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FACULDADE DE LETRAS E CIÊNCIAS SOCIAIS DEPARTAMENTO DE ARQUEOLOGIA E ANTROPOLOGIA Curso de Mestrado em Antropologia Cultural Reflexão em Volta da Propriedade e suas Mudanças Ribeiro Vasco Nhambi Maputo, Setembro de 2021 Reflexão em Volta da Propriedade e suas Mudanças 2021 UEM – FLCS Ribeiro Vasco Nhambi Página 1 A discussão sobre a propriedade é tão antiga quanto a própria teoria política, sendo que desde o início, a discussão era nomeadamente particularmente sobre a propriedade privada. A propriedade comum foi atribuída à condição primitiva da espécie humana, e reconhecida como existindo ao lado da propriedade privada em formas de parques públicos, mercados, terras comuns, entre outras cujo uso era colectivo. Para Macpherson (1978), o facto de ter feito isso pode ser visto como um reflexo da mudança dos factos. Onde dos séculos XVI e XVII em diante, a terra e os recursos nela estavam se tornando propriedade privada, e ao mesmo tempo a propriedade privada estava se tornando um direito individual ilimitado, incondicional no desempenho de funções sociais e livremente transferível, como permanece actualmente em alguns lugares. Benda-Beckmann et al. (2006), afirmam que a classificação de objectos de propriedade e os regimes de propriedade legal têm sido discutidos ao longo da história, tornando-se o foco das lutas em todos os níveis de organização social, seja entre famílias, comunidades, classes e estados. Onde as elites governamentais buscam regularizar e mudar os regimes de propriedade como instrumento de acumulação de riqueza para seu próprio benefício. Tanto as ideologias de regimes de propriedade passados, assim como as do presente, e possivelmente do futuro são sistemas de propriedade que estruturam as maneiras pelas quais a riqueza pode ser adquirida, usada e transferida. Propriedade é uma ideia multifacetada que muda com o tempo, sua definição tem sido compreendida de várias maneiras como coisas, como relações de pessoas com coisas, como relações pessoa-pessoa mediadas por meio de coisas e como um feixe de direitos abstractos (VERDERY & HUMPHREY, 2004). Sendo a propriedade um modelo nativo ocidental, ela actua de forma poderosa no mundo contemporâneo. Registam-se mudanças em como a "propriedade" funciona no mundo, diferentes de como era a partir da década de 1980. A busca por uma nova definição não seria a maneira mais proveitosa de pensar sobre propriedade, o necessário seria conhecer o conceito de propriedade mantido em diferentes sociedades, considerando-a como objecto etnográfico. Ao em vez de buscar uma melhor definição, o correcto seria perguntar como esse conceito funciona, quem o usa, para quais propósitos e com quais efeitos do mesmo. Reflexão em Volta da Propriedade e suas Mudanças 2021 UEM – FLCS Ribeiro Vasco Nhambi Página 2 A maioria dos economistas entende a propriedade como um meio de regular o acesso a recursos escassos, atribuindo direitos de pessoas sobre eles em relação a outras pessoas (VERDERY & HUMPHREY, 2004). Pelo facto dos recursos serem escassos, a visão económica assume a atribuição do direito de propriedade como uma maneira de descobrir de maneira que obter esses recursos e manter os outros fora. A atribuição do direito de propriedade, as pessoas terão um incentivo para trabalhar bem e usar os activos de forma eficiente, disciplinado pelo mercado. A antropologia aprece para contraria ou guiar este pensamento de se olhar a propriedade em apenas um campo, o económico, propondo que se olhe para as outras como é a questão, como por exemplo o social. Não há dúvida que a instituição e o conceito de propriedade são o centro dos actuais debates tanto para o capitalismo, quanto para o socialismo. Onde a instituição real, a maneira como a pessoa a vê assim como o significado que atribuem à palavra propriedade mudam com o tempo, e as mesmas estão ligadas às mudanças no propósito que a sociedade ou as classes dominantes na sociedade esperam que a instituição da propriedade sirva. Isso para dizer que a propriedade é uma instituição e um conceito, que com o tempo tem exercido uma influência mutua. Há uma diferença entre o uso actual da palavra propriedade quando comparada ao significado inicialmente atribuído pelos sistemas jurídicos, onde era tratado como assunto para filósofos, juristas e teóricos políticos e sociais, e que actualmente é tratada como coisa, enquanto na lei e nas escrituras, a propriedade é um direito, ou direitos sobre a coisa. Quando por lei, se faz a distinção entre propriedade e uma simples posse física, esta se definindo a propriedade como um direito, diferença essa que ate as sociedades primitivas fazem, a qual é valida tanto para terras comuns quanto para propriedades individuais que existiam. Macpherson (1978), afirma que ter propriedade significa direito no sentido de uma reivindicação executória a algum uso ou benefício de algo, seja um direito a uma participação em algum recurso comum ou um direito individual em algumas coisas particulares. O que distingue a propriedade da simples posse transitória é o facto de a propriedade ser uma reivindicação