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TEORIAS DA HISTÓRIA CAPÍTULO 3 - A ESCOLA DOS ANNALES: UMA REVOLUÇÃO FRANCESA NA HISTORIOGRAFIA? Breno Mendes INICIAR Introdução Neste capítulo você refletirá sobre as contribuições teórico-metodológicas de um importante movimento na história da historiografia contemporânea: a Escola dos Annales. Nas páginas seguintes buscaremos compreender as seguintes questões: a Escola dos Annales pode ser considerada como uma revolução no campo da historiografia? Qual o paradigma básico da Escola dos Annales? Entre as diversas fases dos Annales há continuidade ou ruptura? Quais as relações que existem entre história e memória? Em busca de respostas para estes questionamentos, faremos um panorama sobre as três primeiras gerações dos Annales, buscando compreender quais foram suas principais contribuições para a Teoria da História. Antes de nos determos em cada uma das fases dos Annales, é necessário fazer uma reflexão sobre o uso do termo “escola” no campo historiográfico. Em historiografia, o termo “escola” não se refere, literalmente, a um prédio ou a uma instituição de ensino, mas a um grupo com uma certa identificação quanto a princípios teóricos. Portanto, a Escola dos Annales é um termo que se aplica a um grupo de historiadores que, apesar das diferenças entre si, guardam semelhanças teóricas, metodológicas, éticas e políticas. Por fim, cabe mencionar que ao mesmo tempo que o uso do termo “escola” permitiu a inclusão de diversos historiadores em um mesmo grupo, ele também gerou exclusão em relação àqueles que não se alinhavam a determinada orientação (BARROS, 2011). 3.1 A primeira geração dos Annales: influência na historiografia O que chamamos de “Escola” dos Annales, trata-se de um grupo de intelectuais franceses, sob forte influência das ciências sociais, que publicavam suas pesquisas na revista Annales d’ Histoire Economique et sociale (Anais de História Econômica e Social) fundada em 1929 por Lucien Febvre (1878-1956) e Marc Bloch (1886-1944). Ao longo do tempo o periódico dos Annales mudou de nome algumas vezes, expressando, inclusive, as mudanças na orientação teórico-metodológica do grupo, como você pode ver no quadro a seguir: A partir da década de 1920, a aproximação entre história e ciências sociais foi ficando cada vez mais intensa na França, sobretudo, sob a chancela da sociologia durkheimiana. É importante termos em mente, o contexto histórico desse período pós-primeira guerra mundial, no qual havia um clima de instabilidade e questionamento do papel da ciência diante dos problemas da realidade (DELACROIX; DOSSE; GARCIA, 2012). De acordo com o estudioso brasileiro José Carlos Reis (2000), a primeira geração dos Annales se notabilizou pelas críticas à historiografia do século XIX. Logo, podemos sintetizar os combates dos pioneiros da nouvelle histoire (nova história), a partir da tentativa de rompimento com algumas práticas da chamada “História tradicional”, dentre as quais destacamos: (a) abandono do pressuposto da história produzida pelo sujeito através do Estado- Nação; (b) recusa da história política; (c) desvalorização da forma narrativa do discurso histórico; (d) abandono do pressuposto do tempo histórico como um fenômeno cronológico, linear, irreversível e evolutivo. No entanto, antes de prosseguirmos é muito importante fazermos uma reflexão sobre a pretensa inovação da Escola dos Annales. Sem dúvida, este desejo foi central na construção de uma identidade intelectual para o grupo. A busca por um lugar de legitimidade na universidade francesa, alcançando postos de destaque em Paris, motivou Febvre e Bloch a se apresentaram como os portadores de uma radical inovação historiográfica (DELACROIX; DOSSE; GARCIA, 2012). O objetivo deste projeto é legitimar a pretensa “revolução” dos Annales frente ao “Antigo Regime” historiográfico. Um bom exemplo disso é a leitura do historiador inglês Quadro 1 - Os títulos da revista da Escola dos Annales. Fonte: elaborado pelo autor, 2017. Deslize sobre a imagem para Zoom Peter Burke para quem “Lucien Febvre e Marc Bloch foram os líderes do que pode ser denominado Revolução Francesa da Historiografia” (BURKE, 1997, p. 17). Entretanto, estudos recentes têm mostrado que essa interpretação que destaca apenas as inovações dos Annales deve ser problematizada, pois não houve um rompimento total com aspectos da historiografia dita tradicional. Por exemplo, os Annales compartilham com a história metódica do século XIX a recusa às filosofias da história que buscavam um sentido último para os acontecimentos (MASTROGREGORI, 2011). Marc Leopold Benjamin Bloch foi um dos historiadores franceses mais importantes do século XX. Fundador da Escola dos Annales, juntamente com Lucien Febvre. Participou ativamente da resistência francesa contra a invasão nazista. Em virtude de sua ascendência judaica foi preso, torturado e morto por fuzilamento em 1944. Enquanto estava cativo escreveu Apologia da história, obra inacabada que começava com seguinte frase: “Papai, então me explica para que serve a história?” Os fundadores dos Annales, Febvre e Bloch não eram muito inclinados a teorizações e abstrações filosóficas sobre a história. Aliás, logo no primeiro editorial da revista isso fica bem claro quando os editores afirmam que sua proposta de renovação para a história seria construída “não com artigos de método, dissertações teóricas. Mas pelo exemplo e pelo