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D A N I E L N. S T E R N 0 M O M E N T O P R E S E N T E NA PSICOTERAPIA E NA VIDA COTIDIANA Tradução de CELIMAR DE OLIVEIRA LIMA Revisão técnica de MARIA DE MELO ___ A E D I T O R A R E C O R D RIO DE JANEI RO • SÃO PAULO 2007 CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores dc Livros, RJ. Stem, Daniel N., 1934- S858m O momento presente na psicoterapia e na vida cotidiana / Daniel N. Stem; tradução de Celimar de Oliveira Lima; revisão técnica de Maria de Melo. - Rio de Janeiro; Record, 2007. Tradução de; The Present Moment in Psychotherapy and Everyday Life Apêndice Inclui bibliografia ISBN 978-85-01-07816-2 I. Stem, Daniel N., 1934- . 2. Psicoterapia. I. Título. CDD - 616.8914 07-1221 C D U - 615.851 Título original THE PRESENT MOMENT IN PSYCHOTHERAPY AND EVERYDAY LIFE Copyright © 2004 by Daniel N. Stem, M.D. Publicado mediante acordo com Lennart Sane Agency AB Capa: Olga Loureiro Design Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito. Direitos desta tradução adquiridos pela EDITORA RECORD LTDA. Rua Argentina 171 - Rio de Janeiro, RJ - 20921-380 -Tel.: 2585-2000 que se reserva a propriedade literária desta tradução Impresso no Brasil ISBN 978-85-01-07816-2 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052 Rio de Janeiro, RJ - 20922-970 e d i t o r a a f i l i a d a Em memória de Jerry Para ver o mundo num grão de areia e o paraíso numa flor-do-campo Guarda o Infinito na palma de tua mão E a Eternidade numa hora WlLLIAM BLAKE Sumário Prefácio 11 Agradecimentos 19 Parte I EXPLORANDO O MOMENTO PRESENTE 1. O problema do “agora” 25 2. A natureza do momento presente 45 3. A arquitetura temporal do momento presente 63 4. O momento presente como uma história vivida: sua organização 77 Parte II CONTEXTUALIZANDO O MOMENTO PRESENTE 5. A matriz intersubjetiva 97 6. A intersubjetividade como um sistema motivacional básico e primário 119 7. Saber implícito 135 8. O papel da consciência e a noção de consciência intersubjetiva 145 O MOMENTO PRESENTE Parte III VISÕES DO PONTO DE VISTA CLÍNICO 9. O momento presente e a psicoterapia 159 10. O processo de seguir adiante 175 11. O entretecer do implícito com o explícito na situação clínica 213 12. O passado e o momento presente 223 13. Mudança terapêutica: um resumo e algumas implicações clínicas gerais 247 Apêndice A ENTREVISTA MICROANALÍTICA 257 Glossário 271 Referências bibliográficas 277 índice remissivo 297 Prefácio MUITAS d a s IDÉIAS para escrever este livro teimaram em seguir-me por várias décadas, algumas desde o início de minha carreira, e ou tras desde que consigo lembrar. Talvez a mais insistente delas, que permeia todo o livro, seja o foco nos pequenos acontecimentos momentâneos que formam nos sos mundos de experiências. O meu interesse aumenta quando esses momentos penetram a consciência de alguém e são compartilhados entre duas pessoas. Essas experiências constituem os momentos- chave de mudança na psicoterapia e os pontos nodais nos relacio namentos íntimos cotidianos. Esses são os momentos presentes do título. Ressalto que este livro não trata do significado no sentido clíni co mais comum de explicar o presente em termos do passado e de estabelecer ligações associativas que possam ser interpretadas. Ele aborda a experiência no momento em que está sendo vivida. É es sencial ter isso em mente. Meu interesse pelo momento presente surgiu nos anos 1960-70, quando comecei a usar filmes e vídeos, que funcionaram como uma espécie de microscópio, para estudar a interação mãe-bebê e vê-la se desdobrar. Um mundo fascinante se abriu. Aos poucos percebi quantas coisas acontecem em apenas poucos segundos. Comecei a pensar nesses momentos como os blocos de construção básicos da experiência. Quando passei a dominar essas técnicas (por exemplo, 11 0 MOMENTO PRESENTE congelamento da imagem, câmera lenta, repetições de segmentos), pude usá-las, de forma não sistemática, em tempo real, por perío dos breves, para ver meus pacientes de psicoterapia de modo dife rente. Eu estava apenas iniciando minha carreira de terapeuta. Alguns momentos na terapia começaram a revelar aspectos do processo terapêutico diferentes dos que eu estava treinado para ver. Minhas anotações durante um encontro com uma paciente em 1969 ilustram isso: “Ela entra no consultório e senta-se na cadeira. Desa ba sobre ela. A almofada afunda rapidamente e ela leva mais cinco segundos até se acomodar. Ela claramente espera por isso, mas, antes que a almofada exale seu último suspiro, cruza as pernas e transfere o peso de quadril. Novamente a almofada se esvazia e se reequilibra. Esperamos que ela termine. Na verdade, ela espera, está ouvindo, sentindo. Estou pronto desde que ela chegou, mas agora aguardo também. É difícil saber quando a almofada exauriu todo o ar. Mas tudo espera. Será que ela sente que está esperando, ou ganhando tempo? Tudo espera que ela esteja pronta. Percebo que estou restringindo meus movimentos até que ela termine. Qua se como se eu tivesse de prender a respiração para apressá-la, para melhor julgar quando o ponto de quietude for atingido e a sessão puder ‘começar’. Quando finalmente penso que seu corpo e a al mofada estão prontos, que o som e a sensação de acomodamento cessaram, começo a me mexer na poltrona, em antecipação, respi rando mais livremente. Mas ela ainda está ouvindo o som refluir e ainda não está pronta. Minha mudança de posição é interrompida pela espera dela. Sinto como se tivesse sido surpreendido numa brin cadeira de ‘estátua’. É ridículo. E posso perceber uma irritação cres cer em mim por ter meus ritmos tão perturbados e controlados. Devo deixar que ela continue? Comentar o assunto? Ela nem ima gina que já encenamos os temas principais da sessão, e um tema importante da vida dela.” Antes da minha experiência com o mundo micromomentâneo dos acontecimentos implícitos, nada disso viria para o primeiro plano. Passaria despercebido, esperando que ela falasse. 12 PREFACIO Tais experiências me levaram a criar a entrevista microanalítica como um modo de chegar mais perto da experiência subjetiva vivi da no nível micromomentâneo. É claro que ninguém consegue che gar a essa experiência e nela permanecer enquanto fala sobre ela. Mas isso não me impede de pensar sobre ela nem de me aproximar o máximo possível. Este livro é sobre a experiência subjetiva — especialmente aquelas que acarretam mudanças. Como as experiências fazem isso? De que são feitas? Quando é que acontecem? A natureza da experiência é um tópico vasto. Meu interesse se limita a um pequeno quadrante: a saber experiências que provocam mudanças na psicoterapia e nos relacionamentos pessoais da vida cotidiana. O pressuposto básico é o de que a mudança baseia-se na experiên cia vivida. Compreender, explicar ou narrar algo verbalmente, por si só, não é suficiente para provocar alterações. É preciso também que haja uma experiência real, um acontecimento vivido subjetiva mente. Um acontecimento precisa ser vivido, com sentimentos e ações ocorrendo em tempo real, no mundo real, com pessoas reais, num momento de presentidade. Dois exemplos simples de uma experiência vivida são: olhar nos olhos de outra pessoa que está olhando para você e respirar fundo enquanto está falando com al guém. Ambas são ações com sentimento. A idéia de presentidade é chave. O momento presente que pro curo é o da experiência subjetiva na hora em que ela ocorre — e não quando é remodelada por palavras mais tarde. O momento presente é a unidade de processo das experiências que nos interes sam mais. Um primeiro passo em direção à compreensão da expe riência é explorar e compreender esse momento. Este livro narra essa exploração, que objetiva modificar sua visão sobre o que está acontecendo numa sessão de psicoterapia e, por conseguinte,mu dar sua forma de abordá-la e mostrar o que você pode fazer duran te essa sessão. Um esboço das alterações que fiz no título do livro enquanto o escrevia pode ajudar a prepará-lo para essa compreensão. Os títu 0 MOMENTO PRESENTE los provisórios capturam a idéia central que é o foco da atenção num determinado período e numa fase específica de um trabalho. Considerados em conjunto, os títulos provisórios deste livro reve lam as idéias por trás dele. Embora seja em parte um resumo de algumas idéias nas quais trabalhei durante anos, acrescido de ou tras recentes, o livro é, sobretudo, uma nova integração. A medida que essa integração evoluía, um novo título substituía o anterior. Ao considerar o micromundo do momento presente, pensei pri meiro no título preliminar Um mundo num grão de areia, de William Blake. Além de poético, capturava a dimensão do pequeno mundo revelado pela microanálise e ao mesmo tempo atraía a atenção para o fato de que muitas vezes é possível ver o panorama mais amplo do passado e da vida atual de alguém nos pequenos comportamen tos e atos mentais que compõem esse micromundo. Além do mais, e de importância vital, ver o mundo nessa escala de realidade muda o que pode ser visto e, portanto, muda as nossas concepções básicas. O micromundo experimentado sempre penetra a consciência perceptiva, mas só às vezes penetra a consciência (consciência per- ceptiva verbalizável). Trata-se muito mais de um saber implícito do que um conhecimento explícito e verbalizado. Quando a importân cia do mundo implícito tornou-se mais evidente para mim, brin quei com o título A face obscura da Lua, numa referência à natureza do saber implícito. O aspecto temporal do momento presente (como o mundo num grão de areia) precisa ser abordado. O que a arquitetura temporal de tais momentos nos diria? E como a experiência fenomenal da presentidade poderia ser discutida? Afinal, a presentidade da expe riência vivida é essencial. Essa pergunta lançou-me numa extensa viagem de aprendizado ao reino da filosofia fenomenológica, um terreno novo e