical em cumprir a função materna, o que naturalmente lhes fora dest inado: A maternidade era vista como a verdadeira essência da mulher, inscrita em sua própria natureza. Somente através da maternidade a mulher poderia curar-se e redimir-se dos desvios que, concebidos ao mesmo tempo como causa e efeito da doença, lançavam-na, muitas vezes, nos lodos do pecado. Mas para a mulher que não quisesse ou não pudesse realizá-la — aos o lhos do médico, um ser físico , moral ou psiquicamente incapaz — não haveria salvação e ela acabaria, cedo ou tarde, afogada nas águas turvas da insanidade.29 O Dr. Fonseca Vianna destacou que o celibato das mulheres solteiras influía, de tal maneira, no desenvolvimento das alterações completas do órgão do pensamento que elas poderiam, por isso, se entregar ao suicídio. Por não cumprirem suas obrigações de procriação, e por não sat isfazerem seus apet ites sexuais, as mulheres solteiras estariam mais próximas do suicídio do que os homens. O Dr. Freitas de Albuquerque sugeriu que tanto o celibato como a viuvez, por não possibilitarem a plena realização social e sexual, deveriam ser encarados como causas predisponentes de monomanias suicidas.30 Classificado como determinante moral, o desejo não sat isfeito da união dos sexos, ao lado do ódio, ciúme e exaltação da imaginação produzida por espetáculos, leituras, sociedades ou conversações, desgostos e contrariedades domést icas, exerceria influência notável sobre as funções nervosas, dando lugar ao desenvolvimento de várias monomanias. Note-se que esses dois médicos sugeriram que a mulher, nessas condições, estaria arruinando sua saúde e colocando em risco o fim últ imo de sua existência: a reprodução da espécie. Está muito próximo desta compreensão o estudo do Dr. Muniz Barreto sobre as enfermidades dos homens de letras, já analisado anteriormente e com outros objet ivos. Isso sugere as várias possibilidades interpretat ivas e pedagógicas dos exemplos e indica, também, que esses homens que se entregavam às vigí lias, meditações, letras e, principalmente, à solidão, precisavam tomar cuidado com as secreções e as excreções. De uma maneira ímpar, o facultat ivo alertava que os homens não deviam reter por muito tempo a urina e não podiam desperdiçar a saliva, necessária para uma boa e fácil digestão. Quanto às “matérias fecais”, o ilustríssimo médico advert ia que elas podiam produzir duas espécies de males aos homens: a diarréia — que, se habitual, podia produzir emagrecimento, frouxidão geral e enervação das forças físicas e morais — e a const ipação — motivo, segundo ele, de um grande número de incômodos provenientes da demora prolongada das fezes no canal intest inal. Seu passo seguinte foi analisar os efeitos da retenção do “licor espermát ico”, cuja secreção, em suas palavras, oferece um grande número de males, ou quando retida, ou quando feita freqüentemente. A retenção prolongada produz uma espécie de inflamaçãodos órgãos geradores(...).31 Assim, os solitários homens das letras corriam riscos causados por uma vida sexual não pautada pelos padrões “normais” e “naturais” que o casamento propiciava. Mas os malefícios seriam maximizados em “pessoas ardentes”. Nelas, a retenção prolongada poderia produzir espasmos, hipocondria e mesmo a mania erót ica, por agir diretamente sobre o cérebro. Por outro lado, a evacuação muito freqüente oferecia alterações físicas e morais. Isso porque, segundo sua concepção, ela dispunha às afecções nervosas, permit ia desarranjos das funções cerebrais, tornava o pensamento tardio e lânguido, enfraquecia a memória e ext inguia a imaginação. Não conseguindo preservar a saúde, tais homens podiam apresentar tendência terrível ao suicídio. Assim, é possível observar que a masturbação, tanto a masculina como a feminina, são apresentadas como nocivas à vida, porque alteravam o estado de saúde de seu prat icante, enfraqueciam a resistência física e moral; e à sociedade, porque pressupunham relações sexuais sem finalidade reprodutora. Desse modo, o casamento era visto como inst ituição higiênica, poderosa arma contra o suicídio. Para o médico francês Achille Villet te, em sua tese Du suicide, de 1825, o homem casado t inha um coração que estava sempre aberto aos prazeres puros e inocentes, pois encontrava sat isfação nos braços de uma esposa casta e virtuosa, diferentemente do homem solteiro, que se perdia na imoralidade.32 Este homem casado podia até ser abat ido por desgostos, t ristezas e sérias dificuldades impostas pela vida, mas seria sempre amparado pela esposa, fiel companheira que saberia com ele dividir os sofrimentos e as dificuldades. Mas, por outro lado, por contar com a presença revigorante da esposa, deveria, a favor dela e de seus filhos, permanecer vivo e nunca optar pelo suicídio. Dele, homem, dependia a sobrevivência de sua família. MULHERES SE SUICIDAM MENOS DO QUE OS HOMENS: UM PARADOXO DO SÉCULO XIX Depois de tudo o que foi apresentado e analisado, seria possível compreender as razões de as mulheres se suicidarem mais do que os homens. Contudo, os dados empíricos revelavam exatamente o oposto. As mulheres se suicidavam menos do que os homens! Se os médicos t inham razão ao afirmar que o homem era superior à mulher, mais acostumado a pensar, raciocinar e discernir, mais forte, mais apto à vida social e muito mais resistente às vicissitudes da vida, e que as mulheres eram fracas, débeis, limitadas, sent imentais, emot ivas e frívolas, por que as mulheres se suicidavam muito menos do que os homens? As respostas desses estudiosos para esse paradoxo remet iam, uma vez mais, à inferioridade das mulheres. Pelo fato de serem consideradas fracas e sent imentais, não teriam a coragem necessária para pôr fim a seus dias. Por outro lado, o homem, tão corajoso e decidido, entregar-se-ia à morte mais facilmente. Elas teriam horror ao sangue e preocupar-se- iam com a aparência física após o suicídio; eles, naturalmente preocupados com questões mais esclarecidas, não se importariam tanto com a fisionomia do corpo após a morte. Elas seriam pouco acessíveis à intemperança, fonte de todo o mal para os homens, e, em vez de se suicidar, torna-se-iam alienadas e/ ou loucas, mas sem propensão ao suicídio. Infelizmente, os médicos brasileiros no século XIX não ut ilizavam dados estat íst icos em suas teses. Isso só aconteceu no século XX, talvez por influência do estudo de Durkheim. Por esta razão, não sei ao certo em que medida os homens brasileiros se suicidavam mais do que as mulheres. Não encontrei dados para definir com precisão qual o percentual de suicídios cometidos por homens e por mulheres. A maioria dos médicos brasileiros apenas concordava com a superioridade dos casos de suicídio masculino ao longo do século XIX no Brasil. Em compensação, os médicos franceses, muitos deles conhecidos e citados pelos brasileiros, desenvolviam a fundo essa questão. A esse respeito, em 1851, o médico Félix-Casimir Daumas explicou que, mesmo possuindo const ituição mais delicada e apesar de terem o triste privilégio de ser mais vulneráveis às doenças mentais do que os homens, as mulheres teriam moleza e fraqueza de caráter. Isso, além da “natural” t imidez 33, explicaria o fato de as mulheres se suicidarem menos do que os homens. Assim, inteligência, ousadia e ímpeto, característ icas do masculino, representariam uma armadilha contra a vida do homens, que, constantemente envolvidos em grandes trabalhos intelectuais, e por concentrarem toda força, inteligência, pensamento e energia em ocupações que lhes eram “próprias”, tornaram-se mais vulneráveis ao suicídio. Por outro lado, às mulheres faltariam coragem e força — característ icas da esfera do masculino — para se suicidar. Assim, percebe-se uma tendência a pensar o suicídio como manifestação essencialmente masculina. Apesar dessa constatação, é importante notar que a possibilidade de atos, comportamentos e escolhas serem considerados “próprios” de uma determinada esfera é permit ida historicamente. Sobre essa questão, as palavras de John Rajchman são importantes, part icularmente aquelas que sugerem que o sujeito não é meramente uma condição do saber, que ele não é uma invenção da filosofia, mas uma entidade historicamente construída.34 Assim, a produção discursiva médica, baseada em muitos casos reais, em muitas histórias de homens e mulheres que se suicidavam, permit iu e foi permit ida por possibilidades históricas de pensar o suicídio como ato produzido necessariamente pela e na esfera masculina ou feminina. Para entender melhor a problemat ização médica brasileira sobre as diferenciações sexuais do suicídio, é necessário destacar as escolhas e o uso dos meios ut ilizados para se dar à morte: uma peça-chave na const ituição do suicídio “masculino” e “feminino”, bem como na proliferação de signos de masculinidade e de feminilidade. Em relação aos meios, os homens prefeririam suicidar-se recorrendo à estrangulação, armas de fogo e armas brancas, prát icas que aos poucos foram vinculadas àquelas consideradas masculinas. As mulheres geralmente recusavam as armas brancas e as de fogo, recorrendo, de preferência, à asfixia por carbono, um modo que as conduzia, segundo se pensava, a uma morte lenta e doce, característ icas do feminino. Uma idéia de morte que já era sabido ser, naquele período e segundo os próprios médicos, um erro profundo, pois a asfixia por carbono acarretava uma morte dolorosa. Contudo, de acordo com as teses médicas analisadas, as mulheres consideradas belas preferiam a asfixia, o que se just ificaria pelo desejo de cont inuarem belas após a morte. A este respeito, o médico francês Étoc-Demazy, em seu estudo a part ir dos casos de suicídio entre os anos de 1830-1841, advert iu que a maior parte dos suicidas ut ilizava todo t ipo de astúcia possível para escapar à vigilância que os rondava.35 Isso explicaria o fato de os homens, acostumados a carregar armas de fogo para a caça, suicidarem-se no campo. As mulheres, “feitas para a vida domést ica”, ut ilizando astúcia, enviavam seus parentes e empregados do lar para fora da casa para cuidarem de seus afazeres. Quando ficavam sozinhas, suicidavam-se com os meios encontrados em seu próprio espaço, o privado. É dessa forma que o Dr. Étoc-Demazy explica o fato de 32% dos suicidas preferirem as armas de fogo para provocar o suicídio e 30% a submersão, enquanto 58% das mulheres preferiam a submersão e 38% a suspensão. Quanto ao suicídio provocado por submersão, temos que os homens afogavam-se principalmente nos rios e mares, lugares amplos e carregados de imagens que nos remetem à vast idão, força (das marés, por exemplo) e grandeza, todas imagens e referências masculinas. As mulheres lançavam-se, de preferência, nos poços de suas próprias casas. Assim, elas não ousariam transpor os limites de seu território. As considerações do Dr. Étoc-Demazy sobre as mulheresse suicidarem com os meios encontrados em seu “próprio espaço”, fez com que eu recordasse as histórias da personagem central da inquietante obra O Cortiço, de Aluísio de Azevedo, que apresentou na vida e suicídio o elemento t ransgressivo. Bertoleza, mulher negra plural e de conflitos, que negava o lugar inst ituído para ela, buscou os seus sonhos, recusou algumas ident idades e aceitou outras. Relacionando-se com homens e mulheres que viviam naquele cort iço carioca do final do século XIX, ousou ser diferente, mesmo se fazendo aparentemente a mesma. Vejamos em que se baseava essa tal pluralidade de Bertoleza. Como escrava de um velho mineiro, guardava o máximo possível de seu dinheiro para conseguir comprar sua alforria, mesmo precisando pagar a seu dono o jornal de vinte mil-réis por mês. Sendo amante de um português carroceiro, conseguiu ter a quitanda mais afreguesada do bairro. Mas cont inuou escrava, t rabalhando duro o dia todo, vendendo angu na parte da manhã, peixe frito e iscas de fígado à noite. Todo seu empenho e t rabalho t inham um objet ivo: ser livre. Sonhava com o dia em que pudesse ser a dona da movimentada quitanda de tão deliciosos pet iscos e não mais a escrava robusta. Enganada por seu amante João Romão, Bertoleza acreditou estar livre, mas a liberdade que ela tanto sonhara jamais foi conquistada. Presumia ter comprado sua liberdade com as suas economias, mas seu homem jamais enviou o dinheiro a quem por direito deveria recebê-lo. Julgando-se livre, Bertoleza cont inuava escrava. Nas últ imas páginas de O Cortiço, Azevedo relata os planos maquiavélicos de João Romão para livrar-se de Bertoleza. Ela já não t inha ut ilidade; ao contrário, era um obstáculo para a realização de seus sonhos. Era a “mancha” que o impedia de conquistar posições sociais mais dignas de sua importância e prest ígio. Assim, para livrar-se dela, o ardiloso João Romão e o seu amigo Botelho combinaram a entrega de Bertoleza aos ant igos donos. Afinal, sem saber, ela cont inuava escrava. Acompanhemos a cena final. O verdadeiro dono havia demonstrado interesse em reaver a escrava, ou como eles diziam, sua peça. A part ir daí , a entrega foi planejada. A polícia deveria colaborar para que o ilustre proprietário voltasse para casa com a peça que lhe pertencia por herança. Botelho iria