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Apostila Pré-Socráticos-1

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CURSO: 
TÉCNICO DE NÍVEL MÉDIO EM ALIMENTOS,
TÉCNICO DE NÍVEL EM MÉDIO EM INFORMÁTICA,
ÉCNICO DE NÍVEL EM MÉDIO EM APICULTURA
DISCIPLINA: FILOSOFIA I
Docente: Atson Paulo Barreto Santos
 Os filósofos pré-socráticos e o surgimento da filosofia
1. As explicações de mundo antes do surgimento da Filosofia
 Antes do surgimento da filosofia, na Grécia antiga, em meados do século VI antes de 
Cristo, os acontecimentos ou fenômenos naturais eram explicados através de mitos. Os pri-
meiros filósofos romperam com estas explicações míticas, buscando elaborar explicações al-
ternativas que se baseavam na observação dos fenômenos naturais, na especulação racional 
e na lógica, promovendo assim o surgimento das primeiras explicações científicas. Em fun-
ção disto, a filosofia é celebrada em toda cultura ocidental como “a mãe de todas as ciências”. 
 
 Para entender o impacto e a relevância do surgimento da filosofia, é fundamental com-
preender melhor no que consistia (ou consiste) uma explicação mítica de mundo. Afinal de 
contas, o que são mitos?
 
 O termo mito vem da palavra grega mythós, que significa relato ou narrativa. A função dos 
mitos é bastante complexa: certamente os mitos têm a função explicativa, isto é, de explicar os 
diversos aspectos do mundo natural - desde como o universo surgiu (os chamados mitos cosmo-
gônicos, ou mitos de origem) até cada um dos fenômenos naturais que se observa no dia a dia, mas 
certamente os mitos têm outras funções, como uma função social, moral ou até mesmo filosófica. 
Nesse sentido, é importante assinalar, antes de mais nada, que as narrativas míticas são imprescin-
díveis para a devida compreensão de diversos aspectos da sociedade e da mente humana, sendo 
extensamente estudados e utilizados por disciplinas teóricas como a antropologia e a psicanálise. 
 
 Os mitos são uma janela para a compreensão de inúmeros aspectos de uma sociedade, 
da forma como um determinado povo ou cultura vê o mundo e a si mesma, sendo elementos 
indispensáveis em disciplinas como a antropologia social e cultural. Outras disciplinas, como 
a psicanálise, partem da ideia de que os mitos condensam, de forma simbólica, alegórica ou 
metafórica, verdades profundas sobre o funcionamento da mente humana, inclusive do In-
consciente. Até a filosofia pode lançar mão de mitos, como o célebre caso dos mitos elaborados 
por Platão, como o mito da caverna e o mito de Er. 
 
 Nesse sentido, seria insensato conceber os mitos como formas de explicações completa-
mente errôneas e obsoletas, incapazes de nos ensinar sobre qualquer coisa. Os mitos têm valor, 
inclusive valor filosófico. Vejamos um exemplo disso.
1.1 O Mito de Sísifo, por Albert Camus [lê-se Câmi]
 Sísifo teria sido um rei de Corinto, uma cidade-estado grega, que tornou-se conhecido 
por ter recebido um castigo cíclico e eterno: carregar uma pesadíssima pedra até o cume de um 
monte; ao findar a tarefa, a rocha imediatamente voltava para o sopé do monte, exigindo que o 
trabalho fosse recomeçado, infinitamente.
 “Os mitógrafos antigos não estão de acordo quanto ao motivo de tal castigo” (SCHMI-
DT, 2012, p. 252): há muitas versões acerca do motivo pelo qual Sísifo teria sido condenado a 
tal castigo tão implacável e cruel. O próprio Camus cita algumas versões do mito, como esta: 
Contam também que Sísifo, já perto de morrer, quis imprudentemente pôr 
à prova o amor de sua esposa. Ordenou que ela jogasse seu corpo insepulto 
no meio da praça pública. Sísifo foi para os infernos. E ali, irritado por uma 
obediência tão contrária ao amor humano, obteve de Plutão a permissão 
de voltar à Terra para castigar a mulher. Mas quando tornou a ver a face 
deste mundo, a desfrutar da água e do sol, das pedras tépidas e do mar, 
não quis voltar para as sombras infernais. As chamadas, cóleras e adver-
tências nada conseguiram. Durante muitos anos ele continuou morando 
em frente à curva do golfo, com o mar resplandecente e os sorrisos da 
Terra. Foi preciso uma intervenção dos deuses. Mercúrio segurou o audaz 
pelo pescoço e, tirando-o de suas alegrias, trouxe-o à força de volta para 
o inferno, onde sua sua rocha já estava preparada (CAMUS, 2008, 138). 
 A questão que se coloca é: teria este mito algum ensinamento filosófico potencial a nos 
ensinar? Albert Camus pensava que sim. 
 Para Camus, se era indubitável que o castigo de Sísifo era atroz e eterno, ainda se podia 
levantar uma questão acerca dele: afinal, Sísifo sofreria mais na ida ou mais na volta? Sofria 
mais quando todo seu corpo e mente estavam concentrados no esforço físico quase impossível 
de empurrar essa pedra até o alto do monte, ou mais na volta, quando, por um instante fugaz, 
Sísifo podia descansar e pensar sobre si mesmo, seu esforço e seu castigo?
 Assim Camus descreve o esforço de Sísifo na ida:
(…) Só vemos todo o esforço de um corpo tenso ao erguer a pedra enorme, 
empurrá-la e ajudá-la a subir uma ladeira cem vezes recomeçada; vemos 
o rosto crispado, a bochecha contra a pedra, o socorro de um ombro que 
recebe a massa coberta de argila, um pé que a retém, a tensão nos braços, a 
segurança totalmente humana de duas mãos cheias de terra. Ao final desse 
prologando esforço, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem pro-
fundidade, a meta é atingida. Sísifo contempla então a pedra despencando 
em alguns instantes até esse mundo inferior de onde ele terá de tornar a 
subi-la até os picos. E [ele] volta à planície (CAMUS, 2008, p. 138; grifos 
nossos). 
 Para Camus, se Sísifo certamente sofre ao empreender este esforço físico descomunal, ele 
sofre muito mais na volta, quando pode pensar: sua tragédia se completa quando, finalmente, 
toma consciência de si e de seu destino; a consciência é um fardo mais pesado que a pedra. 
 
 O conhecimento, que tem ajudado o homem a libertar-se das doenças, das calamidades 
naturais, das tiranias políticas e de todos os tipos de males que afligem o homem, também tem uma 
dimensão opressiva: a Bíblia diz, em Eclesiastes 1:18, “quanto maior o saber, maior o sofrimento; 
e quanto maior o entendimento maior o desgosto”. O ampliamento da consciência amplia tam-
bém o conhecimento dos pesares do mundo e da existência: a ignorância, nesse sentido, é uma 
“benção”, pois permite ao sujeito ignorar os problemas que existem, no mundo e em si mesmo. 
 Camus escreve: 
É durante esse regresso, essa pausa que Sísifo me interessa. Um rosto que 
padece tão perto das pedras já é pedra ele próprio! Vejo esse homem des-
cendo com passos pesados e regulares de volta para o tormento cujo fim 
não conhecerá. Essa hora, que é como uma respiração e que se repete com 
tanta certeza quanto sua desgraça, essa hora é da consciência. (…) Este 
mito só é trágico porque seu herói é consciente. O que seria a sua pena 
se a esperança de triunfar o sustentasse a cada passo? O operário de hoje 
trabalha todos os dias de sua vida nas mesmas tarefas e esse destino não 
é menos absurdo. Mas só é trágico nos raros momentos em que se torna 
consciente. Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece 
toda a extensão de sua miserável condição: pensa nela durante a descida 
(CAMUS, 2008, p. 139). 
 
 Em muitos aspectos, as nossas vidas são melhores dos que as de nossos pais, avós e an-
tepassados: é muito provável que tenhamos mais conforto material, alimentação e até mesmo 
saúde; estatisticamente, temos uma vida mais longeva, e as doenças que chacinavam milhões 
nas gerações passadas hoje não existem ou são facilmente tratáveis; temos muito mais acesso à 
educação, tempo livre e lazer que nossos antepassados e, mesmo assim, não estamos mais feli-
zes e satisfeitos com a existência: pelo contrário. A vida que vivemos é mais confortável e, ainda 
assim, estamos igualmente ou até mesmo mais insatisfeitos que nossos pais e avós... Como 
explicar isso? Talvez, pelo fato de estarmos mais informados sobre os problemas do mundo, 
que antes eram desconhecidos e ignorados e, portanto, não pesavam no sono ou consciência de 
ninguém; por estarmosmais informados dos problemas do mundo que qualquer outra geração 
esteve, tendemos a pensar que a vida piorou para todos, quando, na verdade foi o nosso conhe-
cimento e sensibilidade que se expandiu. Por termos uma educação melhor, também tendemos 
a nutrir maiores expectativas da existência e, uma vez frustradas ou parcialmente frustradas, 
isso nos leva a pensar que tudo está piorando. Talvez o mundo não esteja piorando, talvez es-
tejamos apenas mais conscientes dele. Sofremos mais, como Sísifo, ao refletir: a informação e 
a educação não permitem que voltemos ao doce conforto da ignorância. A consciência amplia 
nosso desconforto, nossa insatisfação, nossa inconformação. Somos como Sísifo!
 (Vejam só: os mitos podem nos ajudar a filosofiar!). 
1.2 O mito e as explicações naturais 
 Se a investigação dos mitos é indispensável à compreensão das diversas culturas, 
de inúmeros aspectos da sociedade e da mente humana, a questão se torna um tanto mais 
problemática quando se trata de explicar os fenômenos naturais através deles: tentar ex-
plicar acontecimentos naturais apelando para a existência de seres ou forças sobrenaturais 
não amplia a capacidade humana de compreender e prever esses fenômenos e, por con-
sequência, não amplia os poderes humanos de controlar ou intervir nos processos natu-
rais; a compreensão científica dos fenômenos naturais permitiu ao homem intervir so-
bre eles para maximizar seu bem-estar, para curar doenças e proteger-se dos elementos 
e forças da natureza. A ciência ocidental só pôde surgir quando os primeiros filósofos co-
meçaram a buscar explicações alternativas às explicações míticas presentes em sua cultura. 
 Tomemos um exemplo de explicação mítica acerca de um fenômeno natural, no caso, a 
doença conhecida como epilepsia. 
 A epilepsia foi, desde a Antiguidade, uma das doenças mais carregadas de simbolismos 
sobrenaturais, ao ponto de ser conhecida como “doença sagrada”. Por quê? 
 A epilepsia desencadeia frequentemente convulsões que, por sua vez, provocam deter-
minados sintomas que, juntos, dão à crise convulsiva um aspecto assustador: o primeiro deles é 
o caráter inesperado do evento; não se tem como prever quando acontecerá uma crise epilépti-
ca; ela é inesperada, fulminante; tudo está bem e, de repente, sem nenhuma mudança aparente, 
a pessoa caí e a convulsão começa. 
O fenômeno epiléptico, em si mesmo surpreendente, de queda 
repentina seguida de contorções musculares, o rangido de den-
tes e a projeção da língua para a frente, tudo isso certamente 
desempenhou um papel na formação da ideia popular de pos-
sessão. Não é então de admirar que, para os gregos, a epilepsia 
fosse “a doença sagrada” par excellence [por excelência] (DO-
DDS, 2002, p. 73) 
 
