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Superinteressante O Melhor da Super

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CDD 056.9
© 2012 
D IR E TOR A-SU P E R INTE ND E NTE Claudia Giudice 
D IR E TOR D E NÚ C LE O Dimas Mietto 
D IR E TOR E D ITOR IAL Sérgio Gwercman 
D IR E TOR D E AR TE Fabrício Miranda 
E D ITOR Alexandre Versignassi 
C AP A Fabrício Miranda, Rafael Quick e Ricardo Davino 
P R OJE TO GR ÁF IC O Ricardo Davino 
ILU STR AÇ ÕE S Estúdio Meio 
R E VISÃO Alexandre Carvalho dos Santos e Paulo Kaiser 
C OLAB OR OU NE STA E D IÇ ÃO Anderson C. S. de Faria (arte)
S959
Ebook
Superinteressante : as 25 melhores reportagens dos 25 anos da revista : 1987-2012 . –
São Paulo: Ed. Abril, 2013.
320 p. : il. color. ; 23 cm.
Formato PDF
ISBN 978-85-364-1421-8
1. Periódicos brasileiros.
 
2012
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA ABRIL S.A.
Av. das Nações Unidas, 7221
05425-902 – Pinheiros – São Paulo – SP - Brasil
IMPRESSO NA PANCROM INDÚSTRIA GRÁFICA.
Índice
Introdução
1. Diário de um Cosmonauta
2. Genocídio Instantâneo
3. Túnel do Tempo, o Sonho Secreto dos Físicos
4. O Sabor da Própria Carne
5. Duelo com o Fantasma
6. A Verdade sobre a Maconha
7. Como Tratar os Animais
8. Como Hitler Pôde Acontecer?
9. Evangélicos
10. Olfato: o Sentido Marginal
11. A Identidade Secreta de Einstein
12. Maçonaria: a Ordem
13. Seu Amigo Psicopata
14. Ciência Nazista: Doutores da Agonia
15. Darwin, o Homem que Matou Deus
16. De Onde Viemos
17. O Último a Sair Apaga a Luz
18. O Fim dos Oceanos
19. Quem Escreveu a Bíblia?
20. Cachorros: Como Eles Viraram Gente
21. Mamãe, Quero Ser Menina
22. A Pílula da Inteligência
23. Sucesso e Fracasso
24. 50 Dias sem Mentir (ou Quase)
25. Amizade
A
Jubileu 
de
Prata
SUPER nasceu em 1987 com uma proposta radical: apresentar
assuntos profundos em uma linguagem do dia a dia — e mostrar o
que o dia a dia tem de profundo. Era transformar Einstein,
Nietzsche, Copérnico, Darwin, em assunto de almoço de
domingo. Isso num tempo em que questões bem mais mundanas
ocupavam quase todo o tempo dos brasileiros: inflação,
desemprego, governo inoperante.
Hoje, 25 anos depois, o Brasil é outro: mais rico, mais sério. Um
agente poderoso, fundamental para o futuro do planeta. E a Super fez
parte dessa história. Não só viu o país mudar, como ajudou a mudar o
país. Foi com ela que muitos cientistas, médicos, engenheiros e
historiadores tiveram contato pela primeira vez com o mundo da ciência,
da medicina, da matemática, da história. Esses leitores cresceram e
ajudaram o país a crescer. Já deram, e continuam dando, sua
contribuição para mudar o mundo.
E a Super só pôde exercer esse papel graças ao trabalho das centenas
de jornalistas que fizeram a história da revista, capitaneados pelos 6
diretores de redação que passaram por ela.
O primeiro foi Almyr Gajardoni (19871994), que fundou as bases da
revista e estruturou seu DNA de publicação voltada para a ciência.