receber por seu trabalho e João Romão ficaria livre para assumir a posição que acreditava merecer após tanto empenho. Com certa relutância, uma pitada de covardia e uma porção de ambigüidade, João Romão se convence e é convencido de que devolver a escrava para o verdadeiro dono é a melhor saída. Mas como ele se sent iria, ao ver aquela com quem por tanto tempo dividiu a cama, o t rabalho e a responsabilidade, ser entregue como uma coisa a um senhor que a trataria sempre como tal? A resposta está nas palavras de Botelho, ao dizer que não foi ele quem a fez negra! A situação da crioula foi definida ao nascer em uma sociedade escravista, como a do Rio de Janeiro do século XIX. Sua ident idade, seus papéis e o seu lugar foram definidos ao ser concebida e ao nascer. O homem, branco, livre e recém-burguês, não poderia ser considerado culpado pelo fato de tantas Bertolezas terem nascido negras. Depois de tudo acertado, o proprietário chegou ao endereço combinado para exigir o cumprimento da lei. Encontrou-se com João Romão e se dirigiram para a cozinha, para lá dentro, onde Bertoleza sempre fora vista, onde vivia a sua vida. Nela seria entregue, ao ser encont rada de cócoras no chão, escamando peixe para a ceia do seu homem, quando viu para defronte dela aquele grupo sinistro.36 Em seu território, fazendo o que diariamente lhe cabia, ela, com a perspicácia que não lhe era notada diariamente, compreendeu a armadilha. Em poucos segundos, conseguiu vislumbrar a t raição e as ludibriosas encenações daquele homem a quem confiara e dedicara tantos anos de sua vida. Reconheceu logo o filho mais velho de seu primit ivo senhor, e um calafrio percorreu-lhe o corpo. Num relance de grande perigo, compreendeu a situação; adivinhou tudo com a lucidez de quem se vê perdido para sempre. Adivinhou que t inha sido enganada, que a sua carta de alforria era uma ment ira e que o seu amante, não tendo coragem para matá-la, a rest ituía ao cat iveiro.37 No exato momento em que se deu conta de sua real situação, a crioula t rabalhadora, amante, submissa, dedicada, calada e muitas vezes resignada, começou a se refazer. Não aceitando a situação e vendo-se como a única em quem poderia encontrar ajuda, fez o inesperado, recusou e agiu. Seu primeiro impulso de fuga foi inibido pelo grito do senhor aos soldados: Prendam-na! É escrava minha!38 Ela optou por ficar em sua cozinha e encontrou, finalmente, a liberdade nela mesma, naquela Bertoleza mulher feita valente. Ato definit ivo e irrevogável, o suicídio foi prat icado por essa mulher negra que buscou a liberdade até os últ imos minutos de sua vida. Recusou-se a voltar e permanecer no cat iveiro. Ameaçada pelos sabres desembainhados dos policiais, ali, entre escamas e t ripas de peixe, imóvel com a faca na mão, ergueu-se com o ímpeto de anta bravia, recuou de um salto e antes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de lado a lado. A imagem final de Bertoleza em sua cozinha é a de quem emborcou para frente, rugindo e esfocinhando moribunda numa lameira de sangue.39 Ato convicto de quem conhece suas conseqüências, esse suicídio sugere um ponto de ruptura entre as Bertolezas que viveram e morreram no cort iço carioca de João Romão. O fato de ter uma história e um passado marcados pela obediência, submissão e pela exemplar dedicação de mulher negra e escrava a um homem branco, livre e burguês, não foi empecilho para Bertoleza negar sua situação e não aceitar seu futuro. Não t inha o que fazer; ou obedecia aos seus senhores brancos ou fazia-se anta bravia. Em vez de permanecer escrava, negou a vida imposta e optou por não aceitar sua condição inferior. João Romão, que fugira até o canto mais escuro do armazém para não ver a crioula se debatendo no chão, teve seu instante de perplexidade apagado pela confortante e irônica visita de uma comissão de abolicionistas que, de casaca, vinha, respeitosamente, lhe t razer o diploma de sócio benemérito. Ainda sobre o suicídio de Bertoleza, sublinho algumas observações. Em primeiro lugar, a mulher Bertoleza ousou recusar o seu futuro como escrava de um senhor branco, a ponto de surpreender todos os outros homens que estavam na cozinha com o objet ivo de forçá-la a assumir esse papel. É nesse sent ido que vejo seu suicídio como ato de transgressão. Em segundo lugar, o meio que ela ut ilizou para pôr fim à vida era, segundo os estudos médicos do século XIX, um meio preferido pelos homens e não pelas mulheres, fato esse que sugere uma vez mais que a sua ousadia era bem maior do que se poderia supor. Em terceiro lugar, e apesar de tanto atrevimento, é necessário ressaltar que, apesar de ut ilizar um meio considerado masculino, ela parecia corroborar as teses médicas, porque ut ilizou seu principal instrumento de trabalho, que era domést ico, para se matar, ou seja, a faca com a qual limpava os peixes. E, por últ imo, o lugar onde se deu a cena final foi justamente aquele onde ela passou a maior parte do seu tempo, um lugar privado e feito feminino. Ainda sobre as diferenças entre os métodos ut ilizados por homens e mulheres, o Dictionnaire Encyclopédique des Sciences Médicales, de 1884, sugere que as mulheres não ut ilizavam armas brancas ou de fogo, recorrendo preferencialmente à asfixia pelo carbono; maneira que elas acreditavam conduzir a uma morte lenta e doce. Preocupadas unicamente com a beleza, enganavam-se mais uma vez. Um engano recorrente entre as mulheres belas, que desejavam assim cont inuar depois da morte.40 Já os homens recorriam principalmente à estrangulação. As mulheres ainda recorriam aoveneno e à queda de um lugar muito elevado.Vale notar que essa últ ima opção permite um paradoxo; afinal, estas mulheres que optaram por assim morrer não estariam tão preocupadas com a própria beleza e com o estado do próprio corpo após a morte, ou não respeitaram os t ipos de suicídio e os meios ut ilizados para esse fim, considerados “próprios para elas”.41 Sobre o suicídio masculino, em 1861 o poeta Fagundes Varella fornece uma intrigante história que vale ser analisada: Elle era bello ! Na espaçosa fronte O dedo do Senhor gravado havia O sigilo do gênio : em seu caminho O humano da manhã soava ainda, E os pássaros da selva gorjeando Saudavam-lhe a passagem n’este mundo. Sim, era uma criança, e no entanto Fries de morte lhe coava n’alma! O seu riso era triste como o inverno, E dos o lhos cansados nem um raio , Nem um clarão, nem pálido lampejo Da mocidade o fogo revelavam! Era-lhe a vida uma comedia insípida Estúpida e sem graça; ele a passava Com a fria indiferença do marujo Que fuma o seu cachimbo reclinado Na proa do navio o lhando as vagas; -Vivia por viver... porque vivia. Em nada acreditava; há muito tempo Que idéia de Deus soprara d’alma Como das botas a poeira incomoda... O evangelho era um livro de anedotas, Beethoven torturava-lhe os ouvidos, E a poesia lhe causava sono. Muita donzela suspirou por ele, Muita beleza lhe dormiu nos braços; Mas frio como o gênio da descrença, Após um’hora de gozar maldito Saciado as deixou, como o conviva A mesa do festim, farto e cansado. Era mais caprichoso, mais bizarro Do que um filho de Abion, mais vário Que um pro fundo po lítico : uma tarde, Após haver jantado, recordou-se Que ainda era so lteiro ! — Pelo Papa! É preciso tentar, disse consigo. Quatro dias depo is tinha casado: Esco lhera uma no iva descuidoso, Como um brinco chinês, um livro info lio Ao altar conduziu-a, distraído, E as juras divinas do casamento Repetiu bocejando ao sacerdote. Como tudo na vida, o matrimônio Bem cedo o aborreceu; após três meses Disse adeus à mulher que pranteava, E acendendo um cigarro , a passos lentos, Dirigiu-se ao teatro , onde assistiu A um drama de Feuillet, quase dormindo Por fim de contas, uma no ite bela, Depois de ter ceado entre do is padres, Em casa da morena Cidalisa, Pegou n’uma pisto la e entre as fumaças De saboroso havana, à eternidade Foi ver se divertia-se um momento.42 Em princípio, a poesia apresenta um modo de vida masculino, mas não pautado pela ordem desejada pelos saberes e inst ituições disciplinares. O rapaz era belo, frio, indiferente aos encantos da vida e do mundo. Vivia por viver, meio de passagem pelo mundo, incrédulo, conquistador de donzelas e, como se não bastasse, solteiro. Quando, afinal, se deu conta de sua condição, de seu estado civil, resolveu casar-se. Não poderia mais cont inuar assim. Era preciso tentar, e ele tentou! Escolheu uma noiva e casou-se. Aborrecido com sua nova condição de homem casado, a mesma que o discurso médico apresentava como prevent iva ao suicídio, deixou a mulher e voltou à vida desregrada. Entregou-se aos encantos da morena Cidalisa, na casa de quem resolveu, calmamente, pôr fim à sua vida com uma arma de fogo, uma pistola. Quanto à esposa, a única coisa que sabemos é que ficou pranteando ao ver o marido sair de casa. Se Fagundes Varella apresenta um suicídio considerado masculino, Gustave Flaubert , em Madame Bovary (1857), nos brinda com a história de Emma, uma mulher que ousou ser diferente. Várias ident idades foram criadas para e por Emma: filha instruída e educada de um lavrador; esposa amada de um pacato médico; sonhadora que se entregava à leitura, viajando por vários países imaginários, mas desprezando os heróis comuns; amante que deslizava entre desgosto, tédio, ment ira e infidelidade; pequena burguesa sent imental; esposa infiel; mãe relapsa e ausente; por fim, suicida. Ao relacionar-se com o seu pai, seu marido, seus amantes, seus comparsas e consigo mesma, ousou viver além do possível e permit ido a uma mulher de sua condição. Negando o modo de vida que lhe foi imposto, e que todos esperavam que aceitasse, ou seja, o de esposa-dona-de-casa-mãe-de-família, Emma sonhou e buscou realizar suas fantasias. Amou, decepcionou-se, revoltou-se, perdeu a razão e teve medo de pagar o preço de uma vida desregrada, ilícita e considerada imprópria para uma mulher casada. Suicidou-se ingerindo uma forte dose de veneno, meio de se dar à morte considerado feminino na época, e sofreu cruéis torturas e dores antes de morrer. Como que pagando por ter vivido de modo desregrado, como que expurgando seus desvios, padeceu: Emma não tardou a vomitar sangue. Os lábios apertaram-se-lhe mais. Tinha os membros crispados, o corpo coberto de manchas, o pulso resvalava sob os dedos como um linha tensa, como uma corda de harpa prestes a quebrar-se. Depois começou a gritar horrivelmente. Amaldiçoava o veneno(...)43 Uma mulher que não seguia os modelos de conduta próprios das mulheres casadas morreu no feminino. Lembrando o discurso médico, mesmo depois de morta Emma conseguiu cont inuar bela; parecia estar dormindo. Vest ida de noiva, sapatos brancos e uma coroa, a bela e infortunada jovem não exist ia mais, não precisaria pagar suas dívidas, tampouco seria condenada pela sociedade e menosprezada pelo marido que ainda a amava demasiadamente. Dois suicídios, dois meios, um masculino e outro feminino. Diferenças usadas para sugerir que, mesmo na hora de pôr fim à vida, os homens eram superiores às mulheres. O poder masculino presente e exercido nos discursos reforçava os espaços e papéis que deveriam ser respeitados por todos e todas. De acordo com o médico francês Achille Villet te, pode-se explicar a pequena quant idade de suicídios de mulheres pelo fato de seus sent imentos serem menos duradouros do que os dos homens. Elas eram pouco acessíveis à intemperança, gozavam de uma excitação mais imediata e de uma sensibilidade mais delicada, abandonavam-se mais facilmente às impressões vivas que recebiam. Por essas razões, Villet te compreendia por que elas se tornavam habitualmente melancólicas e não suicidas.44 O próprio Esquirol sugeriu que, apesar de as mulheres estarem mais expostas às doenças mentais do que os homens, elas suicidavam-se bem menos.45 Tornavam-se alienadas e loucas, mas não suicidas, em proporção aos homens, mais firmes em suas decisões, tornando-se suicidas e não alienados. O Dr. Pet it , em 1850, indicou que entre os anos de 1835 a 1846 ocorreram 33.032 suicídios na França.46 Desse total, mais de 74% dos casos foram prat icados por homens. Algumas considerações foram apresentadas para se explicar os números e taxas que apontavam o maior índice masculino de morte por suicídio. As mulheres se exaltavam facilmente, agravavam seus males, exageravam suas dores, mas se agarravam à vida pelo horror ao sangue. Quando encontravam no paroxismo de suas tristezas a força para se suicidar, t raíam as suas fraquezas, e num últ imo inst into de coquetterie preferiam os meios menos doloridos, que matavam sem desfigurar. A divisão sexual dos papéis, que se baseia em caracteres naturais e biológicos, possibilita e induz a const ituição de suicídios considerados próprios aos homens e às mulheres, bem como inst itui formas e maneiras de se suicidar por meios considerados masculinos ou femininos. Mas isso não quer dizer que não havia possibilidade de se confundir, não respeitar ou refazer a fronteira do masculino e do feminino. Uma inst igante história é relatada por Foucault sobre as dificuldades de se transpor as fronteiras do masculino e do feminino. Indagando sobre a necessidade de um verdadeiro