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2013 Pensamento FilosóFico e social no Brasil Prof. Joel Haroldo Baade Prof. Joel Cezar Bonin Copyright © UNIASSELVI 2013 Elaboração: Prof. Joel Haroldo Baade Prof. Joel Cezar Bonin Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. 101 B111p Baade, Joel Haroldo Pensamento filosófico e social no Brasil / Joel Haroldo Baade; Joel Cezar Bonin. Indaial : Uniasselvi, 2013. 270 p. : il ISBN 978-85-7830- 688-5 1. Filosofia – Teoria. I. Centro Universitário Leonardo da Vinci. III aPresentação A filosofia e a sociologia fazem parte do nosso cotidiano, embora muitas vezes, não nos damos conta disso. Por essa razão, a presente disciplina tem como proposta aproximar a reflexão filosófica e sociológica daquilo que vivemos em nosso dia a dia, para que possamos compreendê- lo melhor. Além disso, o foco desta disciplina não é tanto que você, caro(a) acadêmico(a), “decore” os conteúdos, mas que participe da reflexão e, desse modo, exercite a capacidade de pensar filosófica e sociologicamente. A trama de constituição desse Caderno de Estudos foi pensada para que a sua leitura e estudo possibilitem justamente o desenvolvimento dos objetivos traçados. Preferiu-se seguir uma ordem histórico-cronológica, pois a historicidade é própria da existência humana. Quando pensamos em nós mesmos e de quem somos, pensamo-nos como seres históricos. Por essa razão, iniciamos a reflexão com o surgimento do pensamento científico na Grécia Antiga através da filosofia. Ao longo da primeira unidade, é seguida a trajetória do pensamento filosófico até a atualidade, buscando-se identificar continuidades e rupturas em cada novo período do pensamento humano. Na segunda unidade, faz-se exercício semelhante em relação ao pensamento social, como um desdobramento e especialização do pensamento filosófico a partir do século XVIII com as Revoluções Industrial e Francesa. O pensamento social surge como necessidade de as sociedades humanas compreenderem melhor a sua existência coletiva, seja pela necessidade de organização da vida em sociedade ou como forma de denúncia das injustiças que ela possa gerar. Por fim, na terceira unidade, será analisada a construção do pensamento filosófico e social no Brasil. Por um lado, ele está na continuidade da reflexão filosófica e sociológica anterior. Mas, por outro lado, desenvolveu também as suas particularidades, conforme as necessidades da realidade brasileira. Convidamos você, caro(a) acadêmico(a), a fazer esta reflexão conosco. Bons estudos! Prof. Dr. Joel Haroldo Baade Prof. Joel Boni IV Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA V VI VII UNIDADE 1 – PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL ..... 1 TÓPICO 1 – OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS ................................................................ 3 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 3 2 A FILOSOFIA NA GRÉCIA ANTIGA .............................................................................................. 4 2.1 O SURGIMENTO DO PENSAMENTO FILOSÓFICO ............................................................... 5 2.2 OS FILÓSOFOS PRÉ-SOCRÁTICOS ............................................................................................. 8 2.3 OS SOFISTAS .................................................................................................................................... 10 2.4 SÓCRATES ........................................................................................................................................ 13 2.5 PLATÃO ............................................................................................................................................ 15 2.6 ARISTÓTELES .................................................................................................................................. 20 3 O PENSAMENTO FILOSÓFICO HELENÍSTICO ......................................................................... 24 3.1 A FILOSOFIA NA IDADE MÉDIA ............................................................................................... 25 3.2 SANTO AGOSTINHO E A PATRÍSTICA ..................................................................................... 25 3.3 TOMÁS DE AQUINO E A ESCOLÁSTICA ................................................................................. 27 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 29 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 32 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 33 TÓPICO 2 – A REVOLUÇÃO FILOSÓFICA A PARTIR DA MODERNIDADE ........................ 35 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 35 2 CONTEXTO HISTÓRICO, O SÉCULO XVI E A RENASCENÇA ............................................. 36 2.1 NICOLAU MAQUIAVEL E A FILOSOFIA POLÍTICA.............................................................. 40 2.2 FILOSOFIA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO ................................................... 44 2.2.1 Racionalismo: René Descartes............................................................................................... 45 2.2.2 Empirismo: Francis Bacon, John Locke e David Hume .................................................... 48 2.2.3 Francis Bacon ........................................................................................................................... 49 2.2.4 John Locke ............................................................................................................................... 50 2.2.5 David Hume ............................................................................................................................ 51 2.2.6 Racionalismo ou empirismo? ................................................................................................ 52 2.3 ILUMINISMO ...................................................................................................................................53 2.3.1 Immanuel Kant ....................................................................................................................... 54 2.3.2 Jean-Jacques Rousseau e Montesquieu ................................................................................ 55 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 58 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 60 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 61 TÓPICO 3 – A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA ............................................................................ 63 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 63 2 A FILOSOFIA NO SÉCULO XIX ....................................................................................................... 63 3 O IDEALISMO HEGELIANO ............................................................................................................ 64 3.1 O PENSAMENTO MATERIALISTA DE FEUERBACH ............................................................. 68 3.2 ANTECEDENTES DA CRISE DA RAZÃO .................................................................................. 69 3.3 A FILOSOFIA NO SÉCULO XX .................................................................................................... 71 sumário VIII 3.3.1 O pragmatismo ....................................................................................................................... 73 3.3.2 A fenomenologia ..................................................................................................................... 73 3.3.2.1 Edmund Husserl .................................................................................................................. 74 3.3.2.2 Martin Heidegger ................................................................................................................ 75 3.3.2.3 Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir............................................................................. 76 4 A FILOSOFIA DA LINGUAGEM ..................................................................................................... 77 4.1 JÜRGEN HABERMAS E A TEORIA DA AÇÃO COMUNICATIVA ....................................... 78 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 80 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 83 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 84 UNIDADE 2 – PENSAMENTO SOCIOLÓGICO ............................................................................. 87 TÓPICO 1 – DEFINIÇÕES E HISTÓRIA DA SOCIOLOGIA ........................................................ 89 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 89 2 A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL ......................................................................................................... 90 3 REVOLUÇÃO FRANCESA ................................................................................................................. 95 4 O ILUMINISMO ................................................................................................................................... 