Depois veio Eugenio Bucci (1994-1998), um dos jornalistas mais
admirados do país. Ele ampliou a cobertura de atualidades da revista e
transformou a SUPER numa referência mundial em arte e infografia. O
professor de ciência política da USP André Singer (1998-2000),
sucessor de Bucci, trouxe sua verve acadêmica para aprofundar a
abordagem de temas como história, economia e ciências sociais, que
hoje também são pilares da SUPER. Adriano Silva (2000-2005) chegou
e transportou a revista para o século 21, dando a ela uma pegada
simultaneamente mais pop e mais erudita. Ele também foi o responsável
por um grande salto editorial: criou a “família SUPER” uma série de
revistas que começaram como edições especiais e depois ganharam vida
própria, como MUNDO ESTRANHO E AVENTURAS NA HISTÓRIA.
Denis russo Burgierman (2005-2007), pegaria o bastão do Adriano e se
tornaria o primeiro diretor de redação que tinha feito toda sua carreira
como jornalista dentro da SUPER. Antes, o Denis já tinha se
consolidado como um dos repórteres mais importantes da história da
revista, ajudando a criar o estilo de texto que ela tem hoje. Sérgio
Gwercman (2007-2012), que também já tinha deixado sua marca em
grandes reportagens antes de assumir a direção, apontou os radares da
revista para o futuro.
E hoje a SUPER é mais do que uma revista. É uma máquina que
produz conhecimento em larga escala. São 25 edições por ano (13
normais e 12 especiais), livros (só em 2012 foram 5), mais blogs, site,
versões para iPad e Android... Tudo para milhões de leitores. Leitores
que, para nosso orgulho, desenvolveram uma relação de intimidade e
confiança com a revista ao longo desses 25 anos. Este livro é para
vocês.
ALEXANDRE VERSIGNASSI, EDITOR
de um 
cosmonauta
A VIDA COTIDIANA A BORDO DA
ESTAÇÃO ESPACIAL MIR, NAS 
PALAVRAS DE UM COSMONAUTA 
RUSSO QUE PERMANECEU 211 DIAS 
NA ÓRBITA TERRESTRE EM 1982.
É
Setembro, 11
dia de tomar banho. Uma limpeza da cabeça aos pés. Liussia, minha mulher, e Vitalik,
meu filho, vieram para a sessão de comunicação e parecem bem. Meu filho mostrou
pela televisão seu boletim escolar. Só notas altas. Parabéns! Em seguida, fui me lavar.
Durante o banho, a velha e calosa pele das plantas dos pés rebentou e se desprendeu
por completo, como a casca de uma batata. Isso porque aqui não andamos apoiados
nos pés. Agora eles estão parecidos com os de um recém-nascido: rosados, revestidos
de uma fina pele enrugada. Ainda que seja trabalhoso tomar um rápido banho em pleno
Cosmos - porque, antes de começar, você deve montar o boxe, abastecê-lo de água e, depois
de se lavar, desmontar, jogar fora a água suja e limpar o invólucro -, acho que vale a pena,
tamanho é o prazer que dá! Terminado o banho, ponho roupas limpas: camisa, ceroulas e
meias. Vestido assim, preparo uma comida quente, saborosa.
Setembro, 14
Dia de revisão do “contrato de trabalho”: devemos decidir se prolongamos o prazo de
permanência no Cosmo. Hoje também estamos realizando experiências geofísicas.
Fotografamos os territórios da União Soviética, de Cuba e dos países africanos com os quais
temos acordos na prospecção de recursos naturais. Também registramos com a câmera de
vídeo o que Yuri Gagarin viu ao dar uma volta ao redor do planeta (em 1961). Tudo como se
fosse com os olhos dele, os do primeiro homem que viu nossa Terra do Cosmo. Às duas da
tarde, fizeram-nos a proposta de continuar o voo, ou seja, prolongá-lo 40 dias além do prazo
inicialmente previsto. Respondemos que sim, desde que voar mais de 200 dias não fosse um
objetivo em si – quer dizer, desde que o novo prazo se justificasse com trabalho
suplementar. Pedimos que nos fossem dadas melhores condições para o cumprimento das
experiências e maior autonomia na organização da jornada de trabalho. E que fosse
considerada a possibilidade de mais uma saída ao espaço exterior. Argumentamos que isso
ajudaria a motivar o corpo para o novo trabalho e melhorar nossa disposição emocional.