sexo, ele inicia seu estudo sobre Herculine Barbin. O livro, apresentado como documento dessa estranha história do verdadeiro sexo,ut iliza as memórias deixadas por um desses indivíduos a quem a medicina e a justiça do século XIX perguntavam obstinadamente qual era a verdadeira identidade sexual.47 Criada como moça pobre e digna de mérito, num meio quase exclusivamente feminino e profundamente religioso, Herculine Barbin, cognominada Alexina por quem lhe era próximo, foi finalmente reconhecida como um “verdadeiro” rapaz, obrigado a t rocar legalmente de sexo após processo judiciário e modificações de seu estado civil. Incapaz de adaptar-se à sua nova ident idade, suicidou-se. Suas histórias, memórias, dúvidas, incertezas, dores e obrigações t iveram como contexto as décadas de 60 e 70 do século XIX na França. Se, como foi apresentado, por meio das relações de gênero dois t ipos de pessoas são criados — homem e mulher —, em categorias excludentes, só podendo pertencer a um dos gêneros e nunca a ambos, como pensar o sujeito hermafrodita? Seria a falta de ident idades e territórios sólidos a causa, ou uma delas, de suicídio entre eles? São sujeitos que mesclam e confundem as fronteiras e os significados de “masculino” e “feminino”, bem como as conseqüências de terem sido atribuídos a um ou a outro gênero (mas esse é um desafio para um futuro estudo). O que se percebe é a necessidade de apresentar a todos como homens ou mulheres, nunca uma terceira possibilidade, mesmo que “anormal”. No início do século XIX, em Paris, ocorriam quase cento e cinqüenta suicídios por ano, em sua maioria por afogamento no Sena. O índice de suicídios dos homens é, segundo Lynn Hunt, t rês vezes superior ao das mulheres.48 Em todos os casos, o Sena era considerado lugar propício para o ato. Lit t ré, em seu Dictionnaire de Médecine (1884), também concordava com os estudiosos do tema. Para ele, suicidavam-se três vezes mais homens do que mulheres.49 A este respeito, Mart in Monest ier observou que três quartos de suicídios eram cometidos por homens. Segundo ele, uma explicação sat isfatória é que as mulheres geralmente não desejam o suicídio no sent ido de destruição, aniquilamento, pois o que elas querem é simplesmente fugir, esquecer, escapar de sua vida presente, dormir. Dormir muito e por muito tempo. Dessa maneira seria possível compreender as razões de não se disporem de meios considerados radicais50, característ ica do suicídio masculino. Uma vez estabelecido que as mulheres não teriam força necessária para o suicídio, pois, fracas, tornavam-se loucas e não suicidas, e que os homens, fortes e mais decididos, tornavam-se suicidas por meios mais violentos, no que diz respeito à temat ização do suicídio, as imagens de força, intelecto, razão e coragem foram direcionadas ao campo do masculino. Por outro lado, e em segundo lugar, as imagens de fraqueza, debilidade, emoção, docilidade, inferioridade física, mental e intelectual delimitaram o campo do feminino. Os discursos que se entrecruzam, na tarefa de definir as razões de os homens se suicidarem mais do que as mulheres, classificam os atos, os meios e as possíveis causas como próprios de determinado sexo. Ao estudar e analisar o suicídio de homens, chegava-se a um grupo específico: o suicídio masculino, a formas de se suicidar do masculino. Chegava-se a outro grupo ao se estudar e analisar os casos de suicídio de mulheres: o suicídio feminino, a formas de se suicidar do feminino. Os discursos médicos, que assim classificaram os atos de se dar à morte, construíram as diferenças entre o suicídio masculino e o feminino, entre aquele cometido por homem e o outro cometido por mulher. Essa diferenciação ajudou a reforçar a ót ica masculina sobre as diferenças sexuais, a assegurar os espaços masculinos de manipulação e controle. Muitos desses discursos, com constantes crí t icas e denúncias contra os efeitos nocivos da literatura, também permitem pensar um outro aspecto da problemat ização médica sobre o suicídio. A literatura, considerada por muitos médicos brasileiros como responsável por suicídios, por narrar histórias de homens e mulheres que se suicidaram, por fornecer em detalhes os móveis e meios para suas morte, foi objeto de análise, crí t ica e até mesmo censura. CAPÍTULO V — A LITERATURA VISTA COMO UM PERIGO À VIDA Muito já se escreveu sobre a morte e o suicídio na literatura. Vários romances, poesias e contos, entre outros gêneros literários, alguns já citados e analisados neste livro, inspiraram-se em algum suicídio ou pelo menos narraram, no desenrolar do drama, alguma morte voluntária. Os pormenores com que o suicídio foi apresentado em obras literárias, desenvolvidas pelos mais ilustres escritores nacionais e internacionais — de Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Machado de Assis e Aluísio Azevedo até Johann Wolfgang von Goethe, Lord Byron, Alfred de Musset e Gustave Flaubert —, chamaram a atenção de vários intelectuais, principalmente dos médicos envolvidos com a proposta de uma medicina social, para a perigosa influência que os exemplos cont idos nessas obras poderiam despertar nos leitores. Além disso, esse perturbador e desconfortável t ipo de morte — o suicídio — tornava-se público, inclusive por meio da imprensa. Rompia-se o silêncio que muitos saberes procuravam impor sobre esses atos considerados incompreensíveis. Tornava-se necessário, pois, pensar em medidas que pudessem alterar essa prát ica. Assim, inicialmente preocupados com a constante e detalhada presença do suicídio nas páginas dos jornais, os t rabalhos médicos que visavam garant ir, quando não a completa supressão, pelo menos o silêncio em torno do tema, redirecionaram a atenção para outros agentes de contágio, entre eles as obras literárias.1 É possível dizer que a literatura, em especial a românt ica, ao criar suas histórias que narravam algum t ipo de suicídio, masculino ou feminino, não se restringiu à severa imagem e à verdade oferecidas pelo discurso médico, provocando, assim, reações e crí t icas austeras. Os romances apresentavam outras formas de conceber e perceber o suicídio, muitas vezes diferentes daquelas presentes e divulgadas no e pelo discurso médico. Em outras palavras, na literatura o suicida não era necessariamente o doente mental, o desequilibrado ou o louco. A part ir do momento em que vários médicos e literatos começaram a explicar ou narrar casos e t ipos de suicídio, a tensão entre eles foi se const ituindo. Para compreender a tensão entre essas áreas do saber, talvez seja importante e necessário analisar o fato de a literatura ter-se envolvido, pelo menos durante o período abordado, com objetos e áreas de atuação “t idos” e “compreendidos” como exclusivos ou, no mínimo, orientados pela medicina. Assim, ao longo do século XIX, é possível perceber o surgimento e desenvolvimento de discursos e maneiras de conceber e perceber o suicídio que, não necessariamente, corroboravam ou embaçavam o discurso médico. Ao perceberem muitos outros discursos que propunham outras formas de abordagem, e até mesmo de prevenção do suicídio — como o literário —, os médicos procuraram medidas para silenciá-los ou domest icá-los. Condenaram, assim, as obras que não correspondiam às “verdades” médicas (e cientí ficas).2 A tensão exposta permite a análise da tentat iva médica de controlar a produção das obras literárias e de impedir sua leitura, pois, para eles, divulgavam o suicídio. A vontade de erradicar o suicídio do meio urbano, ou a prát ica de domá-lo para que fosse possível uma compreensão racional, permitem a exploração de uma outra dimensão const itut iva da tensão entre o discurso médico e o literário sobre o suicídio: a dimensão do medo, da irracionalidade, do descontrole e da falta de ordem. Era preciso impedir que possibilidades diferentes de conceber o suicídio fossem produzidas e construir uma tát ica para que a sociedade pudesse responder, de forma ordenada e orientada, ao problema do suicídio. Não se deve esquecer que o conflito se dá entre o discurso médico— normat ivo, que estuda o suicídio para domá-lo, adestrá-lo e para curar o suicida — e o discurso literário — que não é, necessariamente, normat ivo, não se inscrevendo exclusivamente nesse campo, mas que traz dimensões da subjet ividade, mult ifacetando o suicida. Por essa razão, apresento e analiso os discursos médicos que se dedicaram ao estudo das “influências nocivas da literatura”, desenvolvo estudo e análise da corrente literária considerada como a principal produtora de obras que fizeram apologia ao suicídio, ou seja, a românt ica e, por últ imo, analiso a obra literária mais crit icada por tais estudos, Os sofrimentos do jovem Wether, de Goethe. Essa obra, segundo vários crí t icos, teria causado e provocado muitos casos de suicídio. A BUSCA AOS EFEITOS DESASTROSOS DA LITERATURA Todo um jogo de relações, ressonâncias, apropriações e até mesmo de renúncias e revoltas dinamizavam o debate em torno do suicídio no século XIX: literatos baseando-se em casos reais de suicídio para desenvolver suas histórias; homens e mulheres suicidando-se de acordo com os exemplos apresentados pela literatura; jornais divulgando casos e histórias de suicidas; crí t icas médicas à literatura e à imprensa. Uma notícia publicada no Diário de Campinas, em 1877, sobre a morte de uma jovem francesa, é uma abordagem daquele período, pois destaca a possível relação causal entre a leitura de alguma obra literária e o suicídio. Esta relação incomodava muitos médicos, tanto brasileiros como franceses, porque na maioria das vezes o suicida, antes de pôr fim à sua vida, se entregava à leitura de alguma obra literária que narrava um suicídio: Ultimamente enforcou-se, em Paris, na rua Bruxel, uma criança de 13 annos, por entrever que não tinha meios de sair de sua condição de operária, que a leitura continuada de toda sorte de romances lhe tinha feito considerar como desprezível. Enforcou-se com um lenço preto que com instancia pedira a uma de suas amigas, por ser cor de luto .3 Tanto a imprensa como a literatura narravam e divulgavam vários t ipos de suicídio. Apresentavam a seus leitores as histórias de homens e mulheres que se matavam em situações diversas, indicando os mais diferentes meios ut ilizados. Mult iplicavam, dessa maneira, as possibilidades de ele vir a ocorrer. Como o que importa aqui é a literatura e a sua possível responsabilidade no que diz respeito à proliferação do suicídio, é necessário buscar as formas por meio das quais ela foi problemat izada, pensada e crit icada pelos médicos do século XIX: saber em que consiste a crí t ica médica em relação às obras literárias, qual a nocividade e o perigo que representavam e em que medida poderiam provocar suicídio. Na primeira metade do século XIX, os médicos brasileiros escreveram seus trabalhos e teses limitando-se a apontar algumas questões sobre as relações possíveis entre a literatura e o suicídio, preocupados que estavam com as causas patológicas. Na segunda metade do século XIX, desenvolveram e responderam detalhadamente às indagações produzidas e não respondidas na primeira metade do século. Um exemplo é o Dr. Figueiredo Jaime. Em 1836, ele se indagou sobre alguns affectos d’alma, que poderiam se transformar em paixões, indicando assim sua nocividade e periculosidade.4 Segundo o Dr. Figueiredo Jaime, produtos de nossa própria organização, esses affectos desviariam o homem da felicidade, que, em suas palavras, (...) é o fim natural do homem: ele deseja invencivelmente ser feliz; porém mui freqüentemente a razão incerta, e as paixões cegas o desviam longe do termo, que ele aspira com um tão vivo ardor.5 De acordo com o autor, o que perturbava a alma desse homem que buscava realizar seu fim natural, e o impedia de lutar pela sua conservação eram, entre outras possíveis causas, as sensações depravadas, as idéias consideradas inadequadas ou obscuras, os juízos errôneos ou os fantást icos. Note-se que o Dr. Figueiredo Jaime não indicou de modo preciso quais eram esses juízos, idéias e/ ou sensações que perturbavam a alma. Tampouco sugeriu onde ou por quem eram produzidos; limitou-se a diagnost icar e apontar o problema. Mas penso ser possível aproximar seus argumentos de vários outros que vêem na literatura a sede desses juízos, idéias e sensações, pois a literatura já era vista como fonte de paixões e perturbações. Depois dele, outros médicos também se preocuparam com as causas das afecções que perturbavam o homem. O Dr. Muniz Barreto, em 1841, ao reflet ir sobre a saúde e as doenças dos homens de letras, observou que esse, a tudo desprezando, a nada mais atendendo do que aos encantos da vida literária, compromete a sua saúde em virtude de uma aplicação total para as letras e para as ciências.6 Assim, a meditação excessiva e contínua entregaria tais homens às numerosas enfermidades e, além do mais, (...) um sistema nervoso, que vive em um eretismo permanente, ou em uma espécie de intempérie, já por uma diátese de irritabilidade faz com que ele caminhe a passos largos para o termo de sua inquieta existência.7 Assim, relembrando o que já foi analisado em outros capítulos, as vigí lias prolongadas