99 5 POSITIVISMO ....................................................................................................................................103 6 ESCOLA DE CHICAGO ....................................................................................................................108 7 ESCOLA DE FRANKFURT E A REIFICAÇÃO DO SUJEITO ...................................................111 8 A SOCIOLOGIA NA PÓS-MODERNIDADE ..............................................................................117 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................119 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................120 TÓPICO 2 – IMPORTANTES SOCIÓLOGOS E ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO SEU PENSAMENTO 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................121 2 KARL MARX .......................................................................................................................................122 3 ÉMILE DURKHEIM ...........................................................................................................................128 4 MAX WEBER .......................................................................................................................................132 5 MICHEL FOUCAULT ........................................................................................................................137 6 NORBERT ELIAS, ERWING GOFFMAN, PIERRE BOURDIEU E ZYGMUNT BAUMAN E OS PROCESSOS DE DEFINIÇÃO DO “EU” NA SOCIEDADE ...........................................142 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................152 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................153 TÓPICO 3 – TEMAS SOCIOLÓGICOS ............................................................................................155 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................155 2 PROCESSOS SOCIAIS ......................................................................................................................156 2.1 STATUS E PAPEL SOCIAL ...........................................................................................................160 2.2 ESTRUTURA E ORGANIZAÇÃO SOCIAL ..............................................................................162 2.3 INSTITUIÇÕES SOCIAIS .............................................................................................................164 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................169 3 ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL E MOBILIDADE ...........................................................................171 4 MOVIMENTOS SOCIAIS ................................................................................................................174 LEITURA COMPLEMENTAR 2 ..........................................................................................................176 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................179 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................180 IX UNIDADE 3 – PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL .....................................181 TÓPICO 1 – FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA HISTÓRIA DO BRASIL .............................. 183 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................183 2 DO PERÍODO COLONIAL ATÉ OS DIAS ATUAIS ...................................................................184 3 IMIGRAÇÃO EUROPEIA E INDUSTRIALIZAÇÃO .................................................................190 4 A REPÚBLICA VELHA ......................................................................................................................1995 A ERA VARGAS ..................................................................................................................................201 6 A DITADURA MILITAR ...................................................................................................................206 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................212 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................213 TÓPICO 2 – FILÓSOFOS E SOCIÓLOGOS BRASILEIROS DE DESTAQUE .........................215 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................215 2 EUCLIDES DA CUNHA ....................................................................................................................216 3 OLIVEIRA VIANA .............................................................................................................................221 4 SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA .............................................................................................227 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................231 5 FLORESTAN FERNANDES..............................................................................................................233 6 DARCY RIBEIRO ...............................................................................................................................238 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................242 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................243 TÓPICO 3 – QUESTÕES SOCIAIS BRASILEIRAS NA ATUALIDADE: CRIMINALIDADE, SOCIOLOGIA RURAL, MOVIMENTOS SOCIAIS, RELIGIÃO E LIBERTAÇÃO ........................................................................................245 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................245 2 CRIMINALIDADE E COMPORTAMENTO.................................................................................246 3 SOCIOLOGIA DO MEIO AMBIENTE RURAL ...........................................................................253 4 TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO .......................................................................................................256 5 MOVIMENTOS SOCIAIS NO BRASIL ........................................................................................259 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................263 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................265 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................266 REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................267 X 1 UNIDADE 1 Pensamento FilosóFico e a comPreensão Da ViDa social OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS Esta unidade tem por objetivos: • conhecer a história e o desenvolvimento do pensamento filosófico no oci- dente a partir da tradição greco-romana; • reconhecer os principais períodos da história da filosofia com os seus res- pectivos pensadores e tendências; • compreender a relação entre produção filosófica e contexto histórico. Esta unidade está dividida em três tópicos e em cada um deles você encontrará atividades visando à compreensão dos conteúdos apresentados. TÓPICO 1 – OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS TÓPICO 2 – A REVOLUÇÃO FILOSÓFICA A PARTIR DA MODERNIDADE TÓPICO 3 – A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS 1 INTRODUÇÃO Prezado(a) acadêmico(a), o pensamento filosófico tem grande importância para o pensamento social, pois ele é reflexo e aprofundamento deste. Você já estudou a história da filosofia. Contudo, é necessário retomarmos alguns aspectos do pensamento filosófico ao longo da história da humanidade para entendermos em que medida eles contribuíram para a formação do pensamento atual, especialmente o pensamento social brasileiro. No primeiro tópico deste Caderno de Estudos nós estudaremos o desenvolvimento do pensamento filosófico desde a antiguidade grega até a Idade Média. Em relação à filosofia grega, veremos que ela não surge do acaso e, tampouco, como invenção ou imaginação de algumas poucas pessoas. Mas ela surge justamente como uma maneira mais profunda de compreender e interpretar a realidade social em que a Grécia dos filósofos se encontrava. Veremos que com a perda da autonomia política da Grécia, após ela ser invadida por vários impérios, também a filosofia sofre mudanças. Gradativamente, as preocupações dos filósofos se voltam para o sobrenatural, pois neste mundo já não havia muitas perspectivas para se viver uma vida em plenitude. Esse foi o período do helenismo. Por fim, a respeito da Idade Média, veremos que a tendência do helenismo se aprofundou. A filosofia nesta fase da história será transformada em ferramenta da teologia e da igreja cristã. Os representantes principais da filosofia da Idade Média são Santo Agostinho e Tomás de Aquino. Ao final da unidade, você, prezado(a) acadêmico(a), tem uma leitura complementar sobre a lógica aristotélica, que pode ser muito útil para que possamos desenvolver uma argumentação mais consistente e coerente. UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL 4 2 A FILOSOFIA NA GRÉCIA ANTIGA A Grécia Antiga é berço da Filosofia, mas isso você já viu em outras disciplinas do curso. Portanto, não cabe aqui retomar esse discurso. Mesmo assim, vamos retomar algumas ideias da antiguidade grega, procurando relacionar a reflexão filosófica do período com a realidade social onde ela surge. Dessa forma, queremos entender como as ideias filosóficas são, por um lado, resultado do meio social onde surgem e, por outro, almejamos contemplar em que medida elas também são formadoras da realidade. O salto qualitativo que possibilitou o surgimento da filosofia foi, em boa medida, a intensificação da vida social. Nesse sentido, o surgimento das cidades, das polis gregas, foi fundamental para o advento da filosofia. Segundo Trigo (2009, p. 12): [...] o surgimento das