Responderam que discutiriam com os especialistas. Agora, temos pela frente mais três meses
de voo – perspectiva que, para ser franco, parece dura.
Setembro, 18
Hoje o dia é de descanso. Cada um se ocupa de suas próprias coisas. Peguei a câmera para
fotografar a estrutura do horizonte da Terra com o visor ótico Puma, que tem um poder de
ampliação de 15 vezes. Quero registrar ainda a aurora boreal com um filme em cores, bem
como o nascer do sol, que é um belo espetáculo. Ao passar por trás da atmosfera, o Sol não
tem aquela forma redonda a que estamos tão habituados na Terra. Daqui, parece achatado e,
à medida que se levanta no horizonte, vai adquirindo uma forma arredondada, como uma
bola sendo inflada. Um fenômeno interessante e empolgante. O horizonte é um arco-íris vivo,
com faixas coloridas sendo substituídas por outras, variando em largura, brilho, número de
camadas e densidade das cores, fazendo com que a atmosfera pareça um prisma manipulando
os componentes do espectro solar para formar uma faixa branca cada vez mais intensa.
A filmagem do Sol comporta um sério problema: com um aumento de 15 vezes, o ângulo
de visão é muito pequeno. Sem contar que se é obrigado a usar um filtro de luz que reduz a
luminosidade mil vezes,o que dificulta a operação de apontar a câmera para o lugar em que
o astro vai nascer. É preciso olhar durante muito tempo pela vigia da nave para mirar bem.
Para isso, tive de colocar a camisa sobre a cabeça e nela abrir dois orifícios, como se fosse
uma máscara, protegendo assim o rosto e os olhos. Uma vez cheguei a queimar os olhos, que
ficaram com a esclerótica coberta por uma película amarela - um horror! - e tive de me tratar
com um unguento especial da farmácia de bordo.
Setembro, 20
Acordamos às 5h30. Temos a acoplagem com o transportador Progress- 15. O encontro com
o veículo de carga é sempre um acontecimento emocionante. Nele vêm novos aparelhos,
para novos e interessantes trabalhos. Chegam também outras coisas bastante agradáveis:
presentes dos companheiros de solo, correspondência de casa, edições recentes de jornais e
revistas. Esse veículo em particular é importante porque é o último da nossa missão, e é dele
que depende a prorrogação da permanência em voo, pois traz combustível, alimentação e
água. Depois da acoplagem, tivemos uma sensação de alívio. O voo vai continuar. Para nós,
é habitual dizer “chegou o transportador espacial”. Mas como a nave Progress nos localiza
no espaço? Como se acopla com a estação? Vou tentar explicar.
Uma vez lançado, o transportador espacial é orientado para a órbita de encontro por
manobras comandadas da Terra. A fim de garantir a precisão no momento do encontro, um
sistema de radionavegação chamado Igla é ligado quando o transportador chega a 20
quilômetros da estação espacial. Estabelecido o contato de rádio entre a nave e a estação, os
dois veículos ficam se falando continuamente, trocando informações sobre velocidade,
distância e posição angular. Nós permanecemos como simples espectadores. Quando os
propulsores de orientação são ligados, ouvem-se pancadas surdas no casco, como se fosse
um tambor. Durante o movimento de rotação para acertar a posição de acoplagem, sente-se
uma pequena aceleração, momento em que os objetos que não estão presos começam a voar
pela estação. À tarde, recebemos o sinal positivo para abrir a escotilha do veículo de carga.
Entramos nele. Ainda bem que não há guardas alfandegários no espaço.
