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2 Ao nosso filho amado Mikhael, com saudades! Nos veremos em breve. Papa e Mama 3 Autores: Mikhael Elias Daniel Mastral Isabela Mastral Capista: Ariane Santos Prefácio: Psicólogo Adauto Souza Compilação de textos: Luciana Alves Tradução do Diário: Simone Alves Diagramação: Luciana Alves Revisão: Alda Alves, Simone Alves e Luciana Alves Lançamento do E-book: 15/02/2019 Distribuição Gratuita Site: www.danielmastral.com.br Contato com os autores: danielmastral@hotmail.com 4 Prefácio Essa é uma história de amor. Também de dor, afinal, o amor é sofredor. Essa é uma história de batalhas que produzem danos incuráveis, já que a vida não pode ser substituída. Essa é uma jornada de muito aprendizado, de ensinamentos, de lágrimas, de aflições e de perda. Mas, acima de tudo, essa é uma história de amor. É uma história de amor porque é o amor que nos faz lutar, que nos dá esperança fazendo-nos continuar, que nos assiste na solidão. E quando a noite cai e tudo que se tem é a saudade, só o amor pode servir de refrigério ao coração. Essa é a história da dor que se multiplica, da dor que concebe outra dor e do desejo de silenciá-la. Falar sobre ela não é uma tarefa fácil. Porque essa dor não tem rosto, não possui forma, não se anuncia quando chega e não possui prazo para ir embora. Muitas vezes, não permite saber de sua origem ou de seu destino ela apenas aparece. E sem oferecer convite, pode levar ao mais sombrio dos calvários. Como se fosse um vírus que se espalha, e envolve todas as emoções, ofusca os horizontes, destrói os sonhos e interrompe a vida. Mas, lembre-se que essa é uma história de amor. Permita que o amor te alcance, te abrace, te transforme. Essa é a história do amor de um pai, de uma mãe e de um filho, que apesar da sua angústia, não deixou de os amar. Todavia, esse filho não suportou a dor, a dor da depressão. 5 A depressão não escolhe idade, sexo, crença ou classe social. Não é frescura, não é exagero. Mas, pode-se dizer que é o grande mal do século. Um mal que vem ceifando vidas, arruinando lares, arrastando pessoas para o mais árduo sofrimento e assolando os que estão ao redor. Essa é a dor que produz outra dor, a dor que se multiplica. Mas, apesar de tudo, essa é uma história de amor. Essa história não foi escrita para acentuar angústias. Mesmo que haja tristeza em seu conteúdo, ela não é feita apenas disso. Ao contrário, ela é aqui relatada para orientar, para sinalizar que além da escuridão existe luz, e que, sobretudo, é possível concluir a jornada de dor sem precisar deixar a vida. Muitos trilharam o caminho dessa dor e conseguiram vencer. Outros sucumbiram, mas não deixaram de amar, e talvez tenham amado tanto que não suportaram ver os seus amados sofrendo com seu sofrimento. Preferiram partir, mas partindo geraram mais dor. Lembre-se, essa é a dor que produz outra dor. Mas, acima de tudo, essa é uma história de amor. A história do amor de um pai e do amor de uma mãe que juntos lutaram contra a depressão do filho. É a história do amor do filho que muito amou os pais, a vida, as pessoas e os animais, mas que adoeceu acometido de profunda depressão. A depressão faz o coração sangrar, transforma a existência em martírio, levando para longe o sentido da vida. A depressão engana, ilude e distorce a visão. Faz com que se acredite, erroneamente, que a morte possibilitará paz aos que ficarem. A depressão levanta muros ao redor, revestidos de espelhos que impedem que se contemple além deles, limitando a visão à própria imagem, à imagem da dor. Porque olhos em abundante depressão são incapazes de se enxergarem no 6 espelho. Tudo que podem ver é um reflexo de dor em um espelho que não reflete vida. Olhos depressivos não conseguem perceber a devastação que o suicídio causa, não percebem o sofrimento que será deixado aos que ficarem quando se atravessa a linha que divide a vida da morte. Mas, apesar de toda essa angústia, o amor está lá, latente. Porque essa também é uma história de esperança, visto que enquanto houver vida a esperança florescerá nos campos. Essa é uma história de amor, porque somente o amor leva um pai a ter fé, somente o amor faz uma mãe ter esperança para lutar contra algo tão hediondo, tão terrível e devastador. Somente o amor encoraja pais a se colocarem de lado para viver única e exclusivamente para o filho que sofre de depressão. E somente o amor é capaz de sustentar a vida quando se perde essa batalha e o filho amado parte para a eternidade. A depressão pode levar à morte, mas o amor permanece aqui, ele nunca falha, não adoece e não morre. A saudade machuca, o amor conforta. A dor traz culpa, o amor o bálsamo. A tristeza pune, o amor absolve. Essa é uma história de amor, porque por amor se lutou e por amor se chorou. E aqueles que sucumbem à depressão, por não suportarem a dor, levam consigo o amor dos que ficam e deixam com eles a dor que portavam em proporções ainda maiores, porque a saudade açoita e queima como brasa. Contudo, essa é uma história de amor. Antes de ler, deixe de lado seus conceitos e julgamentos, pois cada um é solitário em seu próprio sofrimento e não cabe a alguém julgar. 7 Após ler, absorva o que de bom você encontrar para a sua vida, e não presuma ou suponha algo, porque somente os que sofreram com os aguilhões da depressão sabem o que é estar isolado nas águas frias da dor. Se você é alguém que está imerso nessas águas, saiba que o amor poderá te conduzir até que você possa atracar em um porto seguro. Meu respeito e solidariedade aos meus amados amigos Daniel Mastral e Isabela Mastral, pais do jovem Mikhael Elias, por quem nutro profundo pesar pela terrível dor que dentro de si se formou e levou-o embora, mas que agora, encontra-se nos braços do Pai. O amor é a força que encoraja na luta e que sustenta na perda. Porque essa é uma história de amor. Adauto Souza, psicólogo, pai, amigo e cristão. IG: @adautosouza_psicologo “Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor” I Coríntios 13:13 * * * * * 8 DIÁRIO DO MIKHAEL - DOS PORÕES DA ALMA AOS JARDINS DO PARAÍSO – “Digo-lhes verdadeiramente que, se o grão de trigo não cair na terra e não morrer, continuará ele só. Mas se morrer, dará muito fruto.” João 12:24 “Entre a eternidade e o último suspiro, paira um abismo de misericórdia”. * * * * * 9 10 Isabela Conta Fiquei parada, olhando para meu marido. "Cadê o Mikhael?" "Aconteceu... o que a gente já esperava... ele...", sua voz embargou um pouco. "Ele se matou". * * * * * Não lembro de perguntar nada na hora. Fiquei olhando para ele. A gente sabia que era uma doença muito grave; mas na véspera... na véspera houvera um fio a mais de esperança: ele ia ter acesso à internação no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas. Não só nós estávamos contentes, mas até o Mikhael se animou com a possibilidade, depois de muita conversa. "Uma clínica não é o suficiente para você", havia dito a médica na véspera de sua morte, na primeira consulta. "Você precisa do apoio de uma instituição, de cuidado diário, de uma equipe grande". Por que uma primeira consulta na véspera da morte? Haveriam de imaginar que não demos atenção ao quadro e não cuidamos de nosso filho. Muito pelo contrário. Havíamos procurado ajuda mais de um ano e meio antes. Nessa época, porém, depois de um afundamento depressivo importante aos 14 anos, Mikhael melhorou. A nova médica, no dia 21 de dezembro, foi muito humana. 11 Mikhael já havia passado por outros quatro psiquiatras, contando com o da Clínica e a última que o encaminhou para esta colega que conseguiria a internação no Hospital das Clínicas. Mikhael se sentiu acolhido de cara comesta nova médica. Gostou dela porque ela fez empatia, olhou nos olhos, escutou. Ela esclareceu todas as dúvidas dele, incentivou. Não fez um alarido com os cortes nos braços, a dificuldade de higienizar o próprio corpo, ou a incapacidade de voltar a estudar, pelo menos, inglês. "Nós vamos tratar da sua mente. Depois, você vai ver que o resto vem naturalmente". – disse a médica. O que deixou Mikhael triste naquele dia 21 foi saber que a internação duraria por volta de seis meses. Mas, a médica disse que podia parecer demorado, mas valeria a pena; o prepararia para a vida. Para viver! "Já perdi um ano da escola. Vou perder outro? E passei o ano todo sozinho... agora que meus amigos vão estar em férias, vou ser internado de novo?" – ele falou. "Nós vamos cuidar de você. Toda uma equipe! No momento, você precisa de mais do que apenas uma internação em clínica, como foi em julho. Mais do que os seus pais podem dar, os dois, sozinhos. Você precisa de mais, e é isso que vamos conseguir. ", - continuou a médica. Mikhael foi ficando animado e esperançoso. Era melhor do que ficar só, trancado no quarto, chorando, jogando videogame e esperando por uma melhora que não vinha. Pelo contrário: Só estava piorando. 