cidades-estados gregas (pólis) [...] significou o desenvolvimento de vários aspectos significativos da cultura grega (teatro, literatura, oratória), das formas de governo, da participação do povo nas tomadas de decisão (a antiga democracia grega) e nas questões mais práticas, como agricultura, construção civil, navegação, comércio, matemática e geometria. Para ilustrar como a vida em sociedade exige dos indivíduos uma maior capacidade de articulação, é interessante fazer uma analogia com o programa Big Brother Brasil (BBB), da Rede Globo de Televisão. Enquanto os indivíduos estão vivendo de forma isolada, distantes um do outro, há pouca necessidade de esforço que possibilite a convivência. Da mesma forma, no tempo em que a vida era predominantemente rural, em que as pessoas moravam longe umas das outras, pouco precisavam se preocupar em organizar as suas vidas ao lado de outras pessoas. Contudo, quando no BBB diversas pessoas diferentes umas das outras são colocadas numa mesma casa, ou seja, quando elas repentinamente estão muito próximas umas das outras, surgem necessidades de organizar este local de convivência. Não demora e surgem os primeiros conflitos. É preciso criar leis e normas de convivência. Quando alguém desrespeitaessas leis, é preciso criar formas de punição, correção, reparação... Na Grécia antiga, quando as cidades cresceram, havia muitas pessoas ocupando um espaço físico limitado. Essa nova forma de vida humana precisava ser organizada. A grande dificuldade, por sua vez, estava no fato de que não havia precedentes, ou seja, era a primeira vez em que o ser humano se deparava com uma situação daquele tipo. TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS 5 No esforço de responder a esses novos problemas é que algumas pessoas se dispõem a pensar sobre eles. Estes primeiros pensadores e articuladores da vida social ainda não podem ser chamados de filósofos, mas contribuem de modo decisivo para uma mudança de mentalidade que viria a ser fundamental para o surgimento do filósofo. Feita esta reflexão inicial, vamos nos ocupar a seguir com alguns fatores e mudanças na organização da vida social, que propiciaram o surgimento do pensamento filosófico e que serviriam de base para a estruturação de todo o pensamento racional humano posterior. 2.1 O SURGIMENTO DO PENSAMENTO FILOSÓFICO Fundamental para o desenvolvimento do pensamento racional e filosófico foi a superação da mentalidade mítica. Segundo os mitos, a Terra era povoada por seres sobrenaturais, que habitavam os confins dos mares e os locais mais distantes do planeta. Como estes lugares longínquos ainda não haviam sido alcançados, eles representam um vazio que acaba sendo preenchido pelo imaginário humano. Ocorreu que, com o desenvolvimento da sociedade humana na Grécia, o crescimento das cidades e o avanço do comércio daí decorrente, surge a necessidade de ir cada vez mais longe em busca de produtos para atender às necessidades das populações das cidades. Quando os povos viviam predominantemente em espaços rurais, tudo aquilo que era necessário para o sustento da vida era obtido nas proximidades. Mas quando a população se torna mais numerosa, o aumento da demanda faz com que as áreas de cultivo tenham que ser cada vez maiores. Contudo, a geografia da Grécia não possibilita muita ampliação, pois ela é constituída de uma península e de várias ilhas no Mar Mediterrâneo. Observe a figura a seguir: UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL 6 FIGURA 1– MAPA DA GRÉCIA ANTIGA FONTE: Disponível em: <http://www.hipatia.com.pt/imagens_site/mapa_da_grecia_ antiga_2.jpg>. Acesso em: 20 out. 2012. E então, caro(a) acadêmico(a), o que restava aos gregos para que pudessem continuar se desenvolvendo como sociedade? Diante de tais condições, um elemento essencial é a navegação. Mas a navegação não contribuiu para o surgimento do pensamento filosófico apenas de modo indireto, na medida em que possibilita o avanço da sociedade. Ela foi fundamental, isto sim, porque as pessoas puderam navegar para locais cada vez mais distantes na Terra e, aos poucos, foram se dando conta de que as criaturas mitológicas ou a própria imagem que se tinha do mundo, transmitidas através dos mitos, não correspondiam à realidade. Em terras distantes ninguém encontrou ciclopes, serpentes marinhas, gigantes etc., apenas outras pessoas iguais ou, pelo menos, muito parecidas com elas mesmas. Nesse sentido, o desenvolvimento da navegação teve uma contribuição fundamental para o surgimento do pensamento filosófico. Um segundo elemento fundamental para o desenvolvimento do pensamento filosófico foi a invenção do calendário. Assim como a navegação surge em atendimento a necessidades bem concretas da sociedade, também o calendário visava a este propósito. Com o aumento populacional, havia necessidade de mais alimentos, levando à expansão da agricultura. TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS 7 Para satisfazer a demanda por alimentos, esta agricultura precisava ser eficaz. Ou seja, não se podia correr o risco de perder safras, pois isto poderia desencadear crises de fome e outros problemas relacionados. Era preciso, portanto, saber quais eram as melhores épocas do ano para o plantio de determinada safra e quando havia os menores riscos de perda das lavouras devido a intempéries climáticas. O calendário surge como registro dessas experiências e permite a sua aplicação nas atividades humanas posteriores. Ele contribuiu para o surgimento do pensamento filosófico, na medida em que faz ver que a prosperidade da agricultura não dependia da vontade de entidades sobrenaturais e dos deuses, mas, sim, dependia em boa medida das condições climáticas de cada época do ano. Nesse sentido, Marilena Chauí (2008, p. 37) acentua que, com o calendário, foi possível: Calcular o tempo segundo as estações do ano, as horas do dia, os fatos importantes que se repetem, revelando, com isso, uma capacidade de abstração nova ou uma percepção do tempo como algo natural e não como uma força divina incompreensível. Com o calendário foi possível observar que muitas das condições necessárias para o êxito da agricultura se repetiam, independentemente da fidelidade do povo a uma determinada divindade, de modo que a mentalidade retratada pelo mito passasse a ser posta cada vez mais em dúvida ou, no mínimo, perdesse importância. O desenvolvimento das cidades e a complexificação da vida daí decorrente ainda levaram ao desenvolvimento do comércio e ao surgimento da moeda, que visou facilitar as operações de trocas de mercadorias entre as pessoas. Quando a sociedade era constituída de um número reduzido de indivíduos, havia pouca necessidade de troca de mercadorias. As que eram realizadas geralmente ocorriam de modo direto. Ou seja, quem tinha maior quantidade de farinha do que necessitava para o próprio consumo, mas queria ter azeitonas em sua dieta, poderia procurar alguém que cultivava azeitonas e propor uma troca por alguma quantidade de farinha. A troca se concretizava pela entrega de um produto e o recebimento de outro. Contudo, quando cresceram as cidades e o número de habitantes e a própria agricultura se tornou bem mais diversificada, também se tornou mais difícil encontrar alguém que estivesse disposto a trocar farinha por azeitonas. Dependendo do produto que se procurava ou que se tinha para oferecer, as trocas poderiam ser quase impossíveis. Diante dessa necessidade, a moeda surge como possibilidade de troca, independentemente do que se procura de mercadoria. É possível se desfazer dos excedentes de produção, entregando-os a quem neles estivesse interessado, em UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL 8 troca de algumas moedas, que correspondem a um determinado valor. Com as moedas, por sua vez, podia-se procurar quem estivesse vendendo os produtos que se deseja adquirir, que podem ser comprados mediante a entrega dos valores monetários. Marilena Chauí (2008, p. 37) acentua a esse respeito: [a moeda] permitiu uma forma de troca que não se realiza como escambo ou em espécie (isto é, coisas trocadas por outras coisas) e sim uma troca abstrata, uma troca feita pelo cálculo do valor semelhante das coisas diferentes, revelando, portanto, uma nova capacidade de abstração e de generalização. Em virtude disso, o desenvolvimento da moeda e do comércio também contribuiu para o surgimento do pensamento filosófico. Essa nova situação fez com que a mentalidade dos indivíduos fosse gradativamente deslocada de uma esfera sobrenatural e mitológica para a dimensão do cotidiano. No ponto seguinte vamos nos ocupar com o pensamento dos primeiros filósofos, procurando perceber de que modo as suas filosofias contribuíram para o entendimento da sociedade em formação e de que modo essas novas formas de pensar corroboram para o avanço da nova sociedade. 