Setembro, 21
Dia de descarga do Progress. Dormi mal. É muito bom estar habituado a esse tipo de
trabalho, sabendo por onde começar. É uma operação semelhante ao ato de trinchar um
peixe, que você ou pode simplesmente cortar de qualquer jeito e a muito custo, ou dividi- lo
da forma certa, rápida e elegante. É o que fizemos com nosso transportador: concluímos o
trabalho em apenas um dia, dois antes do prazo programado. E, quando nos disseram que
ainda havia cartas numa caixa no fundo do veículo, justamente no local em que existe uma
escotilha por onde o lixo é expelido, pus-me a cavar como uma toupeira, afastando as cargas
que encontrava no caminho, até alcançar a presa. Fiz esse trabalho sem os óculos de
proteção. Torci para que nenhuma farpa metálica caísse nos olhos. Saí do transportador com
as cartas, o rosto brilhando de suor e com algumas farpas coladas nele.
Encontramos no pacote de guloseimas mostarda, mel, amêndoas, damasco; nossas
mulheres haviam acrescentado ainda caranguejos, caviar, cebola e alho. Mas o melhor é o
pão de Tula, enviado por Liudmila. É pena que não temos leite gelado. Ao fim do dia,
abrimos um grande e grosso envelope ricamente decorado. Dentro encontramos algumas
cartas, uma série de desenhos e propostas relativas a futuras experiências no Cosmo - todas
feitas por crianças que participaram de um concurso. Algumas das ideias são bastante
curiosas, como a de cortar uma minhoca e verificar se, em órbita, sua pele se regenera. Ou
saber se as formigas são capazes de construir um formigueiro no estado de
imponderabilidade. Ou então descobrir qual seria a forma de uma pérola feita por um
molusco a bordo da estação. Quando acabamos de ler essas cartas, percebemos que as
crianças conseguiram realizar seu propósito: nos deixaram desconcertados.
Setembro, 23
Dia reservado a trabalhos de reparação, estando também previsto continuar a mexer no
transportador espacial. Substituímos o conjunto de aparelhagens médicas e trocamos a água
do reservatório. Não estou com vontade de fazer observações visuais. Sinto cansaço. Meu
corpo parece uma mola sem nenhum milímetro de folga e muito tensa.
Vem uma certa apatia. Tudo parece aborrecido. O apetite, entretanto, continua bom, graças
a Deus. Lavamos o rosto com lenços úmidos. Escovamos os dentes com uma espécie de
dedal coberto por um antisséptico. Você põe no dedo e esfrega os dentes e as gengivas. Uma
coisa agradável e cômoda. Também se pode utilizar a escova comum com pasta de dentes,
mas aí existe o problema de como enxaguar depois a boca. Temos de aplicar
obrigatoriamente um creme no rosto para evitar a secura e irritação da pele.
Limpamos o corpo todo com toalhas úmidas e depois o secamos com toalhas secas. Uma
sensação prazerosa. Depois de terminada a descarga do Progress, nossa estação está uma
verdadeira bagunça. Estão flutuando entre nós sacos cheios de equipamentos. Pelo tom das
vozes vindas da Terra, percebemos que o pessoal está tomando o cuidado de nos tratar de
maneira especial. Eles falam conosco como quem lida com doentes, preocupados com a
duração prolongada do voo. Não compreendem que isso é muito pior porque estraga nossa
disposição. À noite, li algumas revistas acomodado em meu lugar preferido, no
compartimento onde as naves engatam. Agora, vou dormir.
Setembro, 27
Dormi muito bem, um sono de quase onze horas. Ao me levantar, sentia uma pequena dor de
cabeça. Mas, pouco depois, passou. À noite, senti o estômago. Acho que foi uma leve
gastrite. Tivemos de nos preparar para as experiências durante toda a manhã. Quase não
falamos. Quando comecei a experiência com o fotômetro eletrônico, vi Tolia (Anatoli,
companheiro de voo de Lebedev) chegar perto e dizer: “Vamos fazer juntos”. Fizemos um
bom trabalho. Registramos três estrelas: Beta de Cisne, Vega e Altair. Lembro-me de ter lido
em vários artigos que, em órbita, alguns cosmonautas enxergaram casas esparsas, um navio
no mar e até um ônibus correndo pela estrada.