12 "Vou dar prioridade máxima para o caso dele", ela explicou para meu marido. Preocupado - porque Mikhael tinha se cortado na véspera -, Daniel indaga quanto tempo levaria para surgir a vaga. "Entre cinco, dez dias. Mas pode até ser antes", concluiu a médica. "Se ele tiver qualquer intercorrência", falou a médica, para tranquilizar meu marido. "Vocês podem ir para esse pronto-socorro". Fez a guia de encaminhamento. Era um serviço no qual confiava e onde Mikhael poderia permanecer numa espécie de enfermaria, enquanto esperava a vaga no HC. "Mas, pai, fique tranquilo. Estou vendo que está tudo bem. Vai dar tudo certo." e olhando para Mikhael perguntou: "Você não vai fazer nenhuma bobagem, né?". "Não, não", respondeu Mikhael. * * * * * Ah, nós lamentamos tanto que não tenhamos tido tempo de tentar um tratamento com ela...! Que não tenhamos tido tempo de internar o Mikhael. Mikhael tinha sofrido na clínica que tinha sido internado, porque misturavam os pacientes psiquiátricos com os dependentes químicos. Mesmo assim, ele fez amizade, ele fazia amizade fácil. A psicóloga-chefe da clínica disse que uma das meninas era apaixonada pelo Mikhael, ela gostava de ser chamada de L. Ele contou sobre a menina em uma de nossas visitas, e notei a pulseira da amizade no pulso dele, a garota tinha feito na aula de artesanato, e ele mesmo estava fazendo uma pequena caixinha para ela em retribuição. Mikhael fez grande amizade com C., que até deixou um bilhete em seu diário. Após a alta os dois conversaram pelo telefone uma vez. 13 * * * * * Mikhael era só um menino carregando uma dor tão terrível dentro de si, tão grande, pesada e instransponível que corroeu sua alma, a ponto de não restar nada, só uma casca. Uma casca que ainda respirava. Que ainda lutava. Que ainda tomava a medicação toda sem questionar. Que jamais disse que não ia mais à terapia. Que tentou acatar as regras, até o ponto em que a doença expandiu tanto que ele já não se importava com nada. Nem consigo mesmo, que dirá as regras. Nós o perdemos. Nós perdemos o Mikhael e vivemos o luto por ele muito antes do dia da sua morte. Meses antes, porque já não conseguíamos encontrar nosso filho ali. Tinha desaparecido. Mesmo fazendo tudo! Mesmo fazendo tudo que estava ao nosso alcance! Essa é uma dor dilacerante. Esmagadora. Assistir ao sofrimento do Mikhael, do nosso filhotinho, ver ele morrendo diante dos nossos olhos, aos poucos. Perceber que todo o esforço que fazíamos, tudo em que nos empenhávamos, todas as conversas, o amparo e incentivo, o amor... Não era capaz de curá-lo, ou trazê-lo de volta. Toda a terapia. Toda a medicação. As consultas. O apoio. A dor de ver um ser tão amado morrer aos poucos, e com tanto sofrimento, não deveria existir. Simplesmente, deveria ser possível trocar de lugar com ele, 14 viver a doença por ele! Como eu pedi a Deus, mais de uma vez - "Estou mais acostumada...". A verdade é que nós estávamos morrendo com ele, um pouco a cada dia. * * * * * Dia 22 de dezembro. Fim da tarde. Eu já tinha ligado, para o Daniel algumas vezes, porque os dois não estavam em casa, mas Daniel atendeu e disse que ligava em seguida. Fiquei cismada. Olhei o quarto do Mikhael, mas não vi nada de errado. Então esperei. Depois daquela notícia gélida, eu não sabia o que sentir. Daniel entra em casa, vou atrás. Acho que ele começou a me contar o que aconteceu. Não desmaio. Não vejo tudo rodando. Não grito. Só sinto as lágrimas. Em silêncio. Eu achei que os dois estavam juntos, meu marido e meu filho. Não imaginei que tinha acontecido e que receberia a notícia naquela tarde de sábado, a notícia que nenhuma mãe deveria receber. * * * * * Eu me mantive bem por alguns meses, mas depois comecei a notar sintomas, de novo em mim, da depressão, aparecendo devagar. Eu já os conhecia, já tinha vivido e superado. Mas, a agressividade da dor constante, da preocupação constante, da tristeza constante, da incerteza e do medo fizeram, os sintomas voltarem. 15 Às vezes, eu só precisava ficar quieta um pouco, para me preservar, porque aprendi a conhecer os meus limites emocionais, os sinais e os desencadeantes da doença em mim. Isso não queria dizer omissão, de forma alguma. Às vezes, só precisava de um pouco de afastamento emocional, tentar esconder do coração um pouquinho daquele horror todo. Por isso, eu não fui na primeira consulta com a médica nova, embora tenha estado em todas da médica anterior, e nas duas vezes em que a terapeuta - a psicóloga - me convidou. Eu tinha minhas limitações. O mesmo se dava com o Daniel. Ele não conhecia os sinais da depressão até que os sentiu em si mesmo. Isso se somou à ansiedade extrema. Tinha dias que ele precisava ficar quieto, ou senão ia explodir. Todos os terapeutas que ele buscou no período diziam a mesma coisa a ele: "Você não pode sucumbir, tem que encontrar válvulas de escape. Mas, não havia. Quando você ama muito alguém, nunca há; porque é impossível descansar a mente mesmo que o corpo esteja em outro lugar. Nós dois paramos a vida para ficar com o Mikhael. Em seis meses, se saímos de casa umas sete ou oito vezes foi muito, e é uma estimativa alta. Daniel deixou a academia, parou com a escrita dos livros e com os seminários. A vigilância era constante sobre nosso pequeno, nosso amado, nosso único filho. Daniel de manhã, eu à noite. Mikhael nunca ficava sozinho. E como ele não tinha vontade de sair, a gente também não saía. Os dias começaram a parecer todos iguais. Ninguém sabia direito o que tinha feito, o que tinha comido, qual era o dia da semana. 16 Dormir era difícil, acordar ainda mais. Eu me confundia com os meus próprios remédios, não me lembrava se tinha tomado ou não, mesmo com os frascos à minha frente. "Será que já tomei... ou ainda não?", pensava. Esquecia minha comida dentro do microondas e só ia lembrar horas depois. Estava arrumando alguma coisa em casa, e misturava tarefas, ia me lembrar de terminar algo já começado depois de um bom tempo. * * * * * Depois que Mikhael morreu é impossível não se questionar: "E se eu tivesse feito isso; se eu não tivesse feito aquilo; se eu tivesse um pouco mais de força, de paciência, de amor, de qualquer coisa que ele precisasse... e se; e se". E se... Quando essa dor começar a diminuir, se é que isso é possível, se é que é possível voltar a ter alguma paz e tranquilidade, alguma alegria, isso vai vir da certeza de que fizemos o nosso melhor. Não negamos toda e qualquer ajuda, tudo. Até o limite das nossas forças como pais. * * * * * Daniel foi falando - quando acordou, Mikhael nãoestava. Isso jamais acontecia. Não tinha um recado explicando se tinha saído. Mesmo assim meu marido ainda imaginou que ele pudesse ter apenas ido dar uma volta, e ia retornar dizendo que "Precisou, que tinha ido caminhar e que esqueceu de deixar um bilhete". Ele contou os detalhes da procura, que levou o dia todo. Só não levou mais tempo, porque o irmão policial do Daniel agilizou as coisas. Eu não entendia 17 metade da burocracia, e nem mesmo como exatamente ele conseguiu encontrar nosso filho, que saiu sem qualquer documento. Não me lembro do resto do dia. Por que ele não me chamou para ir também? Por que não me permitiu ajudá-lo? "Você não iria suportar a burocracia e a espera. No começo, eu não achei que ele tinha feito isso". Ele chorou, lembrando que precisou reconhecer o corpo. Esse foi um dos motivos pelos quais também lamentei não ter ido. Daniel não pode ver uma coisinha médica qualquer pela televisão. Eu poderia ter reconhecido o corpo. Tenho um último vislumbre, dele indo para o quarto na sexta-feira à noite, depois que ficou um pouco com as amigas no McDonald’s. Quando eu percebi, a luz já estava apagada. Tinha sido um dia cansativo. * * * * * Daniel tenta cochilar um pouco. No domingo, dia 23 de dezembro, ele tem que enfrentar as burocracias do IML, delegacias e cemitério, para poder sepultar nosso pequeno. Eu passo a noite acordada, e sem condições emocionais de acompanhá-lo, não conseguiria, queria manter a imagem dele preservada em minha mente. Muita dor. Falo. Falo. Falo com Deus. Choro. choro. * * * * * 18 Mikhael sempre foi dócil, obediente; adorava o conceito de "Família". Em qualquer lugar, em casa, na rua, ele às vezes gritava: "Abraço de família", quando estava feliz, ou quando alguma coisa boa tinha acontecido a um de nós. As pessoas sorriam ao nosso redor com o jeitinho dele. Se por acaso eu tinha alguma descompensação (por conta da depressão, e também da síndrome de borderline), ele era afastado imediatamente. Mas, alguma coisa ficou em sua memória. Outras ele aumentou. Outras viraram memórias- fantasma que nunca ocorreram. Há crianças que realmente vêm de lares terríveis, e passam por traumas violentos, não foi o caso do Mikhael. A psicóloga olhou dezenas dos desenhos que ele fez ao alongo dos anos e que eu guardei. Qualquer coisinha que ele fazia, ou me dava, eu guardava. Ela não encontrou nenhuma característica de doença psiquiátrica. A casa amarela, a família feliz de mãos dadas, na proporção certa - ele no meio, eu de rabo-de-cavalo vermelho, o pai do outro lado. Os bichos ao redor. Céu. Sol amarelo. Todo mundo sorrindo. A terapeuta falou: Não há nada de errado ali. Mas, em algum momento, a doença girou uma chave. Foi como colocar alguma coisa ruim em ignição. Foi tão pavoroso e tão triste. De repente, as memórias ruins dele estavam impregnadas. Na tentativa de diminuir os "traumas", a parte ruim prevaleceu, e ele esqueceu todo o resto, 90% da vida dele, até os 14 anos foi feliz, completa e cheia de significado. * * * * * 19 A primeira vez que Mikhael lidou com a morte foi aos três anos. Vovó Nadya, minha mãe. Ele dizia, na hora do banho, que a gente tinha que convidá-la para vir em casa, não me lembro o porquê. Estávamos na frente do espelho, eu penteando seu cabelo, terminando de vestí-lo. Engoli seco. “A vovó Nadya não vai poder visitar a gente por enquanto. Ela foi morar no céu”. E assim se saiu uma conversa rápida sobre isso, e disse que futuramente estaríamos todos juntos de novo. Houveram outras mortes. Teve nossos gatinhos Mambo e Merengue, e o nosso cãozinho o Mel. Ele entendeu que morreram porque ficaram muito velhos e doentes. Mas, esses foram ainda na antiga casa que morávamos. Na atual casa morreu a Julie, nossa cadela, a veterinária disse que ela melhoraria. Mikhael com 12 anos acreditou. Quando a Julie morreu de repente, foi um baque muito forte para ele. O Tango, o coelho. Mikhael