 A epilepsia, assim como outras doenças de sintomas estranhos e surpreendentes, era 
sempre interpretada como o resultado da intervenção de forças sobrenaturais: “a partir desse 
ponto a noção de possessão iria facilmente se estender a epilépticos e paranoicos. Todos os 
tipos de distúrbio mental, incluindo sonambulismo e delírio de febre alta, seriam atribuídos a 
agentes demoníacos” (DODDS, 2002, p. 73).
Ao longo da história, portanto, pessoas portadoras de doenças mentais ou neurológicas 
bastante estranhas, como a epilepsia, a esquizofrenia ou a Síndrome de Tourette, sofreram com 
o preconceito e, provavelmente, até mesmo com a violência, daqueles que pensavam que estes
enfermos eram, na verdade,
[...] hospedeiros do Diabo. Os epilépticos são vítimas históricas desse pre- 
conceito. “No passado, a epilepsia era frequentemente confundida com 
possessão”, diz o neurologista Li Li Min, da Unicamp. Segundo ele, uma 
convulsão apresenta sintomas que, no passado, podem ter sido considera- 
dos sobrenaturais: a pessoa tem movimentos involuntários e repetitivos, 
pode se despir, gritar e até adquirir uma tonalidade arroxeada – isso por- 
que ela para de respirar (TEIXEIRA e VERONESE, 2006). 
Hipócrates - o médico grego celebrado como um dos “pais da medicina” - foi um dos 
primeiros a pensar que as doenças, por mais estranhas e assustadoras que pudessem ser, 
não eram causadas por forças sobrenaturais, mas por causas exclusivamente naturais. A 
respeito da epilepsia, por exemplo, ele afirmou que o caráter assustador ou estranho da 
doença não era motivo suficiente para considerá-la sagrada ou sobrenatural. Num tratado 
médico chamado da Doença Sagrada, dedicado à epilepsia, Hipócrates escreveu o seguinte: 
Vou discutir a doença chamada de sagrada [isto é, a epilepsia]. 
Ela não é, em minha opinião, mais divina ou mais sagrada do 
que qualquer outra doença, pois possui uma causa natural, e 
sua alegada origem divina se deve à inexperiência dos homens, e 
de seu espanto sobre sua peculiaridade... Mas, se é para ser con-
siderada divina somente por ser espantosa, não haverá somente 
uma doença sagrada, mas muitas, pois mostrarei que outras do-
enças não são menos espantosas e portentosas, e, ainda assim, 
ninguém as considera sagradas (HIPÓCRATES apud GRANT, 
2009, p. 37).
Certamente, afirmar que a epilepsia tem uma origem sobrenatural ou divina não amplia 
a compreensão acerca desse mal; uma vez que não promove a compreensão acerca da doença, 
não permite também que se desenvolva qualquer tratamento terapêutico ou paliativo para essa 
patologia; por fim, não ajuda a minimizar ou acabar como a estigmatização dos indivíduos 
portadores dessa doença, que sofrem com o preconceito de serem pessoas possuídas ou ende-
moniadas. Nesse sentido, explicar fenômenos naturais através de mitos bloqueia o surgimento 
de outras explicações, mais capazes de realmente explicar os acontecimentos naturais, assim 
como prevê-los e intervir sobre eles. A filosofia surge ao romper com a explicações míticas e, 
desta forma, dá inicio aos primeiros passos da investigação científica de mundo.
2. Os fatores do surgimento da filosofia na Grécia Antiga
Muitas hipóteses alternativas foram levantadas sobre o local de surgimento da filosofia, 
mas inúmeros motivos concretos apontam que esta surgiu na Grécia antiga, em meados do sé-
culo VI. a.C. No entanto, que motivos são estes? É certo que, quando a filosofia despontou neste 
momento histórico preciso, já existiam outras civilizações, muito mais antigas e imensamente 
sofisticadas em termos de cultura e tecnologia. Por qual razão a filosofia não teria despontado 
em civilizações como a chinesa, a mesopotâmica ou a egípcia, mas somente na Grécia?
 Uma primeira e importante razão é o encontro de culturas, propiciado pelo fato de que 
várias cidades importantes da Grécia antiga tinham no comércio marítimo sua principal ativi-
dade econômica. É o caso de Mileto, a cidade onde a filosofia surge. 
Quando nasce Anaximandro no início do século VI, Mileto é cidade prós-
pera, um dos principais portos comerciais do mundo grego, talvez o mais 
importante, e a cidade grega mais populosa na Ásia, com talvez 100 mil 
habitantes. Controla um pequeno, mas significativo império marítimo for-
mado por numerosas dezenas de colônias, espalhadas principalmente na 
costa do Mar Negro. (…). A cidade comercializa grãos provenientes das 
suas colônias citas (atual Ucrânia), madeira para construção, peixe salgado, 
ferro, chumbo, prata, ouro, lã, linho, argila ocre, sal, condimento, peles. De 
Naucrates [um porto de Mileto no Egito] vêm sal, papiros, marfim e perfu-
mes que chegam com as caravanas da Etiópia e do Oriente Médio. Produz 
e exporta terracota, armas, azeite, móveis, tecido, peixe, figos, vinho. Os 
tecidos de Mileto são famosos (ROVELLI, 2013, p. 38; grifos nossos). 
 Mileto é uma cidade grega na Ásia menor, região que hoje corresponde à Turquia. Em 
função da sua localização geográfica e do intenso comércio que praticava, essa Cidade propi-
ciou um intenso intercâmbio cultural: 
[Mileto] Comercia dentro do mundo mesopotâmico. Tem um porto co-
mercial no Egito. Tem colônias no mar Negro. A Jônia [região onde a cida-
de de Mileto fica] tem colônias no mediterrâneo ocidentalaté Marselha, e 
mais além. Mileto, em outras palavras, é sem dúvida alguma a cidade grega 
mais aberta ao mundo e em particular às influências dos antigos impérios 
e à sua secular cultura (ROVELLI, 2013, p. 101).
 Ora, essas civilizações antigas tinham desenvolvido conhecimentos importantes em di-
versas áreas, e os gregos absorveram esses conhecimentos: só para citar alguns exemplos, é 
sabido que os gregos absorveram rudimentos de matemática com os egípcios, e com os meso-
potâmicos, inúmeras observações e conhecimentos astronômicos. Os conhecimentos advindos 
de outras civilizações foram importantes para criar o fértil terreno cultural grego propício ao 
surgimento da filosofia. 
Com certeza colônias e mercados não são apenas fontes de comércio e 
riqueza, mas também de contatos com povos diversos, de descobertas de 
ideias e opiniões diversas. Mileto está em contato econômico e cultural 
com todo o mundo mediterrâneo e médio-oriental. Com a expansão da 
economia se alarga também a visão do mundo (ROVELI, 2013, p. 38). 
 Uma dessas coisas que os Gregos aprenderam com outros povos e que adaptaram às suas 
necessidades foi o alfabeto. Os inventores do alfabeto foram também um povo de comerciantes 
marítimos, os fenícios. Mas o alfabeto fenício é diferente do grego: ele é consonantal, isto é, são 
as escritas só as consoantes da palavra. Tomemos a frase anterior como exemplo (“o alfabeto 
fenício...”): ela seria escrita assim no alfabeto fenício: “Lfbc fnc cnsnntl st s scrts s s cnsnts d 
plvr”(ROVELLI, 2013, p. 93). Para entender tal escrita, é necessário já ter uma ideia bastante 
clara do que se está falando e saber reconhecer as consoantes como indicativos das palavras 
usadas, o que funciona bastante bem em contextos restritos e limitados, como a contabilidade, 
mas não tão bem em contextos mais amplos e gerais (ROVELLI, 2013, p. 93). 
 O alfabeto consonantal dos fenícios já implica em um razoável avanço em relação as 
formas de escrita anteriores, praticadas ao longo de milênios, como a escrita cuneiforme, prati-
cada desde o IV milênio antes de Cristo na região da Mesopotâmia, e a escrita hieroglífica, in-
ventada no Egito um pouco depois. Tais escritas usam centenas de símbolos diversos e é indis-
pensável conhecer a escrita de cada palavra para poder escrevê-la ou reconhecê-la num texto. 
O exercício é difícil e requer um longo aprendizado. Em função disso, a escrita fica confinada 
aos escribas profissionais. Nem mesmo os reis sabiam escrever (ROVELLI, 2013, p. 93-94).
 Com o alfabeto dos fenícios, ao invés de centenas de símbolos, bastava uns trinta. Tor-
na-se mais fácil ler e escrever, mas não se torna fácil ainda. É preciso muita atenção para re-
constituir uma palavra a partir de suas consoantes; ler não é um exercício rápido, que se possa 
fazer pensando em outra coisa. Aprender a ler e escrever ainda requer um longo aprendizado e 
a escrita continua confinada a poucos: até os gregos introduzirem as vogais.
 No alfabeto fenício, um único símbolo representava todas as inflexões vocálicas pos-
síveis de uma consoante: por exemplo, só existia o B para representar ba, be, bi, bo, bu. Com 
a introdução das vogais, torna-se muito mais fácil distinguir entre as diferentes inflexões da 
mesma consoante. E, deste modo, aprender a ler e a escrever torna-se muito mais fácil: basta 
aprender a decodificar os sons, sem ser necessário aprender centenas de símbolos ou conhecer 
todas as palavras representadas (ROVELLI, 2013, p. 94). Com o alfabeto grego, o conhecimen-
to da escrita aumenta centenas de vezes seu poder de virulência.
 E se a escrita aumenta seu poder de virulência, o conhecimento também o aumenta. Se 
antes o conhecimento estava restrito a uma classe de conhecedores, os escribas profissionais, 
que certamente não tinham interesse na popularização do conhecimento, do contrário se tor-
nariam eles próprios desnecessários, agora o conhecimento podia atingir a um número signifi-
cativamente maior de pessoas. E isso é importante para que a filosofia surja, pois os primeiros 
filósofos podiam entrar em contato com o saber escrito de outras povos e pensadores, alguns 
dos quais muito distantes dos primeiros filósofos no tempo e no espaço, assim como preservar 
o seu próprio conhecimento e reflexão através da escrita.
 Um terceiro e importantíssimo fator, talvez o mais decisivo de todos, é a estrutura de 
poder político e religioso das cidades gregas, que em Atenas culminará no surgimento da de-
mocracia.
 Não há, para os gregos, uma autoridade religiosa organizada e centralizada, uma casta 
superpoderosa que detivesse a última palavra sobre as verdades religiosas, assim como não há 
um livro sagrado. Com o surgimento da Democracia, o poder de decisão também já não cabe 
a um só indivíduo, mas ao conjunto de indivíduos considerados cidadãos (que não são todos 
os indivíduos). Assim Carlo Rovelli explica a relevância da democracia para o surgimento da 
filosofia:
Conceber uma estrutura política democrática significa aceitar a ideia de 
que as melhores decisões possam surgir de uma discussão entre tantos, em 
lugar da autoridade de um só, a ideia de que uma crítica pública de uma 
proposta seja útil para discernir as propostas melhores, a ideia de que se 
possa argumentar e convergir para uma conclusão. Essas são exatamente 
as hipóteses básicas da pesquisa científica do saber.
A base cultural do nascimento da ciência [através da filosofia] é, portanto, 
a mesma sobre a qual se apoia o nascimento da democracia: a descoberta 
da eficácia da crítica e do diálogo entre iguais. Anaximandro que crítica o 
seu mestre Tales não faz senão transportar para o plano do saber o que cer-
tamente já era prática corrente na Ágora [praça pública, onde se discutia 
política] de Mileto: não aprovar acriticamente e de modo reverente o divi-
no ou semidivino senhor de plantão, mas criticar a proposta do magistrado 
cidadão. Não para faltar-lhe ao respeito, mas na consciência compartilha-
da de que uma proposta melhor sempre pode existir. 
O velho poder absoluto dos soberanos e das castas sarcerdotais vem abaixo 
e abre um espaço novo onde nasce uma nova cultura. Os homens apren-
dem ao mesmo tempo a desconfiar do poder absoluto do soberano e do 
saber tradicional dos sacerdotes: nasce algo profundamente novo seja na 
estrutura da sociedade, seja na pesquisa do conhecimento (ROVELLI, 
2013, p. 99).
 O valor conferido à discussão e ao questionamento das autoridades, à argumentação e à 
busca por uma verdade compartilhada certamente permitiu que os primeiros filósofos pudes-
sem expor teorias que, em outros contextos, implicariam em censura e perseguição, possivel-
mente até mesmo na execução dos propositores. 
 Por fim, um último fator revelante a ser mencionado é que a cultura grega floresceu, 