fato” (FEBVRE; BLOCH, 1929, p. 2). Em virtude disso, não existe nesses historiadores uma teoria sistemática da historiografia. Entretanto, uma leitura de suas pesquisas e textos mais metodológicos nos permite captar algumas de suas teorizações sobre a história. Nesse sentido, destacam-se algumas reflexões de Bloch em Apologia da História. Neste livro, escrito enquanto o autor estava aprisionado pelos nazistas, a história é definida não como a ciência do passado, mas como a ciência dos homens no tempo (BLOCH, 2001). Mas qual a diferença entre as duas concepções? Para responder a essa pergunta, Bloch usa uma sugestiva metáfora: “o bom historiador se parece com o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está a sua caça” (BLOCH, 2001, p. 54). Isso significa que o historiador não está VOCÊ O CONHECE? preso ao passado, mas ao percurso humano no tempo, ao diálogo entre o presente e o passado. No que diz respeito ao tempo histórico, os historiadores da primeira geração dos Annales legaram uma importante contribuição para o chamado método retrospectivo: a dialética presente/passado. Tal procedimento consiste, primeiramente, em uma crítica àquilo que Bloch denominou como “ídolo das origens”. Isto é, a explicação do mais próximo pelo mais antigo, numa via de mão única em que o passado explica o presente. Desse modo, as origens aparecem como um começo que explica todo o desenrolar do processo histórico. No entanto, segundo Bloch, não basta conhecer a origem para compreendermos o presente. A proposta contida em A apologia da história, é a de um método retrospectivo em que o historiador vai do presente ao passado e do passado ao presente. Por um lado, o passado explica o presente, na medida em que as estruturas sociais e mentais tendem a moldar a ação no presente. Por outro lado, o presente não é explicado totalmente pelo passado, pois há um espaço para a iniciativa e uma propensão a criação de um futuro. Em poucas palavras, de acordo com o método retrospectivo, o passado não é compreensível a menos que o historiador se dirija até ele com uma problematização suscitada pelo presente (BLOCH, 2011; REIS, 2000). Ainda em relação ao tempo histórico existe um perigo que sempre ronda o ofício do historiador e foi denunciado intensamente por Febvre: o anacronismo. O fundador da Escola dos Annales, enfrentou esse problema em sua análise sobre o problema da incredulidade no século XVI. Nesta célebre estudo, Febvre buscou responder a seguinte pergunta: François Rabelais, ilustre escritor do século XVI, era ateu? Esta questão, aparentemente simples, se torna mais complexa se levarmos em conta que, apesar dasduras críticas dirigidas por Rabelais à religião, na sua época o conceito de “ateísmo” ainda não existia. Ao refletir sobre este ‘problema’, Febvre, adverte que o historiador deve estar em guarda contra o anacronismo: “O problema é de estabelecer com exatidão a série de precauções a tomar, das prescrições a observar para evitar o pecado dos pecados – o pecado entre todos imperdoável: o anacronismo” (FEBVRE, 2009, p. 33). Em poucas palavras, o anacronismo é definido como um erro de cronologia que consiste em atribuir a uma época ou a um personagem histórico, ideias e sentimentos que são de outro período histórico. Embora, o historiador jamais consiga reconstruir o passado exatamente como ele se passou, precisa estar atento para diminuir ao máximo, o grau de anacronismo em suas análises. Outro ponto importante do programa da primeira geração da Escola dos Annales, é a proposta de uma história problema. Na verdade, esta proposta consiste em uma crítica ao caráter narrativo da história tradicional. A estrutura narrativa que está sendo atacada por Febvre e Bloch é o relato linear, objetivista e factual, que privilegia os grandes atores políticos. A história-problema não tem a narração de um enredo com ponto de partida, mas a delimitação de um “problema de pesquisa”. Segundo Febvre “sem problemas não há histórias, mas narrações, compilações” (FEBVRE apud REIS, 2000, p. 75). Portanto, a história-problema não visa narrar os fatos históricos ‘tal como se passaram’, mas procura construir um objeto de estudo no passado a partir de uma interrogação do presente. O problema de pesquisa elaborado pelo historiador será o fio condutor na seleção de documentos e construção de hipóteses. Para encerrarmos o tópico, abordaremos outra proposição dos Annales que fez bastante sucesso entre os historiadores. Na prática, a proposta de um novo conceito de fonte histórica, significou a ampliação do arquivo do historiador. Ou seja, o repertório de fontes históricas não deveria se limitar ao documento escrito e oficial. Pelo contrário, o historiador, assim como o ogro da lenda de Bloch, pode utilizar todo vestígio que registra a passagem do homem no tempo. Assim, além Figura 1 - Os combates e propostas da Escola dos Annales. Fonte: Elaborado pelo autor, 2018. Deslize sobre a imagem para Zoom do texto escrito, o pesquisador pode utilizar iconografia, estatísticas, materiais arqueológicos e elementos da cultura material. Vejamos como Febvre expressa essa ideia em seu livro Combates pela história: Faz-se a história com documentos escritos, sem dúvida. Quando eles existem. Ela porém pode ser feita, deve ser feita, sem documentos escritos se eles não existirem. Com tudo que a engenhosidade do historiador pode permitir-lhe utilizar para fabricar o seu mel, na falta das flores habituais. Portanto, com palavras. Signos. Paisagens e telhas. Formas de campos e ervas daninhas. Eclipses da lua e cangas. Perícia de pedras executadas por geólogos e análises de espadas de metal por químicos. Numa palavra, com tudo o que, sendo do homem, depende do homem, serve ao homem, exprime o homem, significa a presença, a atividade, os gostos e jeitos do ser do homem. (FEBVRE, s/d, p. 249). Marc Bloch e Lucien Febvre foram muito influentes na primeira geração dos Annales, sendo considerados, ainda hoje, como seus “pais fundadores”. Entretanto, após a segunda guerra mundial, este grupo de historiadores passou por notáveis mudanças, que estudaremos no próximo tópico. 