estranho para mim. Foi então que veio à tona o fato oculto, mas óbvio, de que estamos psicológica e conscientemente vivos apenas agora. O que mais me intrigou foi a seguinte indaga ção: por que a psicologia clínica não tomou como ponto de partida a experiência vivida diretamente no presente? (Os terapeutas o fi 14 PREFÁCIO zeram mais recentemente.) Isso é, certamente, um desvio radical do caminho historicamente seguido pela maioria das psicologias, que dão ênfase ao passado e a sua influência. Também implica que a cons ciência, mais do que o inconsciente, é o mistério-chave, outro desvio radical (possibilitado pelo enorme volume de trabalhos já realizados sobre o funcionamento do inconsciente). A luz desse questionamento, o título seguinte foi Uma visão fenomenológica da experiência psicoterapêutica. Entretanto, a fenomenologia era somente uma perspectiva necessária e útil, e não o assunto do livro. Outra característica do momento presente que me intrigava era o fato de ele ter um trabalho psicológico a fazer. É preciso aglome rar e entender o momento enquanto ele está passando, e não de pois, e voltar para a próxima ação. Com isto em mente, o título seguinte foi Kairos, a palavra grega para o momento propício ou o momento em que algo vem a ser. Kairos é uma unidade de tempo tanto subjetiva quanto psicológica. Claramente, o momento pre sente precisa ter aspectos de kairos porque necessita entender o que aconteceu no passado, o que está acontecendo agora e como agir em relação a isso. Ele requer uma completa apreensão dos aconte cimentos no instante em que eles se desdobram. Isso reforçou a necessidade de examinar a arquitetura temporal do momento pre sente e de ver que ele compõe uma breve “história vivida” emocio nal. Kairos também era atraente como título porque sugere o encontro de elementos independentes e não relacionados num de terminado ponto do tempo, fazendo emergir momentos especiais. E isso é exatamente o que o Boston Change Process Study Group (BCPSG) estava descobrindo no processo clínico à medida que pro curávamos momentos que levassem à mudança terapêutica. Entre tanto, kairos não poderia ser um título, pois normalmente nasce no âmbito de uma psicologia individual. E eu estava verificando em nosso trabalho no Boston Group que o material clínico é ampla mente co-construído — que estamos lidando com uma psicologia de duas pessoas. 0 MOMENTO PRESENTE Daí o título seguinte, O momento de encontro. Em nosso traba lho clínico conjunto, a importância da subjetividade (ou seja, a mente lendo os pensamentos, sentimentos ou intenções do outro) era cada vez maior. Motivações intersubjetivas mostravam-se responsáveis pelo fluxo de pequenos movimentos dos parceiros durante uma sessão. Além disso, O momento de encontro descrevia a natureza da co-criatividade e a ampliação do campo intersubjetivo servindo de contexto principal para outras mudanças no tratamento. A medida que eu buscava a importância da intersubjetividade na terapia e em toda experiência íntima e bem coordenada de grupo, ficava claro que a intersubjetividade era um útil processo intermental e também constituía em si mesma um sistema motivacional importante, es sencial para a sobrevivência humana — semelhante ao apego ou ao sexo. As implicações de elevar a subjetividade a tal status não pode riam ser completamente analisadas sem que eu escrevesse um livro diferente. As reflexões sobre a intersubjetividade como matriz de uma psi cologia de duas pessoas também levaram ao conceito de uma possí vel nova forma de consciência: a “consciência intersubjetiva”, um modo de reflexividade que surge quando nos tornamos conscientes do conteúdo de nossa mente por ser este refletido para nós pela mente do outro, simultaneamente. O momento de encontro tinha outra grande vantagem como título. Ele reunia o momento presente, a noção de kairos, a inter subjetividade e a co-criação no processo terapêutico. Além disso, por ser um acontecimento que se desenrola no presente, fica claro que algo afetivo tem de acontecer e ser compartilhado naquele momento a fim de alterar o campo intersubjetivo implicitamente sentido. O que é compartilhado num momento de encontro é uma história vivida. Ela é física, emocional e implicitamente partilhada, e não apenas explicada. As noções de “afetos de vitalidade” e de “viagens de sentimento compartilhadas”, apresentadas mais adian te no livro, foram necessárias para dar substância à idéia de uma história vivida de forma compartilhada. Eu precisava de tais mo 16 PREFÁCIO mentos, também, para chegar a um tipo de consciência que fosse terapeuticamente utilizável. Aqui, surgiu a consciência intersubjetiva que acompanha a viagem de sentimentos compartilhada. Em última análise, porém, o momento de encontro é apenas um tipo especial de momento presente. Então cheguei ao título O mo mento presente na psicoterapia e na vida cotidiana, que continuava a reaparecer quando outros títulos provisórios eram abandonados. E o mais abrangente deles, englobando todos os outros, e o que melhor mantém o foco na integração dessas diversas idéias e no papel do tempo e da presentidade. Reflete, ainda, com precisão, a noção de que o ponto de vista do livro é microanalítico e fenome- nológico. Essa visão granular talvez seja a característica mais exclu siva das descrições fornecidas. A realidade fenomenal do momento presente captura isso. Todos os passos na evolução dessas idéias estão representados no plano do livro. Cada capítulo tenta estabelecer um aspecto es sencial do momento presente como a unidade de processo de expe riências que pode conduzir a mudanças. Eis o plano: A parte I do livro é uma exploração do momento presente. O primeiro capítulo trata do problema do “agora”. Afinal, é quando um momento presente acontece. O capítulo 2 aborda a natureza do momento presente, enquantoo capítulo 3 examina a arquite tura temporal do momento presente e o capítulo 4 discute sua organização. A Parte II contextualiza o momento presente, explorando três das noções mais importantes para situá-lo no processo terapêutico: intersubjetividade, conhecimento implícito e consciência. Duas (ou mais) mentes podem se interpenetrar e compartilhar quase as mesmas experiências. São capazes de intersubjetividade (especialmente entre paciente e terapeuta). Os momentos presentes de mais interesse ocorrem quando duas mentes se encontram. O capítulo 5 descreve a intersubjetividade penetrante na qual os trata mentos são conduzidos e a vida social é vivida. O capítulo 6 sugere 0 MOMENTO PRESENTE a importância adaptativa da intersubjetividade tanto para a evolu ção como para a psicoterapia. Muito do que é apreendido no momento presente pertence ao domínio do conhecimento implícito. Conseqüentemente, é neces sário olhar de perto essa forma de conhecimento. Este é o assunto do capítulo 7. Por fim, a posição do momento presente ao longo da dimensão da consciência é essencial para quem deseja examinar como as ex periências que estão ocorrendo “agora” podem ser recordadas, in fluenciadas, verbalizadas e narradas. Isso é discutido no capítulo 8. A parte III compreende uma visão de como o momento presen te opera na situação clínica. O capítulo 9 apresenta a operação do momento presente no setting clínico. No capítulo 10 é explorado o que ocorre numa sessão, momento a momento. Discute a im- previsibilidade e a “desordem” do processo terapêutico e suas duas mais importantes propriedades emergentes resultantes: o momento agora e o momento de encontro. Isso envolve uma descrição fiel do que acontece no nível local e no micronível do momento presente. Esses são os aspectos práticos do fluxo de uma sessão. O capítulo 11 fala do entretecer do implícito com o explícito. Muito do que acontece em psicoterapia é explicado na linguagem, inclusive nas interpretações. As influências mútuas entre o implícito e o explícito são exploradas. O capítulo 12 discute o passado e o momento pre sente. Analisa como o momento presente é influenciado pelo passa do e debate a necessidade de ser capaz de abarcar um passado assim como um presente, sem o qual não há base para um pensamento psicodinâmico, examinando as maneiras de realizar isso. Finalmente, o capítulo 13 resume o papel do momento presente na mudança psicoterapêutica e fornece implicações clínicas. Devo começar, então, pelo problema do agora como o primeiro passo na exploração do momento presente, nosso microscópio para observar como a mudança acontece. 