em grande parte, devido ao ócio [tempo livre] propiciado por uma civilização extensivamente 
escravista. Os gregos consideravam o trabalho manual e braçal uma atividade aviltante, degra-
dante, reservada aos escravos e aos mais pobres; o trabalho realmente dignificante, enobrece-
dor, era o trabalho intelectual, teórico, de contemplar e compreender a realidade. De modo 
geral, puderam dedicar-se exclusivamente ao exercício intelectual, pois uma economia escra-
vagista permitiu aos cidadãos gregos um ócio considerável: “Durante a supremacia de Péricles 
(443-429 a.C) [Atenas] contava com 43.000 cidadãos munidos de direitos políticos e 300.000 
escravos; portanto, uma média de sete escravos por cabeça” (DE MASI, 2003, p. 146-147; grifos 
nossos).
 Por abominarem o trabalho físico, isso não implica que os gregos valorizassem a pre-
guiça, a inércia e apatia: “Segundo Aristóteles, é necessário apreciar sobretudo a nobreza do 
ócio criativo, isto é, do trabalho intelectual que desemboca no estudo e no jogo; a excelência da 
reflexão filosófica, da atividade mental que se exprime através da política e da arte” (DE MASI, 
2003, p. 154).
 Portanto, se a economia escravagista foi importante para que a culturagrega produzisse 
as obras que produziu, é necessário fazer duas observações: a primeira é que, por si só, uma 
economia escravista não resulta em ócio criativo, e muitas outras civilizações escravistas existi-
ram sem produzir o que os gregos produziram; em segundo lugar, que é necessário separar os 
produtos criados pela civilização grega das condições sociais e econômicas que possibilitaram 
esses mesmos produtos: a escravidão é execrável, mas o teatro, a democracia e a filosofia não o 
são. 
2.1 Por qual razão os filósofos pré-socráticos são assim chamados?
 Os primeiros filósofos da história são reunidos sobre o título de filósofos pré-socráticos, 
mas alguns deles, como é o caso de Demócrito, não viveram e produziram antes de Sócrates, 
mas viveram ao mesmo tempo que Sócrates. Não seriam, cronologicamente, pré-socráticos. 
Mas o critério para designar esse grupo de filósofos como pré-socráticos não é cronológico, 
e sim temático ou conceitual: Sócrates fez dos problemas morais e humanísticos o centro da 
sua preocupação filosófica, enquanto os pré-socráticos, de modo geral, se preocupavam pouco 
com essas questões. 
 Qual era o objeto da preocupação filosófica dos pré-socráticos?
 A Natureza, ou Physis, para usar a palavra grega (termo do qual deriva a palavra Físi-
ca). Os primeiros filósofos buscavam compreender a lógica oculta por por trás dos fenômenos 
naturais; tentavam entender como a natureza funcionava sem apelar, em nenhum momento, 
para forças divinas ou sobrenaturais. Um dos principais objetivos desse grupo de pensadores 
era descobrir o arkhé, um termo grego que significa princípio, origem: o arkhé seria a matéria 
básica do universo, da qual tudo teria surgido e de que tudo seria feito, e a qual tudo deveria 
retornar com o tempo. 
 Os filósofos pré-socráticos estavam completamente concentrados em contemplar e com-
preender os processos naturais e, em função disso, alcançaram um tipo de compreensão que 
era, naquela época, muito rara: a noção do quão pequenos somos em relação ao universo. 
Hoje, em função do avanço da ciência e da tecnologia, sabemos que a extensão do universo é 
infinita e, além disso, segundo alguns físicos teóricos, que poderia haver vários universos; hoje 
sabemos que a visão geocêntrica do universo, por exemplo, chega a ser ridícula em função 
da vastidão conhecida do cosmos; esses conhecimentos, que hoje estão quase universalmente 
disponíveis, não eram do conhecimento de ninguém no século VI ou V antes de Cristo, e isto 
por várias razões, dentre elas a ausência de qualquer instrumento óptico de observação, como 
um telescópio, que só surgiria milhares de anos depois; ninguém conhecia, por meio da ob-
servação empírica, a verdadeira extensão do universo, mas os pré-socráticos se aproximaram 
dessa conclusão de alguma forma: através da observação do mundo natural e da especulação 
filosófica, os pré-socráticos se aproximaram da compreensão de que faziam parte de um Cos-
mos excepcionalmente extenso e antigo: ao situar a existência de seres humanos individuais, 
ou até mesmo de tribos e impérios, dentro desse contexto cósmico, tudo parecia perder o senso 
de urgência e relevância: as vaidades individuais, assim como a arrogância e desejo de glória 
de líderes e tiranos, tudo parecia desvanecer quando observado de uma perspectiva cósmica. 
Perspectiva cósmica nada mais é que a reflexão sobre a existência humana levando em conside-
ração a sua dimensão (espacial e temporal) dentro do universo. Os pré-socráticos certamente a 
exercitaram e, por tal razão, a postura de muitos deles em relação aos problemas humanos - de 
psicologia, moral e política - era de distanciamento, até mesmo de desprezo. 
 Platão, num trecho de um seus diálogos (chamado Teeteto), explica qual era a postura 
dos pré-socráticos:
SÓCRATES. - Em primeiro lugar, os outros [filósofos pré-socráticos], des-
de cedo, não sabem o caminho para a praça pública, nem onde fica o tribu-
nal ou o Senado, ou qualquer outro lugar de assembleia comum da cidade; 
não ouvem, nem veem, as leis e decretos, falados ou escritos, o empenho 
das uniões com fins partidários, as reuniões, jantares e festas com tocado-
ras de flauta, nem em sonhos lhes passa pela cabeça dedicarem-se a estas 
atividades. Quer alguém seja bem ou mal, nascido na cidade, quer tenha 
algo de mal, que venha dos antepassados, da parte dos homens ou das mu-
lheres, nada o filósofo [pré-socrático] sabe, sobre quanto medirá o mar, 
como diz o provérbio. E nem sequer sabe que não sabe todas estas coisas; 
pois nem é para cair nas boas graças que se abstêm, pois, na realidade, 
apenas o seu corpo está na cidade e aí reside; enquanto o seu pensamento, 
que considera tudo isto de pouca ou nenhuma importância, o desdenha 
de todas as maneiras. Viaja, como diz Píndaro, “nas profundezas da terra”, 
medindo a terra e as suas extensões, e observa os astros, “… sob o céu”, ex-
plorando por todo o lado, toda a natureza, no todo de cada uma das coisas 
que são, nunca se rebaixando para aquilo que está perto.
TEODORO. - O que queres dizer com isso, Sócrates?
SÓCRATES. - Tal como, quando Tales [de Mileto] observava os astros, 
Teodoro, e olhava para cima, caiu num poço. Conta-se que uma bela e gra-
ciosa serva trácia disse uma piada a propósito, visto, na ânsia de conhecer 
as coisas do céu, deixar escapar o que tinha à frente debaixo dos pés. Esta 
graça serve para todos os que se dedicam à filosofia. (…). Suponho que 
compreendes, Teodoro, não?
TEODORO. - Claro que sim! Dizes a verdade. 
SÓCRATES. - E este é exatamente assim, meu amigo, quer associado a 
qualquer um, em privado ou em público, como eu dizia no princípio, 
quando, num tribunal, ou noutro lugar qualquer, é forçado a discutir so-
bre o que está ao pé de si ou à frente dos olhos, provoca o riso, não só às 
jovens trácias, mas ao resto da multidão, pois cada dificuldade é um poço 
onde cai, devido à inexperiência; e a sua falta de destreza é terrível e fá-lo 
parecer estúpido, porque, quando o insultam, nada tem a censurar a nin-
guém, e nada sabe de mau sobre ninguém, visto nunca se ter preocupado 
com isso. E assim, a atrapalhação fá-lo parecer ridículo. E o mesmo acon-
tece à propósito dos louvores e pedantices dos outros: ri sem afetação e 
com sinceridade, parecendo tonto. Na verdade, quando um tirano ou um 
rei é elogiado, o filósofo [pré-socrático] pensa que está a ouvir o elogio a 
qualquer guardador de rebanhos, tal como um porqueiro, um pastor ou 
um boieiro, contente por os animais estarem a dar muito leite; no entanto, 
pensa que o rei e o tirano pastam e mungem uma espécie de animal muito 
mais difícil e manhoso do que estes, sendo forçoso que cresçam não me-
nos grosseiros e incivilizados que os guardadores de rebanhos que vivem 
nas montanhas, pois não têm tempo livre [ócio] e vivem fechados na suas 
muralhas. E quando ouve dizer que alguém possui 900 hectares de ter-
ra ou mais, uma quantidade “espantosa”, pensa que ouve “pequena”, pois 
está habituado a ver a terra inteira. E, quando se celebram as linhagens e 
alguém diz que tem sete antepassados ricos, ele acha que o louvor revela 
uma visão estúpida e limitada, de quem é incapaz, por falta de educação, 
de olhar a eternidade, e calcular que cada um teve incontáveis milhares 
de avós e antepassados, entre os quais deve ter havido muitos milhares de 
ricos e pedintes, reis e escravos, bárbaros e gregos. Mas quando alguém se 
orgulha de ter um catálogo 25 antepassados e se diz descendente de Hér-
cules, filho de anfitrião, os seus cálculos parecem-lhe insignificantes, dado 
que o vigésimo quinto a partir de Anfitrião era aquele que o acaso tinha 
determinado, tal como o quinquagésimo a partir deste, e ri-se deles, por-
que não conseguem libertar as mentes da vaidade, para fazerem as contas. 
Em todas estas ocasiões, quem for assim é escarnecido pela multidão, pois, 
por um lado, parece ser arrogante e, por outro lado, ignorante das coisas 
que tem ao pé, atrapalhando-se nas situações concretas (PLATÃO,2010, 
247-249). 
 É por dedicarem pouca ou nenhuma atenção aos problemas humanos, por até despre-
zarem as preocupações cotidianas que absorvem os homens, e por estarem completamente en-
volvidos na contemplação dos processos naturais, que os filósofos que vieram antes de Sócrates 
foram assim chamados: Sócrates marca a filosofia ao trazê-la do céu (os processos naturais) 
para a terra (os problemas cotidianos e humanos). 
 Os filósofos pré-socráticos também são chamados de Físicos (por estudarem a Physis) 
ou Fisiólogos (aqueles que emitem um discurso racional, logos, sobre a natureza, physis). Tam-
bém são chamados de Cosmologistas ou Cosmólogos, por estudarem o Cosmos, termo grego 
que significa natureza organizada ou ordem natural. 
3. A Escola de Mileto
 Uma escola filosófica não é uma instituição física, com alunos e professores, etc. Em filo-
sofia, uma escola é um conjunto de pensadores que tem em comum um certo recorte histórico 
e espacial e o mesmo interesse filosófico. No caso da Escola de Mileto, também chamada de 
Escola Jônica (a cidade de Mileto ficava na região da Jônia), trata-se de um grupo de filósofos 
que vivem na mesma região, no mesmo período histórico e tem o mesmo interesse filosófico: o 
desejo de compreender os processos naturais e descobrir o arkhé, a matéria originária do uni-
verso.
 Os três pensadores da Escola de Mileto são Tales, Anaximandro e Anaxímenes, ambos 
habitantes da cidade de Mileto. 
 Tales é considerado o primeiro filósofo. Também é um matemático, ao qual é creditado 
o famoso teorema de Tales. Heródoto, um historiador grego (clamado por alguns como o pai 
da História), afirma que Tales teria previsto um eclipse solar acontecido em 585 a.C, durante a 
guerra entre lídios e os medos (GILLISPIE, 2007, p. 2475; BURNET, 2006, p. 60). 
 Tudo o que escreveu foi perdido, e o pouco que sabemos vem de fontes indiretas, que 
escreveram sobre Tales e ajudaram a preservar um pouco de seu pensamento. Quase tudo que 
sabemos da filosofia de Tales vem de textos de Aristóteles. 
 Por exemplo, Aristóteles afirma que Tales propunha a água como substância primordial 
do Cosmos, como o arkhé. Por qual razão a água seria tão importante a ponto de ser eleita o 
componente básico do cosmos?
Ao contrário dos demais elementos universais, como a terra e o fogo, po-
de-se facilmente observar a água assumindo diferentes formas, como o 
gelo e o vapor. Ela é, portanto, versátil e visivelmente ativa. Ao sugerir as 
razões pelas quais Tales teria favorecido a água, Aristóteles assinalou sua 
íntima conexão com a vida. A comida, o sangue e o sêmen contêm água; 
as plantas e os animais se alimentam da água. Tudo que é vivo tende a ser 
úmido e a secar depois de morto (GOTTLIEB, 2007, p. 19). 
 