e repet idas, provocadas pela constante prát ica da meditação e leitura, eram apresentadas como causa de morte, inclusive de suicídio. Por se envolver diretamente não só como leitores, mas como produtores das mesmas obras, esses homens estariam mais propensos ao suicídio do que outros que só esporadicamente t inham contato com essas fontes de morte. A este respeito, o Dr. Franco de Leão, em 1842, também chamou a atenção para o fato de que a maior parte dos homens que se dist inguem nas ciências, nas belas artes e na filosofia apresenta uma tendência inevitável à melancolia.8 A natureza os teria dotado de uma excessiva capacidade de sent ir e uma refinada delicadeza de percepção, que const ituiriam o fundamento do seu caráter. Essas característ icas, fundamentais para a profissão das letras, representariam um caminho quase certo para o toedium vitae, que os conduzia a atentar contra os seus próprios dias. Os variados efeitos da leitura foram também focalizados pelo Dr. Costa Figueiredo.9 Em 1847, o autor destacou que as razões de as mulheres francesas serem mais alienadas do que as inglesas eram encontradas em seus costumes. Segundo ele, somente comparando os costumes de umas com os das outras é que se compreenderia a diferença. Assim, era o vício de educação das francesas que as fazia exceder em loucuras. É, pois, dessa maneira, que se deve compreender a crí t ica do autor às obras literárias, isso porque a preferência, que muitas vezes se dava às artes de puro gosto e à leitura de romances, obrigava, nas palavras de Costa Figueiredo, (...) a desenvo lverem uma atividade prematura, superior ao seu desenvo lvimento , faz nelas desenvo lverem-se desejos, para os quais ainda não estão elas preparadas, desperta-lhes idéias de uma perfeição imaginária e que não encontrarão senão nos romances; a grande freqüência de espetáculos, de círculos, abuso de música, e a falta de ocupação fazem aumentar em França o número das alienadas.10 Se as perturbações da inteligência const ituíam os sintomas essenciais da alienação mental entre as mulheres, as obras literárias, em especial os romances, não deveriam estar acessíveis às moças que ainda não est ivessem preparadas para tal experiência. Essas observações destacam o caráter nocivo e imprevisível da literatura e da leitura, principalmente daquelas obras que apresentavam algum suicídio. Os médicos da segunda metade do século XIX concordavam com os riscos da leitura. Mas eram mais imperat ivos, pois classificavam como causa direta de suicídio sobretudo as obras literárias que narravam esse t ipo de morte, em especial as da escola românt ica. Segundo essa perspect iva, o Dr. Freitas Albuquerque, em 1858, destacou que as causas de monomania, inclusive a suicida, eram divididas em predisponentes edeterminantes físicas ou morais.11 Dentre as predisponentes avultavam algumas profissões, a vida sedentária, o celibato, a viuvez e os costumes. Dentre as determinantes físicas, avultavam os excessos de qualquer natureza e, entre as determinantes morais, as paixões violentas, o ódio, o ciúme, a vingança, o amor ferido, o desejo não sat isfeito da união dos sexos e a exaltação da imaginação produzida por espetáculos, leituras, sociedades ou conversas. Torna-se importante sublinhar a exaltação da imaginação produzida por espetáculos e leituras porque, segundo o médico, as causas morais eram as que mais davam lugar ao desenvolvimento da monomania. Assim, os excessos, os abusos e as exaltações exerciam uma influência imediata sobre as funções nervosas, podendo, inclusive, permit ir o suicídio. Portanto, seria importante impedir que tais pessoas t ivessem acesso a essas obras, que apesar das austeras crí t icas do saber médico, cont inuavam a ser produzidas, publicadas, vendidas, lidas e relidas. Ainda mais precisos foram os argumentos do Dr. Joaquim Moreira, que em 1867 classificou o suicídio em filho da loucura e refletido. Por assim pensar, destacou entre as causas de suicídio reflet ido a educação, a ausência de princípios religiosos, os costumes, as crenças, a pobreza e a leitura de livros licenciosos. A leitura de livros, como os de Jean-Jacques Rousseau, Johann Wolfgang von Goethe, Chateaubriand e Lamart ine, foi classificada como causa de suicídio, pois essas obras proclamavam o enojo da vida e o desprezo da morte. De acordo com ele, a explicação para a funesta influência de certos livros, de autores que quest ionavam os princípios vitais para a conservação da vida, podia assim ser apresentada: Com a marcha dos séculos, a fé dos primitivos tempos se fo i eclipsando pouco a pouco, os laços da Igreja se afrouxaram, a razão invadiu o dogma, Vo ltaire apareceu e diferentes causas surgiram que, so lapando surdamente o espírito humano, plantaram a dúvida e o cepticismo sobre a vida futura, a imoralidade da alma e a recompensa divina concorrendo para a explosão desses numerosos casos de suicídios tão comuns nos centros os mais repletos de ilustração.12 Seu discurso sugere que o t ipo específico de literatura emergente na Europa, no final do século XVIII, permit iu a invasão da dúvida, do cept icismo e da imoralidade na alma dos homens. Contra essa funesta influência, a ciência deveria agir imediatamente, possibilitando e garant indo a vida. Crit icou, também, todos aqueles que se deixavam apoderar pelo desespero, almejando a morte como um termo fatal e consolador de todos os sofrimentos que os oprimiam. Com as mesmas preocupações, e de acordo com o pensamento médico brasileiro produzido até então, o Dr. Nabuco de Araújo, em 1883, afirmou que a cada dia notícias de suicídio eram lidas e divulgadas, sendo que seus autores mostravam ter t ido pleno tempo para deliberar sobre seu ato. Nisso, segundo ele, podia-se reconhecer uma perfeita aplicação do livre arbí t rio, ou seja, um reflet ir sobre as conseqüências do ato. Estes casos compõem o que o médico classifica de acto voluntário — produto de reflexão.13 Os suicídios reflet idos e premeditados eram, para o autor, os de maior número. Por isso, sent iu-se obrigado a lutar contra a falsa idéia e a prát ica, divulgadas pelas notícias dos jornais e pelas obras literárias, de que temos o direito de pôr fim à própria vida. Tais canais de publicação deveriam, antes de tudo, apresentar em suas páginas o que ele chamava de algumas ponderações morais que deixassem patente o horror de tal ação.14 Em lugar de permit ir a proliferação do suicídio, a imprensa e a literatura deveriam se unir ao saber médico para, guiados por ele, garant ir uma vida ordenada e controlada. É possível dizer que o principal apelo incidia sobre a nocividade do exemplo. Acreditava-se que os exemplos presentes nas páginas dos jornais e nas histórias românt icas — de como, quando, em quais circunstâncias se suicidar e que meios ut ilizar para provocar esse fim — ajudavam a mult iplicar os casos de suicídio. Pensava-se que vários leitores — muitos dos quais considerados débeis — seriam induzidos pelo gênio e pelas mãos hábeis e ardilosas do autor, se colocariam no lugar das pessoas e dos personagens ficcionais, sofreriam, desejariam, temeriam e se angust iariam com e como esses personagens a ponto de, seguindo os exemplos que proliferavam devido à literatura românt ica, se suicidarem. Com os mesmos objet ivos e temores, o legista Francisco José Viveiros Castro, em 1894, concordou com essa tendência desenvolvida no século XIX. É interessante observar que, para ele, esses romancistas, ao ligarem as paixões amorosas ao ato de se dar à morte, ao apresentarem-nas como causas diretas de morte, forneciam, por meio de inspiração poét ica, cont ingente à estat íst ica do suicídio.15 Do total de 1558 casos na cidade do Rio de Janeiro, entre os anos 1870 e 1890, ele detectou 133 devidos à embriaguez, 183 à loucura e 174 devidos aos desgostos domést icos. Segundo ele, a paixão amorosa, a causa tão poética que inspira os dramaturgos e os romancistas, fornece o contingente de 92 casos.16 Assim, homens e mulheres que se suicidavam por causa de decepção amorosa, de um amor impossível, de inumeráveis complicações do jogo da conquista amorosa e das dificuldades comuns e peculiares do relacionamento a dois — 6% dos casos registrados pela polícia do Rio de Janeiro —, inspirariam poet icamente dramaturgos e romancistas, que ut ilizariam casos reais para cont inuar escrevendo sobre esse hediondo tipo de morte. Por outro lado, muitos leitores encontrariam nas páginas dos romances situações e dificuldades parecidas ou, até mesmo, idênt icas às suas. Espelhando-se nos atos de seus heróis ficcionais, os leitores poderiam pôr fim à dor, ao sofrimento e ao impossível de ser vivido cometendo suicídio, prát ica recorrente em várias obras literárias. Muito foi escrito pelos médicos brasileiros sobre a influência nociva dos romances nos casos de morte por suicídio, e não apenas por eles. Várias obras francesas, muitas delas conhecidas pelos facultat ivos brasileiros, também sugeriam a mesma influência.17 Séverin Icard, em sua obra De la contagion du crime e du suicide par la presse, de 1902, considerou irrefutável a existência de um contágio moral permit ido pela grande publicidade que a mídia e a literatura davam aos casos de suicídio. Segundo ele, todos e quaisquer meios de publicidade — peças teatrais, livros, canções e imagens — exerciam uma funesta influência quando dirigidos às crianças e aos espíritos menos cult ivados, ou seja, mais impressionáveis.18 Outro aspecto muito importante de sua crí t ica dizia respeito à ut ilidade dessas obras. Segundo sua compreensão, seria muito mais út il, para as conveniências sociais, que o espaço concedido aos casos de suicídio fosse ocupado por discursos que deixassem patente o horror de tal ação — como fazia o discurso médico. Era preciso, de acordo com ele, indicar os perigos de introduzir ou despertar predisposições, vontades e idéias oriundas da leitura pormenorizada de histórias que terminavam em suicídio. Esquirol também sugeriu que a leitura de obras que elogiam o suicídio é causa observável de morte.19 Segundo ele, justamente a part ir do momento em que os livros se tornaram acessíveis pelo baixo preço, começaram a oferecer proposições contra as crenças, os laços da família, os deveres sociais, inspirando, assim, desdém pela vida. Como conseqüência direta, ele sublinha a mult iplicação dos casos de suicídio na França. Ainda de acordo com ele, a morte era apresentada como uma saída segura contra as dores físicas e os sofrimentos morais; imagens e valores eram oferecidos pelas páginas dos romances, alguns vendidos em grande escala e sem nenhuma censura. Dessa maneira, a leitura das obras que louvam o suicídio era, nas palavras dele, tão funestaque Madame Staël assegura que a leitura de Werther, de Goethe, produziu mais suicídios na Alemanha que todas as mulheres daquele país.20 O abade francês Maupoint , em 1843, advert iu que o amor profano, falso, contrariado e desesperado era causa das mais influentes de suicídio.21 Os romances seriam a verdadeira fonte desses amores e, conseqüentemente, de suicídio. Além do mais, as produções da imprensa francesa, consideradas imorais, teriam leitores que devoravam esses livros perigosos e condutores de morte. Como se não bastasse, eles cont inuavam a ser publicados sem nenhum t ipo de restrição por parte das autoridades e, ao se mult iplicarem ao infinito, produziam incomparáveis malefícios aos segmentos sociais e à vida. Por assim pensar, ele propôs que esses autores, que envenenavam e matavam, ao mesmo tempo, corpo e alma, fossem tratados com mais severidade do que os envenenadores públicos, que envenenavam o corpo mas não t inham poder sobre a alma. Mas, não pensem que para Maupoint a censura e o controle das obras literárias deveria ser prát ica natural ou recorrentemente observável em todas as sociedades. Segundo ele, somente após longa reflexão seria possível descobrir se a causa dos suicídios, produzidos pela paixão amorosa desregrada, estava nos romances. Assim, como fruto das leituras desses romances, surgiria o chamado suicide romanesque22, um t ipo específico, que só poderia ser controlado se houvesse censura das obras românt icas. A POSSÍVEL RESPONSABILIDADE DO ROMANTISMO O Romant ismo foi duramente crit icado pelos médicos que se dedicaram ao estudo do suicídio no século XIX. Mas, se já conhecemos a crí t ica, seu embasamento, seus argumentos e as reprovações tecidas, cabe interrogar e analisar o movimento literário classificado e conhecido como Romant ismo. Faço uma análise, a part ir de indagações, sobre t rês pontos que penso serem os alvos para os quais se direcionavam as crí t icas e reprovações médicas: a tendência individualista — a idéia de que o centro do mundo era o Eu —, a valorização das emoções e o amplo recurso à imaginação. É necessário ressaltar a impossibilidade de compreender o Romant ismo como um movimento monolí t ico, rígido, absoluto e sem variações. Este movimento, tanto europeu como brasileiro, foi marcado por diferentes momentos, nos quais alguns temas, gêneros, nível estét ico, situações e intenções receberam destaque, em detrimentos de outros. Ao invés de pensá-lo como constante e imutável, concordo com