2.2 OS FILÓSOFOS PRÉ-SOCRÁTICOS A classificação de "filósofos pré-socráticos" é recente e decorre da importância central que o filósofo Sócrates ocupa dentro da história da filosofia no Ocidente. Então, os pré-socráticos são os filósofos que viveram antes de Sócrates, cujo pensamento será analisado mais adiante. A partirdo que já estudamos anteriormente, Trigo (2008, p. 12-13) afirma que: O desenvolvimento intelectual da civilização grega possibilitou a discussão de suas comunidades sobre problemas mais abrangentes, denominados cósmicos. Para os antigos gregos, o mundo era o cosmos, uma palavra que significa "ordem", "beleza", "harmonia", em oposição ao caos, a desordem que existia antes da criação do mundo. E a filosofia [...] nasce nesse contexto repleto de mudanças. Os filósofos, assim chamados por seguirem a postura de se relacionarem intensamente com o conhecimento, eram os "amantes da sabedoria", esta constituindo o objetivo final desses grandes pensadores. Conforme Chauí (2008, p. 39), o trabalho dos pré-socráticos “é uma explicação racional e sistemática sobre a origem, ordem e transformação da natureza, da qual os seres humanos fazem parte, de modo que, ao explicar a natureza, a Filosofia também explica a origem e as mudanças dos seres humanos”. TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS 9 Assim, por exemplo, podemos citar os filósofos Heráclito e Parmênides. Estes dois pensadores elaboraram duas diferentes concepções de cosmologia. Ou seja, tentaram explicar, cada um a seu modo, qual a ordem fundamental e constitutiva do universo. Eles não se preocuparam em descrever o que ocorre do ponto de vista histórico, mas quiseram achar a arché (origem), entendido como aquilo que é o fundamento do ser. Segundo Aranha e Martins (2003, p. 83), "buscar a arché é explicar qual é o elemento constitutivo de todas as coisas”. Heráclito viveu entre os anos 544 e 484 a.C.. Ele nasceu em Éfeso, na Jônia, que nos dias atuais é a Turquia. A sua grande preocupação foi entender a multiplicidade do real. Ao olhar o mundo, percebia que ele não era uniforme, mas que tudo estava em constante transformação. Heráclito não rejeita as contradições do mundo e procura entendê-lo em sua dimensão de mudança, ou no seu devir. Aquilo que está diante de nossos olhos em determinado momento é algo diferente do que foi no dia anterior, mesmo que, muitas vezes, as mudanças não sejam perceptíveis aos nossos olhos. Por essa razão, Heráclito afirmava que "nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio". Ele tinha a convicção de que todas as coisas têm em si o germe da transformação; cada coisa possui contradições internas que levam à contínua mudança. A harmonia no mundo brota da síntese desses contrários. ESTUDOS FU TUROS Mais tarde, quando estudarmos o pensamento de Hegel no século XIX sobre a lógica dialética, veremos que muitas destas ideias serão retomadas. O mesmo acontecerá com Karl Marx, que enfatizará as lutas e as contradições de classe. (ARANHA; MARTINS, 2003). Já o filósofo Parmênides acentuará em sua filosofia a imobilidade do ser. Parmênides viveu entre 540 e 470 a.C. em Eleia, uma cidade ao sul da região que então era chamada de Magna Grécia e que hoje forma a Itália. Ele é o principal representante da denominada escola eleática. Segundo seu pensamento filosófico, era absurda a ideia de Heráclito, segundo a qual todas as coisas possuem em si o embrião da contradição e da mudança. Parmênides não conseguia entender como algo poderia "ser" e "não ser" ao mesmo tempo. Por isso, ele contrapõe à filosofia heraclitiana a imobilidade do ser. UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL 10 Devido às suas convicções, Parmênides postula que o ser é único, imóvel, imutável e infinito. A essência de todas as coisas é sempre a mesma, apenas na aparência é que percebemos a mudança. As diferenças são percebidas apenas no mundo sensível, que, segundo este filósofo, é falso, pois a percepção pelos sentidos é ilusória. Parmênides estava convicto de que somente o mundo inteligível é verdadeiro e que o pensamento corresponde à realidade. Esta correspondência entre pensamento e realidade será chamada na Filosofia de princípio da identidade. (ARANHA; MARTINS, 2003). UNI Mais adiante, no século XVI, esta ideia irá ser retomada por René Descartes, quando este acentuar o papel da razão na construção do conhecimento. Mas isto é assunto para o segundo tópico deste estudo. Outros filósofos pré-socráticos ainda disseram que o fundamento de todas as coisas estava na água (Tales), no ar (Anaxímenes), no átomo (Demócrito) ou nos quatro elementos – terra, ar, água e fogo (Empédocles) (ARANHA; MARTINS, 2003). O trabalho dos filósofos pré-socráticos é distinto das narrativas mitológicas, pois eles discutem de maneira racional sobre a natureza e de que forma ela está organizada. Essas primeiras formas de pensamento filosófico foram possíveis graças ao ambiente da cidade, do pensamento progressivamente concreto e racional. O contexto da cidade possibilitou que pessoas se ocupassem com esse tipo de questões. A vida na cidade também fez surgir outro tipo de reflexão, preocupada com a convivência das pessoas na cidade, a sua organização e desenvolvimento. Quando havia pessoas pensando de formas diferentes sobre o progresso da cidade, era preciso convencer as demais para que seguissem um plano determinado. Essas estratégias foram pensadas pelos chamados sofistas, sobre quem falaremos no próximo ponto. 2.3 OS SOFISTAS A atuação dos sofistas destoa bastante da reflexão dos filósofos pré- socráticos. Isto se deve, em boa medida, porque os seus interesses são distintos. TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS 11 A atuação dos chamados sofistas ocorre no período áureo da cultura grega, no século V a.C. Em Atenas existe uma intensa atividade artística e cultural nesse período, que também se caracteriza pelo auge da democracia. Ainda que as questões da natureza apareçam nas reflexões filosóficas, o foco se torna cada vez mais o próprio ser humano. Ou seja, a filosofia assume gradativamente um enfoque antropológico, envolvendo questões de ordem moral e política. (ARANHA; MARTINS, 2003). Os sofistas surgem a partir dos novos desafios que o desenvolvimento das cidades e do comércio na Grécia geraram. Antes, a sociedade era regida por uma elite proprietária de terras e do poder militar. Esta classe baseava a educação dos seus filhos no modelo dos heróis mitológicos, especificamente dos guerreiros belos e bons. A beleza se caracterizava pelo corpo escultural formado pelos exercícios físicos, pela ginástica, pela dança e pelos jogos de guerra. O ser bom era definido a partir das leituras de Homero e Hesíodo, por exemplo, que descreviam as características dos heróis, cujas virtudes eram admiradas pelos deuses, sendo a principal delas a coragem diante da morte na guerra. A coragem aparece como importante elemento na luta de Heitor e Aquiles, contada por Homero e retratada no cinema através do filme "Troia". DICAS Assista ao filme A Guerra de Troia. FONTE: Disponível em: < monteolimpoblog.blogspot.com>. Acesso em: 15 dez. 2012. UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL 12 Conforme Chauí (2008, p. 40), "a virtude era a aretê (palavra grega que significa 'excelência e superioridade'), própria dos melhores, ou, em grego, dos aristoi." Daí deriva a palavra aristocracia, que quer dizer o governo dos melhores. Quando se desenvolveram as cidades e o comércio, surgiu também uma nova classe social rica que estava igualmente interessada em ter influência política. Assim, desenvolveu-se a democracia grega, pela qual essa participação se tornou possível. As decisões concernentes à vida na cidade passaram a ser tomadas na praça pública, a Ágora. Das reuniões na praça pública participavam todos os cidadãos, expondo as suas ideias de modo a convencer os demais dos seus pontos de vista. O modelo de educação aristocrático já não atendia mais às novas necessidades, por isso surgiu um novo modelo de educação, protagonizado pelos sofistas. Os sofistas eram membros da nova classe social que procurou ampliar a sua influência política, que poderia ser concretizada a partir dos debates na praça pública. Era preciso que houvesseconhecimento e argumentos para estas discussões. Assim, os sofistas se tornam os primeiros educadores, pois contribuíram para a sistematização dos conhecimentos de tal forma que pudessem formar o cidadão que faz a sua voz ser ouvida na Ágora. Eles dão uma contribuição fundamental para a sistematização do ensino, ao formarem um currículo de estudos: gramática, retórica, dialética, aritmética, geometria, astronomia e música. (CHAUÍ, 2008). Os sofistas se tornaram especialistas em retórica, que é a arte da argumentação. À medida que se dispõem a ensinar os filhos da nova classe rica, os sofistas iniciam os jovens na arte da retórica. Ao mesmo tempo, considerando o aspecto bastante prático de sua reflexão, ou seja, a preocupação com as discussões na praça pública, eles acabaram por elaborar o ideal teórico da democracia. Os cidadãos da nova classe rica tiveram especial interesse neste assunto, pois ele se contrapõe diretamente aos interesses da velha aristocracia rural. (ARANHA; MARTINS, 2003). Através de sua atuação, os sofistas contribuíram ainda para a profissionalização da educação, pois muitos deles cobravam pelos serviços prestados. Essa prática lhes rendeu muitas críticas, como as feitas, por exemplo, por Sócrates, que os acusava de "prostituição". Segundo o filósofo, o conhecimento não poderia ser vendido. Mas, conforme alertam Aranha e Martins (2003), mesmo que alguns sofistas poderiam ser chamados de "mercenários do saber", isto de modo algum pode ser aplicado a todos eles. Os sofistas deixaram uma contribuição muito valiosa para a filosofia posterior e, certamente, podem ser considerados entre os precursores dos modernos estudos da linguagem, que incluem a linguística, o jornalismo, marketing e outros. TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS 13 2.4 SÓCRATES