 Tales, ainda segundo Aristóteles, teria afirmado que a Terra flutua na Água: é importan-
te, em primeiro lugar, observar que, neste momento histórico, quase tudo era desconhecido 
sobre o planeta Terra: ainda se acreditava que ela estava no centro do Universo; não se conhecia 
o seu formato, e não se sabia de sua verdadeira extensão (os povos dos diversos continentes se 
ignoravam mutuamente); a conjectura de Tales de que a Terra flutuava sobre a água não era de 
toda absurda:
(…) Tales usou a ideia de uma Terra flutuante para explicar os terremo-
tos. Se pudermos confiar nessa evidência (…), a implicação é que Tales 
demonstrou uma maneira de pensar impressionantemente diferente de 
qualquer outra existente até então. Homero e Hesíodo tinha explicado que 
terremotos se deviam à atividade do deus Poseidon que, com frequência, 
ostentava o epíteto épico de “abalador da Terra”. Tales, em contraste, em vez 
de invocar um agente sobrenatural desse tipo, empregou uma explicação 
simples e natural para descrever o fenômeno (GILLISPIE, 2007, p. 2476). 
 Já Anaxímenes de Mileto, por exemplo, elaborou uma explicação naturalista para o fe-
nômeno do arco-íris: “Anaxímenes rejeitou a velha crença de que o arco-íris era a deusa Íris; 
afirmava, ao contrário, que o arco-íris era provocado pelos raios de sol que incidiam sobre o ar 
denso” (Ferry, 2002, p. 59). 
 Para este filósofo de Mileto, como diz uma canção do compositor Arnaldo Antunes, “do 
vento tudo vem”: para Anaxímenes, o ar era o arkhé, o componente básico do universo. 
 O ar também possuí uma íntima conexão com a vida: não à toa o termo grego para ar, 
pnêuma, que significa também respiração, tem em grego também a conotação de alma: quando 
se morre, o último suspiro que se exala parece levar consigo a vida, o sopro vital. 
 Mas, se podemos encontrar a água em estado líquido, sólido e gasoso na própria nature-
za, sugerindo que ela pode se transformar em diferentes estados da matéria e tipos de matéria, 
o mesmo não acontece com ar, não é? O ar não pode se transformar em coisas sólidas e líqui-
das, certo?
 Certamente não é impossível que Anaxímenes, tendo presenciado uma fogueira quei-
mando, tenha imaginado que, se uma substância sólida, ao ser queimada, produz fumaça - isto 
é, gases, ou se a água líquida aquecida produz vapor de água, isso podia indicar que, no fundo, 
tanto as coisas sólidas quanto as líquidas nada mais são que ar condensado. Para visualizar isso, 
basta imaginar o vídeo de uma fogueira em modo reverso: o que vemos é a fumaça voltando e 
se transformando em madeira: para um indivíduo do século VI antes de Cristo, essa experiên-
cia só podia ser feita, evidentemente, pela imaginação.
 Como, sendo o ar o componente básico de tudo que existe, poderia ele se diversificar em 
tantos tipos diferentes de matéria, com propriedades tão diferentes entre si?
 Anaxímenes propõe uma solução: o ar poderia ser condensado em diferentes propor-
ções, e cada proporção de ar resultaria em um tipo diferente de matéria. Os mecanismos de 
mudança do universo são a condensação e a rarefação do ar, que permitem que a substância 
básica se combine em diferentes proporções:
O ar, para ele, assume formas variadas, dependendo do quão rarefeito ou 
condensado está. O mais rarefeito é o fogo; depois vem o ar comum; con-
densado, é o vento; ainda mais denso, são as nuvens, depois a terra e as 
pedras, nessa ordem. O ar atmosférico que respiramos é, em certo sentido, 
o estado natural da substância, ao qual todas as outras formas retornam. 
Mas esse estado natural do ar é perturbado pela sua constante movimenta-
ção, que faz concentrar maiores quantidades deles em alguns lugares - por-
tanto maiores densidades - do que em outros. A condensação e a rarefação 
causadas pelo movimento do ar, são, portanto, os motores da mudança 
no mundo de Anaxímenes, que respondem pelo quente e pelo frio, pelo 
molhado e pelo seco, pelo sólido e pelo insubstancial (GOTTLIEB, 2007, 
p. 29)
 A teoria de Anaxímenes deriva todas as diferença qualitativas - isto é, na aparência e 
propriedades dos diferentes tipos de matéria - barro, ouro, ferro, água, etc. - de diferenças 
quantitativas, isto é, os diferentes graus de condensação da matéria básica, o ar: se o ar estiver 
muito junto, isso resulta num tipo de matéria; se estiver muito separado, resulta noutro tipo; e 
existem milhares de “graus” possíveis, resultando em toda a diversidade de substâncias que en-
contramos no cotidiano. Embora tenha se equivocado acerca do arkhé, afinal, como sabemos, 
a matéria do universo não é composta de ar, Anaxímenes inventou um tipo de explicação que 
ainda é usada hoje em dia: explicar diferenças qualitativas por diferenças quantitativas. 
Hoje estamos convencidos de que praticamente toda a matéria com que 
usualmente lidamos está formada por três componentes: elétrons, prótons 
e nêutrons: a variedade da matéria é determinada exatamente da diversa 
combinação e da maior ou menor rareferação e condensação desses pou-
cos elementos (ROVELLI, 2013, p. 74).
 