aguentou ficar comigo a noite toda enquanto ele agonizava, e eu tentei deixá-lo mais confortável possível, quando entrou em forte insuficiência respiratória. Mikhael cavou o túmulo no jardim. Nós o enterramos. E morreu a Patinha. A morte da Patinha foi o start da doença depressiva do Mikhael. Insidiosa, sutil, sorrateira no começo. Um período de notas ruins por causa da perda da amiguinha. Mas depois, vieram as férias e ele parecia ter superado. * * * * * 20 Mikhael contou que teve o mesmo sonho de forma recorrente: “Eu estava sentado no banco de pedra em frente de casa. Quando me via, a Patinha, que estava do outro lado da rua, vinha na minha direção. Ela era atropelada, só que não morria. Então, estava transformada em um leopardo”. E o que mais me chamou a atenção foi: “Ela estava forte. Ela estava Plena”. Plena. Estranha escolha de palavra. Inspirada (em sua forma gloriosa, seu corpo imortal). Se o Pai, que tudo conhece, deu a meu filho esses sonhos tantas vezes a ponto de ele me contar mais de uma vez; é porque sabia da intensidade da perda. * * * * * "Eu te amo" - ele me dizia isso todo dia; às vezes, mais de uma vez. E eu respondia o mesmo. Sempre tinha abraço, beijo, história para dormir. Risadas. Tantas e tantas coisinhas do dia a dia, do amor, da amizade, do companheirismo e da alegria juntos. Não há como resumir, ele era meu amigo, desde pequenininho. Ele sempre me fez sorrir, me fez querer ser uma mãe boa. A melhor mãe possível. Depois de ter passado por alguns problemas com minha própria doença, escrevi um cartão com corações, dizendo estar melhor, e que tinha sentido muita saudade dele. Que íamos passear com as cachorras e ver muito desenho. "Não sei viver sem você! Você é especial demais, e eu te amo mais que tudo na vida. Comprei esse presente para quando você dormir, lembrar sempre de sua mamãe. O nome dele é Eli. Mil beijos, meu amor" 21 A cartinha está datada de novembro de 2010. Ele tinha sete anos. Não muito depois disso eu teria a consulta com o Dr. Alexandre, que fez o meu tratamento e acertou nos meus medicamentos, e passaria a viver melhor. Na verdade, eu não estava procurando um presente. Eu vi o ursinho numa loja que não era nem de brinquedos, por acaso, e escolhi esse nome por ser um diminutivo de Elias. Acho que ele nunca nem percebeu isso. Mikhael dormiu com o Eli até o final da vida. E o sepultamos junto com nosso filho. O Eli esteve perto mesmo ali, quando só o corpinho do nosso filho ainda restava. Meu eterno coração de mãe, imperfeito, mas entregue; a afirmação de um amor que transcende a morte; e um eterno pedido de perdão por toda vez que, involuntariamente, fiz com que ele sofresse de alguma forma, ou se assustasse. O que ele viu do quadro clínico foi pouco, mas para as crianças as coisas são grandes. Ele era sensível, e sempre viveu num ambiente de muita paz, de harmonia, de resguardo, respeito, amor, compreensão. Não havia choradeiras, pesadelos no meio da noite, castigos. Acho outro bilhetinho meu: "Oi, meu amor, bom dia! Você é a criança mais especial, mais obediente, mais bondosa, justa e sincera que conheço! Tenho super- orgulho de ser sua mãe." Dói muito no meu coração que os distúrbios da mente dele apagaram muitas das nossas lembranças, e ele tinha que me perguntar se eu tinha orgulho dele. Eu sempre tive! Ele cometeu erros na adolescência - como todo adolescente 22 - e não estou justificando. As típicas teimosias, desejo de liberdade, de se identificar e pertencer a um grupo, a sensação de onipotência. A rebeldia. Com 13 anos, ele começou a questionar algumas coisas, a rejeitar outras, mas permanecemos companheiros. Sempre admirei o rapaz educado, cordial, gentil, inteligente, comunicativo, bonito! Que não desprezava ninguém, não tinha preconceitos e acreditava que o ser humano era bom, que todas as pessoas eram dignas de atenção.Mikhael era leal aos seus amigos e dava grande valor a eles. Era engraçado, uma boa companhia. Quem conhecia o Mikhael, de verdade, sabia disso. Era impossível não gostar dele. Tanto é que, aos 14 anos, o celular dele não parava de tocar, ele sempre era chamado pelos amigos para sair. Infelizmente, a doença destruiu grande parte disso. Ele não conseguia mais cultivar as amizades, mesmo assim, algumas permaneceram, mesmo quando ele já estava bem doente... * * * * * Ali, no quarto, eu me despedi do Mikhael. Apenas falei, falei... o que meu coração sentia. Nós sempre conversamos muito. Apesar de que, no final, ele estava mais ligado ao pai, disputava a atenção dele. Mas, naquela hora isso não importava. Estava enterrando o corpo do nosso filho com a certeza de que ele já estava no Céu. Essa certeza nos sustenta, embora não aplaque a dor. Não é uma suposição, ou um desejo da alma ferida, uma vontade desesperada, uma assustada esperança. Não. É uma certeza plena. Ele era nosso Filho da Promessa. 23 Chorei e chorei, falei e falei, me despedindo do meu amorzinho. Pedi que minhas palavras lhe fossem transmitidas ipsis litteris, porque ele já não estava entre nós desde às 8h12 da manhã do dia anterior. Não o culpei, de modo algum. Eu entendia sua dor profunda, seu cansaço infinito, a ausência total de sonhos ou esperança. Nós, seus pais, não tínhamos o poder de criar sonhos e parar a dor. Só podíamos estancar um pouco. Agora, tudo tinha passado. Nós - eu e Daniel - sabíamos que ele estava bem. Muito bem. Meu marido saiu do cemitério, e quando chegou em casa eu ainda estava naquele clima de despedida, falando e orando. Sem expectadores humanos, sem palavras de consolo humanas. O consolo veio das palavras do Pai - Papai. * * * * * O nosso filho da Promessa tinha uma missão no Mundo, mas ao final da missão havia morte. Uma morte jovem. Ele percorreu o caminho mais difícil. Suas escolhas erradas começaram como mera curiosidade de adolescente; depois, com o início da doença, se tornaram vícios desenfreados. A morte da Patinha foi um dos gatilhos fortes. É incrível pensar que aquela gata morreu pouco mais de um ano e meio antes dele... Mas, era uma amiga importante do Mikhael, sempre atrás dele, sempre junto, até mesmo no banco de pedra de manhã, enquanto ele esperava o ônibus escolar. Não importava o tempo, todo dia, a ligação entre 24 eles era forte. Muito forte! Ela foi adotada e foi o Mikhael que a viu primeiro, ela o amou e vice-versa. Quem conhece de verdade os animais compreende sua incrível capacidade de amar ... Acordei com ele entrando no quarto, chorando. Tudo tinha sido tão rápido que eles nem pensaram em me chamar. Voaram para a veterinária. Mais tarde, o Mikhael disse, que o pai falava: “calma, calma, calma”, mas estava em pânico. A gatinha estava toda ensanguentada, quebrada. Ferida de morte. “Mama!”- ele veio me chamar, em lágrimas. Se aproximou da cama, eu acordei de imediato. “A Patinha está morta!”. Um misto de dor, e desespero. “O que aconteceu, o que ...?” “Ela foi atropelada”. Senti um choque. Um baque no peito. Não era possível. “Vem, desce ...”, ele me pediu. Eu sai em seguida do quarto, expliquei para ele que a separação era apenas temporária, ele tinha dificuldade em compreender isso. 25 “Mas como você pode ter certeza? Certeza de que ela foi para o Céu, e não apenas vai desaparecer para sempre, como se não tivesse existido?”. “Tudo que Deus criou era bom. Os animais são bons. Deus não permite que eles deixem de existir. Ela vai estar lá, esperando por você”. Como é difícil falar essas coisas. Outro gatilho foi o distanciamento que houve de uma amiga que era mais próxima que uma irmã, devido a problemas emocionais da mesma. Eu não sei o que ele entendeu, ou o que foi alegado a ele. Mais tarde, quando eu vi o quanto ele se culpava, e como se achava o responsável pela perda da amiga, eu contei que a culpa não era dele. A morte da Patinha foi no primeiro semestre do oitavo ano, e a perda da amiga, no final desse mesmo ano, os dois fatos deram o start de vez na doença. Mikhael estava com 13 anos. A autoimagem ruim do Mikhael começou com essas perdas. Se algo não dava certo, se alguém o abandonava... a culpa era dele. A sensação de perda, de ficar só, de ser abandonado passou a dominar a vida dele. Qualquer percalço e ele tomava a culpa para si. Disse que uma grande amiga saiu do nosso bairro e se mudou por causa dele. Mikhael se achava o culpado, único culpado. Uma baixa autoestima arrasadora estava se formando na mente dele. Ele teve um quadro depressivo nesse ano, que nos assustou de verdade. Pensamos que teríamos que interná-lo. 26 Deus deu ao Mikhael uns anos a mais para mudar de rumo. Ele já estava mentindo para nós, escapando de ônibus e indo ao centro da cidade, à rua 25 de março, a Paulista, começou uma conversa esquisita de que "ele não era burguês", “que onde moravam era chato”. “São Paulo é que era divertido”. Esse discurso não combinava com ele, ou com qualquer uma das amigas e amigos que ele tinha na escola. No início do nono ano, quando completou 14 anos, uma de suas melhores amigas organizou uma festa surpresa para o Mikhael, e foi surpresa mesmo! Na filmagem dá pra ver a cara dele, enquanto um outro amigo jogava confete do andar de cima. Essa amiga, D., combinou tudo com a gente, nós compramos a comida, e um dos amigos cedeu a casa. Ela mesma fez o bolo, os outros levaram salgadinhos, pirulitos, tiraram fotos. Ele tinha mais uma chance, de entrar no plano perfeito de Deus para a vida dele e cumprir sua missão na Terra. Choro. Choro. À noite é mais difícil. Ele tinha o mesmo ritmo biológico que o meu. Nas férias, ficava acordado de madrugada, às vezes, até de manhã. Isso depois dos dez anos. Ele estava sempre ali, fazendo suas coisas, eu fazendo as minhas. A gente inventava um macarrão, conversava. Ele me contava alguma coisa. Tinha um senso de humor ótimo e quando se tornou adolescente, uma visão de mundo com uma pitada de "pimenta". Suas "tiradas" eram ótimas, engraçadas. Contava as coisas de um jeito muito próprio porque tinha bom humor - e senso de humor! E o humor dele era bom, porque não magoava ninguém. 