3.2 A segunda geração dos Annales: Fernand Braudel e a longa duração No contexto pós-segunda guerra mundial, o grupo ligado aos Annales conseguiu gradativamente, se consolidar na cena intelectual francesa. O governo francês estava preocupado em reconstruir o país de forma eficaz e racional após o conflito, e as ciências sociais poderiam ajudar neste processo, sobretudo, fornecendo estudos que pudessem auxiliar no projeto de crescimento econômico (DELACROIX; DOSSE; GARCIA, 2012). A segunda geração do grupo, sob a liderança de Fernand Braudel (1902-1985), vivenciou o período em que os Annales se consolidaram como uma importante referência na historiografia contemporânea. Um sinal revelador do fortalecimento institucional, foi o recebimento de recursos fornecidos pela fundação Rockfeller e pela fundação Ford. A partir de 1946, a revisa passou a se chamar Annales: economies, societés, civilisations (Anais: economia, sociedade e civilização). O foco das pesquisas concentrou-se, principalmente, em análises de cunho econômico e demográfico (REIS, 2000; DELACROIX; DOSSE; GARCIA, 2012). Na segunda geração dos Annales, entre os anos de 1946 e 1968, houve um predomínio do quantitativismo. Isto é, podemos observar diversas pesquisas de história estrutural, serial e quantitativa. As duas principais tendências eram a geo- história, cujo maior representante será Braudel e a história econômica encabeçada por Labrousse. Os historiadores passaram a empregar métodos de quantificação e processamento de dados, para trabalhar uma volumosa série documental. Tabelas de estatísticas, índices econômicos, análises demográficas e gráficos com curvas de preço, tornaram-se cada vez mais frequentes nas pesquisas históricas. Desta forma, houve uma euforia com o “respaldo científico” conferido pelo método quantitativo, porém, como ressalta José Carlos Reis, “Não se dava muita importância aos inconvenientes desse excesso de números e gráficos, isto é, a quantificação deixa de lado importantes setores da história e importantes épocas da história, aquelas que não oferecem uma documentação estatística” (REIS, 2000, p. 108). VOCÊ SABIA? O termo história serial foi um termo criado pelo historiador Pierre Chaunu em 1960. Braudel se apropriou rapidamente do termo história serial, para se referir às tendências de longa duração. A história serial se caracteriza pelo estudo de continuidades e descontinuidades no interior de uma série de dados como, por exemplo, preços de cereais, data das safras de vinho, nascimentos anuais, dentre outros. Para saber mais, leia: BURKE, P. A escola dos Annales 1929-1989. A revolução francesa da historiografia. São Paulo: Editora Unesp, 1997. Sem dúvida, uma das principais marcas do paradigma da Escola dos Annales foi a interdisciplinaridade. Ao mesmo tempo em que estes historiadores buscavam o afastamento das filosofias da história, eles defendiam uma profunda interação com o método das ciências sociais. O objeto de estudo da história seria o mesmo das ciências sociais: o homem e suas relações sociais. Logo, deveria haver um intercâmbio de conceitos, técnicas, problemas e hipóteses entre as disciplinas. Num primeiro momento, a nouvelle histoire dialogou, principalmente, com a economia, a sociologia e a geografia. Posteriormente, o intercâmbio foi ampliado abarcando também a demografia, psicologia e antropologia. VOCÊ SABIA? A Escola dos Annales é um dos paradigmas historiográficos mais influentes na academia brasileira. Quando era recém-formado, entre os anos de 1935 e 1937, o historiador Fernand Braudel participou da chamada “missão francesa” de intelectuais enviados ao Brasil para auxiliar na criação da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Para saber mais, leia: MARTINEZ, P. H. Fernand Braudel e a primeira geração de historiadores universitários da UPS (1935-1956): notas para estudo. Revista de História, n. 146, 2002, p.11-27. Um dos grandes legados deixados por Braudel para a historiografia foi sua reflexão sobre o tempo histórico. No prefácio de sua obra magna, que contava com cerca de mil e duzentas páginas, O mediterrâneo e o mundo mediterrâneo à época de Filipe II (1949), o historiador francês expôs sua tese sobre o escalonamento das durações e a pluralidade do tempo social. Braudel dividiu seu livro em três partes sendo que cada um deles estava inserido em uma escala de duração temporal distinta. O primeiro nível é formado por uma “História quase-imóvel”. É a história dos homens em sua relação com o meio que o cerca, com o espaçogeográfico. Nesta história a temporalidade é muitíssimo lenta, as transformações demoram muito a acontecer. Segundo Braudel, o que orienta essa primeira parte da obra é a geografia, mas uma geografia que está atenta aos dados