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SICHELERO, G G Rosa Luxemburgo e o cristianismo primitivo

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Guilherme Giotti Sichelero – 14 de setembro de 2021 
Rosa Luxemburgo e o cristianismo primitivo 
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Rosa Luxemburgo e o cristianismo primitivo1 
Guilherme Giotti Sichelero2 
A tradição marxista, sobretudo os primeiros marxistas, 
produziram trabalhos sobre os mais variados assuntos e 
temas que hoje são pouco estudados pelos intelectuais que se 
vinculam a essa tradição. Entre esses temas, encontra-se a 
questão do cristianismo, mais particularmente a religião dos 
primeiros cristãos, isto é, o cristianismo primitivo. Dentro do 
marxismo clássico3, assim denominado por Perry Anderson, 
há quatro obras imprescindíveis que formam a base da 
interpretação marxista do cristianismo primitivo: a) as 
obras de F. Engels, Bruno Bauer e o Início do Cristianismo, 
de 1982, e Contribuição Para a História do Cristianismo 
Primitivo, de 1895; b) o artigo de Rosa Luxemburgo, 
Socialismo e as Igrejas, de 1905; c) o volumoso trabalho de 
K. Kautsky, A origem do cristianismo, de 19084. 
Rosa Luxemburgo, em sua obra, visava combater os 
eclesiásticos que, manipulando seus fiéis, pregavam contra o 
comunismo afirmando que o cristianismo nada tinha a ver 
com o marxismo. Em contraposição a isso, Rosa 
Luxemburgo, realizando uma análise histórica do período 
dos primeiros cristãos, faz duas considerações importantes: 
1) o cristianismo primitivo foi um movimento comunista; 2) 
 
1 Texto produzido para servir como roteiro de uma exposição. 
2 Graduado em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Rio 
Grande do Sul (UFRGS). Graduando em Ciências Econômicas na Universidade 
do Estado de Santa Catarina (UDESC). 
3 Ver: ANDERSON, P. Considerações sobre o marxismo ocidental. São 
Paulo: Boitempo, 2004. 
4 Para uma análise mais aprofundada e sistemática do cristianismo primitivo 
nas obras dos marxistas clássicos, ver: MOURA, R. P. O Cristianismo 
Primitivo Segundo o Marxismo Clássico. UFRJ, TCC em História, 2013. 
Disponível em: < 
https://www.academia.edu/9537325/O_Cristianismo_Primitivo_Segundo_o_
Marxismo_Cl%C3%A1ssico>. 
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o cristianismo primitivo teve como base social o 
proletariado romano. 
O cristianismo primitivo como uma expressão do 
comunismo aparece, no trabalho de Rosa Luxemburgo, 
sempre em comparação com o comunismo moderno. Nesse 
sentido, a principal e essencial diferença entre ambas 
expressões do comunismo reside no fato de que enquanto o 
comunismo moderno tem como base o proletariado na era 
do capitalismo, isto é, no período em que a classe do 
proletariado não só é uma classe fundamental do modo de 
produção capitalista, mas sobretudo são aqueles que 
produzem a maior parte da riqueza social, o proletariado na 
Roma antiga era uma classe improdutiva que vivia nas 
grandes cidades, principalmente em Roma, das esmolas da 
classe dominante escravagista-latifundiária: eram os 
escravos aqueles que sustentavam a sociedade. Como 
consequência, enquanto o comunismo moderno prega a 
socialização dos meios de produção, o cristianismo primitivo 
pregava a socialização dos bens de consumo. Segundo 
Luxemburgo, 
“os proletários romanos não viviam do 
trabalho, mas das esmolas que o governo 
distribuía. Assim, a exigência, pelos 
cristãos, da coletivização da propriedade, 
não diz respeito aos meios de produção, 
mas aos bens de consumo. Eles não pediam 
que a terra, as oficinas e os instrumentos de 
trabalho se tornassem propriedade 
coletiva, mas apenas que tudo deveria ser 
repartido entre eles, casas, roupas, 
alimentos e os produtos acabados mais 
necessários à vida. Os comunistas cristãos 
não se preocuparam nada em inquirir 
acerca da origem destas riquezas. O 
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trabalho de produção recaiu sempre sobre 
os escravos. O povo cristão desejava apenas 
que os que possuíam a riqueza abraçassem 
a religião cristã e fizessem das suas 
riquezas propriedade comum, para que 
todos pudessem gozar destas coisas boas 
em igualdade e fraternidade”5 
A existência de uma plebe urbana que vivia nas principais 
cidades no fim da república e durante o período imperial de 
Roma é bem conhecido, assim como a política de panis et 
circenses aplicada pela classe dominante: cereais gratuitos 
ou subsidiados e eventos culturais para acalmar as massas. 
Há autores que interpretam essa classe como uma espécie de 
lumpemproletariado antigo, visto que não estava vinculada 
ao processo produtivo e viviam de subsídios estatais6. É 
conhecido como Marx classificava-os como sendo um 
proletariado. No prefácio do Dezoito Brumário de Luís 
Bonaparte7, cita a famosa frase de Jean de Sismondi8: “o 
proletariado romano vivia à custa da sociedade, ao passo 
que a sociedade moderna vive à custa do proletariado”9. 
 