 Por fim, o último dos pensadores de Mileto é Anaximandro. 
 Anaximandro é famoso por ter proposto ideias que certamente eram visionárias para 
o seu momento histórico: teria, entre outras coisas, produzido oprimeiro mapa da Terra (ao 
menos da Terra conhecida em seu momento histórico) (JAEGER, 2001, p. 198; RUSELL, 2015, 
p. 53; SANTOS, 2001, p. 30) e proposto que os seres vivos passam por transformações em suas 
formas, antecipando a teoria evolucionária (BURNET, 2006, p. 77). Teria afirmado também que 
o universo é composto por inumeráveis mundos (BURNET, 2006, p. 69), sugerindo, portanto, 
a ideia de um universo infinito. Uma de suas principais afirmações é de que a Terra flutuava no 
vazio, não precisando de nenhum suporte (BURNET, 2006, p. 74).
 Para alguém de sua época, certamente a ideia que a Terra pairava no vazio era completa-
mente estranha e absurda: se todas as coisas que não possuem um suporte caem, por qual razão 
a Terra não caia no vazio?
 A argumentação de Anaximandro é interessante: se o universo é de fato composto por 
inumeráveis mundos, como ele propunha, ele seria infinito; num universo infinito, não haveria 
alto e baixo absolutos, assim como também não haveria direita e esquerda, norte e sul absolu-
tos; esses pontos de referência são válidos somente em relação à Terra; são relativos e não abso-
lutos; ora, o conceito de queda depende do conceito de baixo, uma vez que não é possível cair 
para cima; se não existe um baixo no espaço, não existia queda, não era possível cair. Segundo 
Rovelli, Anaximandro teria descoberto a primeira relatividade: a do alto e baixo; depois dele, 
viria Galileu e depois Einstein:
A revolução de Anaximandro tem muita coisa em comum com as outras 
grandiosas revoluções do pensamento científico. Trata-se de um passo si-
milar ao dado por Copérnico e Galileu para fazer triunfar a revolução co-
pernicana. A Terra se move? Como pode mover-se se parece evidente que 
está parada? Não, diria Galileu, completando a revolução copernicana: não 
existem movimento e imobilidade absolutos. As coisas apoiadas sobre a 
Terra estão firmes em relação à outra, mas isso não significa que não pos-
sam estar, juntas, em movimento no sistema solar. A noção “imobilidade” 
ou “movimento” é muito mais articulada e complexa do que a nossa ex-
periência cotidiana. E Einstein, com a introdução da relatividade restrita, 
descobre ainda mais: que a simultaneidade, isto é, a noção de “agora”, não é 
absoluta, porém relativo ao estado de movimento de um observador (RO-
VELL, 2013, p. 66).
 Em relação ao arkhé, Anaximandro pensa que a substância básica do universo não seria 
nenhuma das substâncias conhecidas e experimentadas cotidianamente pelos sentidos, como 
água ou ar, terra ou fogo. Se as substâncias básicas que conhecemos no dia a dia são, de certa 
forma, opostas umas às outras, como o fogo e a água, e possuem propriedades opostas, como o 
calor e o frio, nenhuma delas poderia ser o arkhé, pois se o fosse, sendo em quantidade infinita, 
ela teria extinguido o seu oposto: se o universo tivesse como arkhé o fogo, que é quente, como 
poderia existir a água e o frio? O fogo teria “cancelado” completamente a água e suas proprie-
dades. E vice-versa. Não, o arkhé não poderia ser nenhuma das substâncias cotidianamente 
conhecidas: precisava ser outra coisa, algo neutro - que não fosse quente nem frio, por exemplo 
- e também fosse infinito. Anaximandro propôs então que o arkhé era algo invisível e intangí-
vel, uma substância que o homem não experimentava no cotidiano: chamou tal substância de 
Ápeiron, que em grego significa Indeterminado.
 A ideia de Ápeiron de Anaximandro é a primeira proposição da existência de algo que 
não se pode observar ou tocar, mas que não é de natureza espiritual ou sobrenatural, e sim 
uma parte da natureza: para Anaximandro, o Ápeiron é uma entidade natural abstrata, que só 
se pode perceber através do uso da razão. O físico Carlos Rovelli explica:
(…) a ideia mesma de investigação da natureza se baseia sobre o reconhe-
cimento de que a natureza não se revela inteiramente a um olhar direto. 
Ao contrário, é necessário sondar-lhes as origens e a estrutura: a verdade 
é acessível, é parte integrante da própria natureza, mas está escondida. A 
observação e o pensamento são os instrumentos para chegar até ela. Para 
fazer isto, o pensamento está pronto para imaginar a existência de entida-
des naturais, ou seja, assumir que elas existam, ainda que elas não sejam 
imediatamente perceptíveis.
Esse é precisamente o caminho seguido pela ciência teórica dos séculos 
seguintes. Ao postular o ápeiron, Anaximandro não faz outra coisa senão 
abrir caminho ao que a ciência continuará a fazer depois por séculos, com 
extraordinário sucesso: imaginar a existência de “entidades” que não são 
diretamente visíveis e perceptíveis mas permitem que nos demos conta dos 
fenômenos (2013, p. 76).
 Para Carlo Rovelli, a história da ciência, desde Anaximandro, estará repleta de entidades 
naturais abstratas, que só podem ser “vistas” através do exercício da razão. Eis alguns exemplos:
Os átomos, os campos elétricos e magnéticos de Faraday e Maxwell, o 
espaço-tempo curvo de Einstein, o flogisto da teoria do calor, o éter de 
Aristóteles e o de Lorentz, os quarks de Gell-Man e as partículas virtu-
ais de Feinman, a função de onda da mecânica quântica de Schrödiger e 
os campos quânticos que estão na base na descrição do mundo da física 
contemporânea: todos são “entidades teóricas”, que não são diretamente 
perceptíveis pelos sentidos, mas são postulados da ciência para dar conta 
de modo unitário e orgânico da complexidade dos fenômenos. Eles têm 
exatamente o papel, a função, que Anaximandro atribui ao ápeiron (RO-
VELLI, 2013, p. 77).
 Anaximandro também ajudou a desmitificar o mundo, propondo explicações naturalis-
tas para determinados fenômenos, como é caso dos trovões e relâmpagos: 
O trovão e o raio, afirmava Anaximandro, eram causados pela força do 
vento. Enclausurado em uma nuvem espessa, o vento explode e, em segui-
da, o romper da nuvem produz o barulho do trovão, e a brecha dá a im-
pressão do brilhar do raio contra a escuridão da nuvem. Esta é uma típica 
“explicação” científica (CORNFORD, 2005, p. 17).
 Explicado de outra forma, as nuvens seriam como balões de ar que, ao explodir, produ-
zem um grande estrondo e que, ao revelar seu interior na explosão, parecem brilhar em con-
traste com o exterior da nuvem. Não é uma explicação que a ciência adota hoje, evidentemente, 
mas tem um importante mérito: não apela para nenhuma força sobrenatural; já não é Zeus 
enviando raios.
 Os primeiros três filósofos da história humana podem ter ser equivocado em muitas de 
suas explicações, uma vez que viveram num tempo em que não existiam conhecimentos cientí-
ficos para se basear, assim como instrumentos de observação como o telescópio e microscópio; 
apesar disso, são reconhecidos como os pais fundadores da ciência ocidental; mais do que seus 
conhecimentos científicos, que estão obsoletos, eles têm a nos ensinar uma postura ou menta-
lidade científica: a curiosidade diante dos processos naturais, o ceticismo diante das respostas 
que o senso comum nos apresenta como verdadeiras e a coragem de confrontar visões de mun-
do estabelecidas. Se as suas explicações de mundo estão obsoletas, certamente a sua postura 
científica permanece tão viva e necessária como então.
 A Grécia antiga produziu a filosofia e, com esta, a ciência. Mas também engendrou for-
mas de arte importantes que valorizamos até hoje, como é o caso do teatro. O teatro é, em certo 
sentido, irmão da filosofia. 
4. O Teatro Grego
 