27 A porta do quarto dele sempre aberta, eu ali pertinho, na sala. Quando passava ali, sempre, sempre recebia um olhar, um sorriso, um beijinho. Nunca mais essas noites tranquilas aconteceram depois que ele adoeceu. Da mesma forma, as manhãs. Quando éramos só nós dois, nos finais de semana, durante as viagens longas do Daniel, era no quarto dele que eu entrava quando acordava. De pijama, zonza de sono, não precisava pedir licença. Ele também parava o que estivesse fazendo para falar comigo. Ficávamos falando de qualquer coisa. Como ele tinha deitado tarde como eu, acordava igualmente tarde. A gente tomava café às duas da tarde. Almoçava de noite. Jantava de madrugada. Isso nunca mais vai acontecer nessa vida ... Se tinha que estudar, a gente estudava. Eu estudei com ele até o sexto ano, todas as matérias, aí aos poucos fui soltando durante o fundamental dois. Dava uma ajuda se ele estivesse muito perdido. Costumava ter sempre boas notas. Todo mundo conhecia o Mikhael. Ele nasceu, cresceu e viveu sempre no mesmo bairro. Desde pequenininho ele tinha brilho nos olhos e gostava de conversar com todas as pessoas, sobre tudo. Sempre sorrindo e tecendo comentários, era o jeito dele. Ele estava sempre rindo, com brilho em seus olhos, o sorriso franco e aberto para todas as pessoas. Até os desconhecidos que passaram a conhecê-lo: no mercado, na farmácia, na padaria, no restaurante, no cabelereiro. Aquela vizinha que eu nunca nem vi, e sequer sabia o meu nome virou para mim na manicure: “Você é a mãe do Mikhael, né? Meu Deus, olha, ele é uma pessoa muito educada, a mais educada queeu já conheci na vida." 28 Já havia escutado isso de professores e de mães dos (as) amiguinhos (as). Respeito pelo próximo e vontade de conversar com todos era nato, era dele, nasceu assim; o fato é que todo mundo conhecia o Mikhael. As pessoas raramente me chamam pelo meu nome, quando muito “doutora”, mas com ele era diferente, onde a gente chegava era: “E aí Mikhael! O que vai ser hoje?”. “Seu filho é uma graça” diz a cabeleireira para mim, depois que Mikhael levanta e diz “adorei o corte” e dar um abraço caloroso na mulher recatada coreana. É. Ele era um doce, amável, terno, inteligente e carismático. Leal aos amigos, amava os animais. Extremamente amoroso conosco, seu pai e sua mãe. Pai, mãe e filho sempre. Era assim que era. As pessoas reparavam. * * * * * De repente, Daniel entra no quarto, nos abraçamos. Ele tinha um rosto cansado e abatido. “Eu pedia a Deus que me concedesse a força de Sansão…“. Isso não era gracejo. A força me foi concedida e ele nem percebeu, mas foi mais forte do que imaginava ser. Não sei se choramos juntos novamente, quando um está abatido o outro precisava estar mais forte. 29 A vida nos ensinou que os dois não podem fraquejar ao mesmo tempo. Nessa altura, eu estava acordada a mais de 24 horas. O dia mais horrível das nossas vidas. Fomos sentar na sala e ele me contou umas coisas, ele tinha que repetir, ficava difícil falar todos os detalhes, começo meio e fim e quanto seu coração estava despedaçado. Perguntamos várias coisas para Deus. Por causa do cansaço do Daniel, não conseguimos ouvir todas as respostas naquele momento. Mas, ele não sentiu dor alguma, no momento da morte. Quando eu estava no quarto, durante o “meu sepultamento” particular e concomitante, lembro que, dentre todas as palavras de amor, elogios e a gratidão e a honra de ter sido mãe dele, disse que me orgulhei de sua força e coragem ... * * * * * Por causa do trabalho que temos, Mikhael sempre foi preservado dos holofotes. Pouco falamos dele nos livros ou de qualquer outra maneira. Não era prudente expor nossa vida familiar. E como foi bom ter o Mikhael como filho. Ele só nos trouxe alegria e orgulho. Só coisas boas e momentos bons, que vivenciamos tanto em família, quanto durante as viagens do Daniel, ou quando o Daniel saia com ele. Daniel sempre junto em tudo, pai coruja, um super pai. Praticamente, único pai no meio das mães, nas aulas de natação de bebês, parquinho, cinema infantil, volta nos shoppings. Fazíamos tudo sempre juntos, nós três. Essa será sempre uma 30 marca muito forte nas nossas vidas e na nossa família: união e amor incondicional. Nunca precisamos gritar com Mikhael, dar castigos, brigar. Ele era obediente e sempre falava que não gostava de nos magoar. Com ele, tudo era alegre, tranquilo, cheio de vida. O Mikhael assistia a um desenho uma única vez, e decorava as frases inteiras. Depois, repetia, era muito engraçado e nós acabamos decorando também, a gente ria muito. Foi muito bom ser mãe. É estranho pensar que eu não sou mais… Mamãe. “Mama!” Como ele sempre me chamava. “Mama” e “Papa”, apelidos carinhosos que ele escolheu naturalmente, substituindo o papai e mamãe. Mais tarde, às vezes ele me chamava carinhosamente de “Muffin“, e o pai de “Panda“. Fomos pais extremamente presentes. Daniel se fez único na vida do filho, um amigo, um parceiro. Tudo o que se pode fazer durante a infância, fizemos e aproveitamos. Era difícil viajarmos em família. Primeiro, porque não tínhamos muito dinheiro para férias. E depois não podíamos viajar e deixar nossos bichinhos: a Nina já velinha, a Lira não desgruda de mim, a Aisha tinha uma ligação muito grande com Mikhael, assim como a Patinha. Por isso, Daniel viajou por poucos dias com Mikhael, algumas vezes, e eu fiquei com os bichos. Tudo bem! Era legal, eles conviverem e os bichos não se ressentiam. * * * * * Quando a terapeuta e a psiquiatra do Mikhael vieram vê-lo em casa, estavam, de certa forma, à caça de um “culpado”. 31 E, claro, a culpada só podia ser a mãe, louca, borderline. Não adiantava o que eu falasse, parecia que não estavam me ouvindo. Fui ignorada várias vezes, embora num desses dias, eu tenha sido a única que dei o “palpite” certo sobre a polêmica questão de pegar ônibus sozinho. Claro. Um garoto de 15 anos, quase 16, pode até pegar ônibus, mas não na condição em que ele estava, e nem para ir onde queria ir. A psiquiatra estava liberando isso, bem como a terapeuta. Uma das características do Mikhael, e que ele usou algumas vezes, era de ser extremamente persuasivo e convincente (uma das características do borderline). Eu alertei à terapeuta: “Ele está te enrolando”. Mikhael começou a desenvolver um quadro de distúrbio de personalidade, não sabendo mais quem era, e como era, e nem como queria ser, por isso, não queria mais ver as fotos dele espalhadas pelas casa. Neste momento, a discussão era a respeito de dois painéis familiares que estavam na cozinha, se deviam ou não permanecer. “Veja, fulana terapeuta”, eu tirei todas as fotos do Mikhael da casa toda. Mas, o que estaremos ensinando ao meu filho se tirarmos os painéis? São momentos de celebração, momentos de vida, fotos de natal, dos bichos. O direito de um termina, quando começa o do outro. Mikhael pode passar pela cozinha e dizer: “ah, esses painéis são coisas da minha mãe”, e deixar para lá. A terapeuta foi até em casa para falar sobre isso. Por isso, eu disse: “Não são fotos os problemas dele, o problema dele não é o externo e sim o interno e profundo”. 32 Nessa fase da doença Mikhael tinha desenvolvido uma autoestima tão baixa que não suportava nem o próprio rosto. Primeiro nas fotos, depois nos espelhos, que ele cobria com a tolha de banho. Eu não sei de onde saiu esse pensamento. Uma parte de sua pseudo “feiura”, acredito, fosse culpa: por ter fugido de ônibus para o centro da cidade, Paulista, 25 de Março e por começar a andar com pessoas tóxicas. Nenhum dos amigos dele estavam autorizados a saírem de ônibus sozinhos. Então, ele ia sozinho, escondido e sem nossa permissão. Ou ele ia com outros jovens que trabalhavam na redondeza, mas não moravam no bairro. * * * * * A inauguração dessa loja do McDonald’s perto de casa parecia ser legal, à princípio, seria um bom local para os adolescentes se encontrarem. No começo foi assim. Depois, começou a ficar um lugar duvidoso. E já com a doença instalada em um jovem adolescente, louco para viajar “pela bola azul”, como ele dizia… Bom… Uma coisa chamou outra. Nós achávamos, sinceramente, que ele estava aqui por perto, no bairro, que ele jamais seria capaz de mentir, de beber e de fumar. De se autodepreciar tanto, a ponto de achar que não era bom e digno de ninguém, exceto de alguns que não eram seus amigos, mas ele achava, no momento, que eram. E eles sabiam o que tinha acontecido; que Mikhael tinha se cortado muito, e que tomara também remédios, que ficou em coma por mais de 12 horas e passou três dias na UTI. Quando ele teve alta para enfermaria, nos disseram que teriam que remover direto para uma clínica psiquiátrica do convênio. Como nos haviam sinalizado a possibilidade, optamos pela internação domiciliar. 