humanos. O segundo nível é a história dos grupos, das economias, dos Estados, das sociedades e das civilizações. Na concepção braudeliana de história, este nível mais profundo interfere e molda o nível mais superficial, o nível dos eventos e das batalhas. O terceiro é o nível da História dos acontecimentos. É uma história da “agitação de superfície”, uma história com oscilações (acontecimentos) breves, rápidas e nervosas. “Assim, chegamos a uma decomposição da história em planos escalonados. Ou se quisermos, à distinção, no tempo da história, de um tempo geográfico, de um tempo social, de um tempo individual (BRAUDEL, 2014, p. 15). Como dissemos, uma das principais propostas teórico-metodológicas dos Annales era a interdisciplinaridade com as ciências sociais. Contudo, nem sempre o relacionamento da história com as ciências sociais aconteceu de modo pacífico e cooperativo. Já nos anos 1930, quando Braudel e o antropólogo Lévi-Strauss conviveram na Faculdade de Filosofia da USP, podemos perceber um clima de rivalidade e confrontação teórica. Cada um deles buscava defender a superioridade da sua própria disciplina (DOSSE, 2001). Quando ambos estavam de volta à cena francesa, na década de 1950, protagonizaram uma polêmica acerca do tempo histórico. Lévi-Strauss defendia a antropologia estrutural como a disciplina mais legítima das ciências sociais, pois superaria a divisão clássica entre ciências naturais e ciências humanas. Ele criticava a história afirmando que esta era uma disciplina muito factual, presa à cronologia e a mera descrição da sucessão dos acontecimentos. Consciente das críticas que os historiadores lhe dirigiram, Lévi- Strauss buscou se defender dizendo: “temos sido por vezes acusado de ser fechado à história, e de lhe conferir um lugar menor em nossos trabalhos. Quase não a praticamos, mas fazemos questão de lhe preservar os direitos” (LÉVI- STRAUSS, 1970, p. 58). As críticas de Lévi-Strauss explicam-se, em certa medida, pela filiação deste antropólogo ao estruturalismo, importante corrente de pensamento que vigorou, principalmente, entre os anos 1950 e 1970. Em linhas gerais, o estruturalismo procurava analisar as grandes regularidades das relações sociais, as estruturas. A antropologia estrutural de Lévi-Strauss buscava investigar estas permanências que muitas vezes estão em uma temporalidade tão longa que parecem fora da história: “Para além da diversidade empírica das sociedades humanas, a análise Figura 2 - Mapa conceitual sobre a escala das durações temporais segundo Braudel. Fonte: Elaborado pelo autor, 2018. Deslize sobre a imagem para Zoom etnográfica pretende atingir invariantes” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 289). A estrutura é algo quase-imóvel. O principal exemplo de estrutura encontrado nas pesquisas de Lévi-Strauss, é a proibição ao incesto. Segundo ele, a interdição a casamentos entre pessoas com um certo grau de parentesco pode ser encontrada tanto em sociedades chamadas de “primitivas”, quanto em sociedades modernas. Em resposta ao ataque de Lévi-Strauss, Braudel afirma, no artigo “História e ciências sociais: a longa duração” (1958), que alguns cientistas sociais pareciam estar desinformados acerca da história, uma vez que se referiam a ela com base em métodos que desde os finais dos anos 1920 não eram mais usuais em virtude da ascensão dos Annales. As outras ciências sociais estão muito mal informadas, e a tendência delas é desconhecer, ao mesmo tempo, os trabalhos dos historiadores e um aspecto da realidade social do qual a história é uma boa serva, quando não mesmo sempre uma hábil vendedora: essa duração social, esses tempos múltiplos e contraditórios da vida dos homens que não são apenas a substância do passado, mas também o estofo da vida atual” (BRAUDEL, 2011, p. 89). Se a história tradicional trabalhava, somente, com um tempo breve ligado aos acontecimentos e indivíduos, Braudel ressalta que a nova história social e econômica, a história dos Annales, trabalha, além do tempo curto, com o tempo semi-longo da conjuntura e o tempo longo da estrutura. Se uma história factual pode se contentar com unidades de medida temporal mais curtas como os dias, meses e anos, a história econômica, para analisar curva de preços, progressões demográficas ou variação de salários, trabalha com medidas bem mais amplas como décadas e séculos (BRAUDEL, 2011). O historiador e filósofo José Carlos Reis analisou o debate entre história e antropologia na França, enfatizando como a resposta de Braudel a Lévi-Strauss foi importante para a reflexão sobre o tempo histórico. VOCÊ QUER LER? Para saber mais, leia: REIS, J. C. História da história (1950/60). História e estruturalismo: Braudel versus Lévi-Strauss, Revista de História da Historiografia, n. 1, ago. 2008. Disponível em: <https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/1 (https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/1)>. Isto é, para se contrapor às críticas de Lévi-Strauss quanto a legitimidade do conhecimento histórico, Braudel retoma o escalonamento das durações que havia proposto no prefácio de O mediterrâneo e o mundo mediterrâneo à época de Filipe II. Desta forma, ele pretende mostrar que o historiador pode trabalhar com o conceito de estrutura, mas de uma forma menos abstrata. Dizendo de outro modo, na abordagem historiográfica a estrutura não é uma constante quase fora da história, mas um fenômeno de longa duração. Por