aqueles que o vêem como um movimento que apresentou em seu interior variáveis quase ant itét icas, nuances tão diferenciadas que chegaria a se const ituir em absurdo qualquer tentat iva de pensar a existência de um único Romant ismo.23 Assim, é preciso observar que o Romant ismo é const ituído por diversas fases, por algumas característ icas e por certas rupturas provocadas por poetas, literatos e art istas. Para os objet ivos atuais, focalizo as característ icas, condutas e prát icas crit icadas principalmente por médicos, como as de permit ir que temas considerados funestos e hediondos começassem a fervilhar em obras literárias produzidas entre o final do século XVIII e início do século XIX. Em especial, indago a at itude que leva ao extremo a exacerbação da sent imentalidade e mesmo as fantasias da imaginação mórbida24, considerada por Antonio Candido como singular ao romant ismo. A idéia de que o centro do mundo é o Eu permite que tudo passe a se organizar em torno do sujeito, caracterizando a função emot iva ou expressiva da linguagem. Nesse sent ido, a forte presença do Eu seria um dos aspectos substanciais do romant ismo.25 A esse respeito, Antonio Candido observou que o romant ismo tornou possível o enriquecimento da expressão como a soma variada das aspirações, ansiedades e contradições interiores, no tom pessoal que exprime o mundo individual do art ista. O românt ico surgiu como expressão de uma nova ordem social, moral, religiosa e econômica e, se ao mesmo tempo exprime a experiência individual, é porque se deixa envolver pelo clima do momento, enquanto síntese deste próprio momento.26 Alfredo Bosi argumentou que o eu românt ico, objet ivamente incapaz de resolver os conflitos com a sociedade, lançou-se à evasão. Dessa maneira, em relação com o próprio eu, o abandono à solidão, ao sonho, ao devaneio, às demasias da imaginação e dos sent idos, são traços exibidos pelos românt icos, inclusive os brasileiros.27 Vale notar que esta prát ica de entrega à evasão e ao devaneio é rigorosamente negada pelo saber médico, que, por meio de verdades cientí ficas, pretendeu gerar e garant ir a vida ordenada, racional e medicalizada. Antonio Candido percebeu que o individualismo, destacando o homem da sociedade ao forçá-lo sobre o próprio dest ino, rompeu de certo modo com a idéia de integração, de entrosamento — quer dele próprio com a sociedade em que vive, quer desta com a ordem natural entrevista pelo século XVIII. Daí, o autor destacar certo baralhamento de posições e confusão na consciência colet iva e individual, de onde brotam o senso de isolamento e uma tendência invencível para os rasgos pessoais, o ímpeto e o próprio desespero. Manifestação puramente pessoal, sob a égide do sent imento, mais que da inteligência ou do engenho, o individualismo possibilitou uma ruptura na at itude poét ica, uma reformulação do lugar do homem no mundo e na sociedade, e desestabilizou a hierarquia dos gêneros literários.28 Dessa maneira, essa tendência individualista é permit ida por uma nova escritura, que subst ituiu os códigos clássicos em nome da liberdade criadora do sujeito, a qual implicava um perder-se no Narciso sagrado do próprio eu.29 Assim, os literatos românt icos forneciam material de crí t ica aos moralizantes médicos da medicina social, que acreditavam ter a tarefa e a capacidade de tudo perscrutar e a tudo controlar, inclusive os desejos, hábitos e comportamentos individuais. O outo aspecto analisado é a extrema valorização das emoções, que, ao lado da liberdade e da paixão, const ituiriam o tripé sobre o qual se assentaria boa parte do Romant ismo.30 Mas poderíamos, a part ir disso, supor que o Romant ismo propagaria o “império” das emoções? Nele tudo seria guiado, pautado e balizado pelas emoções, em detrimento absoluto da razão? Teríamos assim uma oposição direta ao racional e cientí fico discurso médico? Seria possível dizer que, com o Romant ismo, teríamos a const ituição de uma tensão entre o discurso médico, considerado como fonte absoluta de razão e verdade possível, e o discurso literário, arauto da imaginação e da emoção? Para Adilson Citelli, muito se tem afirmado que o Neoclassicismo seria o exercício pleno da razão, enquanto o Romant ismo seria o domínio das emoções. Contudo, ambas as afirmat ivas incorrem no erro de trabalharem com as perigosas “categorias absolutas”. Assim, caberia observar que o neoclassicismo tendeu, pela sua situação histórico-cultural, a afirmar a razão. Por seu turno, o Romantismo, na busca daquilo que muitos poetas ingleses chamaram de ‘literatura orgânica’, colocou em primeiro plano os dados subjetivos, emocionais.31 Estas mudanças apontam para o distanciamento sugerido entre emoção e razão. Tal como aconteceu com as paixões 32, a emoção foi temat izada como negação e “oposto natural” da razão. Citelli observa que, no Neoclassicismo, o controle da razão se dava de fora para dentro; ou seja, o conjunto de normas e regras que delimitavam o alcance da arte de filiação clássica já estava predeterminado. No Romant ismo, o movimento é o inverso, a razão deveria derivar do sent imento e o impulso inicial vem de dentro para fora. Assim sendo, o Romant ismo, ao romper regras e normas, deixa fluir as sensações sem submetê-las a uma anterior camisa de força.33 Cabe destacar que a oposição ao predomínio da razão foi uma das característ icas mais dominantes do Romant ismo, justamente o que levavaos clássicos a aceitarem a vida e a sociedade de maneira relat ivamente pacífica, ou com at itude espiritual e moral estát icas. Ao contrário dos clássicos, vários românt icos exprimiram a insat isfação do mundo contemporâneo: inquietude, t risteza, aspiração vaga ou imprecisa, anseio de algo melhor do que a realidade, inconformismo social, ideais polí t icos e de liberdade, entusiasmo nacional. Os românt icos deram grande ênfase à vida sent imental; cult ivaram o amor e a confidência, ou se dispuseram à renúncia e ao isolamento pulando do círculo fechado de sua fantasia interior, da sua realidade alimentada por idealizações e fugas, luminosa ou sombria, entre o bem e o mal, para as cogitações morais e espirituais.34 Não por acaso, seriam os autores românt icos aqueles que escreveriam abertamente sobre o suicídio, sugerindo situações, casos, histórias, meios, utensí lios e fins para ele, permit indo possibilidades plurais e variadas para o ato e mult ifacetando o sujeito que o prat ica. Parece, então, que ao se opor ao uso da razão para tudo explicar e pensar, os românt icos abriram outras possibilidades de acesso, sugerindo outros sent idos, indicando novos indícios e propondo uma mudança na maneira pela qual o suicídio é problemat izado, representado e prat icado. O amplo recurso da imaginação é o últ imo ponto sugerido para, por meio dele, analisar o Romant ismo. Em sua at itude de quebrar o rigor das regras e afirmar a liberdade de criação, os românt icos passaram a exercitar a subjet ividade, creditando à inspiração e ao gênio do autor a missão de separar um mero imitador de modelos de um original inventor de objetos art íst icos, ao que Citelli agrega o argumento de ser o Romant ismo um pouco responsável pelo rompimento da face “envergonhada” da imaginação.35 Assim, compreendemos porque os poetas — em especial os da segunda fase, os ultra-românticos — conseguiram em suas obras que o pessimismo, o “humor negro”, a revolta, os desejos insat isfeitos, a desilusão amorosa, o inst into irresist ível e a perversidade dessem as mãos à sensibilidade, ternura, singeleza, ingenuidade e doçura. Os recorrentes usos da imaginação, dos devaneios e desvarios, possibilitaram transpor barreiras e fronteiras até então instransponíveis, por exemplo, no que diz respeito às formas de temat izar o suicídio. Ousaram pensar diferentemente, criando outras maneiras de perceber e conceber o suicídio. Temos, assim, a construção do quadro para o qual o discurso médico direcionou toda a sua crí t ica, condenação e indignação. Discursos moralizantes e cientí ficos, que pretenderam exorcizar todos os excessos, riscos, perigos e desordem que em sociedade pudessem proporcionar uma vida não regulada e medicalizada, ou ainda, tudo que pudesse permit ir ou sugerir uma morte considerada “não natural”, inst ituíram uma campanha contra aqueles que ousavam propor caminhos, diferentes dos seus, para pensar os fenômenos e acontecimentos cot idianos, as alegrias e as t ristezas da vida. Assim, contra os princípios básicos da medicina social — razão, ordem, controle, regulação — os românt icos propunham emoção, imaginação, devaneio, fuga da realidade, exacerbação da desilusão, da dor e da sensibilidade para o sofrimento, sublinhando a violência da existência e, não poucas vezes, sugerindo a negação da própria existência por meio do suicídio. Dessa maneira, neste jogo de forças e de poder entre essas duas áreas do saber, os est igmas, as imagens e as referências para e sobre o suicídio foram criados pelos discursos para o suicídio e para o suicida, instaurando o ato e o sujeito que o prat icava no campo da irracionalidade, da anormalidade, dos devaneios, das fugas, do terrível e do insuportável na existência humana. Considero, em especial, dois temas — o amoroso e a valorização da vida — como característ icas fundadoras do Romant ismo. O amoroso tem como peculiaridade o modo por meio do qual a questão amorosa se fez presente nos vários discursos românt icos. Nele, a questão amorosa possuía graus e variações que iam desde o passionalismo trágico mais intenso até a redenção melosa, crente na pureza dos sent imentos e na capacidade resgatadora do exercício da paixão. Assim, o Romant ismo viveu muito do chamado amor idealizado, da projeção pura e simples de um modelo amoroso.36 Para falar sobre o amor românt ico, não posso deixar de fazer referência ao trabalho de Jurandir Freire Costa. Sua principal contribuição para minha análise foi seu incisivo destaque ao caráter histórico. Ele adverte que o amor, inclusive em sua versão românica, foi inventado, como o fogo, a roda, o casamento, o cuidado com o próximo, as heresias, os deuses e tantas outras invenções históricas. Nenhum de seus const ituintes afet ivos, cognit ivos ou conat ivos é fixo por natureza.37 Como resultado, o amor românt ico surgiu e fez parte da teia sociocultural que deu origem à modernidade européia democrát ica e capitalista. Não é um sent imento que existe fora do tempo e do espaço, pois envolve idéias específicas sobre sexo, gênero, casamento, impulsos biológicos e sent ido da vida, entre outras, que só começam a se difundir e ganhar credibilidade a part ir do século XVII.38 Entre os vários estudos citados por Costa, penso que um deles parece melhor resumir as condições históricas que possibilitaram o surgimento do amor românt ico, o The Virtue of (Erotic) Love, de Solomon: O amor romântico é fruto de uma concepção da privacidade e da autonomia individuais pouco conhecida em períodos anterio res. Além disso, requer a idéia de que as ‘emoções por si mesmas’ devem ser cultivadas como fonte de prazer e a noção, também imprescindível, da unidade entre sexualidade e sentimento , escassamente encontrada em outras formas históricas de amores ocidentais. Por fim, o amor romântico pressupõe a idéia de ‘eu interio r’ que procurava se expandir para incluir o outro . Essa função do eu dificilmente encontraria lugar em sociedades ‘menos psico logizadas e mais formadas para a criação social de mentalidades’.39 A constatação de que o amor românt ico tem condições de existência sugere que foi preciso aprender a amar romant icamente, que foi const ituído e/ ou permit ido pelas obras literárias românt icas e por determinadas característ icas. Entre as característ icas mais importantes, pelo menos em relação ao suicídio, estão a inconfundível disposição ao sofrimento, um modo trágico, heróico e dramát ico de amar, e a inviabilidade da relação amorosa. A respeito da inviabilidade, Costa argumenta que, para os prat icantes do amor românt ico, ela é sempre just ificada por meio de argumentos ad hoc que validam a lógica emocional do romant ismo. Esse procedimento nada tem de excepcional. É assim que nos comportamos, na maioria das vezes, em face das crenças religiosas, filosóficas, psicológicas ou cientí ficas que adotamos. Se algo falha, o defeito não é imputado ao modelo, e sim à incapacidade do sujeito. Com o amor, sugere o autor, acontece o mesmo. Se não conseguimos amar, a culpa ou responsabilidade é nossa, do mundo ou do dest ino, jamais das regras do jogo amoroso.40 Dessa maneira, amar torna-se, no Romant ismo, a finalidade da vida: amar sem limites, desejando o inalcançável, de maneira total, sem limites nem freios. Essas relações amorosas podem ser resumidas com as seguintes palavras: aventuras em orgasmos e sofrimentos sem remédio à vista.41 O últ imo tema desenvolvido pelos literatos, poetas e art istas românt icos foi a chamada valorização da morte. Assim, no afã de se afastar do mundo, incompleto e desajustado, o romântico opta pela morte como algo glorioso, gesto definitivo e radical a revelar uma profunda indisposição com a sociedade. 