Será que isso é possível? Vamos ver. A capacidade de resolução do olho humano com boa
visão permite distinguir, de uma altura de 350 quilômetros, objetos com dimensões da ordem
de 100 metros, ou seja, navios e os maiores edifícios. Em certas condições atmosféricas,
com uma iluminação solar favorável e a presença de sombras, é possível discernir coisas
menores. Distinguir um veículo e ainda por cima afirmar que é um ônibus é impossível a
olho nu. Isso porque é difícil isolar pequenos objetos entre uma infinidade de coisas
semelhantes e sobre um fundo muito retalhado. Não digo que, com uma rara combinação de
condições atmosféricas sobre determinadas regiões, a camada aérea não possa funcionar
como uma lente, possibilitando uma melhora súbita da visibilidade. Eu, porém, nunca vi.
Novembro, 6
Pela manhã, executamos uma nova experiência científica. Depois começamos os
preparativos para o banho. Me distraí e não fechei direito o recipiente onde colhemos a
urina, por isso a tampa pulou fora com a pressão, brotando também água suja misturada com
a urina. Uma grande gota amarela ficou pendurada no extremo da mangueira. Grande coisa!
Fiz a limpeza. A propósito, não sentimos aqui nojo por tais coisas, compreendendo que tudo
isso é nosso, só dos dois. Tomei uma ducha. Tenho sentido ultimamente dor na coluna. Sei,
por experiência terrestre, que isso acontece quando pratico pouco esporte. Os músculos se
enfraquecem. Por isso fica difícil para a coluna sustentar o peso do corpo, originando uma
compressão das vértebras. Aqui, em órbita, acontece o contrário: elas se dilatam. Como
voamos há muito tempo, perdemos o sentido do tempo. Sabemos que muito já se passou, mas
não podemos perceber exatamente quanto, como fazemos quando estamos em terra. Lá se
vive a primavera, o verão, o outono, o inverno e as férias. Aqui, tudo está envolto por um
tempo anônimo,uma sucessão de luz e escuridão, quinze vezes por dia.
Novembro, 11
Dia da morte de Leonid Brejnev (chefe do governo soviético desde 1964). Lançamento do
ônibus espacial americano Columbia. Acordei por volta das cinco da madrugada. Levantei
mais cedo para filmar o Extremo Oriente em videoteipe. Vejo a cama de Tolia vazia. Olho
para o compartimento de trabalho e o descubro deitado e encolhido no aparelho de esteira
rolante. Perguntei o que tinha acontecido. Ele disse que não estava se sentindo bem,
parecendo intoxicação, uma dor no lado esquerdo do abdômen. Ao cabo de uma hora, vejo o
homem ainda sofrendo. Fui até a farmácia e peguei dois remédios e um comprimido de
carvão ativado. Sobrevoamos o território soviético. Digo a Tolia que não temos o direito de
esconder sua dor e sugiro entrar em contato com a Terra e informá-los. Ele concorda.
Estamos passando sobre o litoral do Extremo Oriente, não estando programada nessa volta
uma sessão de comunicação. Faço a chamada: “Aqui Elbrus-2, responda-me”. Entra o
operador de plantão do posto terrestre em Ussuriisk. Peço ligação para o Centro de Controle
de Voos. Atende Viktor. Solicito um médico, vem correndo Valera, médico de turno.