estrutura os observadores do social entendem uma organização, uma coerência, relações suficientemente fixas entre realidades e massas sociais. Para nós, historiadores, uma estrutura é sem dúvida um agregado, uma arquitetura, porém mais ainda, uma realidade que o tempo pouco deteriora e que veicula por um longo período. Certas estruturas, por perdurarem durante muito tempo, tornam-se elementos estáveis de uma infinidade de gerações (...) Outras são mais propícias a se desestruturar (BRAUDEL, 2011, p. 95). A grande particularidade do uso do termo estrutura por parte dos historiadores, é que eles não pretendem que ela se situe fora da história. Ou seja, descrever a estrutura é analisar sua história, levar em conta as mudanças internas e as crises que levaram ao seu desaparecimento. Retomando o escalonamento em três níveis, Braudel sustenta que o melhor exemplo de uma estrutura de longa duração nos estudos históricos, é o meio geográfico. Durante séculos, o homem é influenciado e determinado pelo clima e pela vegetação. Para que tais estruturas sejam alteradas é necessária uma longa duração temporal. Outro exemplo citado pelo autor é o capitalismo mercantil, uma estrutura econômica que vigorou entre os séculos XIV e XVIII com primazia dos mercadores e papel de destaque para o acúmulo de metais preciosos. https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/1 Mesmo quando procura compreender alguma estrutura “o historiador nunca sai do tempo: o tempo se cola a seu pensamento como a terra à pá do jardineiro” (BRAUDEL, 2011, p. 115). Isso significa que ele pode conjugar o tempo curto dos eventos ao tempo longo das estruturas. Para o historiador tudo começa e tudo acaba no tempo. Neste tópico, você percebeu que a defesa da interdisciplinaridade entre a história e as ciências sociais por parte dos Annales, não excluiu a possibilidade de enfrentamento e disputa entre a história e antropologia. No próximo item, você verá que na terceira geração dos Annales abriu-se para o diálogo com outros setores das ciências humanas. 3.3 A terceira geração dos Annales: a história nova e as mentalidades A partir de 1968 os Annales experimentaram profundas mudanças. Mais do que isso, o próprio cenário político e cultural francês estava profundamente agitado com a greve geral e a revolta estudantil desencadeados a partir de maio de 68.No campo historiográfico, Braudel não está mais sozinho na direção da revista dos Annales e passou a contar com a colaboração de jovens historiadores dentre os quais se destacam Jacques Le Goff, Marc Ferro e Emmanuel Le Roy Ladurie. A maioria dos estudiosos apontam que a terceira geração da história nova (nouvelle histoire) foi fortemente marcada pela fragmentação intelectual. Ou seja, se na primeira geração o centro das atenções estava em Bloch e, sobretudo, em Febvre e na segunda geração em Braudel, na terceira não há uma única figura a centralizar o poder no grupo (BURKE, 1997; DOSSE, 2003). VOCÊ SABIA? A terceira geração dos Annales foi a primeira a incluir mulheres no grupo com destaque para Arlette Farge, Mona Ozouf, Michelle Perrot e Christiane Klapisch. As duas primeiras gerações dos Annales, foram criticadas pelo movimento feminista por ter perdido a oportunidade de incorporar as mulheres à história de maneira mais significativa. Na primeira geração, houve Lucie Varga, estudiosa do fenômeno religioso, que publicou três artigos na revista dos Annales, escreveu diversas resenhas e foi professora assistente de Marc Bloch em Paris. YAMASHITA, J. G. Lucie Varga: a “desconhecida” historiadora dos Annales (Artigo). In: Café História – história feita com cliques. Publicado em: 03 Jul 2017. Disponível em: <https://www.cafehistoria.com.br/lucie-varga-e-os-annales (https://www.cafehistoria.com.br/lucie-varga-e-os-annales)>. Para François Dosse, há uma profunda descontinuidade entre a duas primeiras gerações dos Annales e a terceira. Segundo ele, a nova geração pode ser caracterizada como uma “história em migalhas”, por ser muito eclética e não buscar mais compreender a história de forma total como Bloch (a história deve investigar todo vestígio humano no tempo) ou Braudel (as três durações temporais). Dessa forma, teria havido uma traição em relação ao projeto dos fundadores do grupo. A terceira geração, teria renunciado a abordagem que buscava fazer sínteses de grandes períodos temporais, para se concentrar em objetos muito plurais. Mais do que elaborar visões globais e sínteses da história, a preocupação era ampliar o campo de atuação do historiador e multiplicar seus objetos (DOSSE, 2003; REIS, 2000). Um importante marco da terceira geração foi a obra coletiva organizada por Jacques Le Goff e Pierre Nora intitulada Fazer a história e dividida em 3 volumes: Novos problemas, Novas abordagens, Novos métodos. Logo na introdução os autores ressaltam que no espírito dessa obra é possível perceber a influência de Marc Bloch e Lucien Febvre no que diz respeito à vontade de inovação nos métodos da história. No entanto, eles advertem, “não há aqui qualquer ortodoxia, mesmo que fosse a mais aberta” (LE GOFF; NORA, 2011, p. 123). Isso significa que a terceira geração estava aberta a novos caminhos que não foram trilhados pelos fundadores dos Annales. Um setor historiográfico importante que já havia sido explorado por Bloch e Febvre, mas que ganhou protagonismo na terceira geração dos Annales, foi a “História das mentalidades”. Segundo