Como já vimos no ponto anterior, Sócrates não simpatizava com os sofistas. Em primeiro lugar, pelo fato de eles cobrarem pelo ensino que ministravam, mas também porque Sócrates não aceitava a possibilidade de se defender qualquer ideia somente para que se pudesse ganhar um debate em praça pública. O filósofo estava convicto de que somente a verdade deveria ser defendida. E, antes de querer convencer os outros de alguma ideia, cada um deveria primeiro conhecer a si mesmo. Por outro lado, Sócrates concordava com os sofistas quando eles afirmavam que a educação aristocrática já não atendia mais às necessidades da cidade. Era preciso, portanto, que se criasse um novo modelo educacional, mais adequado aos novos tempos. (CHAUÍ, 2008). Mas, quem foi Sócrates e quais foram as suas principais ideias filosóficas? Sócrates viveu aproximadamente entre os anos 470 e 399 a.C., em Atenas, e não deixou nenhum testemunho escrito. Tudo o que se sabe sobre ele é transmitido por dois de seus discípulos, Xenofontes e Platão. Platão apresenta Sócrates como um homem que andava pelas ruas de Atenas fazendo perguntas às pessoas, principalmente àquelas que discursavam em praça pública. Ele perguntava sobre os valores que os gregos consideravam fundamentais para a sua sociedade, tais como a coragem, a virtude, o amor, a honestidade, a amizade e a verdade. Para a sua surpresa, as pessoas sempre lhe respondiam com exemplos, ao que retrucava dizendo que não estava interessado nos exemplos e, sim, queria saber o que é o amor, a amizade etc. A atitude de Sócrates causava embaraço. As pessoas se sentiam constrangidas e percebiam que não tinham as respostas para as perguntas do filósofo. (CHAUÍ, 2008). FIGURA 2 – SÓCRATES FONTE: Disponível em: <http://ghiraldelli.pro.br/wp-content/ uploads/2011/02/socrates.gif>. Acesso em: 20 out. 2012. UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL 14 Aranha e Martins (2003) ressaltam que, ao adotar esses procedimentos, Sócrates lança mão de um método próprio de reflexão filosófica, que chamam de ironia e maiêutica. Ironia é um verbo grego usado para "perguntar" e maiêutica significa "parto". O método socrático teria sido assim denominado em homenagem à mãe de Sócrates, que era parteira. Ou seja, enquanto ela ajudava as pessoas a vir à luz, o filho era um parteiro de ideias. O pensamento socrático é, muitas vezes, identificado com a famosa afirmação "Só sei que nada sei". Em outras palavras, isto quer dizer que Sócrates não se considerava uma pessoa arrogante, pois tinha consciência de que não era possível conhecer tudo. Essencial para a reflexão filosófica é a capacidade de perguntar, de querer saber coisas novas. Quando alguém pensa que já sabe tudo, que já está pronta, então não há mais necessidade de aprendizado e também de reflexão, muitos menos de filosofia. Portanto, o filósofo considerava a humildade como elemento essencial da pessoa que quer ser sábia. O sábio sabe reconhecer os seus próprios limites e não hesita em admitir que não é dono da verdade, que não possui todas as respostas. Quando Sócrates fazia perguntas às pessoas até lhes mostrar que aquilo que acreditavam ser a verdade não era realmente algo consistente, não queria dizer que ele mesmo possuía todas as respostas. Sócrates introduziu na filosofia a necessidade de se fazer uma diferença entre aquilo que se apresenta aos nossos olhos, aquilo que assimilamos através dos nossos sentidos, e as essências das coisas. Ele não queria apenas saber a opinião dos cidadãos de Atenas sobre determinado assunto, mas estava disposto a procurar o conceito que oferecesse o acesso à própria verdade. Essa busca da verdade tem uma enorme força social e política, pois faz as pessoas perguntarem pelo real sentido do que está à sua volta. Por essa razão, Sócrates logo passou a ser visto como um perigo pelos poderosos de Atenas e considerado alguém que estava corrompendo a juventude com as suas ideias. Ele foi levado perante a assembleia da cidade e foi julgado culpado, sendo obrigado a tomar veneno, a cicuta. Sócrates não se defendeu das acusações, dizendo que não as aceitava. Também não abriu mão de suas ideias e da liberdade de pensar e, dessa forma, preferiu a morte. (CHAUÍ, 2008). Marilena Chauí (2008) faz uma analogia do trabalho de Sócrates com o personagem Neo do filme Matrix. Assim como Sócrates acreditava que a maioria dos gregos estava vivendo num mundo de ilusão, também em Matrix o mundo dominado pelas máquinas sujeitou a humanidade à escravidão. Era preciso, dessa forma, libertar-se das amarras que oprimem e não nos deixam ver a realidade como ela é de fato. TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS 15 DICAS Caro(a) acadêmico(a), sugiro que assista ao primeiro filme da trilogia Matrix. MATRIX FONTE: Disponível em: <http://www.euniverso.com.br/Filmes/ matrix01.jpg>. Acesso em: 20 out. 2012. No ponto seguinte vamos analisar o pensamento do principal discípulo de Sócrates, que é Platão. 2.5 PLATÃO Platão foi discípulo de Sócrates, como já referido acima, e desenvolveu o pensamento do seu mestre. Muitas vezes é difícil saber onde termina o pensamento de Sócrates e em que ponto começa o de Platão. Platão viveu em Atenas entre os anos 428 e 347 a.C., onde fundou uma escola chamada Academia. O seu pensamento pode ser mais bem compreendido a partir de uma análise do seu famoso "Mito da Caverna". DICAS A seguir vamos ler este trecho da obra de Platão, no livro VII de “A República”. Platão narra este mito como se fosse um diálogo entre Sócrates e alguém chamado Glauco. Sócrates – [...] Pense em homens encerrados numa caverna, dotada de uma abertura que permite a entrada de luz em toda a sua extensão da parede maior. Encerrados nela desde a infância, acorrentados por grilhões nas pernas e no pescoço que os obrigam a ficar imóveis, podem olhar para a frente, porquanto as correntes no pescoço os impedem de virar a cabeça. UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL 16 Atrás e por sobre eles, brilha à distância uma chama. Entre esta e os prisioneiros delineia- se uma estrada em aclive, ao longo da qual existe umpequeno muro, parecido com os tabiques que os saltimbancos utilizam para mostrar ao público suas artes. Glauco – Estou imaginando tudo isso. S. – Suponha ainda, ao longo daquele pequeno muro, homens que carregam todo tipo de objetos que aparecem por sobre o muro, figuras de animais e de homens de pedra, de madeira, de todos os tipos de formas. Alguns dentre os homens que as carregam, como é natural, falam, enquanto outros ficam calados. G. – Que visão estranha e que estranhos prisioneiros! S. – Malgrado isso, são semelhantes a nós. Pense bem! Em primeiro lugar, deles mesmos e de seus companheiros poderiam ver algo mais do que sombras projetadas pela chama na parede da caverna diante deles? G. – Impossível, se foram obrigados a ficar por toda a vida sem mover a cabeça. S. – E não se encontram na mesma situação no tocante aos objetos que desfilam perante eles? G. – Certamente. S. – Supondo que pudessem falar, você não acha que considerariam reais as figuras que estão vendo? G. – Sem dúvida alguma. S. – E se a parede oposta da caverna fizesse eco? Quando um dos que passam se pusesse a falar, você não acha que eles haveriam de atribuir aquelas palavras à sua sombra? G. – Claro, por Zeus! S. – Então para esses homens a realidade consistiria somente nas sombras dos objetos. G. – Obviamente haveria de ser assim. S. – Vamos ver agora o que poderia significar para eles a eventual libertação das correntes e da ignorância. Um prisioneiro que fosse libertado e obrigado a se levantar, virar a cabeça, a caminhar e a erguer os olhos para a luz, haveria de sofrer ao tentar fazer tudo isso, ficaria aturdido e seria incapaz de discernir aquilo de que antes só via a sombra. Se a ele se dissesse que antes via somente as aparências e que agora poderia ver melhor porque seu olhar está mais próximo da realidade e voltado para objetos bem reais; se lhe fosse mostrado cada um dos objetos que desfilam e se fosse obrigado com algumas perguntas a responder o que era isso, como você acha que ele haveria de se comportar? Você não acha que ficaria atordoado e haveria de considerar as coisas que via antes mais verdadeiras do que aquelas que são mostradas agora? G. – Sem dúvida, muito mais verdadeiras. II. Sócrates – Se fosse obrigado a olhar extremamente para a luz, não haveria de sentir os olhos doloridos e não tentaria desviá-los e dirigi-los para o que pode ver? Não haveria de acreditar que isto seria na realidade mais verdadeiro do que agora se quer mostrar a ele? TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS 17 Glauco – Certamente. S. – E se alguém o tirasse à força dali, fazendo-o subir pela áspera e íngreme subida, libertando-o somente depois de tê-lo levado à luz do sol, o prisioneiro não sentiria dor e ao mesmo tempo raiva por ser assim arrastado? Uma vez fora, à luz do dia, por acaso não é verdade que, com seus olhos cegados pelos raios do sol, não conseguiria contemplar sequer um só dos objetos que agora nós consideramos reais? G. – Sim, pelo menos não de imediato. S. – Acho que precisaria de tempo para habituar-se a contemplar essas realidades superiores. Primeiramente, haveria de ver com a maior facilidade as sombras, depois as figuras humanas e todas as outras refletidas na água e, por último, poderia vê-las como são na realidade. Após isso, seria capaz de filtrar os olhos nas