18 Agradecimentos M eu PRIMEIRO CONTATO com o arauto do momento presente se deu quando comecei a aprender sobre o mundo micromomentâneo da interação mãe-bebê que ocorre naturalmente. Na época, muitas décadas atrás, eu conhecia alguns outros pesquisadores e clínicos que estavam explorando esse pequeno mundo com técnicas de ci nema e TV. Entre eles encontravam-se Lou Sander, Colwyn Trevarthen, Berry Brazelton, Ed Tronick e Beatrice Beebe. Este pe queno grupo mantinha contato e compartilhava um entusiasmo comum. Afora isso, era um trabalho solitário, mas sou grato a eles por encorajarem-se mutuamente e ajudarem a formar uma massa crítica que explorou o micromundo. Quase simultaneamente, conheci um grupo de coreógrafos de Nova York que estava fazendo experiências com técnicas semelhantes na dança: repetições de seqüências curtas, imagens congeladas, apre sentação retroativa dos acontecimentos etc. Eles iam ao meu labo ratório na Universidade de Colúmbia, no Instituto Psiquiátrico do Estado de Nova York, para assistir a algumas de minhas análises de filmes sobre a interação mãe-bebê, e eu ao centro da cidade, obser var o trabalho que eles desenvolviam com os bailarinos que, à pri meira vista, me pareceu pouco promissor em termos de aprendizado e inspiração. Mas não a um segundo olhar mais atento. Nesse con texto, tive a sorte de fazer amizades duradouras com o coreógrafo Jerome Robbins e com o ator de teatro Robert Wilson, o que me 19 O MOMENTO PRESENTE permitiu ver espetáculos de dança e de teatro tomarem forma des de sua concepção, passando pelos ensaios, até a estréia. Seguiu-se uma troca que durou décadas. Para mim foi uma incrível oportuni dade de aprender sobre os reinos não verbais. Quero agradecer tudo que eles me ensinaram. Então, nove anos depois, alguns de nós deram início a uma rica colaboração. Os campos da psicoterapia, psicanálise, psicolo gia do desenvolvimento e pediatria estavam representados. E sur giu o Boston Change Process Study Group. Durante o tempo em que formulei e escrevi o livro, os membros do grupo eram: Nadia Bruschweiler-Stern, Alexandra Harrison, Karlen Lyons-Ruth, Alexander Morgan, Jeremy Nahum, Louis Sander e Edward Tronick. Muitas das idéias importantes inseridas neste livro emer giram dessa colaboração. Tornou-se evidente que, quando trabalhávamos em grupo — o que fazíamos intensivamente — um poderoso processo de co- criação se instalava. Retrabalhávamos uma idéia que havia se ori ginado de um de nós, transformando-a num conceito diferente ou mais elaborado, ou ligando-a a uma idéia que viera de outra pes soa para formar uma noção completamente nova. Ficava impossí vel desembaraçar sua história. É por esse motivo que decidimos publicar trabalhos coletivamente após nossos dois primeiros li vros. Como estávamos examinando o processo de co-criação em psicoterapia, talvez não fosse surpreendente encontrar o mesmo processo em nosso trabalho conjunto. Ou quem sabe não seria o caminho inverso? O material clínico é o que mais diretamente deriva de nosso tra balho conjunto, particularmente mostrado nos capítulos 10 e 11, que se baseiam amplamente em nossas publicações coletivas. Entretanto, dei a esse material um viés bem diferente, e muitos dos conceitos ou ênfases não estão necessariamente de acordo com os que o grupo pode ter desenvolvido. Além disso, alguns membros podem discor dar das fontes de onde obtive dados. A fim de respeitar as contribui ções do grupo e de seus membros individualmente, tentei mencionar 20 AGRADECIMENTOS da forma mais cuidadosa possível as publicações tanto do grupo como de seus membros isoladamente, conforme elas se relacionam com o assunto em pauta. Agradeço profundamente a esses colegas e expres so o prazer que tive ao trabalhar com eles. Este livro teria sido dife rente sem o Boston Change Process Study Group. Duas pessoas de grande conhecimento leram o livro em está gios preliminares: Elizabeth Fivaz-Depeursinge, em Lausanne, e Daniel Siegel, em Los Angeles, e suas críticas, sugestões e incentivo tiveram valor inestimável. Quero agradecer em especial à minha editora, Deborah Malmud. Depois de ler a primeira versão, ela me escreveu uma carta de sete páginas, em espaço simples, repleta de sugestões, questionamentos, pedidos de esclarecimentos e idéias para a reordenação das seções. Ainda assim, era encorajadora. A princípio fui pego de surpresa e não fiquei muito contente. Após muitas leituras, comecei a apreciar a carta, mas não exatamente a gostar dela. Quando voltei ao traba lho, levando em conta o que ela escrevera, passei a me apoiar cada vez mais em seus conselhos. Acabei não só por gostar da carta, mas também por considerá-la um brilhante trabalho de edição. Graças a ela, o livro ficou mais fino e mais claro. Por fim, agradeço o estímulo dado por minha família, parti cularmente minha mulher, Nadia, que lê partituras com grande sen sibilidade e um ouvido soberbo, tanto para o tom quanto para o conteúdo. 21 EXPLORANDO O MOMENTO PRESENTE Capítulo 1 O PROBLEMA DO "AGORA" A IDÉIA DE UM MOMENTO PRESENTE é proposta como uma forma de lidar com o problema do “agora”. É notável como sabemos pouco sobre as experiências que estão ocorrendo exatamente neste instante. Essa ignorância relativa é especialmente estranha à luz do seguinte:Primeiro, estamos subjetivamente vivos e conscientes apenas agora. E agora é quando vivemos nossa vida diretamente. Em tudo mais há uma separação de segundo ou terceiro grau. A única hora de realidade subjetiva crua, de experiência fenomenal, é o momen to presente. Segundo, a maioria das psicoterapias concordam em que o tra balho terapêutico no “aqui e agora” tem maior poder de provocar mudanças. Isso significa onde e quando se dá um contato mutua mente consciente entre a mente do terapeuta e a do paciente. Além disso, nos relacionamentos cotidianos, os eventos nodais que alte ram o curso da vida normalmente ocorrem num momento que é experimentado como chave, não só depois que aconteceu, mas tam bém enquanto está ocorrendo. Apesar disso, ainda precisamos fa zer a pergunta: o que é o agora} Terceiro, as teorias psicodinâmicas de mudança terapêutica ba- seiam-se na idéia de que o passado tem papel fundamental na deter- O MOMENTO PRESENTE minação do presente e, num certo sentido, está no centro do palco. Conseqüentemente, sabemos muito sobre como eventos passados influenciam a experiência atual. Mas não prestamos a mesma aten ção à natureza da experiência atual quando ela está sendo influen ciada e está acontecendo. Como ficariam a psicoterapia e a mudança terapêutica se o momento presente assumisse o centro do palco? E é exatamente isso que este livro faz. Posiciona o momento presente no centro do palco e o conserva ali. Isso empresta outra aparência ao processo de psicoterapia e altera nossas concepções sobre como se dá a mudança terapêutica. A maneira pela qual con duzimos a psicoterapia vai se modificar, porque nossa visão sobre o que está acontecendo será diferente. Também podemos descobrir que nossa visão da experiência diária se enriquece. Estes são os ob jetivos do livro. Entretanto, antes de passar a esses objetivos mais abrangentes, precisamos explorar a natureza da experiência atual e depois aplicá- la à situação clínica. A pesquisa começa com algumas questões im portantes sobre o momento presente ou a agoridade. Quando é o agora? O que é o agora? O agora existe e, se existe, o quanto ele dura? Como o agora está estruturado? O que ele faz? Como se relaciona com a consciência e com o passado? Como conduz a sig nificados? Por que ele ocupa um lugar tão especial na psicoterapia? E, relacionado a estas indagações, como o agora é experimentado quando é co-criado e compartilhado com alguém? Finalmente, que papel o agora desempenha na mudança? Em resumo, como imagi namos um momento presente? Existe outro aspecto do agora subjetivo que é tanto surpreen dente quanto óbvio. O momento presente não passa zunindo e se torna observável apenas depois que se foi. Na verdade, ele cruza o palco mental mais devagar, levando alguns segundos para se desdo brar. E, durante sua passagem, encena um drama emocional vivido que, à medida que se desenrola, traça uma forma temporal, como uma frase musical transitória. Como veremos, isso é de grande im portância, porque o momento presente devolve tempo à experiência. 26 0 PROBLEMA DO "AGORA' “Devolver o tempo à experiência” é uma frase curiosa. Eis o que se encontra por trás dela: é fácil pôr um tempo linear, de reló gio (chronos), em histórias sobre nós mesmos — o antes, o depois e o meio-tempo de nossas narrativas. Mas não é tão claro como se faz para se colocar o tempo subjetivo (o que quer que isso se revele ser) nas experiências que estão acontecendo agora. E sem ele é im possível ligar os muitos acontecimentos seqüenciais que ocorrem durante o momento presente e formam uma experiência coerente inteira. A vida seria descontínua e caótica mesmo na pequena esca la temporal do presente. A questão do agora tem uma história mais longa. Na verdade, esta é somente uma parte da história maior do tempo. Não entrarei neste tema extenso a não ser para demonstrar certos pontos relacio nados com o problema do agora subjetivo. Primeiro, vemos o tem po como algo que surge de nossas sensibilidades humanas. Ele é uma invenção da nossa mente. Nada sabemos sobre o tempo das coisas, se é que se pode imaginar algo assim. Nas ciências naturais e no gerenciamento da programação diária da vida, usamos a antiga concepção grega de chronos, que é a idéia de tempo objetiva usada não só na ciência mas também na maioria das psicologias. No mun do do chronos, o instante presente é um ponto em movimento no tempo em direção apenas a um futuro. Não importa se seu curso é visto como uma linha reta ou um círculo ou uma espiral, pois ele está sempre em movimento. Enquanto se move, devora o futuro e deixa o passado em seu rastro. Mas o instante presente em si é muito curto. E uma fatia quase infinitesimal de tempo durante a qual muito pouco pode acontecer sem tornar-se passado de imedi ato. Efetivamente, não existe presente. Há outras construções humanas de tempo. No tempo narrati vo, a ordenação dos eventos é criada pelo narrador de uma histó ria, independentemente da seqüência cronológica (Ricoeur, 1984-1988). O complexo tempo psíquico de Freud despreza a su cessão linear, troca a velocidade de passagem, dá meia-volta e do bra-se para a frente sobre si mesmo — um tempo que Green (2002) 27 0 MOMENTO PRESENTE chamou de fragmentado. Existem várias formas de heterocro- nicidade com diversos tempos paralelos. E há estados meditativos nos quais o tempo não se move, mas passa da existência para um “agora” homogêneo e contínuo. No entanto, quando se considera a psicoterapia e a vida como normalmente vivida, essas concepções apresentam problemas. O pro blema com chronos é que, se não existe um agora longo o bastante para que algo se desenvolva dentro dele, não pode haver experiência direta. Isso não é aceitável em termos intuitivos. Além disso, a vida- como-vivida não é experimentada como um fluxo inexoravelmente contínuo. Na verdade, ela é sentida como descontínua, feita de inci dentes e eventos separados no tempo mas também conectados de algum modo. A idéia de tempo da narrativa também apresenta problemas, pelo