François Dosse, os historiadores se voltaram para o estudo das estáveis estruturas mentais, como uma forma de tentar compensar o contexto de instabilidade política. “O historiador, na falta de um projeto coletivo, reflui para a pesquisa dos valores locais, do cotidiano, das permanências” (DOSSE, 2001, p. 120). Embora a noção de mentalidade muitas vezes seja empregada de forma vaga e ambígua, Le Goff destaca que ela foi um https://www.cafehistoria.com.br/lucie-varga-e-os-annales importante contraponto à história econômica. Para ele “as mentalidades arejaram a história” (LE GOFF, 2011, p. 161). A ênfase na dimensão mental, portanto, é uma reação contra Braudel, uma busca de escape a qualquer determinismo geográfico ou econômico sobre o comportamento humano (BURKE, 1997). O quantitativo cede lugar ao qualitativo. Observam-se então, nos anos 1970, um declínio dos assuntos relacionados à socioeconomia, um desinteresse relativo pelos temas demográficos da década anterior (...) Quantos artigos não apareceram, então, sobre a morte, a sexualidade, a criminalidade ou a delinquência, a sociabilidade, as faixas etárias, as algazarras, a devoção popular (...) Agora, os testamentos, especialmente, tornaram-se uma fonte para o estudo das mentalidades religiosas (ARIÈS, 2011, p. 278). A defesa da história das mentalidades significou um espaço maior para os fenômenos culturais em detrimento das análises demográficas e econômicas. Na primeira geração dos Annales o historiador que mais dialogou com a psicologia coletiva foi Lucien Febvre que buscou estudar o comportamento coletivo numa espécie de “psicologia histórica”. Peter Burke sistematiza três características para adaptação do conceito de mentalidade ao campo da história: (A) Prevalência das ideias e crenças dos grupos sobre as ideias e crenças dos indivíduos; (B) Abordagem não apenas da dimensão consciente, mas também da inconsciente; (C) Abordagem do conteúdo das crenças por meio de símbolos e metáforas e investigar as relações entre os diferentes sistemas de crenças (BURKE, 1986). Um exemplo instigante de investigação acerca da mentalidade religiosa foi empreendido por Jacque Le Goff. Em um conhecido artigo intitulado “Na idade média: tempo da igreja, tempo do mercador”, o historiador francês procurou mostrar como foi necessário acontecer uma mudança na mentalidade em relação ao tempo, para o surgimento da economia capitalista. Esta mudança aconteceu na Figura 3 - Mapa conceitual sobre a História das Mentalidades. Fonte: Elaborado pelo autor, 2018. Deslize sobre a imagem para Zoom Baixa Idade Média com o fortalecimento dos mercadores. O tempo da igreja era regulado pelo soar do sino que convocava os membros do clero para o serviço religioso e os fiéis para as cerimônias. Nesta mentalidade a unidade de medida era mais ampla, o dia era divido em intervalos de três horas. O trabalho dos camponeses também era regulado por este tempo sem muita precisão, entre o nascer e o pôr do sol. A princípio, assim como o camponês, o mercador também estava sujeito ao tempo da natureza. Porém, em virtude do aumento da circulação de moeda e o consequente crescimento no volume das transações comerciais, tornou-se necessário medidas de tempo mais precisas, simbolizados nos relógios construídos em espaços públicos. Mercadores e artífices substituem este tempo da igreja pelo tempo mais exatamente medido, utilizável para tarefas profanas e laicas, o tempo dos relógios. Na ordem do tempo, estes relógios, erguidos por toda parte, face aos sinos da igreja, são a grande revolução comunal. Tempo urbano mais complexo e refinado que o tempo simples do campo medido pelos sinos rústicos (LE GOFF, 1980, p. 53). Gradativamente, o tempo foi deixando de se referir a uma dimensão sagrada e passou a ser uma dimensão da vida humana. Na verdade, o mercador fazia uma distinção: havia o tempo da igreja, que governava suas atividades religiosas e sua expectativa de salvação eterna, mas, havia também o tempo do trabalho, que regulava suas atividades comerciais de compra e venda. Dessa forma, tornou-se possível, inclusive a prática da usura, isto é, a prática do empréstimo de dinheiro em troca de juros. Antes, quando o tempo era visto como algo estritamente divino, a Igreja cristã proibia esta prática. O tempo do mercador é mensurável, quantificável, controlável e, por isso, vendável. O tempo se tornou uma propriedade dos homens. O tempo da igreja era marcadamente agrário, ligado ao ritmo da natureza e do trabalho dos camponeses. O tempo do mercador, por sua vez, era marcadamente urbano, ligado ao ritmo das transações comerciais na cidade, mensurado pelos relógios mecânicos (LE GOFF, 1980). Segundo o historiador francês Philippe Ariès (2011), o fortalecimento dos estudos de história das mentalidades na segunda metade do século XX, está relacionado ao sucesso da psicanálise. Se a disciplina inaugurada por Freud se preocupava com o inconsciente individual,a historiografia se ocuparia do inconsciente coletivo. Mas o que seria o inconsciente coletivo? Para Ariès, o inconsciente coletivo se refere àquelas estruturas mentais não percebidas por quem vivenciou determinada época, os lugares-comuns naturalizados e não questionados. A mentalidade está no nível do cotidiano, do automático, daquilo que escapa aos sujeitos individuais. Retomando o exemplo de Le Goff podemos afirmar que, ao longo da Baixa Idade Média, as pessoas não tinham consciência clara da mudança na mentalidade em relação ao tempo. Assim, uma das funções do olhar retrospectivo do historiador seria, justamente, esclarecer e explicar os aspectos da visão de mundo que não foram percebidos por aqueles que vivenciaram os acontecimentos. No artigo BARROS, J. A. História, imaginário e mentalidades: delineamentos possíveis. Conexão. Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 6, n. 11, jan-jun, 2007, você encontra uma comparação entre os conceitos de “mentalidade” e “imaginário”. Para encerrar nosso breve olhar sobre a terceira geração dos Annales, vejamos quais foram as principais objeções lançadas contra a história das mentalidades. Depois de experimentar um grande sucesso no meio historiográfico a noção de história das mentalidades passou a ser duramente criticada. Em primeiro lugar, as críticas incidiam sobre o caráter ambíguo e pouco preciso do conceito. Em segundo lugar, quando o historiador atribui a uma sociedade uma mentalidade comum, ele corre o risco de realizar generalizações abusivas, subestimando as variações individuais de uma mentalidade (DELACROIX; DOSSE, GARCÍA, 2012). VOCÊ QUER LER? 3.4 A questão da memória na história Durante bastante tempo, a história foi vista como uma continuação da memória em sua tarefa de salvar do esquecimento os feitos humanos realizados no tempo, como dizia Heródoto, o primeiro historiador na Grécia Antiga. Porém, no início do século XX a aliança entre história e ciências sociais proposta pelos Annales, resultou na separação entre história e memória. Assim, a historiografia assumiu para si a função de criticar e desmistificar algumas construções de sentido para o passado realizadas pela memória. Os argumentos do sociólogo durkheimiano Maurice Halbwachs, ilustra bem esse olhar exterior da historiografia em relação à memória. Halbwachs era um sociólogo da escola de Durkheim, e pretendia mostrar que a memória não deve ser abordada apenas em sua dimensão psicológica e individual. Ou seja, sua proposta é uma abordagem sociológica que entenda a memória como um fato social (HALBWACHS, 1990; CATROGA, 2015; MENDES, 2016). Na perspectiva de Halbwachs, que foi muito influente sobre a historiografia francesa, mesmo as recordações mais individuais estão ligadas à memória coletiva, uma vez que, para evocar seu próprio passado, o sujeito precisa lançar mão das lembranças de outras pessoas. Nesse sentido, é importante compreendermos que na experiência vivida, a memória individual sempre coexiste, embora nem sempre de modo pacífico, com as memórias da família, dos grupos sociais, e da nação. Como todo indivíduo está inserido numa sociedade, essas recordações são transmitidas a ele durante a convivência social e informam a sua identidade (MENDES, 2016). Nesta chave de leitura, houve inúmeros esforços na historiografia francesa que buscaram fazer da memória, um dos objetos da história. A distinção entre história e memória era tão grande, que Halbwachs afirmava que a história começa onde a memória termina. Por isso, a memória deveria ser vista apenas como mais uma fonte que a história interroga de maneira crítica. CASO Fernando é professor no ensino médio em uma escola de Ouro Preto, Minas Gerais e precisa resolver um problema. Seus alunos receberam de seus ancestrais, a memória coletiva de Tiradentes como um herói nacional. Para problematizar essa concepção, Fernando trabalhou com seus alunos a diferença entre a história como ciência dos homens no tempo e a memória coletiva como uma representação dos eventos do passado, transmitida de geração em geração e que está ligada a determinados interesses políticos e sociais. Assim, Fernando procurou mostrar que o historiador não desqualifica a memória coletiva, mas a utiliza como uma fonte que deve ser analisada de maneira crítica. No caso da Inconfidência Mineira é importante salientar que o movimento defendia a independência, apenas, da província de Minas Gerais e não do país inteiro. Logo, é equivocado pensar em Tiradentes como um herói nacional. No contexto de valorização da história cultural ocorrido durante a terceira geração dos Annales, a memória foi anexada à esfera da cultura para que os historiadores pudessem analisá-la como mais um de seus objetos. A relação entre história e memória ganhou destaque a partir do conceito de lugar de memória, proposto pelo historiador francês Pierre Nora. Os lugares de memória é o título de uma grande obra coletiva publicada ao longo de 8 anos, entre 1984 e 1992 e, que contou com a participação de 130 historiadores totalizando mais de seis mil páginas. Este projeto foi um sucesso editorial e pode ser considerada como um marco nos estudos que tomam a memória como objeto da história. Mas, o que seria, afinal, um lugar de memória? Segundo Nora (1993), os lugares de memória, surgiram na modernidade, porque neste período a busca incessante pela novidade enfraqueceu nossa relação com a tradição e com o passado. O lugar de memória busca construir e reforçar uma determinada identidade coletiva, ele cria a continuidade entre o passado e o presente. O lugar de memória pode ser material ou imaterial, concreto ou abstrato e possui um grande significado simbólico (NORA, 1993). Vejamos alguns exemplos de lugar de memória. Na figura a seguir, podemos ver a Praça Sete, que é a principal praça do centro de Belo Horizonte. Seu nome original era 12 de Outubro, numa referência ao descobrimento da América. O