42 Antonio Candido argumenta que a atração pela morte, a autodestruição dos que não se sentem ajustados ao mundo, está presente entre aqueles que escolheram as veredas mais perigosas, como quem experimenta com o próprioser. Um verdadeiro “complexo de Chapeuzinho Vermelho”, que leva a tomar o pior caminho para cair na boca do lobo, com um arrepio fascinado de masoquismo.43 Antes de morrer, os poetas românt icos davam, cont inuamente, asas ao desespero, ao pessimismo. Inspirados pela “beleza da morte”, escreviam sobre sonhos, desejos, dores, frustrações, medos, morte e suicídio. Por assim agir, fundaram uma perspect iva para pensar o suicídio, que rompia e não respeitava as fronteiras do possível e do verdadeiro sobre o ato criadas e sugeridas pelo discurso médico, por excelência normat ivo, moralista e cientí fico. De fato, a crí t ica dos médicos brasileiros fazia sent ido, pois a literatura românt ica, tanto nacional como a estrangeira, divulgava casos, histórias, vida e morte de homens e mulheres que se suicidavam pelos mais variados meios e causas. Por esse mot ivo, por divulgar um ato considerado condenável se prat icado com o pleno uso da razão, e por não respeitar as verdades cientí ficas sobre o suicídio, esses literatos deveriam ser responsabilizados como indutores de morte não natural. Ainda a esse respeito, é necessário destacar algumas considerações. Em primeiro lugar, convém observar as interdições culturais e sociais ligadas à morte. Para esclarecer essa questão, retomo a análise de Philippe Ariès, para o qual a morte já não causava medo apenas por causa de sua negat ividade absoluta; provocava náuseas como qualquer espetáculo repugnante. Foi feita inconveniente como os atos biológicos do homem, as secreções do corpo. Dessa maneira, tornada repugnante, passou a ser indecente torná-la pública, o que acontecia tanto na imprensa como na literatura. Ariès salienta que, nesse contexto, uma nova imagem da morte foi se const ituindo. Por ser feia e suja, passou a ser escondida; interditou-se a alusão pública a ela. No que diz respeito ao suicídio, morte considerada não natural, os modos de pensar, conceber e perceber esse t ipo de morte foram exacerbados, pois ele acarretava os fardos da irracionalidade, ant inaturalidade e anormalidade.44 Cabe observar as análises de João José Reis acerca da considerada boa morte — idéia contrária ao t ipo de morte violenta prat icada pelos suicidas. De acordo com ele, as at itudes diante da boa morte e dos mortos foram tomando novas formas e novos sent idos ao longo do século XIX. As concepções sobre o mundo dos mortos e dos espíritos, a maneira como se esperava a morte, o momento ideal de sua chegada, os ritos que a precediam e sucediam, o local da sepultura, o dest ino da alma e a relação entre vivos e mortos eram questões sobre as quais muito se pensava, falava, escrevia e em torno das quais se realizavam ritos, criavam-se símbolos, movimentavam-se devoções e negócios.45 As últ imas palavras do trecho selecionado, sobre a proliferação de falas e textos sobre a morte — e eu, part icularmente, incluiria a abundante temat ização do suicídio —, permitem-me buscar entre os literatos brasileiros do século XIX aquele que, com seus poemas, aderiu aos temas selecionados. Casimiro de Abreu exprimiu por meio de seus versos muitos temas já analisados e crit icados pelos médicos brasileiros. Em seu Livro Negro — note-se que o próprio t í tulo sugere o grau de obscuridade da obra — escreveu sobre elementos de desordem que tanto incomodavam o normat ivo e moralizante discurso médico: dores que o tempo cicatrizava, mas que deixavam marcas indeléveis; amores presentes, mas passageiros; o rapaz que sofria por amor, entregue à paixão, sendo cat ivado por outros olhos e permit indo-se arder noutra paixão; independentemente das estações do ano, primavera ou inverno, os corações palpitando e sofrendo; a existência que definhava pouco a pouco, pela dor que murchava o viço do verdor dos anos; a dor que se afogava no fervor dos vinhos consumidos nos leitos dos bordéis, produzida por excessos que contaminavam os espaços perigosos e que exalavam vícios; a dor sem cura, dor que matava, que apagava d’alma as crenças, que profanava o santo, que entregava a alma ao desalento e que encaminhava ao único ato possível, o suicídio. Há dores fundas, agonias lentas, Dramas pungentes que ninguém conso la, Ou suspeita sequer! Mágoas maiores do que a dor dum dia, Do que a morte bebida em taça morna De lábios de mulher! Se a donzela infiel nos rasga as fo lhas Do livro d’alma, magoado e triste Suspira o coração; Mas depo is outros o lhos nos cativam, E loucos vamos em delírios novos Arder noutra paixão.46 Oh! ninguém sabe como a dor é funda, Quanto pranto s’engo le e quanta angústia A alma nos desfaz! Horas há em que a voz quase blasfema... E o suicídio nos acena ao longe Nas longas saturnais! Definha-se a existência pouco e pouco, E o lábio descorado o riso franco Quanto dantes, já não vem; Um véu nos cobre de mortal tristeza, E a alma em luto , despida dos encantos, Amor nem sonhos tem!47 Ergue-se a taça do festim da orgia, Gasta-se a vida em no ites de luxúria Nos leitos dos bordéis, E o veneno se sorve a longo tragos Nos seios brancos e nos lábios frios Das lânguidas Frinés! Esquecimento ! — mortalha para as dores — Aqui na terra é a embriaguez do gozo, A febre do prazer: A dor se afoga no fervor dos vinhos, E no regaço das Marcôs modernas É doce então morrer!48 No momento em que o discurso médico se esforçava em implantar seu programa social, os discursos literários, em várias obras românt icas, supunha-se, espalhavam a indisciplina, permit indo desconcerto, barulho e desregramento — além de apresentar as limitações e a finitude da existência humana. Experiências que não deveriam ser vividas, e muito menos compart ilhadas, estavam presentes em páginas de jornal e de livros que passaram a ser crit icados, perseguidos e considerados nocivos à ordem e à vida. Assim, o discurso que assumiu o comando das tát icas e prát icas que visavam engessar, moldar, direcionar e regrar a vida dos homens em sociedade, não foi o literário, mas o médico/ cientí fico. No que diz respeito às obras românt icas classificadas como nocivas à vida, uma em especial foi mais crit icada: o clássico Os Sofrimentos do Jovem Werther. Foi recorrentemente censurado, mas, apesar das constantes e duras crí t icas, cont inuava sendo traduzido para outros idiomas. Afinal, o que concedeu um lugar de destaque à obra de Goethe? Por que a referência constante à obra, não só pelos contemporâneos da publicação original, como pelos médicos, literatos, filósofos e, posteriormente, historiadores e antropólogos? São questões que pedem respostas. Mas, antes de qualquer tentat iva de explicação, é necessário estudar a obra. A FEBRE WERTHERIANA: O ALCANCE DO SOFRIMENTO E SUICÍDIO DO JOVEM WERTHER Publicado na Alemanha no final do século XVIII, Os sofrimentos do jovem Werther tornou-se um sucesso, não só em seu país, como também em todos onde foi t raduzido e publicado. Em todos os países, a obra causou muita polêmica, tanto entre seus contemporâneos como entre diversos pensadores, literatos e médicos do século XIX. Primeiro romance do alemão Johann Wolfgang von Goethe, é, ainda hoje, referência obrigatória a todos que se dedicam ao estudo do suicídio. É const ituído pelo conjunto de cartas que Werther endereçou ao seu grande amigo Wilhelm, confessando seus medos, temores, sonhos e desejos: Wilhelm, que seria do nosso coração em um mundo inteiro sem amor? O mesmo que uma lanterna mágica apagada! Assim que se põe lá uma lâmpada, imagens de todas as cores surgem na tela branca... E mesmo se fosse apenas isso — fantasmas —, ainda assim continuará fazendo a nossa felicidade, sempre que nos postarmos diante deles, como crianças extasiadas com aquelas aparições maravilhosas!49 Após um relacionamento amoroso conturbado, o jovem advogado resolveu ret irar-se para uma pequena cidade, definida por ele como um verdadeiro paraíso,e que, apesar de não ser muito agradável, t inha arredores que ofereciam belezas naturais indescrit íveis. Neste pequeno paraíso, onde Werther poderia encontrar inspiração art íst ica para cont inuar se entregando a uma de suas paixões, a pintura, ele foi inibido pela magnitude e delicadeza da natureza que o cercava. Ao contemplar a perfeita variedade de aromas, cores, desenhos, flores, insetos e vermes, teve o olhar obscurecido pela grandiosidade da paisagem descort inada. Neste momento, freqüentemente suspirava e dizia a si mesmo: Ah, se você pudesse exprimir tudo isso! Se pudesse passar para o papel tudo o que palpita de você com tanto calor e plenitude, de modo que essa obra se tornasse o espelho de sua alma, como sua alma é o espelho de Deus! (...) Mas esse arrebatamento me faz desfalecer e sucumbo sob a força dessas visões magníficas. 50 Fruto de um ardente coração, o contato direto e diário com a natureza e a paisagem dos arredores da cidade enfeit içou o sensível Werther. Preocupado simplesmente em gozar o presente, esquecendo-se do passado, ou seja, dos problemas e inquietações de um relacionamento amoroso embaraçado, o jovem pareceu ter encontrado sossego para o seu coração, um natural equilíbrio de espírito apaziguador e sereno. Mas engana-se profundamente aquele que, por meio da leitura das primeiras páginas, pensa que tudo foi quietude, prudência e mansidão na vida do recém-chegado ao paraíso. Depois de se encantar com a natureza, Werther conheceu as pessoas que viviam na pequena cidade e confrontou-se com a uniformidade da espécie humana. Em suas palavras, a maioria trabalha durante quase todo o tempo para poder viver, e o pouco livre que lhe resta pesa-lhe de tal modo, que procura todos os meios possíveis para dele se libertar. Oh, o destino do homem!51 Inconformado, ele passou a considerar insuportável a idéia de dividir seu tempo e sua companhia com tais criaturas esquisitas. Assim, em contraste com a rica natureza dos arredores da cidade, a mediocridade da vida cot idiana das pessoas o fez preferir manter-se ligado à natureza e não ao convívio social. Contudo, entre a cinza e opaca mult idão, o jovem que normalmente se comovia até o fundo de sua alma, foi, mais uma vez, tocado profundamente. Do paraíso natural que o abrigava, surgiu um anjo, a mais adorável das criaturas, perfeita, que tomou conta de todo o seu ser, bondosa, serena, cheia de vida e energia: a jovem Charlot te. O fortuito encontro ocorreu em um baile no campo. Werther havia se pront ificado a levar à festa uma jovem da cidade, sua companheira de baile — boa e bonita, mas insignificante quanto ao mais — e sua prima Charlot te, carinhosamente chamada Lotte, filha do bailio. No caminho, um pouco antes de chegar à casa de Lotte, ele foi alertado pela jovem donzela que o acompanhava, prima de Lotte: apesar de ela ser encantadora e apaixonante, era comprometida, noiva de um bom e honesto rapaz, Albert . Chegando ao portão do pát io da casa do bailio, pediram a ele que aguardasse alguns instantes, pois a Srta. Lotte chegaria logo. Até aquele momento, as palavras da jovem donzela que o acompanhava eram totalmente indiferentes, e seus conselhos pareciam sem sent ido, mas tal indiferença não duraria muito tempo. Inquieto, valendo-se de palavras arrebatadoras, ele relatou o momento que mudou sua vida: Atravessei o pátio que conduz a uma bela casa e, ao pisar a so leira, deparei com um dos quadros mais encantadores jamais visto em minha vida. No vestíbulo , seis crianças, de do is a quinze anos, se alvoroçavam em torno de uma jovem bem proporcionada, de estatura média, trajando um singelo vestido branco adornado de laços cor-de-rosa nas mangas e no corpete. Ela cortava um pão em fatias circulares, entregando-as com amabilidade a cada criança, de acordo com sua idade e apetite.52 Aqui, é necessário destacar algumas considerações. Em primeiro lugar, a beleza de Charlot te maravilhou Werther. Sua vest imenta branca, representando a pureza e a virtude, e os adornos cor-de-rosa, reforçando sua feminilidade virginal, deslumbraram Werther. Por outro lado, a jovem pura e virginal estava rodeada de crianças famintas, que esperavam receber de suas próprias mãos a merenda vespert ina. Esta últ ima consideração fechava o sublime quadro retratado pelo olhar masculino de Werther. Linda, pura, jovem, mas já consciente de seu papel como mulher, de suas responsabilidades e tarefas domést icas, amável com as crianças (seus pequenos irmãos) que a respeitavam como se fora a própria mãe, a atenciosa jovem já assumira para si o espaço da at ividade domést ica e o exercício da função sagrada da maternidade, mesmo sendo irmã. O fato de Lotte assumir antecipadamente, e de maneira amável, suas tarefas e papéis naturais, impressionou profundamente Werther. Tudo parecia perfeito, regrado e respeitável. Após o primeiro contato, o encantamento só aumentou. Não era somente bonita, amável e cumpridora de seu papel como mulher, mas era sensata, inteligente e t inha gosto pela leitura, tal como Werther: (...) Achei de bom senso tudo o quanto ela disse, vendo em cada palavra novos encantos, novas emanações de sua inteligência, que pareciam se encher de contentamento por