 Alguns historiadores afirmam que em civilizações orientais mais antigas que a Grécia já 
existiam espetáculos muito próximos do que consideraríamos “teatral”. No entanto, pouquíssi-
mo se sabe sobre esses espetáculos, pois eles não deixaram de nenhum tipo de vestígio escrito: 
aliás, eram espetáculos baseados completamente na gesticulação, na mímica e na dança, não 
possuindo fala ou texto. Estes espetáculos são conhecidos como mimo: segundo o dicionário 
Houaiss, “suas raízes remontam aos rituais mágicos do Paleolítico, sendo a mais antiga tradição 
teatral dahistória”. 
Estas formas menores de teatro, algumas das quais parecem ter uma ori-
gem oriental, nomeadamente síria, não deixaram vestígios, o que é natural, 
pois sua característica essencial era apresentar um espetáculo e não textos. 
Dependiam da mímica, da livre gesticulação ou da dança orientada. São as 
origens populares do teatro “nobre” que, sem elas, não teria sido o que foi 
(GRIMAL, 2008, p. 9). 
 
 O grande mérito dos gregos foi acrescentar a essas formas de espetáculo à dimensão 
literária: é com essa fusão entre gestual e textual, entre espetáculo e literatura, que o teatro efe-
tivamente nasce. Além disso, os gregos criaram um espaço dedicado exclusivamente ao teatro, 
que se torna um lugar: os primeiros anfiteatros da história ficam na Grécia antiga, em encostas 
de pedra, que eram talhadas na forma de arquibancadas, situadas em colinas. 
 Os gregos criaram o teatro literário: o teatro como uma forma de literatura. Até hoje as 
peças gregas são estudadas por críticos literários, psicólogos, psicanalistas, filósofos e humanis-
tas de forma geral por sua beleza literária e por sua profundidade filosófica. 
 O teatro surgiu na Grécia antiga, em festivais realizados em honra a Dionísio, o deus do 
vinho e do êxtase na mitologia grega. 
 Dois festivais em honra a Dionísio, o das Lenéias, no final de janeiro, e as Grandes Dio-
nísiacas, no final de março, tinham como uma de suas atrações a apresentações de comédias e 
tragédias em concursos dramáticos presididos pelo arconte (MOSSE, 2004, p. 265). 
 O ato de ir para o teatro, então, revestia-se de uma conotação religiosa, uma vez que os 
gregos encaravam esses momentos de forma reverente: o teatro não seria uma forma de lazer e 
de arte completamente profana, como para nós é o ato de ir ao cinema ou a festas laicas. Estaria 
mais próximo do ato de ir à uma procissão religiosa ou participar de um culto. 
Para os gregos, o ato de ir ao teatro tinha então uma clara conotação reli-
giosa. Os espetáculos eram precedidos por procissões em que a estátua do 
deus era conduzida até o recinto das representações, onde permanecia até 
o final de competição. Os coros trágicos e cômicos evoluíam em volta do 
altar do deus do vinho e diante do seu sacerdote, a quem era reservado um 
assento na primeira fila da plateia. Banquetes e sacrifícios completavam a 
programação. Não resta dúvida de que o deus [Dionísio] era visto como o 
patrono do teatro. (DUARTE, p. 8, 2013; grifos nossos) 
 Os atores eram todos homens, mesmo nos papeis femininos, e todos usavam máscaras 
(MOSSE, 2004, p. 266). As palavras que os gregos usavam para designar ator e máscara no te-
atro acabaram dando origem a palavras que usamos ainda hoje. Ator, em grego, é hypocrytês 
(GRIMAL, 2008, p. 29): o termo dará origem ao nosso termo hipócrita. De certa forma, tanto 
o ator quanto o hipócrita fingem e atuam, mas o fingimento do ator é nobre: como diz V de 
Vingança, “Os artistas usam a mentira para revelar a verdade, enquanto os políticos usam a 
mentira para escondê-la.”. 
A palavra hipócrita veio do grego e designava, a princípio, apenas um ator, 
um comediante, um histrião, sem as conotações intensamente negativas – 
de falsidade, dissimulação, fingimento – que hoje estão grudadas nela. Ou 
melhor: o fingimento estava lá, mas era exercido em nome de uma causa 
nobre, a de entreter o público (RODRIGUES, 2013). 
 
 O termo que os gregos usavam para máscara é “persona”: até hoje o sentido de persona, 
ligado à atuação, está preservado na palavra “personificar” ou “personificação”: personificar é 
expressar, simbolizar, representar alguma coisa: “Hitler é a personificação do mal”. A palavra 
persona, no entanto, está na raiz das palavras personalidade, personagem e pessoa. O primeiro 
a usar a palavra persona para indicar pessoa foi o filósofo romano Cícero, em seu livro Dos 
Deveres: 
Compreendemos ainda que a natureza nos atribuiu duas personagens1 
[persona]: uma, comum a todos nós, porção de razão e dignidade que nos 
eleva acima dos animais, princípio de todos os nossos deveres, e de onde 
derivam o que se chama dignidade e decência. A outra é atribuída exclusi-
vamente a cada um de nós (CÍCERO, 1999, p. 53). 
 O conceito de pessoa não corresponde à generalidade do conceito de “ser humano”, mas 
além disso acrescenta um caráter de singularidade ou individualidade: cada pessoa possui atri-
butos como a consciência, a linguagem e a estrutura anatômica que o tornam ser humano, mas 
possui além disso uma máscara ou personagem que lhe é exclusiva, única, singular e que a dis-
tingue do restante da humanidade: toda pessoa é, portanto, parte do universal [humanidade], 
mas singular em si mesma. Esse é o conceito que ainda usamos até hoje: no dicionário Houaiss, 
pessoa é “cada ser humano considerado como individualidade física e espiritual, e dotado de 
atributos como racionalidade, autoconsciência, linguagem, moralidade e capacidade para agir”. 
Cícero, portanto, ao mesmo tempo formulou o conceito – e escolheu o vocábulo – para pessoa. 
 No teatro grego havia um conjunto de atores, entre doze e quinze pessoas, que é era co-
nhecido como coro: os atores do coro falavam, se moviam e dançavam de forma uníssona, de 
onde deriva nossa palavra coral e também coreografia (coreografia pode ter dois significados: 
o primeiro seria a sequência de passos de uma dança, o outro seria um conjunto harmônico 
de movimentos). Uma das funções do coro era ser um “espectador ideal’, ou seja, reagir às 
situações da peça como se desejava que o público reagisse: nas tragédias, cheias de situações 
pesadoras, morte, luta, o coro reagia chorando, ou lamentando, de forma a levar o público a se 
compadecer do sofrimento ali representado; nas comédias, em que a reação ideal era o riso, o 
coro punha-se a rir e, assim, conduzia o público também ao riso. Até hoje em determinados 
programas televisivos usa-se uma claque, isto é, “grupo de espectadores aliciados ou combina-
dos para aplaudir ou vaiar determinado espetáculo ou intérprete” (HOUAISS) e, acrescento, 
também rir, reagir com surpresa, ou tristeza, ou revolta, diante de determinados acontecimen-
tos ou falas: ora, a ideia de claque nasceu do coro dos teatros gregos. 
 Outro recurso bastante usado pelo teatro grego é conhecido como deus ex Machina, que 
significa “deus que desce por uma máquina”: em muitas peças gregas os personagens acabavam 
chegando à situações desesperadas e aparentemente insolúveis ou irresolúveis: morreriam ou 
se perderiam de alguma forma se não acontecesse um verdadeiro milagre na história. Ora, pre-
cisamente nesse momento de grande tensão e angústia por parte dos espectadores, surgia um 
deus em resposta às preces dos personagens e do público e resolvia os conflitos presentes: esse 
deus era içado por uma espécie de guindaste e descia no centro do teatro, causando verdadeira 
comoção dos espectadores. 
Trata-se de um expediente usado no teatro trágico (...) para fazer que 
as situações desesperadas cheguem a uma solução: fazia-se descer à 
cena, por meio de uma espécie de sistema de roldanas, um deus que 
punha as coisas em seus devidos lugares, fornecendo, portanto, uma 
solução “externa” aos acontecimentos (TOSI, 2010, p. 765).
 
 O recurso “deus ex machina” foi apropriado, em segui-
da, pela literatura, pela televisão e, sobretudo pelo cinema. 
Os filmes estão cheios de situações de tensão que são re-
solvidas através do recurso a algum tipo de salvação que, 
mesmo não sendo um deus, desempenha o mesmo papel 
do “deus ex machina” desempenhava no teatro grego. 
 Os dois principais gêneros teatrais são a comédia e a tragédia. 
 Etimologicamente, tragédia vem de traigodia e significa “canto do bode” (VIAL, 2013, 
p. 371): a melhor hipótese explicativa para esse nome vem do costume de sacrificar um bode 
em homenagem à Dionísio no início das apresentações teatrais de caráter desventuroso, o que 
provocou uma associação com o canto do bode prestes ser sacrificado (GRIMAL, 2008, p. 28). 
As peças trágicas sempreterminavam de maneira funesta, com a morte ou com a perdição dos 
seus protagonistas. O termo acabou se tornando sinônimo de “ocorrência ou acontecimento 
funesto que desperta piedade ou horror; catástrofe, desgraça” (HOUAISS). 
 O outro gênero teatral mais conhecido é, evidentemente, a comédia: o termo comédia 
“surgiu das canções alegres e das brincadeiras do kômos, procissão popular em honra a Dio-
niso” (VIAL, 2013, p. 109). Era uma espécie de cortejo carnavalesco que passava de vila em 
vila levando um símbolo dionisíaco. Talvez esse cortejo findasse no teatro, com apresentações 
de peças de caráter divertido, daí a associação que gerou a comédia. Na Grécia antiga, espe-
cialmente na democrática Atenas, a comédia realizou o primeiro laço histórico com a crítica 
social e política: o teatro serviu de plataforma para criticar os vícios dos cidadãos, assim como 
para criticar os vícios dos políticos. Certamente foi a primeira aliança entre o poder da arte e a 
crítica: aliança esta seria de extrema importância na história da civilização ocidental: 
Os dramaturgos gregos também escreveram comédias. Aristófanes, o 
maior dos cômicos gregos, satiriza estadistas e intelectuais atenienses 
e censurava as políticas governamentais. Por trás do humor cortante de 
Aristófanes, havia uma seriedade implacável: ele pedia o fim da Guerra do 
Peloponeso e a reafirmação dos valores tradicionais solapados pelos sofis-
tas (FERRY, 2002, p. 72). 
 Certamente, a possibilidade de utilizar a arte para fazer crítica social, moral e política 
foi favorecida pela Democracia de Atenas: numa sociedade dominada por um tirano ou por 
aristocratas, essa crítica não seria possível e o artista pagaria um alto preço se, mesmo assim, 
ousasse fazê-la. 
 Por fim, qual seria o vínculo entre teatro e filosofia? 
 O vínculo entre filosofia e teatro está no riquíssimo repertório de metáforas que o teatro 
engendrou e que alimentou a reflexão de filósofos desde a Grécia até os tempos atuais. 
Só a título de revisão, o que é uma metáfora? Uma metáfora é semelhante a uma comparação, 
mas não lança mão do termo comparativo “como”: se uma mulher é bela, frágil, perfumada ou 
espinhosa como uma flor, podemos compará-la a uma flor: “ela é como uma flor”, “é bela como 
uma flor” (etc). Uma vez se use o termo comparativo como, temos uma comparação. Mas se 
suprirmos o termo comparativo, deixando implícita a comparação, temos uma metáfora: “ela 
é uma flor”. Uma metáfora, portanto, estabelece uma ligação implícita entre dois objetos, sem 
necessariamente deixar claro o elemento ou qualidade que os identifica. Na metáfora “ela é uma 
flor”, é fácil encontrar esses elementos, mas há metáforas bem mais complexas. 
 Ao longa da história, as metáforas teatrais tiveram uma enorme importância e papel na 
reflexão filosófica: 
A metáfora do teatro ocupa um lugar proeminente na filosofia e sua his-
tória. Isso se deve, por um lado, à multiplicidade das metáforas a ela asso-
ciadas: papel, máscaras e espectador sempre tiveram importância nos dis-
cursos antropológicos de autocompreensão do ser humano (LANGBEHN, 
2005, p. 505). 
 Os filósofos sempre usaram metáforas vindas do teatro para refletir sobre o mundo: o 
mundo é um grande palco; a vida é uma peça; as fases da vida são atos de um peça; nós somos 
atores ou personagens na vida e nas relações sociais; a vida é uma comédia; a vida é uma tragé-
dia. Todas essas metáforas foram amplamente exploradas por inumeráveis filósofos. 
Shakespeare, por exemplo, escreveu em sua peça Como quiserem que 
O mundo é um grande palco, 
E os homens e as mulheres são atores.
Têm suas entradas e saídas.
E o homem tem vários papeis na vida,
Seus atos sendo sete: grita o infante
Que soluça e vomita aos braços da ama;
Depois o colegial com sua pasta
E a cara matinal, como um lagarto
Se arrasta sem vontade à escola. O amante,
Bufando com um forno, uma balada 
Faz aos olhos da amiga. Eis o soldado, 
Com pragas e de barba arrepiada,
Zeloso de sua honra, ágil na sua luta,
A perseguir a ilusão da glória
Mesmo na boca do canhão. E agora
O juiz de vasta pança bem forrada,
Olhos severos de cerrada barba, 
Cheio de sábias leis e ocos exemplos, 
Faz seu papel. A sexta idade o muda,
Em Pantalão magrela e de chinelos,
Óculos no nariz, sacola ao lado: 
As roupas bem poupadas são um mundo
Para as canelas secas; sua voz
Possante outrora, volta à de criança
Falha e e assovia. Então, a última cena
Que põe um fim a essa vária história:
É a segunda infância, o próprio olvido,
Sem sentidos, sem olhos, sem mais nada (SHAKESPEARE, 2016, p. 846). 
 