nome foi mudado para Praça Sete de Setembro, em 1922, durante as comemorações do centenário da independência do Brasil. Assim, seu principal objetivo era reforçar a identidade nacional. É importante destacar que os Lugares de memória não surgem de forma espontânea ou natural. Eles surgem em meio a disputas pelo poder, especialmente, em momentos de crise. Nesses momentos, é muito comum que os sujeitos façam uso do passado para legitimar os seus interesses no presente. Uma das funções do historiador, é analisar criticamente as representações do passado veiculadas pelos lugares de memória. Isso significa, estar atento as relações de força em jogo na sociedade em que o lugar de memória foi instituído. Não existe nenhum lugar de memória “neutro”, que não esteja relacionado, de uma forma ou de outra a uma disputa de poder. Por exemplo, na modernidade, vários estados nacionais utilizaram os lugares de memória, para legitimar seus mitos de fundação e seus heróis nacionais. Um exemplo disso podemos perceber na imagem abaixo. A bandeira do Brasil durante o Segundo Reinado, utilizava o brasão da família real (Bragança) e buscava ligar a identidade do Brasil aos seus laços portugueses. Figura 4 - A Praça Sete é um importante lugar de memória de Belo Horizonte. Fonte: Thiago Fernandes BHZ, Shutterstock, 2018. Deslize sobre a imagem para Zoom O historiador deve reconhecer as condições históricas de produção dos lugares de memória, como suportes de relações sociais e pensar o lugar de memória como instrumento de poder. Isto é, no processo de construção dos lugares de memória, vários grupos são esquecidos e silenciados. Um bom exemplo disso é a bandeira nacional da república brasileira, como podemos ver na imagem abaixo. Criada após a Proclamação da República, a Bandeira Nacional, visa reforçar o sentimento de pertencimento à história do Brasil e ao mesmo tempo esquecer a tradição monarquista que utilizava outra bandeira. Figura 5 - A bandeira do Brasil-Império é um lugar de memória cujo objetivo era enaltecer a família real portuguesa como fundadora da nação. Fonte: Filipe Frazao,Shutterstock, 2018. Deslize sobre a imagem para Zoom A distinção entre história e memória trouxe como um importante resultado a reflexão sobre os lugares de memória. Entretanto, atualmente, a tendência predominante busca conciliar história e memória em vez de separá-las radicalmente. Uma figura de destaque, nesse sentido, é o filósofo francês Paul Ricoeur com sua obra A memória, a história, o esquecimento, publicada originalmente em 2000. Um dos objetivos de Ricoeur nesta vasta obra é propor uma dialética entre memória e história. Deste modo, ele pretendeu fugir ao dualismo típico da historiografia francesa dos Annales durante um determinado período no qual a memória aparecia como algo fluido e sentimental, ao passo que a historiografia figurava como a instância crítica e científica. Porém, sua proposta também não visa recair em uma simples complementaridade entre história e memória. Mais do que isso, na perspectiva ricoeuriana, a memória é entendida como a matriz da história. Mas o que isso significa afirmar que a memória é matriz e não objeto da história? Figura 6 - A bandeira brasileira republicana é um lugar de memória nacional. Fonte: Globe Turner, Shutterstock, 2018. Deslize sobre a imagem para Zoom A memória é matriz da história, porque ela é um dos modos como produzimos sentido para o passado. Quanto a isso, é importante destacar que antes de haver escrita da história, a memória é a nossa primeira via de representação do passado. Em nossa consciência lembramos, recordamos e também imaginamos os eventos do passado. A recordação surge com a formação de uma imagem no presente que simboliza uma experiência ausente. Portanto, a memória é mais do que um objeto de estudo da história. Ela faz parte da nossa condição humana como seres temporais e históricos (RICOEUR, 2007). Síntese Ao longo deste capítulo realizamos um panorama sobre a Escola dos Annales, importante corrente historiográfica francesa. Como vimos, estes historiadores trouxeram relevantes contribuições para a historiografia, principalmente, no que diz respeito ao tempo histórico e à noção de fonte histórica. Além disso, observamos as principais características da reflexão sobre a relação entre história e memória, um dos mais importantes debates historiográficos da atualidade. Neste capítulo, você teve a oportunidade de: entender a dialética da duração proposta por Marc Bloch e Lucien Febvre na primeira geração dos Annales; compreender como Braudel construiu sua reflexão sobre a longa duração e como ela foi importante no debate travado com Lévi-Strauss; refletir sobre as principais características da chama história das mentalidades proposta pela terceira geração dos Annales; compreender as relações entre história e memória com destaque para a categoria de lugar de memória. Referências bibliográficas ARIÈS, P. A história das mentalidades. In: NOVAIS, F.; SILVA, R. F. Nova história em perspectiva. Volume 1. São Paulo: Cosac Naify, 2011. BARROS, J. A. Teoria da História. Volume 5: A escola dos Annales e a nova história, RJ: Vozes, 2011. BLOCH, M. Apologia da história ou O ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed, 2001. BRAUDEL, F. História e ciências sociais: a longa duração. In: NOVAIS, F.; SILVA, R. F. Nova história em perspectiva. Volume 1. 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