menos para os nossos propósitos. As narrativas selecionam episódios da vida e os marcam no tempo: antes, depois, de novo e assim por diante. Os episódios são então rearrumados, não neces sariamente em ordem histórica, mas para contar a história mais coerente sobre como foi a vida. As narrativas visam à verossimi lhança da vida, não à verdade histórica. Dessa forma, nos devolvem a sensação de continuidade na vida. Elas domam chronos, fazem a passagem do tempo parecer familiar e tolerável, e fazem-nos sentir coerentes ao longo dessa dimensão infinita (Bruner, 1990, 2002b; Ricoeur, 1984-1988). Entretanto, elas não domam o momento pre sente. Apesar da grande façanha de fazer a narrativa, o agora não cabe num relato narrativo, exceto como ponto de referência. Numa narrativa, o agora do qual se fala já aconteceu. Ela cria uma relação entre os agoras passado e futuro. Não é uma experiência direta. •VApenas a narração está acontecendo agora. No tempo psíquico fragmentado de Freud, assim como no tem po narrativo, pouca atenção é dada à estrutura temporal do agora. Ele não é visto como temporalmente dinâmico, dentro dele mesmo — isto é, traçar um perfil temporal de pequenas mudanças à medi da que ele se desenrola. No tempo psíquico, o principal interesse •jh O PROBLEMA DO "AGORA' no agora reside em sua relação com outras partes do tempo, não em sua própria natureza. Assim, o que deve ser feito com o agora enquanto a vida está de fato sendo experimentada — enquanto o presente ainda está se des dobrando? A concepção subjetiva de tempo dos gregos, kairos, pode ser útil aqui. Kairos é o momento transitório no qual algo acontece à medida que o tempo decorre. E o nascimento de um novo estado de coisas, e isso ocorre num momento de consciência perceptiva. Ele tem suas próprias fronteiras e transcende a passagem do tempo linear ou dela escapa. No entanto, também contém um passado.É um parêntese subjetivo destacado de chronos. Kairos é um momen to de oportunidade, quando os acontecimentos exigem ação ou são propícios para agir. Os acontecimentos se reuniram nesse momen to e o encontro penetra a consciência perceptiva de tal forma que uma medida tem de ser tomada, agora, para alterar o destino de alguém — seja pelo minuto seguinte ou pela vida inteira. Se nada for feito, o destino será mudado mesmo assim, mas de modo dife rente, porque a pessoa não agiu. E uma pequena janela de devir e oportunidade. Uma das origens da palavra provém de pastores ob servando as estrelas. A medida que a noite avança e as estrelas per correm o céu, elas parecem nascer e depois se esconder no horizonte. O momento em que uma estrela atinge o apogeu e parece mudar de direção de ascendente para descendente é o seu kairos (Kathryne Andrews, comunicação pessoal, 23 de novembro de 2000). Tanto na vida real como na situação clínica, um momento pre sente poderia ser chamado de um momento de microkairos, por que apenas decisões menores sobre o curso da vida e caminhos curtos do destino estão em jogo. Este livro tenta mostrar por que todos os momentos presentes são também momentos de kairos, qualquer que seja sua magnitude. A narrativa nos proporciona um caminho psicológico para ajus tar a vida à realidade de chronos. Vamos explorar o momento presen te como uma abordagem psicológica para compreender a experiência de kairos. O MOMENTO PRESENTE O PONTO DE PARTIDA Dada a posição única e fundamental da “agoridade” subjetiva na experiência de todos nós, a proposta é começar uma exploração da prática e da teoria clínicas, bem como da vida subjetiva cotidiana, posicionando o “agora” fenomenal no centro — como nosso ponto de partida. A teoria existencialista e algumas teorias da Gestalt por certo fizeram exatamente isso, mas em grandes pinceladas. Estamos propondo fazê-lo no micronível do momento presente que está pas sando. À primeira vista, iniciar tal investigação tendo o momento presente como a lente de aumento para observar a psicoterapia e a experiência cotidiana parece difícil e improvável. Mas o momento presente é nossa realidade subjetiva primária, então, por que não começar por ele? Por onde mais? Pode ter implicações interessantes não apenas para as psicologias clínicas mas também para as neu- rociências. Essa concepção do momento presente se apóia em grande parte em uma perspectiva fenomenológica. A fenomenologia é o estudo das coisas como elas aparecem à consciência, como elas se apresen tam na mente. Inclui: percepções, sensações, sentimentos, lembran ças, sonhos, fantasias, expectativas, idéias — o que quer que ocupe o palco mental. Esse estudo não se concentra na maneira pela qual essas coisas se formaram ou surgiram na mente. Também evita qual quer tentativa de explorar a realidade externa que corresponda ao que está na mente. Diz respeito apenas à aparência das coisas como elas se apresentam ou se mostram à nossa experiência. Trata da paisagem mental que vemos e em que nos encontramos em deter minado momento. Isso é realidade fenomenal (ver Moran [2000] para uma introdução abrangente). Portanto, este livro aborda os pequenos mas significativos acontecimentos afetivos que se desdo bram nos segundos que formam o agora. Existe, porém, uma ampla questão. O momento presente, en quanto é vivido, não pode ser apreendido pela linguagem que o (re?)constitui pós-fato. O quanto a versão lingüística é diferente da 30 originalmente vivida? Neste ponto, mesmo as neurociências podem fazer apenas sugestões limitadas. Mesmo assim, grande parte do livro é sobre o momento presente inatingível. Essa experiência vivi da tem de existir. E o referente experiencial sobre o qual a lingua gem se constrói. E o inapreensível acontecer da nossa realidade. Portanto, tem de ser explorado exaustivamente, para pensarmos melhor sobre ele e imaginar abordagens terapêuticas. A entrevista analisada a seguir é exatamente uma dessas abordagens. Há cerca de 15 anos, comecei a realizar um tipo especial de entrevista que ajuda a identificar momentos presentes e os aconteci mentos afetivos que ocorrem durante eles. Inicialmente denominada “entrevista do café-da-manhã”, hoje chamada de entrevista micro- analítica. (Uma explicação mais extensa sobre como conduzir uma entrevista microanalítica encontra-se no Apêndice.) Eis como ela acontece. Pergunto aos indivíduos: “Que experiências vocês viveram hoje no café-da-manhã?” (Faço esta pergunta diversas horas depois do fim do desjejum.) Em geral, eles respondem: “Bom, para dizer a verdade, nada.” Eu insisto até que se lembrem de algo. Procuro por qualquer acontecimento que tenha início e fim claros (boas frontei ras). Este é um exemplo do que eles podem recordar: “Eu me lembro de ter pego o bule para me servir de chá. Na verdade, não me lem bro de pegá-lo, mas devo ter feito isso. Enfim, enquanto estava me servindo, lembrei-me de algo que aconteceu na noite passada. Nes se instante, o telefone tocou e tomei consciência de estar servindo o chá porque me perguntei se eu devia terminar de encher a xícara ou pousar o bule e atender ao telefone. Pousei o bule, levantei-me e atendi ao telefone.” (Tudo isso levou cerca de cinco segundos.) Em seguida, faço uma entrevista de, aproximadamente, uma hora e meia, sobre o que foi experimentado naqueles cinco segundos. Pergunto o que fizeram, pensaram, sentiram, viram, ouviram, em que posição seu corpo estava, quando mudou, se posicionaram-se como ator ou como observador em relação à ação, ou entre um e outro. Peço-lhes que criem um filme da experiência, como se pu déssemos fazer uma montagem do que estava em seu palco mental. 0 PROBLEMA DO "AGORA" 31 0 MOMENTO PRESENTE Eles são o diretor, e eu, o operador de câmera, e têm de me dizer o que fazer com ela. Essa tomada é um close-up ou um plano geral? Como devo cortar de uma cena para a seguinte? Onde está po sicionada a câmera e qual o seu ângulo em relação à ação? Em ou tras palavras, questiono sobre qualquer coisa que me passar pela cabeça a fim de capturar sua experiência subjetiva do modo mais completo possível. A entrevista se desenrola de um modo especial. Os sujeitos do estudo e eu tentamos desenhar ou representar num gráfico a expe riência ao longo de uma linha de tempo, onde esse tempo se esten de no eixo horizontal e a intensidade, o esforço e a plenitude do evento/sentimento/sensação/pensamento/afeto/ação são delineados no eixo vertical. O resultado surge em diversas curvas, cada uma um contorno temporal da distribuição da intensidade do que quer que tenha sido vivido ao longo do tempo (ver Figura 1.1). Conduzo os sujeitos por muitas passagens através da experiência. Por exem plo, pergunto se alguma lembrança foi evocada durante a experiên cia. Se a resposta for positiva, a lembrança é acrescentada ao gráfico. Indago-lhes que experiências afetivas tiveram. Estas são desenha das pelos sujeitos com um contorno ao longo do tempo que repre senta as mudanças na intensidade do afeto à medida que este ocorria. Esses contornos do afeto são então também adicionados ao gráfico. A cada passagem, todo o desenho pode ser revisto, se necessário. E normalmente é. Depois de muitas passagens, obtemos um registro que se parece muito com uma partitura musical sinfônica com mui tas coisas acontecendo simultaneamente. Continuidades e descontinuidades são registradas com cuidado e divididas nas seguintes unidades: Episódios de consciência são períodos contínuos de consciência separados por buracos no fluxo da consciência, non-CS holes, e feitos de um ou mais momentos presentes demarcados por uma mudança na cena (lugar, tempo, personagens, ação) ou no ponto de vista da narrativa. A identifica ção de momentos presentes e as fronteiras entre eles são escolhidas pelos sujeitos. 