33 Bem contente de estar em casa, grato por sua vida ter sido salva, querendo prosseguir e querendo caminhar. Tinha perdido os últimos 45 dias de aula, em licença médica, mas estava feliz em poder aproveitar as férias, ver os amigos e retomar no outro semestre a escola. Na quinta-feira, duas amigas vieram visitá-lo em casa, e os três foram andar de bicicleta, ele estava bem, embora com pouca resistência física. Na sexta-feira, toda a turma de adolescentes se reuniu no Fast Food. Era a primeira vez que o Mikhael ia lá, após uma tentativa de suicídio mais séria, que o deixou na UTI (era a segunda, a primeira foi mais branda,porque ele não soube combinar os remédios para ter êxito). Mikhael nunca mexia em remédios, eu controlava isso, se ele tinha uma dor de cabeça, enjoo, sempre me falava. E eu sempre o medicava. Ele nunca nem chegou perto dos remédios. Mas aconteceu… O que gerou a licença médica e o início da escalada da doença a patamares tão altos, que parecia que jamais iria atingir o platô. Nesta sexta-feira, no Fast Food, alguma coisa aconteceu. Não com os amigos dele, mas com alguém que não era amigo dele de verdade. O que um adolescente espera? Ser recebido com alegria, com calor humano, com ternura. Mas alguém falou algo sobre as cicatrizes, debocharam daquela dor. Logo ele veio pra casa, e não foi mais o mesmo. A pequena chama de querer viver se apagou. Passou sábado e domingo, ele se cortou todo de novo. Como poderíamos livrá-lo da internação assim? 34 * * * * * A noite foi puro terror, internar meu filho?? Sou médica, conheço os serviços psiquiátricos, já li muito sobre internações em sanatórios, distúrbios da mente, suicídio, histórias reais. Mikhael foi preservado o melhor possível dos sinais da minha própria condição. Não foi isso que desencadeou a doença. Ele presenciou pouco, mas criança vê tudo grande, e esse assunto foi muito tratado em terapia. Eu não era uma mãe-vilã. Até mães saudáveis erram, o foco devia ser: “OK, você me contou algo ruim ... me fala algo bom da sua mãe ...” E isso não existiu. A terapeuta chefe da clínica onde Mikhael ficou internado veio me dar um abraço e falar para mim e para o Daniel que nosso filho descrevia a própria mãe como uma pessoa extremamente forte. Uma heroína, porque agora ele entendia o que eu havia passado, e sabia que meu quadro havia sido pior. E, se eu venci, ele também podia vencer. Queria ser forte e corajoso igual a sua mãe, mas isso mudou radicalmente quando teve alta e tinha terapia. De repente, me hostilizava, e me provocava de propósito, me humilhava. Depois se arrependia, vinha chorando, pedir desculpas, acontecia várias vezes. Às vezes, era tão agressivo que me dava medo. Mesmo com palavras, ele admitiu ao Daniel que seria capaz de me agredir fisicamente. Por isso, vejo que a terapia não vinha surtindo efeito. Não trazia melhoras. * * * * * 35 De manhã, segunda feira, era 25 de junho de 2018 – meu aniversário. Tinha pensado e orado muito, mais uma noite em claro. Para me distrair, fiz um cordão de pescoço para ele. Mikhael sempre andou com um cordão com um pingente de flor de lis de aço, delicadamente trabalhado, tinha sido um presente meu para o Daniel. Mas, depois o nome Mikhael foi gravado no pingente e ele passou a usar. Ele decidiu tirar este cordão, quando já não sabia quem ele era, E que queria matar o Mikhael, então, tinha começado o transtorno dissociativo de identidade. Passou a achar defeitos horríveis em si mesmo, e se tornou uma pessoa oposta a ele. Que tristeza ... * * * * * Já faz parte do quadro de Borderline a manipulação das pessoas pelas emoções. E Mikhael era muito inteligente, seu QI era acima do normal. Ele, às vezes, ia mau em matemática ou física, porque estava começando o quadro depressivo. Ele tinha sono na aula. Dormia. Uma vez dormiu no pátio. Outra vez, roubou uma faca, subiu ao andar mais alto do prédio da escola e ficou olhando para baixo, procurando uma fenda na tela. Mikhael cresceu nessa escola, começou ali com três anos de idade. Todos conheciam ele muito bem, inclusive as donas da escola. Ligam para o Daniel: “Mikhael está dormindo no pátio”; “Mikhael está estranho”; 36 “Mikhael está no topo da quadra de esportes”; “Mikhael se trancou no banheiro”... Vontade de chamar a atenção? Rebeldia de adolescente? Ou sinais de algo mais sério? * * * * * Final do ano de 2017, 9.o. ano, um alívio, ele conseguiu passar de ano, depois de todos os nossos esforços. Professora particular de física e matemática, e eu e o Daniel dividimos as demais matérias e estudávamos com ele. Tivemos a alegria de vê-lo se formar e vestir uma beca. Foi escolhido como um dos oradores da turma. A formatura foi linda e sensível. Ele estava feliz. O sorriso radiante. Entendo agora, neste exato momento, que Deus nos concedeu mais um ano. Mas, como mãe, e ouvindo certos comentários dele, eu sabia que ele se envergonhava da própria imagem. Embora o sorriso irradiasse perto dos amigos, nas fotos ficava contido, opaco. Quando eu dizia: “Você tá tão alto. Tão gato. Tão bonito ...” A resposta era sempre uma veemente negativa, e eu ficava imaginando de onde aquilo vinha. Por que uma repulsa intensa? Por que? Quando ele começou o 1.o ano do ensino médio, na mesma escola e na mesma turma, passou a não querer estudar “demais”. 37 Se sentia cansado. Sem vontade. Sem foco. Foi mal em tudo no primeiro bimestre. Daniel achou até que seria de propósito, pois ele queria estudar em uma escola mais longe de casa, onde ele sabia que tinha duas amigas. Sabemos que ele sofreu bullying ali; professores não souberam lidar com a situação. Acabaram por expô-lo na sala, quando ele praticou o cutting; não foram sábios e isso mexeu muito com ele. A mudança de escola foi um fiasco total. Foi bem recebido, mas depois a temida e repetida sensação de rejeição, de ser abandonado ... o perseguia. O Mikhael acreditava na bondade inerente ao ser humano. Mas, estava errado. Não é inerente. Não é frequente. Sei que ele sofreu com a falsidade de pessoas, sei que ele sofreu com as perdas e com a rejeição. O distúrbio de imagem corporal apareceu mais claro para o final. Ele via defeitos absolutamente inexistentes. Se fechou. Se tornou tímido. É triste para os pais ver isso. Fica a pergunta sempre: É uma coisa da fase? Adolescentes geralmente são encanados com o corpo, com a voz, com mudanças... Ou era mais que isso? Sabíamos que era mais que isso. * * * * * Por que deixar de andar com os amigos de sempre, com quem cresceu, para se associar com pessoas tóxicas? “E aí, Mikhael, vai uma?” Bebidas. 38 Pouco antes de morrer ele já era considerado com dependente químico. Tinha bebidas escondidas pela casa, que os amigos entregavam pela cerca, e só achamos após a sua morte. Dois dias antes de sua morte, uma pessoa trouxe uma bebida para ele dentro de casa. Chegou com uma sacola e saiu sem ela. Sequer cumprimentou o Daniel, que achou a bebida de imediato. Dias após sua morte, achei uma outra garrafa pela metade. Associado a isso, fumava cada vez mais. Quando saiu da clínica estava sem fumar. Mas, após as sessões com a terapeuta, ela adotou a conduta do “dano menor”. “Melhor fumar, que se cortar”. Mikhael dizia que o acalmava, foi uma verdadeira confusão! Sem consultar os prontuários, profissionais, os pais, a nova psiquiatra, ele voltou a fazer uso de algo que estava sanado na vida dele. Se ele iria voltar a fumar, não sabemos. Mas o fumo conflitava com a medicação (lítio) e podia deflagrar sintomas. Todos fomos contra: a psiquiatra, o pessoal da clínica e nós. Mas, a terapeuta disse que “sim.” A agressividade dele querendo aqueles cigarros de volta era além do suportável. Conseguimos segurar por uns dias, mas era preciso praticamente sedá- lo com Rivotril e Prometazina, pois dizia que só o cigarro o acalmava. Por fim, diante daquele inferno emocional terrível... Cedemos. 39 Tem gente que acha que os bordes são ótimos atores. Que fingem muito bem e mudam da candura para o ódio em segundos. Pode ser que uma parte fosse encenação, para conseguir o que queria. Mas, uma coisa eu sei, e até me lembro de um dia na faculdade de medicina, quando um dos professores-doutores começou uma aula teórica dizendo: “A doença psiquiátrica é das que mais está imersa no sofrimento. Não importa que o paciente é desagradável, que suas atitudes se tornam insuportáveis, que as pessoas próximas, às vezes, perdem a paciência.“É frescura”. “É de propósito”. Ou “é demônio”. Eu digo que o sofrimento é totalmente real, e é muito profundo”. Eu nunca me esqueci disso. “O sofrimento dos doentes psiquiátricos é real e muito mais profundo”. Uma parte, é a própria doença: angústia, pavor, apatia, ideias suicidas, sono, falta de objetivos, incapacidade de fazer as mínimas coisas que fazia antes, até mesmo tomar banho e cuidar da higiene, ou frequentar a escola, seguir horários. Isso falando só da depressão. Outra parte é o descaso das pessoas, o julgamento, as pechas e rótulos. * * * * * Daniel levantou às 7h10. Naquele dia, o dia do meu aniversário. Tínhamos que dar a sequência no processo de internação. Ele tinha se cortado mais uma vez. 40 O Hospital já tinha optado por encaminhar direto da enfermaria para a clínica. Nós é que quisemos tentar a internação domiciliar. Mas diante disso... Novos cortes... Não dava para ficar sem orientação profissional. Como médica, eu sabia disso: era um caso clássico, não tinha o que pensar. Ele podia se matar no dia seguinte. Tinha acabado de sair da UTI. Estava bem até sair do Fast Food. É por isso que eu sei que a imagem deturpada que ele começou a criar dele mesmo era real. Ele começou a se aliar a quem não prestava. Um dia ele me disse que não queria ser “playboy”. E eu disse: “Ah, playboy? Moramos de aluguel. Sabia que quem lhe disse isso está te ofendendo? Onde e de quem ouviu isso? Não são de seus amigos que conheço desde que nasceram. Você ouviu isso do pessoal que ronda esta lanchonete? Eles não são seus amigos!”. Mikha ficava furioso. “Você não conhece meus amigos”. “Mas, conheço a vida, meu filho. Quem te chama de playboy te dá bebidas e cigarros cada vez que você sai na rua, não são seus amigos, ainda mais quando sabem do que aconteceu”. Ele não ouvia, ele não concordava, não aceitava, não entendia e não obedecia. 