constelações e contemplaria o próprio céu à noite, à luz das estrelas e da lua, mais facilmente que durante o dia, sob o esplendor do sol. G. – Sem sombra de dúvida. S. – Acho que, por fim, haveria de contemplar o sol, não sua imagem refletida na água ou em qualquer outra superfície, mas em sua realidade, assim como realmente é, em seu próprio lugar. G. – Perfeito. S. – Depois passaria a refletir que é o sol que produz as estações e os anos, que governa todos os fenômenos do mundo visível e que, de algum modo, é ele a verdadeira causa daquilo que os prisioneiros viam. G. – Evidentemente que refletindo assim chegaria gradualmente a essas conclusões. S. – E depois? Lembrando-se de sua antiga morada, da ideia de sabedoria que lá imperava e de seus velhos companheiros de prisão, não se consideraria afortunado pela mudança efetuada e não sentiria compaixão por eles? G. – Obviamente. S. – Se aqueles da caverna inventassem atribuir honras, elogios e prêmios a quem melhor visse a passagem das sombras e se recordasse com maior exatidão quais passavam primeiro, quais por último e quais passavam juntas e, com base nisso, adivinhasse com grande habilidade aquelas que passavam em cada preciso momento, você acha que ele ficaria com desejo e com inveja de suas honras e de seu poder ou se haveria de encontrar na condição do herói homérico e preferiria ardentemente “trabalhar como assalariado a serviço de um pobre camponês” e sofrer qualquer privação, antes que dividir as opiniões deles e voltar a viver à maneira deles? G. – Sim, acho que aceitaria sofrer qualquer tipo de privação, antes de retornar a viver daquela maneira. S. – Mais um ponto a ser considerado. Se aquele homem tivesse de descer novamente e retomar seu lugar, não haveria de sentir os olhos doloridos por causa da escuridão, vindo inopinadamente do sol? G. – Certamente. S. – Se, enquanto tivesse a vista confusa pelo tempo que se passaria antes que os olhos se acostumassem novamente com a obscuridade, devesse avaliar novamente aquelas sombras UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL 18 e apostasse com aqueles eternos prisioneiros, você não acha que passaria por ridículo e dele diriam que sua saída lhe havia arruinado a vista e que sequer valia a pena enfrentar essa subida? Não haveria de ser morto aquele que tentasse libertar e fazer subir os outros, bastando para isso que o tivessem entre as mãos para matar? G. – Não há dúvida alguma. FONTE: Adaptado de: <books.google.com.br/books?isbn=8561495014>. Acesso em: 15 dez. 2012. No mito da caverna, Platão faz uma diferença entre o mundo sensível e o mundo das ideias. O mundo sensível é aquele que era percebido pelos sentidos dos prisioneiros como sombras refletidas na parede. A realidade, para aquelas pessoas que nunca haviam experimentado algo diferente, era um mundo de sombras e de ecos. Imaginar outro mundo, onde houvesse outras condições de luminosidade, de cores, de cheiros e formas, era algo que poderia ser comparado à loucura. Quem ousasse mencionar algo assim era ridicularizado. A principal característica do pensamento de Platão é a dualidade entre o mundo ideal, ou das ideias, e o mundo sensível. O seu esforço maior foi o de tentar realizar a síntese entre os pensamentos opostos de Parmênides e Heráclito. O primeiro, como estudamos no ponto sobre os filósofos pré-socráticos, defendia a imutabilidade do ser; enquanto o segundo ressaltava a existência de um mundo em constante transformação. Para Platão, as conclusões de Heráclito decorriam da experiência que fazemos com os nossos sentidos, mas que seriam enganosos. O filósofo ilustra isso no mito da caverna ao ressaltar que a vivência em diferentes ambientes leva à formação de diferentes concepções da realidade. A vivência na prisão da caverna durante toda a vida levou aquelas pessoas a acreditarem que o seu mundo, a realidade, era o que estava diante dos seus olhos. A verdade era associada às sombras que eram projetadas na parede. A possibilidade de sair daquele lugar e experimentar a existência de outras formas de realidade provocou uma mudança na concepção de mundo. Os sentidos nos oferecem novos parâmetros para a compreensão do mundo. Mas o que Platão quer justamente mostrar é que não há garantia de que o que vemos corresponda efetivamente à realidade. Portanto, segundo Platão, os nossos sentidos nos enganam e a verdade deveria residir em outra esfera, não na do mundo sensível. Assim, tanto o pensamento socrático como o de Platão ressaltam que o verdadeiro conhecimento não está na experiência sensível, mas na essência das coisas, que pode seralcançada mediante o uso da inteligência. O mundo inteligível, da razão, é o que corresponde à verdade. TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS 19 DICAS O cartunista Maurício de Souza fez uma representação moderna do mito da caverna de Platão. FIGURA 3 – VERSÃO MODERNA DO MITO DA CAVERNA FONTE: Disponível em: <http://3.bp.blogspot.com/_4TStK8uZrgU/TJT2SLWn6tI/ AAAAAAAAFRI/NXprcpgW250/s1600/mitodacaverna.png >. Acesso em: 20 out. 2012. NOTA Portanto, Sócrates e Platão foram sérios críticos dos sofistas, que aceitavam como verdadeiros os conhecimentos formados pela experiência sensível. Segundo os filósofos, esta forma a mera opinião, ou dóxa em grego, que poderia variar de pessoa para pessoa, conforme cada circunstância particular. A preocupação da filosofia, por sua vez, deveria ser com o conhecimento verdadeiro, alcançável unicamente pelo pensamento. (CHAUÍ, 2008). Vejamos, agora, como o pensamento de Sócrates e Platão foi desenvolvido pelo filósofo Aristóteles. UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL 20 2.6 ARISTÓTELES O tempo de atuação de Aristóteles é caracterizado na história da filosofia como período sistemático. Isso se deve ao fato de que o filósofo tem um papel fundamental na organização e sistematização do pensamento filosófico desenvolvido até então e, ainda, ao seu aprofundamento. Devemos a Aristóteles a organização do pensamento lógico através do qual elabora uma explicação da realidade a partir do princípio de causalidade, ou seja, para ele, todas as coisas têm uma causa, que pode ser estudada e compreendida. Aristóteles viveu entre os anos de 384 e 322 a.C. Ele frequentou a Academia de Platão e a sua fidelidade ao mestre é relativa. O filósofo desenvolveu o pensamento de Platão e o aprofundou, mas também foi divergente em muitos aspectos. Entre os principais aspectos críticos estava a compreensão de um mundo separado das ideias. Aristóteles não achava que seria possível conceber a realidade em duas esferas completamente distintas, independentes uma da outra. Se Platão apenas tentou realizar a síntese entre os pensamentos de Parmênides e Heráclito, Aristóteles funde definitivamente essas duas grandes proposições filosóficas num único sistema. Para superar a dicotomia platônica, a teoria aristotélica está fundamentada em três distinções fundamentais: substância-essência-acidente; ato-potência; forma-matéria. (ARANHA; MARTINS, 2003). Vejamos a seguir de que forma Aristóteles propôs uma nova explicação da realidade a partir desses conceitos. Segundo Aristóteles, toda a realidade é composta de substância. Para ele, a substância é "aquilo que é em si mesmo". Toda substância, por sua vez, possui atributos, que podem ser ou não essenciais. Se os atributos da substância não são essenciais, então eles podem ser chamados de acidentais. Se os atributos essenciais faltam a uma determinada substância, ela não poderia ser considerada o que é. Vamos pensar em um exemplo para tornar mais compreensível a distinção de substância, essência e acidente feita por Aristóteles. Aranha e Martins (2003) propõem que imaginemos um ser humano, que podemos considerar como sendo uma substância individual. Para que possamos considerar essa substância um ser humano e não outra coisa qualquer, é preciso que a substância tenha alguns atributos essenciais. Na história da filosofia, a característica essencial do ser humano sempre foi considerada a racionalidade. Então, se não houver racionalidade, não podemos considerar uma substância como um ser humano. Por outro lado, há vários atributos no ser humano que não são essenciais para que ele seja considerado como tal. Se uma TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS 21 pessoa for velha, nova, obesa ou magra, ou então tiver cabelos longos ou nem sequer tiver cabelo, isso não faz com que ela deixe de ser um ser humano. Contudo, com a distinção acima ainda não é possível resolver o problema das transformações dos seres e explicar a origem das diferenças. De que modo os seres humanos se tornaram diferentes uns dos outros? Para resolver este problema, Aristóteles recorre às noções de matéria e forma. A matéria é aquilo de que todas as coisas são feitas. Esse conceito é muito próximo à concepção que a física moderna tem de matéria. A característica da matéria é a indeterminação. Desse modo, um amontoado de células não constitui um ser humano; tampouco uma porção de granito pode ser considerada uma estátua. Para que a matéria seja considerada algo é preciso que ela adquira forma. A matéria tem a forma apenas potencialmente. Várias células podem tornar-se um ser humano, mas não necessariamente. Do mesmo modo, uma semente possui a forma de árvore como potencial, assim como uma pedra pode vir a ser uma estátua. A matéria é a parte constante e imutável da realidade e, nesse sentido, engloba as