32 O PROBLEMA DO "AGORA" Vale notar que os momentos presentes no gráfico não são os originais. Na verdade, sãolembranças contadas de fatos ocorridos, mais cedo, naquela manhã, momentos presentes vividos realmente. Obviamente, não se pode obter um relato verbal de uma experiên cia no instante em que ela ocorre sem interrompê-la. O objetivo é desenhar um quadro com que um momento presente provavelmen te se pareça. Mais uma observação: no relato, existem na verdade os dois momentos presentes envolvidos, o momento presente original e não narrado, vivido durante o café-da-manhã, e o momento presente da narração que me foi feita, mais tarde. Por enquanto, estou inte ressado somente no momento presente originalmente vivido. Pos teriormente abordarei o momento presente da narração. À medida que a entrevista prossegue, insisto veementemente que o sujeito faça a distinção entre o que deve ter acontecido e o que foi realmente experimentado conscientemente naquela manhã (só o úl timo é registrado no gráfico). A entrevista chega ao fim quando o indivíduo sente que o registro gráfico tem a verossimilhança adequa da ao que ele se recorda de ter experimentado. Esse processo pode parecer entediante, mas na verdade gera grande interesse e curiosidade tanto no sujeito quanto em mim, apesar da aparente banalidade dos eventos. Embora comuns, os momentos presentes são acionados pela novidade, pelo inesperado ou por uma perturbação ou problema em potencial. Deles são fei tos os pequenos dramas diários. Buscamos o desvelar com uma es pécie de cumplicidade entusiasmada crescente. E ficamos cada vez mais espantados com tudo que é recordado como acontecido em períodos tão breves de momentos da vida cotidiana e como os microdramas são resolvidos. A seguir, apresento quatro exemplos de momentos presentes, que na verdade apenas se aproximam furtivamente do fenômeno do momento presente por motivos que se tornarão evidentes mais adiante. Entretanto, esclarecem algumas das questões-chave. Os dois primeiros são de situações nas quais eu estava conduzindo entrevis 33 O MOMENTO PRESENTE tas microanalíticas. O terceiro é um exemplo clínico, e o quarto, um exemplo tirado da vida comum. EXEMPLO 1* Momento presente 1 (O sujeito entrou na cozinha, ligou o rádio e foi até a geladeira. Abriu a porta da geladeira, procurando a manteiga para passar no pão. Fez tudo isso de modo automático, sem estar especificamente consciente de seus atos. Então começou seu primeiro momento de consciência.) Percebi que o chanceler Kohl, da Alemanha, estava sen do entrevistado no rádio, ouvi a voz dele, depois desviei-a da minha cabeça. Procurando na geladeira, não encontrei a manteiga. Pensei comigo mesma: “Não tem manteiga.” Ao ver que não achava a man teiga comecei a sentir uma frustração leve, porém crescente, e uma espécie de sentimento negativo, algo entre a decepção e a irritação. Esses sentimentos aumentaram. (Isso durou cerca de três segundos. Depois houve uma transição para o momento seguinte sem quebra da continuidade da consciência.) Momento presente 2 Então pensei: "Ah, tudo bem, melhor para a minha dieta.” Quando pensei isso, a frustração e a irritação passaram e experimentei uma onda de alívio que continuou a crescer um pouco. (Isso durou três segundos, aproximadamente. Em seguida ela passou a agir fora da consciência por um período. Logo depois, começou a recordar um terceiro momento de consciência.) * 0 itálico é usado para indicar tudo que o sujeito relatou como sua experiência conscien te. Tudo de relevante que deve ter acontecido mas não penetrou na sua consciência, prova velmente porque era algo rotineiro e automático demais, foi descrito entre parênteses. Consulte a Figura 1.1 à medida que o diálogo se desenrola. 34 O PROBLEMA DO "AGORA' Momento presente 3 Pensei comigo: “Posso colocar m el.” (O mel estava no lugar da manteiga. Normalmente, ela só comia mel aos domingos. Era uma tradição familiar. O mel era algo especial, e não para os outros dias. Era terça-feira.) Perguntei a mim mesma: “Será que eu ouso pegar o mel?” Primeiro, quando pensei nisso, senti uma onda de surpresa diante dessa idéia inesperada. Depois, uma sen sação de bem-estar me invadiu, e começou a crescer, por ter re solvido o problema da falta da manteiga. Enquanto isso acontecia, vi em minha mente o pote de mel em seu lugar de costume, no armário atrás de mim (e fora da vista), em sua exata posição na prateleira. (Ainda sem se voltar.) Decidi então agir e pegar o mel. (Ela se virou, abriu a porta do armário e apanhou o pote de mel, mas sem estar consciente desses atos rotineiros.) Depois, com o mel na mão, comecei a sentir uma culpa cada vez maior e uma sensação de cobiça porque ia comer mel numa terça-feira. (Este momento demorou cerca de cinco segundos. Houve então uma lacuna na consciência de sua experiência e depois ela ficou cons ciente de novo.) Momento presente 4 Estou segurando uma fatia de pão, ainda sem o m el Mas o pão é de um tipo diferente do que costumo comprar. Sinto-me estranha e isso me surpreende. Penso: “O que faço com este pão?” Um sentimento negativo discreto aparece. (Este momento durou em torno de três segundos. Ela então espalha mel no pão sem estar conscientemente atenta ao ato. Um novo momento começa, adjacente ao anterior.) Momento presente 5 Estou ciente de morder o pão com mel. Gosto da textura e penso: “Até que não é ruim. ” E com isso começo a me sentir melhor. De 35 O MOMENTO PRESENTE pois tomo novamente consciência da entrevista no rádio. (Este mo mento demorou três ou quatro segundos.) Este breve exemplo, por banal que possa ser, ilustra algumas das questões sobre a experiência que precisam ser abordadas. E verda de que o relato é (re)construído após o evento e é uma narrativa de experiências recordadas reunidas de maneira incomum, e não uma narrativa espontânea. Nem jamais foi ensaiada. Foi desmembrada e reconstruída peça por peça em passagens sucessivas. É uma narrati va desconstruída e progressivamente co-construída em seguida, re formada em camadas progressivas. Apesar desses problemas e com a cautela apropriada, podem ser feitas as seguintes afirmativas so bre momentos presentes vividos enquanto se desdobram, e não en quanto são recordados e narrados. • Momentos presentes são incrivelmente ricos. Embora durem apenas um curto espaço de tempo, muitas coisas acontecem. • Momentos presentes ocupam o agora subjetivo. O momento pre sente é visto como o que quer que esteja na mente agora, seja objeto da atenção mental real ou virtual. (A visualização da loca lização do mel às costas dela foi uma experiência virtual.) • O momento é um acontecimento completo, uma gestalt. O tema psicológico é o todo, não as pequenas unidades que o compõem. • Ela experimentou esses eventos num agora que identificou e li mitou com fronteiras. • O momento presente é breve. Neste caso, cada um dos cinco mo mentos presentes durou entre três e cinco segundos, como esti mado pelo sujeito. • A consciência é o principal critério utilizado para identificar epi sódios contendo momentos presentes. Neste exemplo, eles pro vavelmente acionaram a consciência por serem violações do esperado. Eram inovações, e isso constituía um problema. • Os sentimentos experimentados (por exemplo, frustração e pra zer) traçam uma forma-de-tempo (um perfil temporal) com ele 36 O PROBLEMA DO "AGORA" vações e quedas analógicas. Em outras palavras, são afetos de vitalidade realizados (formas-de-tempo-dinâmicas) que contor nam a experiência temporalmente. • Uma história vivida se desenrola dentro de cada momento pre sente. Ela é feita de muitas experiências pequenas reunidas no presente subjetivo. O enredo, ainda que mínimo, desloca-se so bre a forma de sentimento temporal dos afetos contornados. A micro-história que se desdobra resolve a novidade ou o pro blema. • Tais momentos não são separados do restante da vida, isola dos e desconectados. Na verdade, eles capturam um sentido do estilo, da personalidade, das preocupações ou dos confli tos do sujeito— em outras palavras, de suas experiências do passado. Cada um desses momentos é psicodinamicamente relevante. Este último ponto merece uma discussão mais extensa. Veja o exemplo da manteiga. O sujeito pareceu confeccionar pares afetivos/ morais: • Não tem manteiga. Isso é ruim. / Ah, sim, estou de dieta, então é bom. • Posso usar mel. Ficaria gostoso. / Ah, mas seria pecado. • Que pão esquisito é este? / Ah, até que não é tão ruim. Ela está constantemente tentando equilibrar bom/ruim, moral/ imoral, agradável/desagradável. Será que manter essa espécie de balancete é um modo característico de ser consigo mesma no mun do? Não sabemos, mas ela deu essa impressão fora do experimen to. (Dados externos à experiência presente não são necessários para estabelecer um momento presente. São necessários, porém, para estabelecer a relação do momento presente com o passado ou com eventos psicológicos contínuos.) 37 O MOMENTO PRESENTE <................ EPISÓDIO DE CONSCIÊNCIA A ................ > j 0(< ......MOMENTO PRESENTE 1 ......> .< ......MOMENTO PRESENTE 2 ....> I “Ah, tudo bem - imlhof [>«n « 3 legtindoi 3 Mga»do« <______ EPISÓDIO DE CONSCIÊNCIA B ............ > io r|< ............................ MOMENTO PRESENTE 3 J “Pttiio eolwif mal1 Ação "3 s 1. S itjtmdoi EPISÓDIO DE CONSCIÊNCIA C ..................> ' ° J < .....MOMENTO PRESENTE .....MOMENTO PRESENTE 5 ....