que será executada pela sociedade ou pelo estado, pelo costume, convénio ou lei. Reflexão em Volta da Propriedade e suas Mudanças 2021 UEM – FLCS Ribeiro Vasco Nhambi Página 3 Ambos os usos podem ser rastreados historicamente até aproximadamente o mesmo período, o período da ascensão da sociedade de mercado capitalista (MACPHERSON, 1978), fazendo essa busca podemos ter uma pista em relação ao surgimento dos dois usos, e com isso seremos capazes de ver por que cada um está se tornando, ou provavelmente no que se tornará futuramente. A definição de propriedade como direito para algum uso ou benefício de algo é tomada para descartar a ideia de propriedade comum. Mas a sociedade ou o estado podem declarar que algumas coisas, por exemplo, terras comuns, parques públicos, ruas de cidades, rodovias como de uso comum, onde o direito de usá-los é então propriedade de indivíduos, em que cada membro da sociedade tem um direito sobre ela (MACPHERSON, 1978). O estado é responsável por racionalizar o uso, assim como pode limitar os tipos de uso, mas o direito de usar as coisas comuns, embora Limitado, é um direito dos indivíduos. A legalidade do direito de propriedade e sua permanência não se devem somente à imposição política e económica que pesa sobre os subjugados e a efeitos ideológicos que convenceriam os explorados quanto aos seus benefícios, as quais devem-se à relação íntima que existe entre a propriedade e a subjectividade do indivíduo moderno. A propriedade é vista como uma protecção em relação à autoridade pública, como um bastião das liberdades diante da domínio e da intromissão, como essa moldura inventada estabelecendo os limites entre espaço privado e espaço público. Mas, de modo ainda mais profundo, a propriedade é também um assunto da antropologia, ela tornou-se integrante do nosso modo particular de ser humano. O capitalismo baseado nos direitos de propriedade individual, é mais que um sistema de trabalho historicamente transformável, ele assenta numa maneira singular de estar no mundo, fortalecida de forma continua por ele através de sua extensão a actividades abundantes e espaços vastos. A propriedade comum é criada por garantia para que não haja exclusão no uso ou aproveitamento de algo para qualquer indivíduo, enquanto a propriedade privada é criada para garantir que um indivíduo pode excluir outros do uso ou benefício de algo. A propriedade estatal consiste em direitos que o estado mantem para si ou assumiu de indivíduos ou empresas privadas. Os direitos que o estado detém são semelhantes aos direitos de propriedade privada, pois consistem no Reflexão em Volta da Propriedade e suas Mudanças 2021UEM – FLCS Ribeiro Vasco Nhambi Página 4 direito de uso e benefício, e o direito de excluir outros. A propriedade estatal é um direito exclusivo de uma pessoa artificial. A propriedade entrou em uso na antropologia e em outras ciências sociais no momento da reforma da economia capitalista global, na medida que a informação começava a superar a terra ou a servir como base para acumular riqueza. Uma forma de tentar capturar informações é criar direitos de propriedade intelectual sobre elas, o que as tornará escassas. A suposição economicista de que a escassez é a base dos direitos de propriedade, uma visão que pressupõe que os recursos são "naturalmente" escassos precisando ser explorados de forma consciente. Para John Locke, a propriedade é natural, tornando-se um problema apenas com o desenvolvimento de uma economia monetária, ponto em que os homens devem criar um governo de modo a regular o uso das propriedades já existentes pelas pessoas (VERDERY & HUMPHREY, 2004). O contexto colonial justificou o direito de propriedade como necessário para a protecção de pessoas e propriedades, tornando-a uma justificativa fundamental para o governo na prática. A crescente autenticidade da "propriedade privada" está amplamente associada ao avanço do capitalismo em suas várias formas e à difusão do discurso neoliberal em novos ambientes. A propriedade privada é colocada contra os "bens comuns" abertos, por um lado, e contra as formas estatistas de propriedade, por outro. A propriedade pode ser vista de várias maneiras como conjunto de relações, como um símbolo político poderoso, como processos de apropriação, e também como uma categoria de origem ocidental que tem fortes efeitos no mundo. O erro da privatização foi ver uma forma de propriedade privada como universal, natural e imparcial. A privatização se baseou em um princípio ideológico que levou a propriedade a ser chamada como um símbolo político. Um processo semelhante é mostrado na literatura tanto sobre as reivindicações de terras nativas quanto sobre o reconhecimento cultural, pois os povos para os quais esse conceito não era indígena descobriram que usá-lo lhes permitia fazer reivindicações substanciais sobre as políticas que os incorporaram. De todas essas maneiras, vê-se a propriedade em acção, revelada com mais clareza por ter sido questionada. Reflexão em Volta da Propriedade e suas Mudanças 2021 UEM – FLCS Ribeiro Vasco Nhambi Página 5 Os modelos de propriedade que se buscam universalizar são