sentir que eu a compreendia.53 Convivendo com Charlot te, o encanto e o amor foram crescendo desenfreadamente. Ao seu lado, Werther se perdia em devaneios, esquecia a sua condição de noiva e se entregava inteiramente a sensações, desejos e sonhos de amores. Contudo, alguém se colocava entre o sonho e a realidade: Albert . Moço honrado, t rabalhador, dedicado e honesto, era o futuro esposo, marido e homem daquela que, em tão curto espaço de tempo, se tornou tão importante, para não dizer indispensável, para Werther. Assim, temos no trio amoroso o eixo central da história de Goethe. Um Werther sensível, apaixonado, românt ico, que se entregou intensamente aos sent imentos; uma Charlot te jovem, pura, representante da figura materna, conhecedora de seus “deveres”, respeitável, inteligente e dedicada; e um Albert honrado, honesto, sensato, equilibrado, apaixonado pela just iça e pela busca da verdade. A relação de Werther e Charlot te não era, definit ivamente, apenas uma relação entre jovens, que não nutriam outros sent imentos além daqueles que uma amizade considerada pura e ingênua podia oferecer. A própria Lotte autorizou Werther a visitá-la quase diariamente, mesmo na ausência de seu noivo. Eles se viam todos os dias; sozinhos ou acompanhados, estavam próximos, se conhecendo, comungando muitos pensamentos, alguns anseios e certos desejos. Aos poucos, a recorrência dos encontros revelou a Lotte que Werther t inha- se-lhe tornado tão caro que a afinidade de suas almas era evidente. Mas, por outro lado, ela amava e era fiel a Albert , cujo caráter sólido e digno parecia ter sido criado pelo céu para garant ir a felicidade de uma mulher honrada.54 O próprio Werther não t inha certeza dos sent imentos de Charlot te. Em muitos momentos, sent ia que ela não o amava; em outros, demonstrava uma confiança cega, como, por exemplo, na carta do dia 13 de julho: Ela me ama! E quanto eu me sinto cada vez mais, quanto ... eu posso dizer isto a você, que saberá compreender- me... quanto eu me adoro a mim mesmo, depo is que ela me ama! Será presunção? Será o sentimento do meu verdadeiro estado?... Não conheço homem nenhum de quem possa temer qualquer interferência capaz de diminuir-me no coração de Lotte. E, no entanto , quando ela, com tanto calor e afeto , fala do seu no ivo... é como se eu fosse um homem destituído de toda a honra e dignidade, e ao qual arrebatassem a própria espada.55 Ao mesmo tempo em que a paixão dominava pouco a pouco a razão de Werther, a dor e o sofrimento começavam a se alojar em seu coração. Paralelamente ao prazer que ele cont inuava sent indo ao lado de Lotte, a impossibilidade de seu amor dilacerava seu coração. Lágrimas, muitaslágrimas rolaram dos olhos de Werther. Todo o romance é marcado pelas lágrimas dos personagens envolvidos no drama, prát ica característ ica das histórias românt icas, onde homens e mulheres choram seus amores. Com a volta de Albert , Werther perdeu definit ivamente a paz e a esperança. Contudo, o sent imento de Werther em relação a Albert também não era muito claro. Homem muito bom, amável, honesto e respeitado, o respeito que ele devotava a Lotte obrigava todos a admirá-lo. E como se isso não fosse suficiente, Albert se mostrava muito atencioso com Werther, respeitava-o e aceitava-o como amigo. Tudo isso fez Werther admirar e gostar muito de Albert , mesmo ciente de que ele era o seu principal rival. Em suas palavras: Não obstante, não posso recusar minha estima a Albert. Sua calma exterio r contrasta com o meu caráter inquieto , que não consigo ocultar. Ele é bastante sensível e conhece o valor de Lotte. Parece que nunca está de mau humor, que como você sabe é de todos os defeitos do gênero humano o que mais abomino.56 A consideração de Werther para com Albert oscilava entre a admiração e a rivalidade, o respeito e o desprezo, por ser ele o responsável pelo fim de sua felicidade, que parecia tão possível antes de sua chegada. A tensão criada com a chegada de Albert , o outro que roubou a amada, desenvolveu-se até as raias do insuportável. No entanto, logo após a chegada de Albert , os t rês foram vistos juntos por muitas vezes. Compart ilhavam a graciosa presença de Lotte, passeavam, conversavam, divagavam, filosofavam, riam, divert iam-se muito. A amizade entre eles parecia crescer sobre bases sólidas, não fosse o incontrolável amor que Werther sent ia por Lotte. Mas, como o próprio Werther se indagava, aquilo que fazia a felicidade do homem acabava sendo também a fonte de suas desgraças: o coração! Durante os encontros com Charlot te e Albert , a dor e o sofrimento foram se intensificando, a ponto de sufocá-lo. O paraíso transformou-se em lugar de suplício: O intenso sentimento do meu coração pela natureza, sentimento que tanto me deliciava, transformando em paraíso o mundo à minha vo lta, to rnou-se para mim tormento into lerável, um espírito que me tortura e persegue por toda a parte. (...) Nada mais vejo senão um monstro sempre esfomeado e devorador.57 Werther não conseguiu mais disfarçar sua dor e angúst ia. Para ser feliz, precisava do amor de Lotte, amor esse que o dominava: (...) nenhuma outra imagem, a não ser a dela, está em minha mente, e o mundo que me cerca só o percebo quando de algum modo se relaciona com ela. Só assim consigo ter horas felizes... até o momento em que é preciso que me afaste dela! Ah, Wilhelm, se você soubesse até onde me leva o coração! Quando fico junto dela duas ou três horas, alimentando-me da sua presença, das suas maneiras, da expressão celestial das suas palavras, pouco a pouco todos os meus sentidos se dilatam, meus o lhos deixam de enxergar, mal consigo ouvir, sinto como se a mão de um assassino apertasse-me a garganta. Batendo desordenadamente, meu coração procura amenizar a angústia dos meus sentidos, mas apenas consegue aumentar a minha perturbação.58 Para pôr fim ao seu sofrimento, ele optou por deixar seu ant igo paraíso. Decidiu buscar sua tranqüilidade e sossego em outros cantos. Perturbado pelo amor não correspondido, tomou a decisão de part ir para nunca mais ver sua amada, responsável por sua felicidade e também por seu pesar. Ele se ret irou, não aceitando manter as relações estabelecidas entre eles e recusando o t rio formado. Concret izou o que havia anunciado na carta do dia 08 de agosto, isto é, não se resignou, porque considerou insuportável as pessoas que exigem de nós uma resignação ante o inevitável. Tentando tomar as rédeas de sua vida, part iu, entregando-se ao trabalho que não o agradava e para viver em um meio totalmente diferente daquele que outrora foi pintado como o paraíso. Agora estava rodeado de pessoas rudes, que disputavam posição social e ficavam o tempo todo à espreita para ficarem à frente do outro — sociedade, mentalidade, hábitos e desejos que insultavam a sensibilidade de Werther. Havia saído do seu ant igo paraíso para acalmar as tempestades do seu coração, contudo, ficou em um meio onde fervilhavam hábitos empert igados. Sua situação foi descrita em carta endereçada a Lotte, datada de 20 de janeiro, ou seja, quase três meses depois de sua part ida: Se me visse, minha amiga, naquele turbilhão de distrações! Se você pudesse ver como tudo em mim se tornou árido e seco! Nem por um só momento experimentei a plenitude do coração, nem uma hora de felicidade! Nada, nada! Pareceu-me que estava diante de um teatro de marionetes vendo desfilar os pequenos bonecos sobre os seus cavalinhos, e cheguei, por vezes, a perguntar-me se tudo aquilo não era uma miragem (...) à no ite, proponho-me gozar o raiar do so l, e acabo não saindo da cama; durante o dia, espero rejubilar-me com o luar e, afinal, permaneço no meu quarto . Não sei porque me levanto e nem porque vou dormir.59 Nem o casamento de Charlot te e Albert pôde entristecer ainda mais os seus dias. Agradeceu a notícia a Albert , em carta do dia 20 de fevereiro. Em tom de total franqueza, disse: (...) havia reso lvido que, nesse dia (do casamento), o retrato de Lotte seria so lenemente retirado da parede e guardado com outros papéis. E agora, já casados, o retrato ainda está aí! E já que é assim, ali continuará! Por que não? Sei que vivo também junto de vós, e no coração de Lotte, sem que isso possa prejudicar você; sei, mesmo, que tenho ali o segundo lugar e quero, devo conservá-lo . Oh! Ficaria furioso se ela viesse a me esquecer... Albert, esse pensamento é um inferno (...).60 Descontente com seu emprego, com o meio social em que vivia, ou tentava viver, e ante a possibilidade de ser esquecido pela amada, resolveu voltar, seguindo as ordens do seu coração. Seu sonho — pois não passava disso, afinal, Lot te já estava casada — era sent ir seus corações baterem novamente em perfeita harmonia, como sempre havia acontecido com Lotte e Werther. Apesar de seu retorno, sent iu estar no outono de sua vida, pressent indo a morte: Sim, é isso mesmo! Assim como a natureza pende para o outono, também o outono começa em mim e em torno de mim. As fo lhas da minha alma vão amarelecendo, enquanto as fo lhas das árvores vizinhas caem.61 Mas voltou, e estava de novo com Charlot te e Albert . A situação era outra, sua amada estava casada, mas os seus sent imentos cont inuavam os mesmos, e seus desejos também. Charlot te estava ciente do amor de Werther, mas confiou no bom senso do amigo. Acreditou que ele não seria capaz de nenhuma at itude inconseqüente, que pudesse prejudicar sua amizade e honra. Aos poucos, a dor passou a ser insuportável e ele não conseguiu mais visualizar um futuro, uma esperança. Dominado pelo desespero de não realizar seu sonhos, de ver tantos encantos e não poder tocá-los, escreveu: Só Deus sabe quantas vezes vou dormir desejando nunca mais despertar; e pela manhã, quando abro os o lhos e torno a ver o so l, sinto-me um desgraçado (...) Que desgraçado sou: sei perfeitamente que sou o único culpado... Não exatamente culpado, mas é em mim que está a fonte de todos os meus males, como outrora a fonte de minha felicidade (....) Meus o lhos, agora secos, não se refrescam mais de lágrimas benfazejas, e a angústia abafa os meus sentidos e enruga a minha fronte. Sofro ainda mais ao verificar que perdi aquilo que dava encanto à vida, sagrada e tumultuosa força graças à qual podia criar mundos a meu redor. Essa força acabou.62 A situação passou a incomodar não só a Werther, Lot te e Albert , mas, também, a todos que os viam juntos e que presenciavam o desconforto asfixiante causado pelas recorrentes visitas de Werther à casa dos amigos. O próprio Albert , diziam os amigos, quase sempre se ret iravada sala quando Werther ia visitar sua mulher. Tal situação minava qualquer possibilidade de vida: O desânimo e o desalento foram criando raízes cada vez mais pro fundas na alma de Werther e acabaram por tomar conta de seu ser. A harmonia da sua inteligência fo i completamente aniquilada. Um fogo interno, vio lento e intenso, minou todas as suas faculdades, produzindo os mais funestos resultados, e só lhe restando o abatimento mais penoso e completo , pior do que todos os males contra os quais havia até então lutado. A angústia do seu coração consumiu as faculdades do espírito , a vivacidade, a intuição penetrante.63 Esse era o Werther dos últ imos dias, abat ido, mostrando-se cada vez mais sombrio e infeliz, mergulhado em sua dor e apat ia. Nas palavras do editor, ou seja, do próprio Goethe: Naquele tempo, a reso lução de deixar este mundo já havia se fortalecido e radicado na alma de Werther. Depois que regressou para perto de Lotte, não deixou mais de considerar a morte como um recurso que não falharia. Prometeu a si mesmo, porém, que isso não podia ser um ato precipitado, impensado. Só daria esse passo com a maior convicção e a mais serena determinação.64 Em seus últ imos encontros, Werther demonstrou estar incontrolável, não respeitava mais os limites que a situação pedia e exigia. O pensamento de colocar fim ao seu sofrimento, via suicídio, tomou forma e foi se apoderando do seu cérebro vazio, tornando-se cada vez mais familiar. Passou a planejar e a desejar a própria morte. Decidido, Werther pediu a um criado que fosse à casa de Albert para entregar um bilhete, no qual pedia as pistolas emprestadas para uma viagem que pretendia fazer. Uma viagem sem volta! E quem entregou as armas fat ídicas ao criado foi a própria Lotte, forçada pelo olhar do marido. O fato de ter sido a amada quem entregou as armas, delas terem passado por suas mãos, fez com que Werther desejasse ainda mais a própria morte: É você anjo do céu, que favoreceu meu propósito ! Você mesma, Lotte, fo rnece o instrumento que vai consumá-lo ! Desejei receber a morte de suas mãos: é de você que a recebo ho je! Interroguei meu criado, e ele contou-me que você tremia ao entregar-lhe as pisto las, e não me enviou um adeus!... Ai de mim, ai de mim, nem um adeus!...65 Querendo colocar um ponto final a tudo o que sent ia e causara, Werther suicidou-se com um t iro na cabeça. Em suas últ imas palavras, escritas em cartas devidamente endereçadas, pediu que o seu corpo fosse enterrado no cemitério, bem ao fundo, no canto que dava para o campo, onde havia duas t í lias. Para sua amada, deixou uma das cartas relatando