conclusões a que chegou Parmênides, de que o mundo é imutável. Já com a noção de forma, Aristóteles nos remete ao pensamento de Heráclito, que privilegiou a mudança como elemento constitutivo da realidade e do mundo. Contudo, ainda é preciso entender como Aristóteles concebia a transformação da matéria para que ela viesse a adquirir uma forma determinada. Segundo o filósofo, como já referimos acima, toda a matéria tem a forma em potência. Quando a matéria adquiriu uma forma determinada, então ele dizia que se havia chegado ao ato. (ARANHA; MARTINS, 2003). O ato é a forma adquirida. No exemplo do ser humano que tomamos acima, a matéria são as células logo após a fecundação do óvulo pelo espermatozoide. Estas células têm a forma humana somente em potencial. O ato é o ser humano formado. FIGURA 4 – EMBRIÃO HUMANO FONTE: Disponível em: <http://espectivas.files.wordpress. com/2009/03/embriao2.jpg>. Acesso em: 20 out. 2012. UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL 22 NOTA Há uma discussão muito séria, atualmente, sobre qual seria o momento em que o óvulo passa a ser um ser humano. Esta polêmica, normalmente, está associada à discussão sobre o aborto. Então, caro(a) acadêmico(a), quando ocorre a passagem da simples matéria para a vida humana? Pense a respeito! Segundo Aranha e Martins (2003), para explicar o movimento de passagem da potência ao ato, Aristóteles recorre à teoria das quatro causas: a) A causa material: é aquilo de que uma coisa é feita. Ela é determinante, pois de um monte de pedras não se pode esperar um ser humano. Mas as pedras podem ser transformadas em uma estátua. b) A causa eficiente: é aquilo com que a coisa é feita. Para que as pedras virem esculturas, é preciso que haja um escultor. c) A causa formal: é aquilo que a coisa vai ser. No caso das pedras, a estátua é a causa formal, especificamente a imagem feita na mente do escultor. Quando ele vê a pedra, ele já é capaz de imaginar em seu lugar a estátua pronta. d) A causa final: é aquilo para o qual a coisa é feita. A estátua pode ter a finalidade de servir de decoração ou homenagear alguma pessoa importante. FIGURA 5 – ESTÁTUA DA JUSTIÇA NA PRAÇA DOS TRÊS PODERES EM BRASÍLIA FONTE: Disponível em: <http://www.infopedia.pt/mostra_imagem. jsp?recid=20034>. Acesso em: 20 out. 2012. TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS 23 Desse modo, com uma única teoria, Aristóteles foi capaz de reunir os pensamentos de Parmênides e Heráclito e superar o mundo separado das ideias proposto por Platão. O sistema aristotélico contempla ao mesmo tempo a imutabilidade do mundo e as mudanças. Com Aristóteles se concretiza definitivamente a mudança na mentalidade da antiguidade de uma esfera sobrenatural e mítica para uma mentalidade racional e orientada exclusivamente para a esfera imanente. Não era mais necessária a recorrência à transcendência para explicar o cotidiano. Ainda assim, o divino não se tornou completamente desnecessário para explicar a realidade como um todo. Ele não era mais essencial para entender a realidade presente, mas continuoua existir como princípio que deu origem a todo o universo. Por isso, Aranha e Martins (2003, p. 124) dizem que "toda a estrutura teórica da filosofia aristotélica desemboca no divino". Vejamos: se todas as coisas têm uma causa, como propôs Aristóteles, então nos restam duas possibilidades para explicar a origem do universo. Ou ele é infinito, de modo que não haja uma origem, mas cuja ideia é difícil de ser apreendida pela razão humana; ou então ele é finito e, nesse caso, é preciso que haja um princípio gerador. Como princípio primeiro, é preciso que seja diferente de todas as outras coisas, pois não pode ser fruto de uma causa anterior. Aranha e Martins (2003, p. 124) dizem a respeito: Ou seja, todo ser contingente foi produzido por outro ser, que também é contingente e assim por diante. Para não ir ao infinito na sequência das causas, é preciso admitir uma primeira causa, por sua vez incausada, um ser necessário (e não contingente). Esse Primeiro Motor (imóvel, por não ser movido por nenhum outro) é também um puro ato (sem nenhuma potência). Chamamos Deus ao Primeiro Motor Imóvel, Ato Puro, Ser Necessário, Causa Primeira de todo existente. Além das questões acima, Aristóteles ainda se ocupou com o tema da ética, que é extremamente atual, se considerarmos os inúmeros escândalos políticos, financeiros e as recorrentes denúncias de corrupção (TRIGO, 2009). Se o mundo é organizado a partir do princípio de causas e efeitos, então o comportamento das pessoas produz efeitos, que podem ser bons ou ruins. Desse modo, a ação humana deve ser direcionada de tal forma a produzir os melhores efeitos possíveis. A ação humana exige responsabilidade, segundo a teoria aristotélica. Podemos ver, então, que o pensamento aristotélico tem grande profundidade e capacidade de explicação da realidade em que vivemos. Não foi por acaso que ele se tornou modelo para toda a ciência ocidental até a atualidade. Vamos aprofundar isso ao longo dos próximos tópicos. UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL 24 3 O PENSAMENTO FILOSÓFICO HELENÍSTICO A filosofia posterior a Platão e Aristóteles se desenvolveu em um ambiente político muito diferente daquele dos primeiros filósofos. Até então, Atenas era politicamente independente e havia experimentado a possibilidade da democracia. A partir da segunda metade do século IV a.C., Atenas perdeu a sua autonomia, quando foi conquistada, primeiro por Tebas e depois pelos macedônios. Todas as tentativas de libertação fracassaram e terminaram em grande derramamento de sangue. Embora a dominação macedônica tenha durado pouco, as pretensões de independência da Grécia não duraram, pois logo caiu sob o domínio do Império Romano. (MONDIN, 1981). Por outro lado, segundo Mondin (1981), o pensamento e a cultura gregos conquistaram o mundo da antiguidade e o marcaram para toda a história posterior. Esse fenômeno de expansão da língua e da cultura gregas é chamado de helenismo. Helenismo provém de Hélade, que era o nome da Grécia na antiguidade. Com o helenismo surgiram alguns centros intelectuais de destaque, tais como Pérgamo, Antioquia e Alexandria. No período helenístico não surgem ideias novas. De algum modo, tinha- se a impressão de que todas as grandes ideias e teorias a respeito do universo, de sua origem e de seu fundamento já haviam sido formuladas no período clássico da filosofia grega. Assim, para muitos restava a adesão a alguma dessas teorias e a sua repetição, quem sabe o seu aprofundamento. Nesse sentido, pode-se experimentar um desenvolvimento significativo dos conhecimentos específicos, tais como a matemática, a geometria, a astronomia, a geografia, as ciências naturais, a medicina e a história. Diante de uma sociedade em que a perda de autonomia era crescente, as preocupações se voltaram gradativamente para o indivíduo. A antiga pólis, a cidade, na qual se debatia os interesses em praça pública, na ágora, já não existe da mesma forma. A vida coletiva estava sob a condução dos conquistadores e, nesse sentido, não oferecia grandes possibilidades para a reflexão filosófica. Por isso, no período helenístico, progressivamente a filosofia voltou as suas atenções para questões éticas. Diante das novas perguntas, especialmente a pergunta pelo Sumo Bem, ou o bem supremo, desenvolveram-se quatros tipos de respostas. Segundo Bondin (1981, p. 109): Quanto ao Sumo Bem, os estoicos fazem-no consistir na apatia (ou eliminação das paixões); os epicuristas colocam-no na ataraxia (ausência de preocupações e perturbações) e no prazer. Mas muitos espíritos não se sentem satisfeitos com nenhuma destas soluções, e em suas mentes ganha terreno um sentimento de desconfiança em relação a qualquer solução filosófica não só do problema do Sumo Bem, mas também do da verdade: esta é a solução dos céticos. Outros pensadores, ao contrário, julgam que para problemas tão árduos, que nenhuma inteligência humana pode resolver sozinho, seja mais recomendável reunir o que há de bom nos diversos sistemas filosóficos: é a solução dos ecléticos. TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS 25 Podemos perceber, a partir dessa breve caracterização do período helenístico, como a realidade social, econômica e política influenciara diretamente nas maneiras de pensar de pessoas e, dessa forma, contribuiu para o surgimento de novas reflexões filosóficas. Se, por um lado, a filosofia pretende contribuir para a mudança da realidade social, ela é, ao mesmo tempo, determinada por esta realidade que almeja alterar. Ao longo da Idade Média, a mudança na sociedade foi ainda mais significativa. Vejamos esse desenvolvimento no ponto seguinte. 3.1 A FILOSOFIA NA IDADE MÉDIA A Idade Média compreende um período histórico de mais de mil anos, estendendo-se desde a queda do Império Romano no século V até o século XV, com as expansões turcas. Durante esse longo período, o interesse da filosofia, que se desenvolverá estreitamente ligada à religião, terá o seu interesse voltado para o além, para o céu, para o divino. (TRIGO, 2009). Ainda durante o Império Romano, o cristianismo já experimentou um crescimento bastante significativo, embora fosse uma religião perseguida durante quase três séculos, até o ano 313, quando o imperador Constantino a tornou uma religião legal. Em 390, o cristianismo se tornou a religião oficial do Império. Antes disso, porém, era visto como uma ameaça, pois os cristãos se recusavam a prestar o culto ao imperador, que era sinal de fidelidade ao Estado. Esta realidade de perseguição, martírio e morte fez com que se desenvolvesse uma mentalidade muito particular, quase totalmente voltada para o além. O cotidiano dos cristãos no Império Romano não oferecia grandes perspectivas e as esperanças dessas pessoas foram sendo depositadas progressivamente numa vida depois da morte, no paraíso. Mesmo após a queda do Império Romano, as condições de vida nunca foram exatamente favoráveis. (TRIGO, 2009). Dois movimentos filosóficos caracterizam a Idade Média: um no início, a Patrística, e outro no final, a Escolástica. Vejamos a seguir cada um deles. 