 Arthur Schopenhauer, filósofo alemão do século XIX, muito apreciava a metáfora da 
vida como tragédia. Um leitor e admirador seu, Machado de Assis, exploraria também essa 
metáfora teatral. Por que? 
 
Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem 
e da Terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a 
imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação 
mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de to-
dos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos 
desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são 
outros, eu via tudo o que passava diante de mim, — flagelos e delícias, — 
desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e 
via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. 
Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a 
enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melan-
colia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, 
até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que 
ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente 
as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia 
alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao 
prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, cor-
ria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, 
feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro 
de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; 
e essa figura, — nada menos que a quimera da felicidade, — ou lhe fugia 
perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia 
ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão. 
(ASSIS, 2008, p. 55-56). 
 Muitos são os exemplos do que as metáforas teatrais excitaram a imaginação filosófica. 
Mas estes exemplos devem ser suficientes para mostrar que a reflexão sobre a vida e sobre o 
mundo podem partir de metáforas teatrais. 
 O teatro, produto da Grécia antiga, alimentou a cultura ocidental desde cedo com gran-
des peças, palavras, recursos e metáforas que, certamente, deixaram marcas indeléveis no nos-
so vocabulário, na nossa imaginação e na nossa cultura. 
5. Pitágoras
 Os gregos não inventaram a matemática, mas foram os primeiros a afirmar que o mundo 
físico poderia ser descrito através dela. Pitágoras, um dos primeiros filósofos gregos e também 
um importante matemático, afirmou que “tudo é número: “Pitágoras conclui que todo o cos-
mos deve ser governado por regras matemáticas. Ele dizia que o número (razões numéricas e 
axiomas matemáticos) pode ser usado para explicar a estrutura do cosmos” (BUCKINGHAM 
et al, 2011, p.28). 
 Na experiência que é considerada por alguns a primeira experiência científica da histó-
ria, Pitágoras encontrou uma evidência poderosa para sua teoria: existem relações matemáticas 
na música. 
[...] foi provavelmente por meio da experiência com uma corda dedilhada 
que Pitágoras determinou as razões dos intervalos consonantes (...). Ele 
descobriu que esses intervalos eram harmoniosos porque a relação entre 
eles era uma razão matemática precisa e simples (BUCKINGHAM et al, 
2011, p. 29). 
 Quanto mais precisa a matemática que subjaz à música, mais harmoniosaa música. Esta 
foi uma das primeiras evidências de que o mundo podia ser descrito pela matemática. Essa 
descoberta inspirou a busca dos gregos por outros padrões matemáticos ocultos na realidade e 
nas coisas belas. E eles, inspirados por Pitágoras, encontraram.
 Por exemplo: por que achamos belas as coisas simétricas? 
 O Dicionário de língua portuguesa Houaiss (2009) define simetria como a “conformida-
de [isto é, semelhança], em medida, forma e posição relativa, entre as partes dispostas em cada 
lado de uma linha divisória, um plano médio, um centro ou um eixo”. Poderíamos defini-la, 
para efeitos didáticos e introdutórios, de forma ainda mais simples como a semelhança entre 
metades determinadas por uma linha divisória. O conceito de simetria, por sua vez, “como 
quase todos, surgiu na Grécia antiga, justamente como uma tentativa de explicar a beleza por 
bases racionais” (LEUZINGER, 2003). 
 Os gregos perceberam que os objetos simétricos produziam em nós uma sensação agra-
dável de ordem, calma e beleza: um cemitério cujos túmulos são simétricos, como os cemité-
rios de guerra americanos, ou um conjunto habitacional cujas casas são mais ou menos simé-
tricas, ou um desfile militar onde as tropas estejam simetricamente dispostas, ou uma sala de 
aula onde as cadeiras estejam simetricamente organizadas produzem uma sensação agradável, 
calmante e reconfortante.
Não há dúvida de que adoramos simetria. Basta olhar em torno para 
con¬firmar que vivemos cercados de objetos simétricos: computadores, 
cadeiras, carros, pratos. Quando olhamos para alguém, instintivamente 
esperamos ver simetria: uma pessoa com um olho dois centímetros abaixo 
do outro seria considerada grotesca. Mesmo antes do surgimento das reli-
giões monoteístas, nas culturas do mundo inteiro ordem e simetria eram 
já relacionadas com o divino. Na iconografia religiosa, deuses e anjos são 
sempre belos, suas faces perfeitamente simétricas, enquanto demônios são 
sempre horrendos, suas faces com traços exagerados e distorcidos. Mesmo 
no nosso dia a dia, um inofensivo sinal na pele, se grande o suficiente, 
tira o equilíbrio de um rosto, tornando-o “feio”. Para [alguns] adolescentes, 
uma espinha pode causar surtos de desespero. Verrugas, então, nem se fala 
(GLEISER, 2010, p. 151; grifos nossos). 
 
 A assimetria produz, por sua vez, sensações estéticas e respostas emocionais opostas: 
inquietação, movimento e, em casos limítrofes, até mesmo medo e angústia. 
 Os gregos não apenas perceberam que a simetria está inconscientemente ligada à beleza. 
Os gregos descobriram que a simetria tem uma relação com a matemática: existe uma matemá-
tica oculta na simetria, assim como existe uma matemática oculta na música. Eles descobriram, 
inclusive, que existe uma fórmula matemática na simetria e batizaram-na de “proporção áurea” 
[isto é, de “ouro”], cujo resultado é o número 1,618, chamado de PHI, em homenagem ao ar-
quiteto grego Phideas, que criou o Parthernon, um simétrico templo grego dedicado à deusa 
Atenas.
Os gregos não eram dados a muito subjetividade – eles gostavam de achar 
que havia lógica por trás de tudo. Por isso, conceberam a ideia de propor-
ção áurea, uma relação matemática segundo a qual a divisão da medida do 
pedaço maior pelo pedaço menor de uma linha é igual à divisão da linha 
inteira pelo pedaço maior. E procuravam por essa proporção mágica em 
tudo, inclusive em seres humanos. Essa noção de harmonia, de equilíbrio, 
de proporção – de simetria – foi perseguida ao longo dos séculos no Oci-
dente todo, altamente influenciado pelos gregos (LEUZINGER, 2003).
 Foi, porém, somente com o surgimento da ciência moderna, a partir do século XVI, que 
a ideia de Pitágoras de um universo matematicamente ordenado foi amplamente utilizada para 
descrever os mais diversos fenômenos da natureza. 
 A física moderna, que surge com Galileu e chega ao seu ápice com Isaac Newton, tem 
como base a ideia de aplicar a matemática para descrever os eventos físicos. Galileu escreve 
que o universo é como um livro que não se pode “compreender antes de entender a língua e 
conhecer os caracteres com os quais está escrito. [E] Ele está escrito em língua matemática, os 
caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas...” (GALILEU, 2004, p. 
46). E, paralela a esta afirmação, muitos físicos afirmam que, se Deus existe, ele “é matemático”, 
pois nenhuma ferramenta é tão eficaz quanto a matemática para descrever as regularidades da 
natureza, da música ao movimento das estrelas e aos átomos.
6. Heráclito e Parmênides
 Heráclito foi apelidado, desde a antiguidade, de “o obscuro”, por exprimir suas ideias 
filosóficas de maneira hermética, misteriosa, quase como charadas. Sempre era representado 
chorando, e suspeita-se que sofresse da doença que os gregos chamavam de melancolia (e hoje 
chamamos de depressão).
 A principal ideia de Heráclito é a proposição de que o Universo está em perpétuo movi-
mento, em perpétuo fluxo: tudo flui, ou panta rei (em grego). 
 Essa é a única coisa certa e estável sobre a realidade: tudo muda, tudo flui: “A única coisa 
A proporção áu-
rea (à direita) e 
o templo Pha-
ternon, que foi 
criado pelo ar-
quiteto Phideas 
com base nesta 
proporção (à es-
querda)
que parmanece inalterável é a própria mudança, o movimento. A realidade, portanto, é essen-
cialmente processo (SANTOS, 2001, p. 87)”.
 É evidente que observamos o movimento e a mudança no mundo externo e em nós mes-
mos, mas também percebemos a estabilidade, a fixidez de certas coisas. Para Heráclito, porém, 
tudo está em movimento o tempo todo: a realidade pode aparentar estabilidade e fixidez, mas 
é só uma ilusão, uma aparência, pois, no fundo, as coisas estão o tempo todo em movimento, 
em fluxo, em processo de mudança. A estabilidade das coisas é uma ilusão sensorial.
Segue-se que a realidade como um todo se assemelha a um fluxo contínuo 
e que nada jamais permanece em repouso por um só momento. Com efei-
to, Heráclito sustentava que qualquer coisa, por mais estável que fosse em 
aparência, era apenas um segmento do fluxo, e que matéria de que se com-
punha nunca era a mesma em dois momentos consecutivos (BURNET, 
2006, p. 161) 
 Para expressar isso, ele usou uma imagem metafórica que ficou marcada no inconsciente 
coletivo da humanidade desde então: “Para os que entram nos mesmos rios, afluem sempre ou-
tras águas” (BORNHEIM, 1998, p. 36; p. ), [Portanto] ninguém se banha duas vezes no mesmo 
rio. 
 Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio, pois as águas estão sempre fluindo, e nós 
também: o movimento da natureza é incessante. Essa metáfora do rio foi substituída, numa 
bela canção de Lulu Santos chamada “Como uma onda”, pela metáfora das ondas do mar, mas a 
ideia de Heráclito permanece igual: “Tudo que se vê não é… Igual ao que a gente… Viu há um 
segundo… Tudo muda o tempo todo… No mundo”.
 A ideia de Heráclito encontra oposição frontal no pensamento de um filósofo chamado 
Parmênides, da cidade de Eleia.
 A ideia principal de Parmênides está expressa numa frase muito lógica e, no entanto, 
aparentemente obscura, que diz: “O ser é não pode não ser, e não ser não é não pode ser de 
modo algum” (BORNHEIM, 1998, p. 54). 
 Essa ideia é considerada como a primeira formulação de dois princípios básicos da lógi-
ca, o princípio de identidade e o princípio da não-contradição. 
Em vista dessa formulação, Parmênides é considerado o primeiro filósofo 
a expor o princípio da identidade (A = A) e de não contradição (se A=A, 
é impossível, ao mesmo tempo e na mesma relação, A=não A), cuja argu-
mentação seria depois mais bem desenvolvida por Aristóteles (COTRIM e 
FERNANDES, 2013, p. 211).
 Antes de tentarmos explicar a famosa frase de Parmênides, falemos um pouco de lógica.
A lógica é uma área da filosofia que busca entender a estrutura formal do pensamento. Seu in-
teresse não incide sobre o conteúdo de uma proposição, mas sobre a forma ou estrutura dessa 
proposição. Tomemos um exemplo:
 Todo homem é mortal,
 Sócratesé homem, 
 Logo, Sócrates é mortal.
 