Expliquei-lhe tudo e aí saímos da zona de radiovisibilidade. Somente na comunicação
seguinte, às oito da manhã, tive nova conversa com Valera e ele recomendou aplicar uma
injeção de atropina. Peguei na farmácia uma seringa e disse: “Vamos, Tolia, mostre o seu
traseiro porque vou te dar uma agulhada”. Segurei metade da agulha com os dedos para que
não entrasse toda na carne. Ele disse que nem sequer percebeu quando apliquei. Uma hora
depois, se sentia aliviado. Na sessão de comunicação seguinte, já haviam reunido uma junta
médica para decidir se devíamos ou não aterrissar. Coisa absurda: passar nove anos se
preparando para o voo, voar meio ano e ter de aterrissar uma semana antes do recorde de
permanência no espaço. Como se isso fosse pouco, entra Riumin (cosmonauta que à época
trabalhava no Centro de Controle dos Voos): “Rapazes, estamos preparados para trazê-los
de volta”. Bolas! Depois do almoço, o pessoal de terra pediu que, pelo sim, pelo não, nos
preparássemos para a descida. Ao meiodia, Tolia já não parecia tão aborrecido. Digo-lhe:
“Vamos então comunicar que aterrissamos”.
Dezembro, 13
(Depois do regresso) Dia de repouso. Sinto-me muito mais aliviado, já sem aquele cansaço
no corpo. Levanto os objetos com mais facilidade, me mexo na cama sem esforço.
Participamos de uma entrevista coletiva. Fiquei contente porque parece ter sido uma boa
conversa. De dia, fiz um treino na piscina, uma caminhada, exercícios fáceis para as pernas e
os braços. Fica-se cansado rapidamente. Estou com bom apetite. Já recuperei o peso de 72
quilos. No primeiro dia em terra, estava com 70,5 quilos. Os médicos estão contentes. O
restabelecimento é normal. Só alterações no sangue. Isso porque o organismo se adaptou à
imponderabilidade. Agora se inicia o processo contrário. De manhã, fiz uma brincadeira:
pus a máscara de fantasia trazida a bordo da estação por Jean-Loup Chrétien (cosmonauta
francês que esteve na Saliut). É uma máscara feia. Depois de colocá-la na cabeça, deitei na
cama e fiquei imóvel. Alguém foi correndo aos médicos assustado com o que viu. Quando
Ivan Skiba, chefe da seção médica, Slava Bogdachevski e o psicólogo entraram no meu
quarto, virei o rosto para eles e lancei um grito feroz. Ficaram apavorados. Aconteceu uma
cena muda, com minha máscara refletindo-se nas suas fisionomias desfiguradas pelo susto.
Quando voltaram a si, desataram a rir. O psicólogo diagnosticou: “Se o paciente está
brincando, é sinal de que tudo vai bem”.
A
instantâneo
COMO UM TIME DE 
VENCEDORES DO PRÊMIO 
NOBEL DEU À LUZ 
A BOMBA ATÔMICA.
primeira explosão nuclear da História aconteceu em silêncio, na madrugada chuvosa
do dia 16 de julho de 1945, numa área de testes de bombardeios do Exército
americano, em Alamogordo, Novo México. Uma luz dura, 20 vezes mais brilhante que
a do Sol, acendeu a noite e fez o céu, o deserto e as montanhas próximas ficarem
brancos como papel. Apesar da hora, milhares de pessoas, em cinco Estados vizinhos,
viram o flash sem ter ideia do que estava acontecendo. Não se ouviu o som.
Muito mais lento do que a luz, o som veio muitos segundos depois. Um estalo seco como
um tiro, seguido de um trovão. E uma imensa bola de fogo, com 2 mil metros de diâmetro,
levantou-se de repente. Mudando de amarelo para laranja, e depois para vermelho, a bola
em poucos minutos alcançou 15 quilômetros de altura.
Numa reação automática, manifestou-se o gênio do físico italiano Enrico Fermi. Ele
calculou quase a olho a energia da detonação: deixando cair pequenos pedaços de papel,
quando a onda de choque passou pela casamata em que estava escondido, mediu a distância
a que os papéis foram lançados e estimou o poder da energia liberada em pelo menos 10
quilotons. O equivalente a 10 mil toneladas de dinamite. Uma conta excelente, naquelas
circunstâncias: o número preciso, como se verificou mais tarde, era de 18 quilotons. De
longe, a maior quantidade de energia já produzida de um só golpe pelo homem.