> j J v *0 qm f«jo mbi litl pio?" -8 Surprm _____ ■tf j SlIfjHH Rifiitinelí to | "Até qu« iiio ̂ruim" RUU tUtMtjMJaitljH» Ch.K»kU 3 lijundoi 3 «agundot Figura 1.1. Uma representação esquemática de episódios de consciência e mo mentos presentes conforme recordados e co-construídos usando uma entrevista microanalítica. A ordenada é a intensidade subjetiva da experiência numa escala que vai de 1 a 10. A abscissa é o tempo estimado conforme recordado pelo sujeito. O início e o fim de cada episódio de consciência e de momento presente são determinados pelo sujeito. Onde as curvas ficam mais grossas, ele está relati vamente certo de ter tomado consciência do acontecimento. E comum o sujeito dizer: “Sei que estava sentindo isso e aquilo antes (ou depois), mas mais ou me nos aqui isso penetrou a consciência [a linha engrossa] ou deixou a consciência [a linha afina].” O PROBLEMA DO "AGORA" EXEMPLO 2 Este exemplo demonstra melhor como o momento presente é uma amostra de padrões passados e futuros, que ganham importância quando o momento presente desempenha um papel numa concep ção psicodinâmica abrangente. Em uma “entrevista do café-da-ma- nhã”, G.S., um jovem aluno de pós-graduação, contou dois momentos presentes que se destacaram durante a manhã. Eis uma transcrição parcial. G.S.: Bom, abri a porta da geladeira, assim. (Ele fez um gesto mos trando como abriu a porta.) D.S.: (Fiquei intrigado quando ele fez um gesto para mostrar como abriu a porta. Normalmente, a abertura da porta de uma ge ladeira não exige explicação gestual.) Por que você me mos trou como abriu a porta? Há algo especial nisso? G.S.: Há, sim. A porta está meio quebrada. Se eu a puxo muito devagar, ela fecha sozinha. E se eu a puxo com força demais, ela abre até o fim e bate no armário ao lado. Então tenho de abri-la com a força exata, nem muito fraco, nem muito forte, para que fique aberta, repousando num ponto de equilíbrio. Estou consciente ao fazer isso porque é como um jogo que requer atenção. [Pausa] Depois acho que apanhei o suco de laranja. Não me lembro disso, mas é automático. Devo ter levado o suco até a mesa, pegando um copo no caminho. D.S.: Sim. G.S.: A próxima coisa de que estava consciente foi de pôr suco no copo. D.S.: Ah. E como faz isso? G.S.: Normalmente encho o copo ao máximo, mas não até a bor da. Numa altura suficiente para que esteja cheio, mas não tanto que derrame quando levá-lo à boca. Isso exige que eu aja conscientemente. D.S.: Ah. O MOMENTO PRESENTE G.S.: É uma espécie de jogo. O que é interessante sobre esses dois momentos é que eles são re presentações do mesmo tema: saber encontrar o exato equilíbrio entre ir longe demais e não ir longe bastante. Curiosamente, G.S. per cebeu isso espontaneamente e mencionou que na noite anterior a esse café-da-manhã ele estava tentando terminar o capítulo de dis cussão de sua tese de doutorado. O que estava dificultando a reda ção era o fato de não conseguir se decidir sobre até que ponto ele ousava levar suas descobertas e conclusões. Pensara nisso a noite inteira. Ele disse: “É como a porta da geladeira e o copo de suco.” Vale acrescentar o que sei sobre esse rapaz, que foi um sujeito de pesquisa e ex-aluno, não um paciente. Ele tinha uma tendência forte e saudável de levar quase tudo ao limite, de ousar e ver até que ponto podia ir. Era uma vantagem mas também tinha o poten cial de criar problemas. Portanto, os dois momentos de consciência (porta e suco), sua preocupação da noite anterior e seu temperamento (e talvez seus conflitos), todos diziam o mesmo: “Eu testo e brinco com a frontei ra entre o de mais e o de menos. Estico os limites. Existe nisso algo intrigante e importante para mim.” Isso não é um mundo sendo refletido num grão de areia? Eu estava preparado para ver o comportamento presente como uma representação de padrões psicológicos e comportamentais mais amplos. Essa é a essência da hipótese psicodinâmica. Entretanto, fiquei surpreso ao ver padrões psicodinâmicos mais amplos refleti dos em unidades tão pequenas quanto momentos presentes. Perce ber isso abriu-me o caminho para considerar o momento presente, assim como o sonho, um fenômeno que merece ser explorado mais profundamente com fins terapêuticos. Tal visão acrescenta mais um caminho para seguir clinicamente. Retomarei este ponto nos capí tulos que tratam de aplicações clínicas. Este livro aborda amplamente determinados momentos que podem mudar o curso da psicoterapia, assim como a vida normal. 40 O PROBLEMA DO "AGORA' Olhar mais de perto tais momentos proporciona uma visão dife rente do processo de psicoterapia, que será explorada por suas im plicações clínicas e teóricas. EXEMPLO 3 Um terapeuta que conheço tinha o hábito de apertar a mão dos pacientes quando entravam no consultório. Era um modo de dizer olá antes de começarem a trabalhar. E, ao fim de cada sessão, quan do o paciente se preparava para sair, apertavam-se as mãos nova mente como despedida. Um dia, o paciente contou uma série de eventos muito comoventes que o afetaram (assim como ao terapeuta) profundamente. O paciente estava triste e quase prostrado. Ao fim da sessão, durante o aperto de mão de despedida, o terapeuta pou sou a mão esquerda sobre a mão direita do paciente, que ele já estava apertando, num aperto de duas mãos. Eles se olharam. Nada foi dito. O episódio durou alguns segundos. Também não foi men cionado em sessões subseqüentes. Entretanto, o relacionamento havia se deslocado em seu eixo. Algo vital foi somado ao que quer que tenha sido dito na sessão — alguma coisa tão essencial que toda a sessão foi alterada. O momento penetrou a consciência e foi me morável. Na verdade, aquele aperto de mão pode se destacar como um dos momentos mais memoráveis de toda a terapia. Muitas ve zes quando perguntamos a alguém, cinco ou dez anos após a con clusão de uma terapia bem-sucedida, quais foram os momentos mais importantes ou nodais da terapia que mudaram as coisas, podemos muito bem ouvir: “Um aperto de mão que trocamos certo dia, quan do eu estava de saída.” Quero assinalar diversos pontos deste caso que vão se somar ao que foi descrito para as entrevistas do café-da-manhã: • O que quer que tenha ocorrido nesse momento foi entendido implicitamente por ambos e nunca precisou ser discutido para 41 O MOMENTO PRESENTE ter efeito. Criou-se um conhecimento implícito sobre o relacio namento deles. • Cada um sentiu a experiência do outro, e ambos sentiram a par ticipação mútua na experiência do outro. Houve, nesse sentido, uma interpenetraçãode mentes — um novo estado de inter- subjetividade foi criado entre eles. • Embora o momento tenha sido preparado por múltiplos eventos nos minutos e provavelmente semanas e meses precedentes, o exato instante de seu aparecimento não foi planejado nem previ sível. Surgiu espontaneamente. A vida muda em saltos. • Durante o momento em questão, uma história se desenrolou, ainda que muito curta, mínima e concentrada. Ela foi direta mente experimentada, e não escrita ou contada. O momento criou um “mundo num grão de areia” que nasceu no instante em que o momento era vivido, e não depois. • O momento ficou gravado na mente de ambos. Mesmo sem ser verbalizado, penetrou na memória, pôde ser recordado e tornar- se consciente. EXEMPLO 4 Este exemplo é muito menos carregado; na verdade, é bastante ba nal. Aconteceu depois que um grupo de desconhecidos e eu teste munhamos uma divertida discussão entre um talentoso mímico de rua e uma transeunte. Eu estava sentado nos degraus de um museu, virado para a calçada, onde o mímico andava atrás de diversos tran seuntes por dez ou vinte metros (vários segundos), imitando o an dar, a postura e o aparente estado de espírito das pessoas — rapidamente “capturando” algo a respeito delas. Os transeuntes nor malmente não se davam conta de que estavam sendo imitados e que eram alvo de uma brincadeira. Continuavam caminhando. Então o mímico parava, dava meia-volta e seguia o próximo passante, vol tando na direção contrária. E assim por diante, para a frente e para 42 O PROBLEMA DO "AGORA" trás. As pessoas sentadas nos degraus se divertiam. Ele então seguiu uma mulher. Mas ela logo percebeu o que estava acontecendo, e parou, voltou-se, encarou o mímico e começou a repreendê-lo. Ele começou a imitar a repreensão. E ela, a imitar a imitação que ele estava fazendo dela. Ele prosseguiu até que os dois caíram na gar galhada. Trocaram um aperto de mão e se separaram. Todos aplau diram. (Isso não é o exemplo — embora pudesse ser, pois um momento foi compartilhado entre o mímico, a mulher e os especta dores. Isso é apenas o prólogo.) A essa altura levantei-me para ir embora e um casal desconhecido, sentado à minha esquerda, fez o mesmo. Nós nos entreolhamos, sorrindo, levantamos as sobrance lhas, inclinamos a cabeça de um jeito engraçado, fizemos uma espé cie de expressão facial indescritível e abrimos as mãos, as palmas viradas para o céu — como se disséssemos: “É um mundo louco e divertido.” Eles seguiram seu caminho e eu, o meu. O importante sobre o momento presente que compartilhei com o casal foi que um contato particularmente humano havia sido fei to — um contato que reafirmou minha identificação com membros da minha sociedade, mental, afetiva e fisicamente. Eu não estava só na Terra, eu era parte de algum tipo de matriz humana intersubjetiva e psicológica. O efeito durou pouco. Mas foi um bom quebra-galho. Este livro é sobre esses momentos, particularmente sobre como operam na psicoterapia para provocar mudanças. Diversas características da abordagem adotada aqui são relati vamente únicas. Primeiro, o livro explora o arquipélago de ilhas da consciência, os momentos presentes, que formam nossa experiência subjetiva, mais do que a cadeia montanhosa submarina inconscien te (seja ela a psicodinâmica ou a circuitaria neural) que ocasio nalmente perfura a superfície para formar as ilhas, que são o primeiro plano psicológico, a realidade primária da experiência. O presente e a consciência são os centros de gravidade, não o passado e o in consciente. A exploração que o livro faz do processo terapêutico é mi- croanalítica e ajustada ao tamanho do momento presente. Vai de 43 0 MOMENTO PRESENTE um pequeno evento a outro na escala dos segundos. É aí que o momento presente é revelado e onde vamos encontrar uma visão das coisas diferente. Finalmente, meu maior interesse reside nos momentos presen tes que surgem no contexto da interação de duas os mais pessoas. Afinal, nosso interesse principal é o processo psicoterapêutico que envolve duas pessoas. Os