41 E ele quase não saia, não podia. Sua vidinha foi se espremendo dentro da “caixinha do borderline”. As medicações mudaram de dose. Depois mudaram de medicação. E dose. A psiquiatria é assim, tentativa e erro. Em todo o tempo, nas noites mais sinistras em que ele andava pela casa inquieto, irritado, batendo as coisas, me desacatando, querendo remédios para dormir ... outras ele tinha crises horrorosas de choro e desespero, e começava a falar comigo em inglês. O que ele detestava em matemática era bom em inglês. Foi de zero a 100 em poucos meses. A dona da escola adorava o Mikhael e falou para o Daniel que via o quanto ele era querido ali. Ele era o segundo melhor aluno da escola, ao saber do problema do Mikhael, a dona disse que ele não ia repetir o nível. Prometeu ajudá-lo com algumas aulas particulares e disse que ele ia tirar de letra. Continuaria indo para o próximo nível e faria as provas depois. Ao sair da clínica, no final de junho, tinha perdido as férias com os amigos, afinal. Ficou acertado que a volta às aulas da escola era inviável. Ele não tinha concentração nem estrutura emocional. Retomaria apenas para as aulas de inglês. 42 Ele tinha se descoberto com a profissão. Queria ser professor, ter uma escola de inglês. Se continuasse, poderia prestar o Cambridge no ano seguinte. Queria fazer a faculdade de letras – em inglês – para ampliar seus horizontes e possibilidades. Era um lindo sonho, uma proposta de vida maravilhosa que permitiria tantas coisas. Ele queria fazer intercâmbio durante o segundo ano do ensino médio, com 16 anos. Mas esse dia nunca chegou. Ver seu filho com a vida destroçada é a pior dor de uma mãe. Ele vinha até mim chorando, balbuciando em inglês, e só Deus sabe como conseguia me comunicar. Eu não sou fluente para falar. (A gente estava tentando treinar juntos, também queria melhorar o meu inglês). Mas, entendia o que ele falava. Estava acostumada ao sotaque e vocabulário dele. Em uma ocasião ele me disse, até rindo, que não entendia como eu assimilava aquela bagunça verbal mergulhada em choro. Disse que ao falar em inglês era como se ele estivesse falando de outra pessoa. Várias vezes, carinhoso e me agradeceu; disse que “minha paciência era infinita”. 43 “Mal sabe você, meu filho. Eu tinha que me mostrar forte por você. Mas, meu coração estava em frangalhos”. Vê-lo sozinho, no quarto fechado, jogando videogame e vendo vídeos no YouTube, cortava tanto meu coração, que eu queria sair correndo, eu não queria ver aquilo… Porque não fui eu que adoeci? Eu já era a borderline, a distêmica, a depressiva. Tive sintomas por metade de minha vida, e outros por mais da metade como, a fibromialgia e a insônia. Isso tudo foi me incapacitando. Só consegui fazer o meu papel de escritora, porque determinava meu tempo e o horário. Fui mãe em tempo integral e não carrega qualquer culpa: eu fiz o melhor. Eu me superei pelo meu filho e pelo meu marido até ficar estável. Por isso, eu sofri tanto vendo Mikhael daquele jeito. “Por que, meu Deus, essa doença? Por que a minha maldita genética de novo? E o Daniel, de novo viver coisas assim? Ele não merece isso!“ * * * * * Um pesadelo. Uma desgraça. Era inteligente, até demais. Esperto. Queria “ver a bola azul“; fazer planos de viagens que não chegou a hora de acontecer. A porta entreaberta! Uma saída! 44 “Você não precisa ser playboy“. “Mikhael é gente como a gente“. De fato. Ele não desprezava ninguém. Ninguém era ínfimo demais para ser visto. “Aqui é chato. Um marasmo. Não tem nada para fazer“. “Como você aguenta? Você vai obedecer seus pais?“ Ele se aproximou de umas meninas primeiro. Uma tinha os pais mais permissivos do mundo; a outra era borderline e a mãe optava pelo “dado menor“. Bebida? Em casa tudo bem. Quem se importava que haviam menores de idade? Pais viajando e companhias bebendo até cair. Então, claro, atrás das garotas tem os rapazes. Às vezes, maiores de idade e com carro. Como o Mikhael estava nesses lugares? Mentindo. E nós acreditávamos nele. Ensinamos a não mentir. Mas, ele não seguiu o que ensinamos. “Vamos, Mikhael?” E ele foi. A porta entreabrindo, a porta do Mundo! “Bebe aí, cara!” 45 Nas primeiras vezes: “não, eu não bebo”. “O cara não bebe!” Então, um dia experimenta. Certo dia, meio sem querer, ele me conta, do cara que perdeu a carta porque entrou na contramão a toda. Verdade? Podia ser. Na última viagem com o pai, nas férias, depois da formatura, tudo acabava de vir à tona. As saídas. As mentiras. Quando achávamos que ele estava na casa de vizinhos próximos, protegido… Ele estava no carro de um maluco. Na viagem mesmo com dinheiro no bolso, pegou um souvenir numa loja. “Sou menor“. “Estou sem documento.” De onde vinha essa cultura de rua? Eu estudei isso. Sabia disso. A importância do grupo para o adolescente. Apesar de tudo, Mikhael aos 13 anos, 14 anos, quando tudo começou era criança. Não conhecia a malícia e a maldade da vida. A terapeuta chefe da clínica colocou de forma muito simples. “Por que? Mas, por que ele se afastou de todos os valores que ensinamos?” “Pelo grupo. Pela aceitação do grupo”. O grupo que tinha libertado ele: para o centro de São Paulo, rua 25 de março e locais longe de casa. Quando começaram os sintomas da doença, veio a avalanche, tudo desmoronou de uma vez; onde estavam os grandes amigos? 46 Saindo da pizzaria com o pai no sábado, Mikhael ia até ao McDonald’s encontrar uma amiga. Estava cinco a dez minutos de distância. Mikhael não chega. Ela liga para o Daniel, que ficou esperando na pizzaria. Quando saiu para procurar, ao passar pelo “point” ele viu: alguém dando uma garrafa na mão do meu filho e ele virando goela abaixo. Ele não podia passar por ali. Estava tudo bem até então. “Vai, aí?“ E a desgraça aconteceu. Uma vida interrompida. Aprendi livre-arbítrio. Ele já não conseguia nem queria parar de fumar ou beber. “Nãovou mais mentir pra vocês”, era vontade de acertar. “Mas se eu sair, eu vou beber”. Confesso que ficávamos indignados. Tivemos uns dias bacanas durante uma das suas últimas semanas de vida. Na sexta-feira, à noite, falei que até a Bíblia não era contra beber, porque Jesus tinha transformado água em vinho. O problema era se embriagar. Falei, ao nos despedirmos “Tenha juízo; não misture bebidas. Evite destilados…” Não adiantou. Talvez, ele até quisesse obedecer, mas não podia. Os vícios eram uma tentativa de aplacar a dor da doença. Quando eu e Daniel olhávamos para ele, não o víamos mais. Não era mais ele. Seus olhos estavam diferentes. Até sua respiração. 47 “Quais são seus sonhos para o futuro?” - perguntou a última psiquiatra - com 35 anos de experiência com adolescentes. Ficou com ele numa consulta de quase duas horas. Não havia sonhos. Não havia horizontes. A vaga no IPQHC deu esperança a todos nós. Até ele se animou; ajudou Daniel a fazer a mala. Na sexta- feira ele se encontrou com as amigas, mas pediu pra ser buscado muito mais cedo. “Ah, Papa… Acho que perdi a capacidade de me relacionar com as pessoas. Fiquei tanto tempo sozinho no quarto. O contato social me cansa.” Eu o vi pouco nesse dia. Deus tinha pedido que eu me afastasse um pouco dele, e que eu poderia demonstrar que estava magoada. Ele vinha me agredindo muito. Falando coisas horríveis. “Lembrava” de fatos ruins que jamais aconteceram. E, afirmava não se lembrar das coisas boas. Na hora da fúria, gritava que me odiava. Os olhos dele mostravam ódio. Ele sabia que errava, mas quando vinham esses impulsos de agressividade, eram incontroláveis. Ele passou a se punir. Passou a dormir no chão: “não mereço dormir na cama”. Se cortava novamente. Mereço sentir dor. Uma fase terminal de uma doença pavorosa. Depois vinha, chorava, pedia desculpa e dizia que amava. * * * * * No dia da internação na clínica, engolir as lágrimas e fazer o que precisava. Ambulância, triagem e internação. 48 Despedida. Na volta para casa eu não conseguia respirar. Só abri o vidro do táxi, e olhei para fora. “Não prefere o ar?“ “Preciso de ar” Dez dias de espera para primeira visita. Um tormento. Daniel chorava o tempo todo. Entrei no modo frenesi “arrumar tudo” para a volta dele. E chorava também. É lógico. Parecia que tudo ia ficar bem. Quando ele voltou para casa, fazia tempo que não via meu marido tão feliz, tão alegre! Durante alguns dias, ele é o nosso Mikhael de novo. Entretanto, era esperado que houvesse recaídas, para depois estabilizar. E houve. E ouvir choro, lágrimas no escuro e torrentes de frases em inglês, que eu escutava. Meu coração cortado e sangrando. Porque o dele também estava partido, quebrado, sangrando e se tornando oco. Tudo que ele foi até os 14 anos se diluiu como tinta posta na água. Cada vez mais transparente, até não haver nada. Então, começaram as alterações de medicação. Com elas, alterações de apetite e de metabolismo. De humor. De agressividade. De sono. 49 Ele passou por uma compulsão alimentar severa. Só ingeria açúcar e carboidratos em quantidades enormes. Ganhou peso. Não chegou a faixa de sobrepeso, mas estava bem além do que costumava ser. Diante disso, a maldosa doença fez com que ele tivesse asco do próprio corpo. Chegou ao ponto dele não conseguir entrar no banho e ver o próprio corpo, com isso não tomava banho. Não queria se ver “gordo“, embora seu IMC estivesse dentro da normalidade. Lavei seu cabelo duas vezes, porque era choro, desespero, insegurança. “Oh, Deus, meu Deus…”. Bulimia. Anorexia. Dias sem comer nada, porque estava gordo, feio, horroroso. Não adiantava falar, implorar, dar bronca, e explicar os efeitos daquilo a longo prazo… Não há palavras para descrever nosso desespero. O quadro dele cada vez agregava mais alguns diagnósticos, dependência química do álcool, anorexia, depressão e borderline. Sem falar no fumo desenfreado. Um quadro muito grave. Naquela sexta-feira, 21 de dezembro de 2018, a esperança do Hospital das Clínicas. 