 Para deixar claro que a lógica não está interessada no conteúdo das proposições, é inte-
ressante substituir os termos por letras:
 Todo x é y,
 B é x, 
 Logo, B é y.
 O que se coloca dentro dessas caixinhas (X, Y e B) pouco importa para a lógica, desde 
que obedeça as regras de pensamento. 
 Todo homem é imortal,
 Sócrates é homem, 
 Logo, Sócrates é imortal.
 Essa sequência de pensamento não corresponde à realidade, pois sabemos que os ho-
mens não são imortais. Mas ela é logicamente válida, pois respeita as regras de dedução. Para a 
lógica, o importante é que se respeite as regras de pensamento: a lógica se interessa pelo válido 
mais do que pelo verdadeiro. Ela só quer saber da estrutura do pensamento: a forma da caixa e 
não o seu conteúdo.
 A filosofia e a ciência, por sua vez, precisam de ambos, se interessam por ambos: pelo 
que é lógico e pelo que é verdadeiro, pela forma da caixa e pelo conteúdo da caixa. Não adianta 
dizer algo logicamente válido, mas que não corresponde aos fatos do mundo real; por outro 
lado, é impossível afirmar algo que seja verdadeiro, se este algo não obedecer aos princípios da 
lógica. Por qual razão? Porque precisamos da lógica para diferenciar o que é verdade e o que 
é mentira. Se é verdade que João estava, às 21 horas, na sala de aula estudando, não pode ser 
simultaneamente verdade que ele estivesse fora da sala de aula, num bar com os amigos, no 
mesmo momento. Se é A é verdade, não-A não pode ser simultaneamente verdadeiro. 
 Nem tudo que é lógico é verdadeiro, mas tudo que é verdadeiro é lógico. 
 Nem tudo que é lógico é verdadeiro: “Todo osso (x) é de adamantium (Y); A clavícula 
(B) é um osso (X); Logo, a Clavícula (B) é de adamantium (Y). Poderíamos colocar qualquer 
coisa nessas caixinhas - X, Y, B, desde que respeitasse as regras, seria lógico, seria logicamente 
válido. Para determinar se algo, além de lógico, é verdadeiro, precisamos checar a realidade, e 
isso é tarefa da ciência. Mas as afirmações da ciência precisam corresponder à realidade e tam-
bém respeitar a lógica. 
 Toda afirmação científica precisa ser lógica (respeitar as regras de pensamento) e tam-
bém verdadeira (corresponder aos fatos do mundo). 
 Voltemos à frase de Parmênides. 
 Para Parmênides, o Ser é o conjunto da realidade, a totalidade de tudo que existe; é a 
ideia mais abrangente que o ser humano consegue pensar: se algo existe, faz parte do Ser, inte-
gra o conjunto que Parmênides chama de Ser. Insistamos: o Ser é tudo que existe. 
 Digamos que o Ser (o conjunto de tudo que existe) é uma caixinha vazia da lógica. Po-
demos colocar qualquer coisa dentro dessa caixa. 
 Representaremos o Ser pela letra A.
 Diremos que o Ser (=A) é uma grande bola de massa de modelar azul, única e exclusiva-
mente azul. 
 Não importa quanto tempo você misture a massa, ela continuará sendo azul. Não impor-
ta que objetos você crie com essa massa de modelar, eles serão de massa de modelar azul. 
 Nenhuma outra cor pode surgir de 
uma massa de modelar que era única, ex-
clusivamente, totalmente azul. Em resu-
mo, A =A.
 Se o Ser (= A) - isto é, tudo que 
existe - é uma massa de modelar azul, 
como poderia, desta bola de massa mo-
delar exclusivamente azul, surgir outras 
cores? 
 Seria como dizer que A=A e, ao 
mesmo tempo, que A=não A. Seria pecar 
por contradição.
 De novo: digamos que o Ser (o 
conjunto de tudo que existe) é uma caixi-
nha vazia da lógica.
 Podemos colocar qualquer coisa 
dentro da caixinha, desde que obedeça as regras da lógica.
 Digamos que o Ser (= A) - isto é, tudo que existe - são os átomos do universo. Ora, se os 
átomos são tudo que existe, como poderia surgir dos átomos uma coisa que não fosse átomos? 
Como A poderia ser diferente de A, se A é tudo que existe? 
 Lavoisier, o pai da química moderna, expressou o princípio da conservação da massa da 
seguinte forma: “na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. 
 Numa reação química em ambiente fechado, a massa total antes da reação será igual a 
massa total depois da reação. Nenhuma massa é destruída, e tampouco criada. Apenas muda 
de forma. 
 O Princípio da Conservação da Massa obedece ao princípio da Identidade de Parmêni-
des. 
 Sendo o Ser tudo que existe, Parmênides apenas diz que o que existe existirá sempre, e 
que nada surgirá que já não exista, que já não esteja dentro do ser; tampouco nada desaparece-
rá. Nada se cria, nada se perde. 
 O Ser de Parmênides, portanto, é eterno e indestrutível, dentre outros atributos. 
 Parmênides, porém, chega a uma conclusão oposta a de Lavoisier: se nada (em absoluto) 
se cria, se nada (em absoluto) se perde, então nada (em absoluto) se transforma. 
 Para Parmênides, a sensação que temos de um mundo em perpétua mudança é uma 
ilusão sensorial. O mundo está parado, pois nada se cria de novo no Universo (nada surge de 
novo no Universo que já não estivesse ali desde sempre e para sempre). A = A.
7. Demócrito
 Demócrito foi representado na tradição filosófica sempre rindo, sempre garganhando, 
em oposição à Heráclito, o obscuro, que sempre foi representado chorando.
 Por que ria Demócrito?
 Demócrito se afastou da sua cidade, Abdera, e passou a viver em solidão, sendo obser-
vado sempre rindo. Os habitantes de sua cidade começaram a especular que ele tivesse ficado 
louco, que estivesse tomado de melancolia, doença que hoje chamamos de depressão.
 Os abderitas solicitam que Hipócrates, o grande médico (conclamado como o pai da 
medicina) faça uma visita diagnóstica a Demócrito, e têm seu desejo atendido.
(…) Hipócrates está decidido a ir examinar o pretenso doente, em pes-
soa. Deve esse favor a um homem expecional, a uma “obra da natureza”. 
Não aceita nenhuma remuneração. Só tem o desejo de olhar, de escutar, 
de escutar aquele que se imagina estar doente, e, assim, chegar ao saber - à 
prognosis - que legitimará a decisão sobre um eventual tratamento… A 
conversa do médico e do filósofo é narrada por Hipócrates numa carta 
famosa conhecida pelo nome de “Carta a Damageta”. 
Tendo ido para observar, Hipócrates descobre, numa solidão à sombra, 
um homem estudioso, que lê, medita, observa as entranhas de animais 
inteiramente abertos. Demócrito o faz saber que disseca os animais para 
descobrir o núcleo da bile e melhor compreender as causas da loucura. 
Portanto, a solidão de Demócrito é perfeitamente justificada: não é a do 
homem atormentado por um humor corrompido, mas a do sábio que pro-
cura as causas ocultas e que empreendeu reconhecer, com os seus próprios 
olhos, a natureza e a situação da bile. Domina assim, do alto de todo um 
conhecimento preciso e objetivo, aqueles que duvidaram da sua saúde e 
do seu espírito. Sabe que a saúde e a doença são uma questão de justa pro-
porção humoral. Os outros não desconfiam de nada, e é loucamente que o 
declaram louco. Quanto ao seu riso, Demócrito o explica por argumentos 
que o médico estimará plenamente convincentes. É a universal loucura que 
provoca a sua hilariedade: “Eu só rio de um só objeto, o homem cheio de 
desatino, vazio de obras corretas, pueril em seus desígnios, e sofrendo, sem 
nenhum utilidade, de imensos labores…”. Segue-se, em estilo de diatribe, 
a série virtualmente infinita dos absurdos do comportamento humano. 
Num longo discurso, Demócrito exibe o seu espetáculo, como se tivesse 
prazer em descrever os excessos que ocupam a cena inteira do mundo. 
(…) Rir, para o filósofo, é a única resposta a dar à universal transgressão 
dos limites de que ele é testemunha. Os homens são incapazes de verificar a 
sua própria loucura e de rirem dela. O filósofo, de seu lado, não é exceção; 
olha para si mesmo e acusa-se: “Não vês que também tenho minha parte 
de loucura? Eu, que procuro a sua causa, e que mato e abro animais; mas é 
no homem que se devia procurá-la”.(..) 
Árbirto imparcial, Hipócrates sabe agora quem é louco: os abderitas, não 
Demócrito. E reportando o seu julgamento sobre a sua própria relação 
com o pseudodoente de quem devia

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