exemplos da entrevista do café-da-manhã se referiam a alguém só. Mas, mesmo quando está sozinha, essa pessoa está dirigindo sua atividade mental consciente a outro al guém. Pode ser a uma platéia imaginária, a um outro específico ou a um de seus selves dependentes de contexto. A idéia central sobre momentos de mudança é a seguinte: du rante esses momentos uma “experiência real” emerge, inesperada mente. Essa experiência acontece entre duas (ou mais) pessoas. Diz respeito ao seu relacionamento. Ocorre num período de tempo muito breve que é experimentado como agora, que é um momento presente com uma duração na qual um microdrama, uma história emocional, sobre esse relacionamento se desdobra. Essa experiên cia vivida em conjunto é compartilhada mentalmente, no sentido de que cada pessoa intuitivamente toma parte na experiência do outro. Esse compartilhar intersubjetivo de uma experiência mútua é apreendido sem precisar ser verbalizado, e se torna parte do co nhecimento implícito do relacionamento. O compartilhar cria um novo campo intersubjetivo entre os participantes que altera seu re lacionamento e lhes permite tomar direções diferentes juntos. O momento penetra uma forma especial de consciência e é codificado na memória. E, muito importante, reescreve o passado. As mudan ças na psicoterapia (ou em qualquer relacionamento) ocorrem por meio desses saltos não-lineares nos modos-de-estar-com-o-outro. A idéia geral é desenhar uma figura da experiência vivida um pouco diferente do que normalmente é encontrado no processo psicoterapêutico. Eu espero que essa nova visão, através do espelho do momento presente, mude muitos aspectos de como pensamos e praticamos a terapia. 44 Capítulo 2 A NATUREZA DO MOMENTO PRESENTE A PRESENTIDADE DA VIDA SUBJETIVA parece evidente. Como poderia ser diferente? Entretanto, a noção permanece problemática. As pes soas encaram a idéia de viver subjetivamente apenas no presente como algo contra-intuitivo. Por exemplo, quando nos lembramos de um acontecimento passado, podemos ficar ligeiramente surpre sos ao nos darmos conta de que toda a experiência de recordar está ocorrendo agora. Podemos estar revivendo algo, mas o reviver está acontecendo agora. Intuitivamente sentimos que não estamos de volta àquela época. Mesmo a narração de algo que acabou de acon tecer está na verdade ocorrendo agora. A narração é uma experiên cia do agora, ainda que se refira a um momento presente que ocorreu no passado. Temos expectativas em relação ao futuro, mas elas, também, estão sendo experimentadas agora. O mesmo vale para fantasias, sonhos e revisões pós-fato. Esse estrito confinamento da experiência no presente é um aspecto básico de qualquer aborda gem fenomenológica. O sentido de presentidade propõe um desafio às neurociências. Como sabemos que algo ocorreu no passado, e quando? Como re conhecemos o agora presente? Como o futuro está marcado? Como o marcador temporal é inserido no traço de memória e em que 0 MOMENTO PRESENTE lugar do cérebro isso ocorre? Estes são velhos problemas suscita dos de várias formas por muitos, por mais de um século (Bergson, 1896/1988; Husserl, 1964; James, 1890/1972; Merleau-Ponty, 1945/1962). Recentemente, Dalla Barba (2001), entre outros, propôs que a consciência não é uma dimensão unitária, mas um conjunto de modos distintos de abordar o objeto da consciência. Ele sugeriu dois modos: a consciência conhecedora e a consciência temporal. A primeira aborda o objeto a fim de conhecê-lo. Já a segunda aborda o objeto a fim de temporalizá-lo, em termos de passado, presente e futuro. Outros fizeram sugestões semelhantes (por exemplo, Chalmers, 1995; Damasio, 2002). É provável que os distúrbios pato lógicos de memória resultem de uma dissociação desses dois modos. São inícios promissores, mas provavelmente a mais difícil tarefa de marcação de tempo será saber que estamos no presente.Há muitas perguntas sobre a fenomenologia da presentidade para as quais uma base neural se mostraria interessante. A presentidade é algo semelhante a um afeto existencial. As neurociências precisam entendê-la e enfrentá-la. Isso é de grande importância clínica porque estados de dissociação patológicos po dem influir no senso de presentidade. O enactment de memórias traumáticas é um caso relevante. Parece haver uma perda do senso existencial de ser num presente ou passado sentidos. O sentido de presentidade parece também exigir um senso de self. E o que é isso neurofisiologicamente? (Retornarei em breve a esta questão.) É comum que alguém se sinta apenas parcialmente no mo mento presente. Mas, então, onde mais está você? Por exemplo, você pode estar presente num compromisso qualquer, aqui e ago ra, mas ao mesmo tempo estar preocupado com algo que aconte ceu ontem ou está acontecendo agora na sala ao lado. Nessas ocasiões, você se sente apenas ligeiramente no momento presen te, como se parte de você estivesse em outro lugar, em algum ou tro espaço temporal. Mas não existe nenhum outro espaço de A NATUREZA DO MOMENTO PRESENTE tempo subjetivo. Você ainda está no momento presente, só que existem duas experiências (pelo menos) acontecendo em parale lo, como um dueto. Uma experiência pode colidir com aquela que está em primeiro plano e empurrá-la para o segundo plano, mas você não escapou do presente. Fenomenologicamente, não há como se esquivar. Na verdade, experiências no presente podem ser polifônicas ou politemporais. O momento presente é uma unidade de processo subjetiva e psicológica da qual se está ciente. A maneira como ele começa e termina pode às vezes ser difícil de definir. Merleau-Ponty (1945/ 1962) descreveu a chegada de um momento presente diante de nós como a irrupção de um presente novo em folha — a repentinidade de uma lembrança ou um novo pensamento ou nova percepção. Não estamos cientes de como ele chegou ali porque o compusemos inconscientemente, intuitivamente. Essa irrupção também pode es tourar sobre nós como uma onda, ou aparecer quase sem aviso e depois desaparecer como uma ondulação no mar. A DURAÇÃO DO AGORA Como pode o agora ter uma duração longa o suficiente para algo acontecer dentro dele? Ou: como pode devolver o tempo ao mo mento presente para que ele seja um acontecimento vivido analogicamente em tempo real? A duração do agora depende de como concebemos a passagem do tempo. Aqui, precisamos retornar à distinção entre chronos e kairos. Em geral, tanto a psicologia quanto a psicanálise têm sido capazes de viver com a concepção do presen te descrita por chronos. Entretanto, a experiência comum — nosso senso objetivo da vida como vivida no nível local do segundo-a- segundo — não se dá bem com a idéia de que o presente não tem espessura temporal. A experiência de ouvir música, assistir a dança ou interagir com alguém requer um presente com uma duração (con forme veremos), e assim também a vida no nível local. 47 O MOMENTO PRESENTE Momentos presentes psicológicos precisam ter uma duração na qual coisas aconteçam e ao mesmo tempo ocorrer durante um agora único e subjetivo. Um exemplo de música esclarece essa aparente contradição: uma frase musical curta é a unidade de processo básica da experiência de ouvir música. Uma frase é o análogo musical de um momento presente da vida comum. Uma frase musical é intuiti vamente apreendida como uma unidade global com fronteiras. Tem a duração que é sentida (normalmente entre dois e oito segundos). O mais interessante é que a frase musical, quando ouvida, é sentida como se ocorresse durante um momento que não é instantâneo, ou tampouco parcelado no tempo em pedaços seqüenciais como as ano tações escritas. Na verdade, é um todo contínuo e analógico que flui durante um agora. Normalmente, apesar de não estarmos cientes da passagem do tempo durante um agora, o fluxo de tempo está sendo registrado de alguma maneira fora da consciência. A frase constitui uma entidade global que não pode ser dividida sem perder sua gestalt. Não se pode tirar o equivalente a uma foto grafia de uma frase musical ouvida no instante em que ela passa. Não é um sumário das notas que a formam. A mente impõe à frase uma forma à medida que ela se desenrola. Na verdade, seus finais possíveis são intuídos antes que ela seja concluída, enquanto ainda está passando. Isso eqüivale a dizer que o futuro está implícito em cada instante da viagem da frase através do momento presente. O mesmo se aplica a agrupamentos semelhantes a frases no com portamento verbal e não-verbal observado na vida cotidiana e na psicoterapia. Mas retornemos ao problema de encontrar tempo suficiente dentro do presente em movimento para que um momento presente dure e se desdobre. Como podemos arrombar chronos para criar um presente longo o suficiente para acomodar kairos? Durante séculos esta questão preocupou vários filósofos, entre os quais Santo Agostinho (1991), Husserl (1964), Heidegger (1927/ 1996), Merleau-Ponty (1945/1962), Ricoeur (1984-1988) e Varela (1999). Husserl (1913/1930/1980, 1930/1989, 1931/1960, 1962, 48 A NATUREZA DO MOMENTO PRESENTE 1964) forneceu a concepção-chave para encarar o problema. Ele pro pôs um momento presente que tem uma duração e que se compõe de três partes: um presente-do-momento-presente (não muito diferente do instante presente de chronos, o ponto passageiro do tempo em movimento), um passado-do-momento-presente e um futuro-do- momento-presente. Husserl chamou o passado-do-momento-presente de “retenção”. Trata-se de um passado imediato que ainda está eco ando no instante atual. Ele o descreveu como a cauda de um cometa. ✓ E importante notar que esse passado retido ainda se encontra dentro do presente sentido. Ainda não foi separado do instante atual pelo esquecimento ou afastamento da mente. Assim, não é como a memó ria operacional, que pode ficar fora da mente por um breve período de tempo mas é prontamente recordada. Nenhuma recordação é necessária