aprimorados nas categorias legais ocidentais, sendo a mais importante a noção de propriedade privada individual, considerada no auge da evolução jurídica e económica como uma pré-condição para economias de mercado eficientes. Facto que levou o seu mau entendimento pelas sociedades do Terceiro Mundo. Existe uma variedade de concepções de propriedade, essa variedade faz parte da melhor maneira de pensar antropologicamente sobre a propriedade. Os estudantes de propriedade devem buscar descobrir se as pessoas em estudo têm um conceito de propriedade e a que isso equivale. Que termos eles usam, com quais significados e em que circunstâncias? Só porque alguém se refere a "minha terra" não significa que ele ou ela esteja falando sobre propriedade privada; ele também pode estar se referindo a terras sobre as quais tem apenas direitos de uso, mas para as quais esses direitos são suficientes para que ele pense na terra como "sua" ou "dela" (VERDERY & HUMPHREY, 2004). Os passivos de propriedades como a terra, repentinamente transferidos do estado para os ombros dos indivíduos, diminuem drasticamente seu valor, pelo menos no curto prazo. O acesso e o uso da terra constituíam-se em complexos vínculos sociais e espirituais entre pessoas e lugares territorialmente delimitados, por meio de laços que não tinham uma existência abstracta, mas eram activados em encontros sociais e rituais. A análise de regimes de propriedade tem sido prejudicada pela ausência de um organismo analítico rígido, através de pesquisas antropológicas que busquem retornar aos seus fundamentos anteriores que raramente são usados de forma consistente de modo a apreender os diferentes papéis que a propriedade pode desempenhar, assim como sua complexidade e múltiplas variações que acontecem consoantes a sociedades e em diferentes períodos da história (BENDA- BECKMANN et al,. 2006). É necessário estender os limites das categorias de propriedade, permitindo o estudo dos conceitos de propriedade à medida que se transformam. O que seria útil para contradizer a tendência generalizada de pensar a propriedade em termos de tipos universais (privado, estatal, comunal, acesso aberto). Na linguagem comum actual, propriedade geralmente significa coisas. A mudança no uso comum, para tratar a propriedade como coisa, teve início com a expansão da economia de mercado capitalista a partir do século XVII e a substituição dos antigos direitos limitados sobre a Reflexão em Volta da Propriedade e suas Mudanças 2021 UEM – FLCS Ribeiro Vasco Nhambi Página 6 terra (MACPHERSON, 1978). A terra começou a ser vista como propriedade quando os direitos sobre a terra se tornaram mais absolutos e as parcelas de terra se tornaram mercadorias mais livremente comercializáveis, Desde o início do século XX, a natureza predominante da propriedade mudou novamente e a propriedade está começando a ser vista como um direito a algo, na maioria das vezes, um direito à receita em vez de um direito a uma coisa material específica (MACPHERSON, 1978). A propriedade esta se tornando um direito, mas este mesmo difere do anterior uma vez que agora trata-se do direito a um rendimento. Com a aplicação da propriedade privada, a sua noção como coisas está sendo substituída pela noção de propriedade como um direito a uma renda. A forma como o direito de propriedade está introduzido no sistema jurídico mais amplo tem implicações para a mudança que vão acontecendo ao longo do tempo. Pode se conter as transformações no direito de propriedade através de uma estrutura mais ampla, pois as sociedades passam por mudanças desastrosas no equilíbrio dos direitos de propriedade entre indivíduos, grupos e a esfera pública, afectando desse modo todo o sistema de direitos de propriedade. Uma vez que, os direitos de propriedade são promovidos e substituídos por outros sem levar em consideração as interconexões existentes, o que faz com que enfrentam grandes dificuldades de implementação e desencadeiam consequências indesejadas. Prestar atenção à natureza sistémica da propriedade e as conjunturas nas quais as relações de propriedade e práticas de propriedade estão inseridas permite estudar a mudança de propriedade em seus contextos mais amplos, sem inferir muito sobre como as mudanças em uma camada afectam as outras camadas, permitindo desse modo ver em que aspectos as novas propriedades são realmente novas. Entendendo as características desses ciclos de influência dentro das classes de regimes de propriedade e em seus contextos mais amplos, podemos entender a relação entre categorias de propriedade específicas e políticas, económicas ou mudança ecológica. Reflexão em Volta da Propriedade e suas Mudanças 2021 UEM – FLCS Ribeiro Vasco Nhambi Página 7 I. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS MACPHERSON, C.B. The meaning of property. Universidade de Toronto. 1978. HUMPHREY, Caroline & VERDERY, Katherine. Introduction: Raising Questions about Property. In: Property in question : value transformation in the global economy. New York- USA. 2004. BENDA-BECKMANN, Franz von; BENDA-BECKMANN, Keebet von & WIBER, Melanie G. Changing Properties of Property. USA. 2006.