50 Eu conheço o serviço; a equipe é multidisciplinar, é um dos hospitais escola da USP, um trânsito de residentes, professores e troca de alunos o tempo todo. As pessoas são separadas por idade e por diagnóstico, não é uma miscelânea. Certamente, ele será entrevistado por um grupo de alunos internos, o que significa receber atenção exclusiva, de pelo menos três ou quatro alunos, além dos médicos, equipe de enfermagem, equipe de psicologia. É um lugar onde muita coisa acontece e há muito respeito pelos pacientes. * * * * * No dia 22 ele se matou. No dia 23 de dezembro, no dia em que a médica encerrava seus atividades do ano, a vaga no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas surgiu. Ela ligou, toda contente, no fim da tarde: “tenho boas notícias!” - disse ao Daniel. “Naquele dia mesmo eu dei andamento no pedido da vaga, queria encaminhar o Mikhael o quanto antes. Pedi urgência, mas nem acreditei que a vaga surgiu hoje, no domingo?! Olha, vocês tem que ir pra lá e dar entrada hoje…“ “Doutora… Não adianta mais” “Como assim?“ “Acabei de sepultar meu filho. Ele se suicidou“. 51 Uma médica experiente. Que tinha dado guia de encaminhamento para o serviço de enfermaria em que ela confiava, caso houvesse a mínima intercorrência, antes de surgir a vaga. Ela disse que não viu sinais de que havia perigo iminente. Nem o Daniel, nem eu, porque ele chegou contente do encontro com as amigas. Daniel foi deitar. Quando percebi, Mikhael tinha desligado a televisão e também foi dormir. Fui me deitar às 6h30 da manhã. Alguma coisa aconteceu à noite… Medo de ser internado de novo. Ele havia dito que se mataria antes disso acontecer, mas foi um pânico não premeditado. Eu choro e me pergunto: “por que ele não veio até a sala como tantas vezes fez, e quando não conseguia dormir?”. Deitava no sofá, ficava mexendo no cabelo dele e aí, rapidamente ele adormecia. “Por que eu não fui lá antes dele dormir? Por que não fui falar melhor do IPQ para ele?”. É que ele já sabia tudo, inclusive que o horário das visitas era liderado. E, todos os dias. O pai ou mãe podiam inclusive dormir com ele. Isso, na hora da consulta, o deixou contente. Nós também. Havia muita esperança no ar… * * * * * 52 Ele devia estar esperando eu subir para deitar. 6h30. Saiu pela janela. O horário da morte foi 8h12 da manhã. E ele se foi. Sem um bilhete. Sem um abraço de despedida. Sem pestanejar. Um acesso de loucura. Foi uma doença terrível, que transformou sua personalidade completamente. O Mikhael que nós criamos, o Mikhael que todos conheciam, nunca agiria assim. Mas a dor tinha que acabar. * * * * * E a desgraça desse ano, pela Graça do Pai, com o tempo, com a cura das feridas e dos espinhos, vai diminuir até um latejar surdo. Vão ficar as saudades, que já são grandes, porque ele já não estava aqui, há muitos meses. Era uma casca que respirava, uma pessoa desconhecida, imprevisível e sofrida. Doía nele. Doía em nós. Eu queria poder não olhar, queria poder fugir… Eu queria ficar no lugar dele. Como pedi pra Deus mais uma vez, “deixa o Mikhael bem; eu vou aguentar melhor; estou mais acostumada a esse tipo de dor”. Eu experimentei todos os sintomas dele, até anorexia, compulsão… Meu coquetel de remédios dava arrepios nos cabelos de qualquer um, até dos médicos. Se alguém precisava morrer, podia ter sido eu. Nem nos nossos piores pesadelos podíamos imaginar esse desfecho. Compreendemos o propósito. Aceitamos o propósito. Mas a dor é grande demais. 53 Em breve, estaremos juntos. Pena que a máquina de tempo terrestre é tão lenta. Como Paulo, terminaremos com honra. Não falta muito… “Combati o bom combate, terminei a carreira; guardei a fé”. * * * * * 54 55 Mikhael Conta Página 1 Eu seique não sou importante para você garota, mas você é muito importante para mim. Onde você está? Fique tranquila, eu volto amanhã. Meus amigos te xingam, porém eu entendo eles, falo com você uma vez por semana. Acordei em um dia muito estranho, não senti que estava acordado, era como se ainda estivesse em um sonho. Quando se tem insônia, você nunca sabe se está acordado ou não. By C. (colega de clínica – escreveu no diário) Página 2 Eu acho que cheguei num ponto que não há nada a fazer... então, eu vou escrever algumas palavras aqui. Eu vou começar contando a todos vocês sobre pessoas que conheci aqui. C.: ele é bom, um dos poucos amigos aqui... Infelizmente, ele está saindo em 5 dias! Quero dizer, eu estou feliz por ele, claro, mas vai ser esquisito sem ele aqui... 56 A.: ele é o cara MAIS ESPERTO nesta merda de lugar! Ele é tipo tímido e antissocial, mas ele é um cara bom, uma vez que você começa a conhecê-lo um pouco mais. Ontem à noite, ele teve que ir para a Enfermaria Intensiva H. (ou L. apelido): Ela é uma menina tão fofa quando está feliz!!! Quando eu a vi pela primeira vez, ela estava no sofá chorando. Eu também estava preocupado com ela, porque eu não a tinha visto o dia inteiro... Página 3 Ch.: no começo eu gostava dele, mas então eu percebi como ele era infantil (e ele é também muito violento). An.: Ele também estava saindo em apenas alguns dias. Eu não estou tão triste em relação a ele, porque eu falei com ele somente uma vez. Eu tenho que dizer que ele é muito engraçado e tudo, mas para mim, ele não parece ser uma boa pessoa. * * * * * É a mesma hora desde que escrevi aqui, mas eu quero dizer algumas coisas... Eu ainda acho que An. é uma pessoa tóxica, mas eu quero conhecê-lo um pouco melhor. “Você sabia que ele é adotado?”. Agora, eu acho que posso entender sua culpa um pouco melhor... Sua família toda não gosta dele, porque ele é alcoólatra e tudo... Mas, ele quer ficar melhor, eu posso sentir isto. 57 Página 4 Bom, deixando este episódio, podemos continuar? Jo.: Ele é grosseiro, irritante, barulhento e violento. Basicamente, eu não poderia odiá-lo mais. Mw: Ele é super legal, gentil e fofo, mas algumas vezes ele fica tão triste... Pobre Mw. Fullulu: Este é um nome falso, claro... Mas, deixe-me contar sobre este garoto... Ele é um idiota, e eu odeio sua personalidade. * * * * * Eu, definitivamente, odeio depressão... Por que eu tenho que ser depressivo? Por que alguém tem? Depressão levou tudo de mim... Minha casa, minha família, meus amigos, meu foco nos estudos, minha saúde mental e a coisa mais importante de todas: Página 5 MINHA FELICIDADE. Bem agora, eu estou triste, e queria saber, porque?! Eu não estou arruinado, sabe!!! Este tipo de coisa acontece o tempo TODO, e agora eu também estou irritado, porque eu não consigo ficar melhor. * * * * * Eu fumei novamente. Eu estava tentando parar, mas eu consegui somente quatro dias... Eu vou tentar novamente algum dia... Eu espero. 58 Hoje, tivemos uma briga enorme no corredor. Ch. contra Harry Potter. KKK! Ch. foi para a EI (Enfermaria Intensiva), e a enfermeira foi empurrada pelas costas (arremessada). * * * * * Eu não me sinto bem, estou preguiçoso e perturbado. Isto tem poucos dias, mas eu estou pior hoje... Eu espero que eu fique melhor amanhã, mas eu não tenho certeza de que isto acontecerá. * * * * * Outro dia, começou no inferno e aqui eu estou. Eu me sinto um pouco melhor (só um pouco). Eu acho que a febre está diminuindo, finalmente. Sobre a briga de ontem, nós nos ferramos, porque agora TODOS os garotos estão trancados na área dos quartos. Página 6 MERDA, EU GOSTARIA DE ESTAR MORTO de novo. Página 7 59 Eu ainda não estou bem quando se trata da minha doença, mas quem se importa, certo? Hoje, estou ficando realmente estressado com um garoto chamado Aracú (nome falso novamente, garotos não se preocupam comigo). Este filho da mãe não gosta de mim, por desconhecidas razões, e ele não para de roubar minhas coisas. Ele é uma das poucas pessoas aqui que eu realmente não gosto, se não for o único. Há muitos outros filhos da mãe aqui, mas Aracú é o único que eu não posso lidar, e fazer coisas um pouco piores, como você já sabe, todos os garotos estão trancados na área dos quartos masculinos! Você pode entender o que eu estou dizendo? * * * * * Poema Tentar mudar sua mente É como o tempo E você não faz Meu coração bater como você costumava fazer... Eu tenho esperado por um sinal Nós poderíamos salvar uns aos outros para o melhor Página 8 Minha mente é uma pista 60 E está ficando difícil de respirar. Você está lá? Me conte Você está lá? Mude se você quer mudar Você está lá? Me conte Você está lá? Talvez, um dia nós voltaremos juntos. * * * * * Todo o meu corpo dói, pessoas acham que eu estou depressivo novamente, mas é só uma dor física que eu sinto. O que mais me dá raiva é que basicamente tenho que implorar para a enfermeira por uma simples medicação. * * * * * Você sabe, eu sofri muito bullying quando eu era mais novo, e agora eu sinto que irá começar tudo de novo. Página 9 61 Aracú, simplesmente não me deixará sozinho. E já falei para todos vocês que ele está sempre tentando roubar minhas coisas, mas agora ele não vai parar de jogar coisas no meu cabelo e me incomodar. Eu sei que não é muito, mas eu já passei por isto antes, sei que isto é só o começo. * * * * * Eles roubaram minha caneta e está ficando difícil não chorar... Se as coisas não melhorarem logo, eu vou me matar... A coisa é: Como eu vou me matar num lugar especialmente feito para tomar conta de suicidas? * * * * * Por alguma razão, a clínica está quase vazia, mas Deus, como parece enorme! Sem todas aquelas pessoas irritantes, este lugar pode ser realmente muito relaxante... A enfermeira pensa que eu estou triste, mas não é agradável ter tempo para você mesmo? * * * * * Tem poucas horas desde que eu vi Aracú pela última vez. Página 10 Eu não sei o que aconteceu com o garoto, mas eu não me importo, porque é maravilhoso não tê-lo ao meu redor... 