seus últ imos desejos, seus propósitos. Era preciso, segundo ele, que um dos três desaparecesse, e foi ele quem, aos moldes do Romant ismo, sacrificou-se por e para Lotte. Nas últ imas páginas do livro, Goethe relatou que primeiro a casa, depois a vizinhança e por últ imo a cidade inteira foram sacudidas pela emoção provocada pelo suicídio de Werther. A mesma perturbação e comoção se espalhou por toda a Europa, após a publicação do livro. A vida, o amor, os sofrimentos e o suicídio de Werther emocionaram não só os personagens ficcionais, como os seus leitores. A esse respeito, Marcos Veneu, que no Brasil analisou cuidadosamente o chamado suicídio românt ico, destacou o fato de o nome de Goethe não constar na primeira edição da obra. A decisão de ocultar a autoria, por t rás de um fict ício editor das cartas deixadas pelo personagem, revelou muita prudência, já que as autoridades de Leipzig, onde o livro foi publicado, logo proibiram sua venda. Alegaram imoralidade, pois, a seu ver, a obra fazia apologia ao suicídio. A proibição, porém, não impediu que o livro se tornasse um formidável sucesso, projetando definit ivamente o seu autor para a celebridade. Pouco tempo depois, foi t raduzido para o francês e em seguida para outros idiomas. Começou assim a chamada febre wertheriana.66 O VALOR DO SILÊNCIO Werther é, sem dúvida, a obra mais importante de toda a história do suicídio na literatura. Seu sucesso foi considerável. Alguns meses depois da aparição do romance de Goethe, a febre wertheriana se apoderou da juventude. Em todos os lugares, as pessoas se vest iam como Werther, decoravam com mot ivos wertherianos as tabaqueiras, os aventais, as toalhas e as bombonières. O perfume da moda era l’eau de Werther (...) Infelizmente, deve-se registrar uma série de suicídios inspirados por Werther.67 Goethe nasceu em 1749 e morreu em 1832, em Weimar. Considerado um dos chefes do movimento Sturm und Drang (tempestade e ímpeto), propôs combater as idéias iluministas, isto é, combater o predomínio da razão sobre os demais valores do homem e do mundo, salientando a sensibilidade. De acordo com Veneu, na Alemanha, a segunda metade dos setecentos assist iu o desencadear de um verdadeiro movimento colet ivo em torno de nomes como Herder, Klinger e os jovens Goethe e Schiller. Ali, reforça Veneu, a escola da “sensibilidade” adquiriu uma autoconsciência mais aguda como movimento estét ico, acentuando seu aspecto de crí t ica à sociedade do Ant igo Regime, mas, por outro lado, diferenciando-se mais nit idamente da Ilustração. Foi assim que, bat izado com o nome de uma peça de Klinger, o movimento fundiria as influências de Rousseau com as da literatura inglesa.68 Ao dissertar sobre o romant ismo, Brigit te Agard argumentou que, diferentemente do francês, o alemão não se const ituiu contra o Classicismo. De fato, ele se teria const ituído contra o racionalismo das Luzes. Assim, tem por característ ica e originalidade o fato de se enraizar formalmente nas ciências humanas — Filosofia e História — e na religião, a ponto de chegar a uma sorte tal de sincret ismo que o permit iu encontrar na arte sua expressão.69 Seguindo a orientação românt ica, o primeiro herói que conseguiu vencer as fronteiras nacionais e lingüíst icas foi Werther. A obra responsável por tal feito, que narra as histórias, angúst ias, desejos e o amor impossível do jovem Werther, exerceu, segundo Agard, uma considerável influência sobre os escritores do século XIX.70 Mas, segundo várias crí t icas, censuras, perjúrios e perseguições, que não se limitaram ao século XVIII e nem tampouco ao XIX, não foram apenas os literatos que se influenciaram pelas experiências, vivências e morte de Werther. Sobre essa incontestável influência e/ ou apropriação de Werther, Peter Gay relatou que muitos médicos, juristas e clérigos tentaram provar, ao longo do século XIX, que os considerados “livros ruins” — entre os quais se enquadravam aqueles que narravam algum caso de suicídio —, liberavam a agressividade, abrindo caminho para o assassinato e o suicídio. Isso porque, conforme se pensava, os heróis e as heroínas, entre os quais muitos suicidas, tornavam-se loquazes nas mãos de seus autores, entregando-se às perniciosas paixões desenfreadas.71 Também a esse respeito, Freire Costa argumenta que, em trabalhos de vários profissionais como psiquiatras, higienistas, moralistas e filantropos, o romant ismo literário sempre foi duramente crit icado, em nome de um amor prudente, voltado à reprodução da espécie e à manutenção da ordem social.72 É possível compreender as perseguições e crí t icas ao notar que, em todos os lugares, dizem os estudiosos do autor e da obra, const ituiu-se a chamada moda à la Werther. Jovens europeus matavam-se após a leitura do romance, com tal sagacidade e recorrência a ponto de ele ser visto como divulgador e apologista do suicídio. Presente em diversos estudos sobre esse t ipo de morte nos séculos XVIII e XIX, a ousadia de Werther tornou-se quase uma referência obrigatória a todos que se dedicavam e se dedicariam ao tema, inclusive os médicos brasileiros, que temiam que os jovens brasileiros fossem acometidos pela temida febre wertheriana. A. Alvarez, um dos autores contemporâneos mais citados pelos estudiosos do tema, argumentaque Werther é visto como um márt ir do amor não compart ilhado. O papel essencial da revolução romântica fora o de fazer da literatura não um acessório da vida, mas um modo de vida em si. Foi assim que, para o público leitor, Werther não era um personagem, mas um de vida em si. Foi assim que, para o público leitor, Werther não era um personagem, mas um modo de vida que criava todo um est ilo de sent imento intenso e de desespero.73 As mudanças na maneira de pensar e perceber o suicídio foram permit idas pelos racionalistas das gerações precedentes. Eles defenderam o ato suicida, ajudaram a modificar as leis e a abrandar os tabus religiosos primit ivos. Mas teria sido Werther, segundo Álvares, quem fez aparecer este ato como posit ivamente desejável aos jovens românt icos de toda a Europa. Segundo Madame de Staël, que conheceu pessoalmente o escritor alemão, a obra de Goethe teria causado mais suicídios do que a mais bela mulher. De princípio, Staël, em seu livro Réflexions sur le suicide74, de 1813, apresentou uma certa tolerância e admiração pela obra e pelas idéias desse autor. Ela sugeriu em que medida o excesso de infelicidade pode gerar a idéia de suicídio. Das aflições, deveríamos ident ificar e compreender as causas da renúncia da existência. Segundo ela, os homens se matavam porque eram infelizes, estavam aflitos e sofriam. Anos depois, ao escrever Essai sur les Fictions suivi de De L’influence des passions sur le bonheur des individus et des nations, tornou-se menos tolerante com esse t ipo de morte, ao buscar provas da funesta influência das paixões.75 Após ident ificar a infelicidade e as aflições como as principais causas de suicídio, Staël destacou o fato de as causas e intensidades das aflições normalmente variarem na mesma proporção que as circunstâncias e os indivíduos. Diante disto, ela sugeriu que, antes de se estabelecer qualquer julgamento, era importante avaliar os mot ivos que determinavam que uma pessoa a se desse à morte. Assim, ela estabeleceu uma dist inção a part ir das motivações do ato: segundo ela, quando o homem abdicava de sua vida para fazer o bem a seus semelhantes, ele imolava o seu corpo e a sua alma; ao se matar por impaciência, produzida por seus sofrimentos e dores, ele sacrificava, quase sempre, a sua consciência às suas paixões. Por tudo isso, Staël não concordava com a idéia de que o suicídio era, necessariamente, um ato de covardia. Em lugar de aceitar essa asserção, propôs que se deveria dist inguir, nos casos de suicídio, o grau de bravura, firmeza e loucura. Sendo assim, afirmava que a maior parte daqueles que tentam se dar à morte não renovam suas tentativas, isso porque há no suicídio, como em todos os ‘atos desordenados da vontade’, uma certa loucura que se acalma quando ela alcança seu alvo.76 Catástrofes, dores, angúst ias e t ristezas que podiam provocar o suicídio eram, por sua vez, permit idas pela mais variada sorte de circunstâncias: amor, paixão, reveses da fortuna, desgostos diversos. Isso porque, para Staël, o homem sofria de mil maneiras diferentes, por sent imentos diversos, e suicidava-se por mot ivações dist intas. Em sua segunda obra, Essai sur les fictions, Staël apresentou os malefícios das paixões, indicando os estados deploráveis aos quais o homem que se entregava aos excessos era conduzido. Ut ilizou o seu discurso sobre as paixões para apresentar uma sut il crí t ica àqueles que eram capazes de se suicidar, mas não podiam se arriscar a ter esperança em um dest ino feliz, àqueles que abandonavam a alma aos sent imentos que comprometiam o resto da existência. Por não permit irem a reflexão de que, no futuro, seria possível o fim dos sofrimentos, as paixões eram vistas como fontes de infelicidade, infortúnios, morte e suicídio.77 A mudança no tom do discurso de Madame Staël foi permit ida pelas severas crí t icas direcionadas a sua obra Reflexions sur le Suicide. Ela não aceitou as acusações de ter, por meio desta obra, falado muito do suicídio como um ato digno de louvor. Mudou sua posição sugerindo que o porvir poderia t razer as soluções, as respostas, a força e o amor que não exist iam ou não eram visíveis. É possível dizer que, além dos romances que relatavam algum t ipo de suicídio, qualquer outra obra literária que se prestasse ao trabalho de estudar o ato de uma outra maneira, além daquela que pressupunha uma crí t ica e censura, era vista como responsável pelo suicídio, como uma obra danosa e perigosa. Apesar de já ter indagado o pensamento médico sobre as influências da literatura no que diz respeito ao suicídio, é necessário destacar o que alguns médicos pensavam especificamente sobre a obra de Goethe. J. B. Pet it argumentou que, quando a imaginação era nutrida por obras fúteis, quando a sensibilidade nervosa era desenvolvida além da medida pela sat isfação dos desejos, os mais frívolos, superexcitada pelo abuso da música, dos espetáculos, pelas noites passadas nos bailes e pela leitura de romances, era possível ver as paixões nascerem de uma maneira prematura e superficial. Entregue às paixões, o suicídio se tornava fácil.78 Entre as leituras mais funestas, o médico assinalou que os livros onde o elogio do suicídio se ligava ao relato absorvente e encantador eram os mais perigosos. Neste sent ido, concordava com Madame de Staël, quando ela afirmava que Werther teria causado mais suicídio que todas as mulheres da Alemanha.79 Os discursos médicos são analisados nesse contexto, marcado e permit ido pela busca de domínio de objetos, de tensão entre a produção literária românt ica e a médico- cientí fica. É assim também que retomo o discurso do médico brasileiro Nicoláo Joaquim Moreira. Não por acaso, ele assegurou que a escola moderna, e a leviana literatura romântica, eram as responsáveis pela numerosa quant idade de obras que narravam algum t ipo de suicídio.80 Dessa maneira, as obras escritas na e pela escola românt ica eram as mais funestas, as mais nocivas à vida. Muitos autores românt icos foram crit icados por proclamarem o enojo da vida e o desprezo da morte, como se pode constatar por suas palavras: Juntai agora, senhores, ao eu humano ensoberbecido por suas conquistas materiais o poderoso auxílio dos licenciosos dramas da esco la moderna e dessa leviana literatura romântica, em cujas páginas Rousseau, Goethe, Chateaubriand, Lamartine e outros proclamam o eno jo da vida e o desprezo da morte pela boca de S. Preux, de Werther, de René e de Raphael e compreendereis facilmente como os membros das sociedades modernas, engo lfados nos prazeres e so lapados pelo individualismo, sem confiança em seu destino, sem certeza de um futuro , semelhantes aos Romanos da época da decadência se deixam apoderar pelo desespero e almejam a morte, como um termo fatal e conso lador de todos os sofrimentos que os oprimem.81 Alguns temas caros ao romant ismo foram retomados e crit icados pelo discurso de Moreira: o individualismo, a fuga da realidade e a atração pela morte. A inquietação do facultat ivo, em relação ao perigo presente em discursos que valorizavam condutas, hábitos e comportamentos desregrados e que poderiam permit ir o suicídio, facilita a observação do medo médico de que certos discursos proliferassem, criando vias, meios e subjet ividades díspares, múlt iplas e não devidamente normat izadas. A respeito da dimensão ameaçadora das obras literárias, também presentes no discurso de Moreira, Peter Gay observa que, na Europa, o romance do século XIX era recorrentemente acusado de só servir para seduzir os inocentes e confirmar o comportamento dos perversos. Para muitos crí t icos e opositores do est ilo românt ico, a obra de ficção era um guia tentador para o conhecimento carnal, a ponto de assegurarem que, se Emma Bovary não t ivesse alimentado sua imaginação sequiosa com romances, se teria tornado e conservado uma esposa fiel, embora entediada. E temiam, ainda, que houvesse na vida