5 LUXEMBURGO, R. Socialismo e as Igrejas. Marxist.org, 1905. Disponível 
em: < 
https://www.marxists.org/portugues/luxemburgo/1905/mes/igrejas.htm>. 
6 Ver: UTCHENKO, S. Classes e estrutura de classes na sociedade escravista 
antiga. In: PINSKY, J. (org.). Modos de produção na antiguidade. São 
Paulo: Global, 1982. 
7 MARX, K. O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 
2011. 
8 Jean de Sismondi (1773-1842) foi um historiador e economista suíço. Teve 
papel importante nos estudos clássicos da economia política. Sua obra Novos 
Princípios de Economia Política inicia a crítica da economia política clássica, a se 
contrapor a tese de que o capitalismo levaria, inevitavelmente, a uma sociedade 
harmônica e de bem-estar social e ao afirmar que, ao contrário, a produção de 
maior riqueza leva também ao aumento da pobreza. Marx classificava-o como um 
socialista pequeno-burguês, devido ter conseguido superar as barreiras da 
economia política burguesa, mas, em contrapartida, não conseguir ter uma visão 
para além do capitalismo. Há quem tenha afirmado, provavelmente de maneira 
exagerada, que Sismondi foi tão importante para Marx quanto Hegel. 
9 “Por fim, espero que o meu escrito contribua para eliminar esse chavão do 
suposto cesarismo, que se tornou corrente em especial na Alemanha. Quando se 
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Para Rosa Luxemburgo, a ausência do capitalismo e de uma 
indústria pesada nas cidades que absorvesse esse 
proletariado urbano10, que havia sido despojado de seus 
meios de produção devido a expansão do latifúndio 
escravagista, deixou-os em uma situação de miséria total. 
Como os escravos não poderiam apresentar uma alternativa 
histórica para essa situação, o proletariado, vivendo de 
esmolas da classe dominante, voltaram-se “para o Céu 
procurando nele a salvação [...] a religião cristã aparecia a 
estes infelizes seres como um cinto de salvação, uma 
consolação e um encorajamento e tornou-se, logo desde o 
princípio, a religião dos proletários romanos”11. Nesse 
sentido, o proletariado como uma classe social improdutiva 
e secundária no modo de produção escravista da sociedade 
romana também não poderia oferecer outra alternativa 
histórica. O comunismo dos primeiros cristãos correspondia 
à sua posição material. Segundo Luxemburgo, 
“os cristãos do I e II século foram fervorosos 
adeptos do comunismo. Mas este 
comunismo era baseado no consumo de 
produtos acabados e não no trabalho, e 
mostrou-se incapaz de reformar a 
sociedade e de pôr fim à desigualdade entre 
 