62 * * * * * Eu realmente não sei o que está acontecendo comigo, mas por alguma razão eu não aguento mais o Fullulu. Eu já disse que eu não gosto da personalidade dele, e talvez seja isto! Ele é tão idiota! * * * * * Página 11 Eu tenho uma coisa boa para contar agora: meu pai me disse que ele não me deixará aqui por mais de um mês. * * * * * Eu estou bem triste agora, tudo o que eu quero fazer é chorar... Infelizmente, eu não posso, porque provavelmente eu teria que ir para a Enfermaria intensiva... DESENHO Cabeça do Menino: “minha mente” Balão: esta é a razão... para chorar?! Círculo: literalmente nada 63 Pelo menos, Aracú está lá agora, porque ele amaldiçoou um dos professores. Kk. * * * * * Hoje eu me sinto muito melhor em relação a tudo! Mas, as pessoas parecem não acreditar muito nisto... Eu não vou mentir, eu estou com receio deste dia, porque todas às vezes em que acordei me sentindo bem, as coisas acabam num dia ruim... * * * * * Nós fomos ao jardim por uma hora, e é muito relaxante porque quase todos os meninos vão jogar futebol ou se jogar na piscina, e somente eu e a professora (o nome dela é T., e ela é legal), e meus poucos amigos, é claro, ficamos conversando. Página 12 Mas, eu gostaria de dizer: EU TENHO QUE me livrar do Fullulu! Ele está ficando SUPER irritante... Ele só fala sobre o quanto ele quer um cigarro, e o quanto violento ele é... blá blá blá. Eu acho que ele está se tornando tóxico como o inferno, para uma pessoa como eu (um depressivo), porque ele só reclama sobre tudo, e eu tenho que me manter positivo. Algumas vezes, ele vem bem na minha frente só para cortar seus braços, QUE DROGA?! O que você está tentandofazer? Chamar minha atenção? Me fazer ficar aqui um pouco mais? Não sei, mas está me estressando de verdade. * * * * * 64 Eu sempre quis falar (atualmente escrever, não me importa kk) sobre um jogo aqui, mas eu nunca tive paciência. Apesar de que agora, eu não tenho nada para fazer! Eu acho que este é o melhor momento para isto! O jogo sobre o qual eu vou falar é: Persona 5. Página 13 Persona 5 é um JRPG, liberado no início de 2018. O jogo conta a história de um adolescente chamado Hitsu, que é injustamente processado por violência contra um político. Ele é levado para Tokio, no Japão, e ele vai passar um ano sob liberdade condicional, de outra maneira, ele vai ter um registro criminal para o resto da sua vida. Hitsu agora estuda na Academia Shujin, e lá, ele encontra um enorme segredo, que mudará sua vida para sempre! (Você vai ter que jogar se você quiser encontrar Niggy). Quando se trata da jogabilidade, nós temos duas diferentes “partes”: no mundo real, quando você vai viver a vida de um adolescente normal, significa que você vai ter que estudar para as provas, sair com os amigos que você faz ao longo da história, conseguir emprego, etc. Atenção: Eu vou continuar falando sobre P5 quando eu estiver a fim, ok? Página 14 Se há uma coisa que eu já aprendi sobre este lugar é que TODOS os domingos são chatos como o inferno (eu poderia dizer que todos os dias aqui são chatos, mas esta clínica realmente tem seu pontos altos). * * * * * 65 “Era uma vez, o dia em que todo dia era bom, delicioso gosto e o bom gosto das nuvens serem feitas de algodão. Dava para ser herói no mesmo dia em que escolhia ser vilão, acabava tudo em beijo, colo, um carinho e talvez um arranhão. E tudo voltava a ser novo no outro dia sem muita preocupação. É que a gente quer crescer, e quando cresce quer voltar ao início, porque um joelho ralado dói bem menos que um coração partido”. Página 15 Tradução da letra da música de inglês para o português. * * * * * Página 16 e 17 Página 18 Às vezes, eu me pego pensando... Quando as coisas ficaram tão erradas? Quando eu cheguei aqui? 66 Minha vida era feliz, algum dia... Quando eu era uma criança! Eu não tinha amigos, de qualquer maneira, mas eu não me importava! Eu costumava assistir desenhos como Pokémon e Scooby-Doo, jogar vídeo game, escalar árvores e muitas coisas. Mas, então eu cresci e, pouco a pouco, este Mikhael morreu e agora seu corpo morto permanece perdido no meu passado. Pirulitos tornaram-se cigarros. O delicioso suco de laranja feito pela mamãe virou vodka pura. Ambos ilegais. Eu fiquei triste com todos estes acontecimentos, então eu percebi pela primeira vez que eu não temeria mais a morte. Então, eu tentei, eu tentei acabar com esta vida, eu quase consegui, mas eu tive sorte (sorte ou azar?). Página 19 E depois disto tudo eu acordei em um hospital, tudo escuro, eu mal conseguia ver nada, mas eu pude ouvir minha mãe chorar, então eu perguntei a ela: - Mãe, o que aconteceu? - Você está em coma por quase um dia, filho. - Você pensou que eu ia morrer, mãe? - Sim, eu pensei. E, então eu adormeci novamente. 67 E, finalmente, eu cheguei aqui, o pequeno pedaço do inferno que nós chamamos de Clínica. * * * * * Eu apenas explodi com Fullulu. Ele não parava de cortar seus braços na minha frente! Agora, eu estou estável, mas eu estou me esforçando para me manter assim e tudo, e se eu tiver que excluí-lo da minha vida, então eu farei. Página 20 C. está saindo amanhã... Eu não posso falar de verdade como eu estou me sentindo... Porque eu não sei... Eu estou feliz por ele, triste porque eu não vou vê- lo novamente (por enquanto), assustado porque eu estou perdendo um dos meus dois amigos aqui (e não ter aliados aqui pode ser perigoso). Basicamente, tudo está misturado na minha cabeça agora. * * * * * Eu já te contei que aqui todas as noites nós temos uma questão? A questão de hoje à noite é que os meninos quebraram uma cama! Foi um escândalo! A coisa boa é que meu colega de quarto foi para a EI (Enfermaria Intensiva). Ele não é um garoto ruim, mas agora eu tenho o quarto só para mim! 68 * * * * * Página 21 E, finalmente o dia chegou. C. está oficialmente terminando sua história aqui na clínica em poucas horas. Isto é estranho como o inferno! As coisas, definitivamente, estão ficando piores para mim aqui. Eu acho que a melhor coisa para mim agora é: novos aliados! Quanto menos aliados você tem, mais vulnerável você ficará. * * * * * Sim, é isto... C. foi para a realidade agora. Eu dei a ele meu boné roxo, pelo menos ele terá alguma coisa para se lembrar de mim. Kkk. Eu não estou triste (só um pouco), eu só estou chocado... Quem vai incomodar Aw. e nos fazer dar risada? Quem vai me acordar de manhã? Merda, nós perdemos um amigo. * * * * * 69 Há um garoto chamado Di. aqui, e ele é definitivamente, muito estranho. Página 22 Ele dorme o dia todo, mas hoje ele estava acordado, e enquanto ele tava falando comigo, eu percebi algumas coisas, ele queria que eu escrevesse uma carta para a L. (lembra dela?), então ele ficou bravo comigo porque ele não gostou da carta que eu escrevi. Ele também é um idiota! Ele pensa que homossexualismo é errado, porque “a bíblia diz que é”, e ele é gay. Mas, esqueça sobre todas estas loucuras! Vamos falar sobre coisas boas! Hoje é meu 16º dia aqui, e eu estou indo para o dia 20! Agora, pense comigo: se eu vou sair em 30 dias, então eu deveria sair em 14 dias! Isto é realmente legal! * * * * * Aracú está de volta, mas para minha surpresa, ele não está me incomodando muito. Isto é muito bom, hehe. Agora, todos os garotos estão jogando futebol americano, menos eu e A., kkkk... Página 23 A. está lendo um livro sobre um serial killer, e eu estou escrevendo várias coisas aqui. 70 É interessante assistir ao comportamento de todo mundo. Mw., por exemplo, estava tentando ser legal com os mais novos, mas neste ponto do jogo, ele está muito estressado, eu acho. * * * * * Eu acabo de receber uma grande bomba! Fullulu GOSTA DE MIM!!! Como, inferno?! Eu estava lendo o meu livro e ele entrou no meu quarto. Ele me disse: - Há alguém que eu gosto, mas esta pessoa não gosta de mim (não retribui)... Então, eu perguntei: - Quem? - VOCÊ Página 24 QUE DROGA! Eu fiquei em PÂNICO! Eu não quero que ele fique com o coração partido, mas o que eu posso fazer? Namorar ele contra a minha vontade? DE JEITO NENHUM! Eu até tentei conversar com ele, mas ele ficou bravo e saiu... Eu até pedi conselho para o Aw.! Ele só podia rir, mas como eu posso culpá-lo?! Até eu estava rindo muito, porque eu não estava esperando por isto, de qualquer maneira! 71 * * * * * Página 25 Agora, eles roubaram minha caneta de verdade. Eu estou escrevendo com um lápis que eu encontrei. Eu sabia que eles a roubariam de qualquer jeito, por que eu estou surpreso? * * * * * Fullulu até tentou se matar, isto é uma grande merda! Esta MERDA de inferno não pode ficar pior agora. Ele veio até mim e disse que foi bom ter me encontrado, e foi para o seu quarto. “Que esquisito” eu pensei. * * * * * A cena do M. (nome real do Fullulu) não sairia da minha cabeça. Todas as vezes que eu fecho meus olhos, eu vejo os mesmos flashes. Era horrível. Eu tenho certeza que eu não vou dormir esta noite. Eu, provavelmente, vou conversar com a Y. (uma das médicas aqui), e buscar algum conselho. * * * * * Página 26 M. ainda não está de volta, e eu meio que já sabia o que aconteceria, mas agora está ficando real: eu nunca verei M. novamente. Eu gostei dele, como um amigo, mas eu sabia: eu vou perdê-lo... Eu me pergunto se ele ainda está vivo. 72 Eu até tive um sonho sobre isto. Eu estava com ele, na clínica, e ele estava conversando com outros garotos, mas seu pescoço estava cortado! Mas,
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