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O estabelecimento do marco temporal para as demarcações de terras indígenas no Brasil (2)

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O estabelecimento do marco temporal para as demarcações de terras indígenas no Brasil
O direito das populações indígenas à ocupação de suas terras ancestrais é fundamental para o atingimento da justiça social, elemento imprescindível para a consecução de uma sociedade livre, justa e solidária no Brasil. Assim, é de especial interesse para a comunidade engajada neste objetivo o desfecho do julgamento do Recurso Extraordinário nº 1017365/SC, cuja repercussão geral já foi reconhecida pelo Supremo Tribunal. O processo versa sobre uma ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklãnõ, onde também vivem indígenas das etnias Guarani e Kaingang. 
No julgamento que pende, vislumbra-se a possível incidência de um marco temporal para a demarcação de territórios indígenas: somente poderiam ser demarcadas como indígenas – garantindo às populações autóctones o usufruto das terras, que são de propriedade da União – terras que estivessem ocupadas pelos indígenas no ano de 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal (CF). Dessa forma, a disputa tem potencial de originar repercussões para as políticas públicas de proteção às minorias no Brasil.
Grupos de interesse do agronegócio, vinculados à bancada ruralista do Congresso, defendem justamente essa tese, afirmando que a falta de um marco temporal claro, que conste dos processos administrativos de demarcação, pode implicar ulteriores desapropriações de terras para os produtores que labutam em áreas pretensamente indígenas. Por outro lado, alas que defendem os direitos dos povos originários postulam que a análise deve ser feita em marcos contemporâneos, ou empregando-se critérios menos rígidos, levando-se em consideração sobretudo os aspectos vinculados à tradicionalidade da ocupação. 
Argumenta-se que certas comunidades ocupavam as áreas passíveis de demarcação em períodos anteriores a 1988 (justamente na forma da ocupação tradicional), mas que muitas destas foram retiradas à força das respectivas regiões, não lá se encontrando quando da promulgação da CF. A prova da ocupação temporal, portanto, seria de difícil feitura, o que poderia inviabilizar, na prática, as demarcações.
Ainda que a equalização de desenvolvimento econômico sustentável e os direitos ancestrais dos povos originários seja um imperativo constitucional claro, o estabelecimento de um marco temporal nos moldes em apreciação é nítido retrocesso para o reconhecimento dos direitos das populações originárias, visto que as insere em uma lógica assimilacionista que pode eventualmente ceifar suas marcas culturais próprias. 
A contenda e suas possíveis repercussões diretas
Segundo sustenta a Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente – FATMA, parte no processo, apoiada pelo Parecer Normativo 001/2017 emitido pela Advocacia – Geral da União (AGU) em 20 de julho de 2017, a ausência da comunidade indígena na área no período de promulgação da Constituição Cidadã descaracteriza o enquadramento na reivindicação de terra indígena, exceto no caso de conflitos por posse que tenham persistido até 5 de outubro de 1988, no que se configuraria o efetivo marco temporal. Em seu art. 231, a Constituição Federal prevê aos indígenas o reconhecimento de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, além de determinar que competirá à União demarcar as terras que tradicionalmente ocupam, protegê-las e fazer respeitar todos os seus bens. 
No passado, o STF firmou o entendimento de que o conceito de "terras tradicionalmente ocupadas pelos índios" não abrange aquelas que eram possuídas pelos nativos no passado remoto, salvo no caso de ter se operado esbulho possessório evidente (interpretação derivada da Súmula 650 da Corte). Ademais, é estabelecido o requisito de tradicionalidade da ocupação, onde ‘tradicionalmente’ diz respeito à forma de se possuir a terra, na acepção de comunitária, de fazer parte daquele espaço, e não na forma de tê-la sob domínio próprio, nos moldes da interpretação civilista-mercantil.
A finalidade do dispositivo constitucional é nitidamente solidária, imbuindo os poderes públicos da tarefa de impedir a usurpação dos espaços que foram historicamente ocupados pelos seus possuidores originários. O Estatuto do Índio, promulgado em plena ditatura militar brasileira por meio da Lei nº 6001/73, reconhece que os indígenas possuem a posse permanente das terras em que habitam, sendo a demarcação apenas o ato de reconhecimento dessa posse (art. 25). Portanto, estabelecer um marco temporal para a realização das ações de demarcação colidiria com o espírito protetivo que consta na Carta Constitucional. 
Com a crescente dificuldade de se fazer reconhecer suas posses tradicionais, as populações indígenas estariam à mercê da sua integração à sociedade industrial. Os processos de demarcação em curso estariam sujeitos à aplicação de um novo critério, o qual, ainda, poderia eventualmente ocasionar a revisão de demarcações já concluídas – precedente perigosíssimo em um país que possui histórico de intensos conflitos fundiários, de cujas principais vítimas costumam ser os indígenas. Seria o reconhecimento, em verdade, da prevalência da lógica de assimilação dessas populações sob à ótica do “progresso” econômico, que as integra aos ditames da modernidade ao mesmo tempo em que reprime suas singularidades – um desfecho problemático para o pluralismo e a preservação das identidades dessas populações.
Há, ainda, importantes repercussões ambientais em relação à matéria. A Fundação Nacional do Índio (Funai) estima que as áreas demarcadas como territórios indígenas equivalem a uma extensão aproximada de 12,2% de todo o território nacional. Já dados do MapBiomas apontam que apenas 1,6% do desmatamento florestal ocorrido no território brasileiro nos últimos trinta anos se operou nas áreas indígenas, o que indica que as mesmas são verdadeiros santuários ecológicos quando comparadas com a predominância de atividades econômicas predatórias em áreas privadas. 
Nesta esteira, mesmo os compromissos ambientais do Brasil, tal qual os assumidos em sua Contribuição Nacionalmente Determinada sob os auspícios do Acordo de Paris (2015), revisada em 2020, poderiam ficar comprometidos caso as demarcações cessassem definitivamente – dentre as metas originalmente estipuladas estava o fim do desmatamento ilegal do bioma amazônico até 2030.
Proteção das populações indígenas, justiça social e seguridade social
Quando proferiu seu discurso na cerimônia de entrega do Prêmio Nobel da Paz de 1992, Rigoberta Menchú, guatemalteca ativista dos direitos dos povos indígenas, estabeleceu a indissociável ligação entre paz, justiça, equidade, desenvolvimento e democracia. Igualmente, a Convenção de Viena de 1993 reforçou a universalidade, a interdependência, a inter-relação e a indivisibilidade dos direitos humanos. De nada adianta o respeito formal às culturas das comunidades indígenas se o meio necessário para a sua manutenção e desenvolvimento (a garantia de um território demarcado para tanto) não lhes seja assegurado. 
Resta evidente que o atingimento dos ideais pelos quais batalhou Menchú somente se dará com o respeito à identidade e a preservação da dignidade e das culturas dos povos indígenas – meta que, por si só, já se encontra repleta de entraves e desafios. O estabelecimento do aludido marco temporal apenas agravaria a situação e seria mais uma barreira para a consecução do objetivo estabelecido no art. 2º da Constituição.

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