faz essa analogia histórica superficial, esquece-se o principal, ou seja, que, na 
Roma antiga, a luta de classesse travava apenas no âmbito de uma minoria 
privilegiada, entre os ricos livres e os pobres livres, enquanto a grande massa 
produtiva da população, os escravos, compunha o pedestal meramente passivo 
para aqueles contendores. Esquece-se o dito importante de Sismondi: o 
proletariado romano vivia à custa da sociedade, ao passo que a sociedade 
moderna vive à custa do proletariado” In: MARX, 2011, op. cit., p. 19. 
10 “Há apenas uma diferença entre Roma na sua decadência e o império dos 
czares; Roma nada sabia de capitalismo; não existia ali a indústria pesada [...] 
Assim se havia formado em Roma um exército numeroso dos que nada 
possuíam — o proletariado —, não tendo mesmo a possibilidade de vender a 
força do seu trabalho. Este proletariado, vindo do campo, não podia, ser 
absorvido pelas empresas industriais como acontece hoje; tornaram-se vítimas 
da pobreza desesperada e foram reduzidos à mendicidade” In: LUXEMBURGO, 
1905, op. cit., s/p. 
11 LUXEMBURGO, 1905, op. cit., s/p. 
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os homens e de derrubar a barreira que 
separa ricos e pobres. Por isso, exatamente 
como antes, as riquezas criadas pelo 
trabalho – para toda a sociedade – era 
fornecido pelos escravos. O povo, 
desprovido de meios de subsistência, 
recebia apenas esmolas”12 
Engels, em seus dois trabalhos, já havia contribuído para a 
interpretação marxista do cristianismo primitivo sobretudo 
ao apresentar essa religião como de caráter universal e como 
manifestação dos interesses dos oprimidos. Rosa 
Luxemburgo acrescentaria o caráter comunista-proletário e 
sua tese sobre a socialização dos bens de consumo. Há alguns 
autores que interpretam certa assimetria entre Engels e 
Luxemburgo, sobretudo no que diz respeito a caracterização 
comunista e proletária dos primeiros cristãos. Afirmam que 
Engels nunca teria utilizado o termo “comunista” e, além 
disso, teria identificado a base social da religião entre os 
escravos, porém no primeiro parágrafo de Contribuição 
Para a História do Cristianismo Primitivo o revolucionário 
prussiano afirma com todas as letras que o “cristianismo era, 
na origem, o movimento dos oprimidos: apareceu primeiro 
como a religião dos escravos e dos libertos, dos pobres e dos 
homens privados de direitos, dos povos subjugados ou 
dispersos por Roma”13. Embora não tenha realmente 
utilizado o termo “comunista” para se referir a esse 
movimento, realiza várias comparações com o movimento 
socialista moderno, além disso fica claro que Engels entendia 
que o cristianismo primitivo era um movimento dos 
oprimidos de maneira ampla, sendo os escravos a maioria da 
classe produtiva, nada mais natural que tivessem um papel 
 
12 LUXEMBURGO, 1905, op. cit., s/p. 
13 ENGELS, F. Contribuição Para a História do Cristianismo Primitivo. 
Marxist.org, 1895. Disponível em: 
<https://www.marxists.org/portugues/marx/1895/mes/cristianismo.htm>. 
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importante no movimento, mas Engels não afirma qual seria 
a “classe social essencial” do cristianismo primitivo, 
deixando claro seu caráter abrangente14. 
Nesse sentido, entendo o trabalho de Luxemburgo como um 
complemento importante (talvez superação?) das obras de 
Engels. Enquanto o primeiro lançou as bases para a 
interpretação marxista do cristianismo primitivo, a segunda 
apresentaria teses mais pontuais. Caberia a Kautsky produzir 
uma obra mais volumosa e completa acerca do assunto, 
mesmo que com algumas divergências, principalmente, com 
Engels. 
Por fim, uma citação de Thalheimer que sintetiza muito bem, 
em linhas gerais, a interpretação marxista sobre os primeiros 
cristãos: 
“O ponto de partida do cristianismo, assim 
considerado, foi a religião nacional de um 
pequeno povo da Palestina: os judeus. O 
deus nacional judeu foi elevado à dignidade 
de deus mundial. Tinha, com efeito, 
qualidades particulares que o 
predestinavam a converter-se no ponto de 
partida da religião mundial da 
antiguidade, porque era o deus de um povo 
oprimido e, naturalmente, as classes e 
povos oprimidos do Império Romano foram 
os primeiros crentes desta nova religião”15 
Porto Alegre. 14 de setembro de 2021. 
 
14 É verdade que Engels, em seus dois trabalhos, sempre dá certo destaque aos 
escravos, contudo nunca afirma objetivamente ser uma religião dos escravos, 
sempre deixando claro que era uma religião dos oprimidos de modo geral. 
15 THALHEIMER, A. Introdução ao materialismo dialético. Centro de 
Estudos Victor Meyer, 2014. p. 10.

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