3.2 SANTO AGOSTINHO E A PATRÍSTICA A Patrística desenvolveu-se no período de decadência do Império Romano, no segundo século da era cristã. Nessa época, o cristianismo experimentou uma grande expansão e a preocupação desses cristãos foi a defesa da fé cristã diante das heresias. Esses defensores da fé são também chamados de pais da igreja e a sua forma de usar a filosofia é conhecida de apologética. Durante toda a Idade Média, aliás, a razão foi subordinada à fé; ela foi feita uma auxiliar da fé cristã. UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL 26 Segundo Aranha e Martins (2003, p. 125), disso decorre a expressão de Agostinho: "Credo ut intelligam", que significa "Creio para que possa entender". O principal expoente da Patrística é Santo Agostinho, que viveu entre os anos 354 e 430, na cidade de Hipona, no norte da África(atual Argélia), onde foi bispo. A principal característica do pensamento dos pais da igreja é a síntese entre o pensamento filosófico grego e a doutrina cristã. Nesse sentido, o pensamento que mais parecia adaptável à fé cristã era a teoria platônica do mundo sensível e do mundo das ideias, sobre a qual falamos acima. A única alteração que Agostinho propôs foi a substituição do mundo das ideias pelo mundo das ideias divinas. Para Agostinho, a verdade está no recebimento das ideias divinas. Somente Deus poderia oferecer o verdadeiro conhecimento e apenas a fé seria a garantia do pensar correto. Esta teoria ficou conhecida como teoria da iluminação. (ARANHA; MARTINS, 2003). A síntese feita pelos pais da igreja entre a fé e a filosofia levou a um afastamento profundo entre a razão e a realidade social e cotidiana. Desenvolveu- se, nesse contexto, um pensamento filosófico distante da vida, totalmente voltado para uma esfera sobrenatural. A preocupação desses pensadores era atingir a essência de Deus. Explicar como ele é e como funciona. Este esforço é visível, por exemplo, na obra "A Trindade", de Santo Agostinho. FIGURA 6 – CAPA DO LIVRO "A TRINDADE", DE SANTO AGOSTINHO FONTE: Disponível em: <http://www.paulus.com.br/images/ products/G/9788534900980.jpg>. Acesso em: 25 out. 2012. TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS 27 Esta tendência foi aprofundada pelo movimento filosófico que se sucedeu, ou seja, a escolástica, sobre a qual falaremos no próximo ponto desse tópico. 3.3 TOMÁS DE AQUINO E A ESCOLÁSTICA Caro(a) acadêmico(a), como vimos no ponto anterior, a primeira parte da Idade Média, conhecida como Alta Idade Média, foi caracterizada pelo pensamento neoplatônico-agostiniano. Na segunda parte da Idade Média, ou na Baixa Idade Média, pode-se destacar a influência da filosofia da Aristóteles na reflexão cristã. O que permanece inalterado nos dois períodos é a tentativa de conciliar a filosofia clássica com a fé cristã. É importante ressaltar que, durante a Idade Média, o saber foi confinado aos mosteiros e somente os religiosos a ele tinham acesso. Depois que o Império Romano se esfacelou, as cidades gradualmente se tornaram um local de insegurança, miséria e fome. O comércio decresceu e, gradativamente, a população espalhou-se pelo território. Houve, assim, uma ruralização da população. Nesse contexto, os mosteiros se tornaram os únicos lugares onde se conservava livros e onde havia educação. As cidades voltariam a crescer somente a partir do século XI e, com elas, a vida cultural e intelectual sofreria novos impulsos. Entre essas inovações está a retomada do pensamento de Aristóteles. Por um longo período, Aristóteles foi visto com desconfiança pelos filósofos cristãos, pois as suas ideias lhes pareciam pouco adaptáveis à fé cristã. Foi Santo Tomás de Aquino (viveu de 1225 a 1274) que resgatou o pensamento aristotélico e o combinou com a reflexão cristã. (TRIGO, 2009). O trabalho desse filósofo cristão consistiu, em boa medida, na aplicação da lógica aristotélica às teorizações sobre a fé, o que levou à construção de uma doutrina cristã extremamente complexa. Entre as vantagens do seu trabalho está a construção de um sistema lógico e argumentativo muito consistente. Por outro lado, a lógica aristotélica reserva pouco ou nenhum espaço para a inovação. O pensamento tomista será reproduzido, principalmente, por padres dominicanos e jesuítas, que serão duramente criticados nos períodos posteriores pela sua intransigência e adversidade à inovação científica. (ARANHA; MARTINS, 2003). Este é um assunto para o próximo tópico desta unidade. A grande contribuição do pensamento de Tomás de Aquino para a reflexão filosófica e, posteriormente, para o pensamento sociológico, está no rigor que ele exige da pessoa que se dispõe a filosofar. Assim, embora as suas conclusões não sejam o foco de análise da filosofia posterior, o seu método servirá de referência e ponto de partida para toda a construção científica posterior. UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL 28 DICAS Há ótimos filmes sobre a Idade Média. Recomendamos assistir a um em especial: O Nome da Rosa, onde aparecem de modo bastante evidente as diferentes maneiras de se lidar com o conhecimento. FIGURA 7 – O NOME DA ROSA FONTE: Disponível em: <http://2.bp.blogspot.com/_Cyy4Qc4kSHA/ TALSljRLRrI/AAAAAAAAAEc/5sTSpjvtKak/s1600/O_Nome_Da_Rosa. jpg>. Acesso em: 25 out. 2012. UNI Como Leitura Complementar para este tópico, caro(a) acadêmico(a), você tem à disposição uma breve apresentação da lógica aristotélica. TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS 29 A LÓGICA ARISTOTÉLICA João Francisco Cabral Para Aristóteles, a lógica não é ciência e sim um instrumento (órganon) para o correto pensar. O objeto da lógica é o silogismo. Silogismo nada mais é do que um argumento constituído de proposições das quais se infere (extrai) uma conclusão. Assim, não se trata de conferir valor de verdade ou falsidade às proposições (frases ou premissas dadas) nem à conclusão, mas apenas de observar a forma como foi constituído. É um raciocínio mediado que fornece o conhecimento de uma coisa a partir de outras coisas (buscando, pois, sua causa). Em si mesmas, as proposições ou frases declarativas sobre a realidade, como juízo, devem seguir apenas três regras fundamentais. 1- Princípio de Identidade: A é A. 2- Princípio de não contradição: é impossível A é A e não-A ao mesmo tempo. 3- Princípio do terceiro excluído: A é x ou não-x, não há terceira possibilidade. Dessa forma, o valor de verdade ou falsidade é conferido às proposições, pois é imediatamente evidenciado. No entanto, a lógica trabalha com argumentos. As proposições classificam-se em: Afirmativas: S é P. Negativas: S não é P. Universais: Todo S é P (afirmativa) ou Nenhum S é P (negativa). Particulares: Alguns S são P (afirmativa) ou Alguns S não são P (negativa). Singulares: Este S é P (afirmativa) ou Este S não é P (negativa). Necessárias: quando o predicado está incluso no sujeito (Todo triângulo tem três lados). Não necessárias ou impossíveis: o predicado jamais poderá ser atributo de um sujeito (Nenhum triângulo tem quatro lados). Possíveis: o predicado pode ou não ser atributo (Todos os homens são justos). O silogismo é composto de, no mínimo, duas proposições das quais é extraída uma conclusão. É necessário que entre as premissas (P) haja um termo que faça a mediação (termo médio sujeito de uma P1 e predicado da P2 ou vice- versa). Sua forma lógica é a seguinte: LEITURA COMPLEMENTAR UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL 30 A é B Logo, B é C (sempre os termos maior e menor). C é A Observem que o termo médio é o termo A, que é sujeito numa frase e predicado na outra. Assim, ele não aparece na conclusão, evidenciando que houve mediação e que a conclusão é, de fato, uma dedução ou inferência, isto é, ela é realmente extraída da relação entre as premissas. A relação entre as proposições acontece da seguinte maneira: 1 Proposições contraditórias: quando se diz que Todo S é P e Alguns S não são P ou Nenhum S é P e Alguns S são P. 2 Proposições contrárias: quando se diz que Todo S é P e Nenhum S é P ou Alguns S são P e Alguns S não são P. 3 Subalternas: quando se diz que Todo S é P e Alguns S são P ou Nenhum S é P e Alguns S não são P. O silogismo, portanto, é o estudo da correção (validade) ou incorreção (invalidade) dos argumentos encadeados segundo premissas das quais é lícito se extrair uma conclusão. Sua validade depende da forma e não da verdade ou falsidade das premissas. Desse modo, é possível distinguir argumentos bem feitos, formalmente válidos, dos falaciosos, ainda que a aparência nos induza a enganos. Por exemplo: P1 - Todo homem é mortal (V). P2 - Sócrates é homem (V). C - Logo, Sócrates é mortal (V). O argumento é válido não porque
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