para o passado-do-momento-presente porque ele ainda está no momento presente. O futuro-do-momento-presente foi cha mado de “protensão”. Este é o futuro imediato, que é esperado ou está implícito no que já ocorreu durante o passado e o presente-dos- momentos-presentes. Esse futuro-do-momento-presente faz parte da experiência do momento presente sentido porque seu prenúncio, ain da que vago, está atuando no instante atual e dá direcionalidade e, por vezes, um senso do que está por vir. Talvez o ponto mais essencial sobre o momento presente com posto de três partes seja o fato de que todas as suas partes se mantêm juntas, subjetivamente, como uma experiência global, única, unificada e coerente, que ocorre num agora subjetivo. (Ver também Varela [1999] para uma recente discussão sobre o presente de três partes.) PROTEGENDO O MOMENTO PRESENTE DO PASSADO E DO FUTURO, E ENCONTRANDO UM LUGAR PARA ELE O momento presente pode tornar-se refém tanto do passado quan to do futuro. O passado pode eclipsar o presente, jogando sobre ele uma sombra tão densa que só resta ao presente confirmar o que já 49 O MOMENTO PRESENTE era sabido, pouco podendo acrescentar. Ele é essencialmente apa gado. O passado psicodinâmico corre esse perigo. Este é um dos motivos pelos quais a psicanálise tem sido capaz de minimizar a importância do presente. Ele é visto como apenas mais uma repre sentação de padrões passados. O passado se apresenta de muitas formas influentes, entre as quais não só a história pretérita do paci ente, mas também os objetivos de longo prazo do terapeuta e as expectativas do paciente em relação ao tratamento. O futuro também pode aniquilar o presente reorganizando-o tanto e tão depressa que ele se torna efêmero e quase morre. Aque les que propõem um papel abertamente determinante para a re construção verbal/narrativa pós-fato enfrentam esse risco, porque agem como se a única realidade psicológicaclinicamente relevante fosse concedida quando a experiência é verbalmente transmitida. O desafio está em imaginar o momento presente numa espécie de equilíbrio dialógico com o passado e o futuro. Se não estiver bem ancorado num passado e num futuro, o momento presente vai flutuar para longe como um ponto sem sentido. Se estiver exa- geradamente ancorado, torna-se diminuído. Além disso, o presente tem de ser capaz de influenciar, talvez até o mesmo ponto, tanto o passado quanto o futuro, da mesma forma que eles o influenciaram. Mais uma vez o exemplo de uma frase musical pode nos ajudar a começar a abordar alguns destes problemas. Suponha que a frase seja ouvida na ausência de qualquer experiência musical passada; em outras palavras, é isenta de valores culturais. Evidentemente, isso é impossível. No entanto, estamos biologicamente programa dos para sermos capazes de formar uma idéia de como o fim da passagem poderia ser (enquanto a frase ainda está se desdobrando) com um mínimo de experiência anterior. Princípios de organização perceptual (provavelmente universais), como proximidade, boa continuação, destino comum e similaridade, foram identificados pela psicologia da Gestalt. Estes permitiriam formar futuros possíveis, dos quais qualquer um poderia se realizar, à medida que a frase se desdobra. A frase então poderia assumir algum tipo de forma sem 50 A NATUREZA DO MOMENTO PRESENTE experiência anterior. Outras restrições e tendências perceptuais são menos ou não absolutamente isentas de valores culturais (ver Deutsch, 1999a, 1999b). Embora não existam platéias musicais isentas de valores cultu rais, um interessante experimento se aplica à questão. Schenellenberg (1996) mostrou que a certa altura de uma nova frase musical temos a habilidade de prever seus finais possíveis. Criamos e impomos uma forma à medida que ela está acontecendo, enquanto escuta mos, e o fazemos sem pensar. Conforme a frase passa, mas não ainda completamente, construímos em nossa mente várias implica ções imediatamente futuras do que ainda estamos ouvindo agora. Estas noções baseiam-se no modelo de implicação-realização de Narmour (1990). Em termos específicos, se pedirmos a diversas pessoas, separa damente, que escutem apenas uma parte de uma frase e depois que adivinhem como ela pode terminar, elas concordarão em relação aos diversos finais possíveis. Na verdade, ocidentais pouco habitu ados à música chinesa, dotada de uma escala tonal diferente, po dem concluir uma frase incompleta de música tradicional chinesa, imaginando aproximadamente os mesmos finais possíveis para a frase que os ouvintes chineses (que também nunca escutaram a fra se antes). Quando o experimento é feito ao contrário, o desempe nho do ouvinte chinês é tão precário quanto o do ocidental na tentativa de prever finais possíveis de uma nova frase de música tradicional ocidental. (Músicos experientes se saem melhor.) Nesse sentido, uma frase musical contém um passado e um fu turo imediatos. A forma da frase musical é revelada e capturada pelo ouvinte enquanto a crista do instante presente imediato passa do ainda ressoante horizonte do passado (do momento presente) para o prenunciado horizonte do futuro (do mesmo momento pre sente) (Darbellay, 1994). Grande parte do charme de se ouvir músi ca reside nas surpresas que o compositor oferece, inventando caminhos finais que nos surpreendem mas não violam abertamente as implicações que percebemos. 51 O MOMENTO PRESENTE Parte das composições de música contemporânea é feita exata mente para brincar ou romper com nossas implicações que criam tendências, ou mesmo paralisá-las. O ato de dar forma à frase enquanto ela está acontecendo é de grande interesse, pois contribui para esclarecer a natureza do ago ra, em particular o problema da influência do futuro no presente. Em outras palavras, a relação entre acontecimentos e (re)construções de acontecimentos. Em música, a forma de uma frase não espera que as frases subseqüentes ganhem vida. Alguns pensadores sugeri ram que a forma da frase musical só é evidente depois que ela pas sou e é captada de novo pela mente. Se isso fosse verdade, nunca escutaríamos nada. Apenas “pensaríamos” música. No entanto, essa é a posição radical de alguns pensadores psicanalíticos ao conside rar o diálogo terapêutico. Eles afirmam que não existe aconteci mento (coup) até que este seja apresentado simbolicamente depois. Há somente uma (re)construção (après-coup). Só então a experiên cia assume sua forma subjetiva pela primeira vez. Pelo menos na música, a frase assume uma forma unitária e coe rente na mente enquanto está acontecendo. E este vai ser o caso de muitos outros aspectos da experiência. Também é verdade que a (re)construção ocorre de modo penetrante na música, bem como em outras experiências da vida. Muito da riqueza da música deve-se ao fato de cada frase subse qüente recontextualizar a anterior, e vice-versa, ad infinitum. Varia ções e estruturas temáticas mais amplas contextualizam e recontextualizam todas as frases, repetidamente. Todas as re- contextualizações modificam os fenômenos, mas não os criam. E este é o ponto crucial. Uma experiência coerente foi apreendida durante o momento presente, ainda que ela possa ter múltiplos destinos. Mas o que dizer da ação do passado na determinação da forma do momento presente, tanto na música como na vida? Vejamos, por exemplo, o estudante de pós-graduação da entrevista do café- da-manhã. O ato de despejar o suco de laranja no copo foi em gran de parte determinado por suas preocupações da noite anterior e A NATUREZA DO MOMENTO PRESENTE por seus traços de personalidade há muito tempo estabelecidos. O passado assume muitas formas: por exemplo, esquemas, represen tações, modelos, predisposições, expectativas, fantasias originais. Estas estruturas do passado encontram os eventos que se desenro lam no presente. Um diálogo dinâmico tem início. (O presente tem sempre um quê de novidade; possui condições locais próprias e únicas. Mesmo que fosse apenas uma repetição exata de algo que aconteceu antes, o presente conta com a diferença de ocorrer pela segunda vez, o que em si o torna único.) Ele vem sob forte controle do passado, que pode ser percebido, alterado ou mesmo surpreen dido pelo presente. Da mesma forma, o presente determina quais partes do passado serão escolhidas para serem reanimadas e mon tadas. Ambos estão sempre atuando um no outro. Narmour (1990, 1999) defende isso veementemente para a música no presente em movimento. Em resumo, o momento presente nunca é totalmente eclipsado pelo passado, nem completamente apagado pelo futuro. Ele retém uma forma própria, embora seja influenciado pelo que se passou antes e pelo que vem depois. Ele também determina a forma do passado que é trazida para o presente e os contornos do futuro imaginado. Esse triálogo entre passado, presente e futuro se dá quase continuamente de momento em momento na arte, na vida e na psicoterapia. CARACTERÍSTICAS DO MOMENTO PRESENTE O momento presente tem sido relativa mas não totalmente ignora do pela psicologia. Alguns dos trabalhos mais importantes sobre o assunto, essenciais para que eu pudesse escrever este livro, foram elaborados no século passado. Em suas recentes investigações sobre a consciência, a psicologia redescobriu a perspectiva fenomenológica. Mas o momento presente como uma entidade psicológica já existia muito antes disso, com diversos nomes diferentes: o “presente es 0 MOMENTO PRESENTE pecioso” (James, 1890/1972); o “presente pessoal” (W Stem, 1930), o “presente real” (Koffka, 1935) e o “presente percebido” ou “pre sente psicológico” (Fraisse, 1964). Ele é uma entidade crucial na fenomenologia da percepção (Merleau-Ponty, 1945/1962) e nas concepções atuais da consciência. Todos eles capturam aspectos li geiramente diferentes dessa experiência subjetiva. Algumas dessas unidades de processo são mais orientadas para
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