Foi um instante de imenso orgulho e alegria. Os cientistas, técnicos, militares e políticos
reunidos em Alamogordo pularam, gritaram e se abraçaram na lama que a chuva tinha
deixado por toda parte. A montagem final da bomba, a partir do segundo semestre de 1944, e
o teste em julho de 1945 tinham sido apenas as últimas etapas de uma longa corrida contra o
tempo.
Nos três anos anteriores, centenas de milhares de americanos tiveram de ser mobilizados,
de engenheiros a trabalhadores da construção civil. Acima de tudo, exigiu-se a colaboração
disciplinada de dezenas de físicos, químicos e matemáticos. Um time de cérebros que
contava com mais de 20 ganhadores do Prêmio Nobel. Alguns já haviam sido premiados,
como o italiano Fermi, o dinamarquês Niels Bohr e o alemão Otto Hahn. Outros seriam
futuros escolhidos: o alemão Hans Bethe, o húngaro Eugene Wigner e o americano Richard
Feynman.
O time aceitou trabalhar voluntariamente, num regime de disciplina militar. Em
Alamogordo, uma região seca e arenosa, habitat de escorpiões e cobras, quase deserta de
gente, ficava apenas uma parte da equipe. Juntando cientistas, técnicos e soldados, a
população chegava a 200. Vida duríssima e sigilo absoluto. Ninguém podia telefonar para
fora sem autorização. Nem sair do alojamento, um punhado de barracos levantados às
pressas pelo exército em 1944. Aí, durante dez meses, os pesquisadores trabalharam
alegremente, com toda boa vontade.
No final de 1938, o físico italiano Enrico Fermi aproveitou uma ocasião extraordinária
para escapar da ameaça de perseguição que sentia em seu país, então sob o domínio fascista.
Numa quebra de sigilo sem precedentes, mas justificável naquelas circunstâncias, ele havia
sido informado de antemão que ganharia o Prêmio Nobel de Física daquele ano. Então,
sabendo que conseguiria uma autorização para ir a Estocolmo, na Suécia, receber a láurea,
planejou secreta mente não voltar mais para a Itália. Fugiu com toda a família para os
Estados Unidos.
A chegada de Fermi foi decisiva para que a tecnologia do átomo fosse dominada em
apenas três anos - um feito, na época, inimaginável para a ciência. Ninguém conhecia melhor
do que ele a ação de partículas recém-descobertas no núcleo atômico, chamadas nêutrons,
que teoricamente poderiam escapar de seu núcleo original e entrar em outro para quebrá-lo.
Assim, liberariam a energia estocada lá dentro. Na prática, não era tão simples. O próprio
Fermi sabia apenas que os nêutrons penetravam facilmente nos núcleos: não sabia que os
núcleos se quebravam. A fissão nuclear, nome dado a esse fenômeno, foi comprovada em
1939, um ano depois da fuga para os Estados Unidos.
Mas Fermi tinha certeza, desde o início do século, de que o núcleo representava a mais
densa concentração de matéria já vista. E isso significava muita energia. Um único grama de
matéria, seja do que for, representa 20 trilhões de calorias,o suficiente para fazer ferver 900
mil toneladas de água. É o que diz a fórmula descoberta por Albert Einstein em 1905,
E=mc2. Energia (E) é igual à massa (m) multiplicada pela velocidade da luz ao quadrado
(c2). Em 1939, a alemã Lise Mentner usou a fórmula de Einstein para calcular a força gerada
durante a fissão do núcleo do urânio. Nem toda a matéria virava energia (a conversão não
chega a 20%, ainda hoje), mas dava de sobra para projetar uma superarma.
Só faltava demonstrar que, quando um átomo de urânio se quebra, seus fragmentos
provocam sucessivamente a quebra de outros núcleos. Ou seja, uma reação em cadeia, que
foi demonstrada por Fermi em 1942. Daí em diante, a construção da bomba já não dependia
tanto da Ciência. Era um problema de tecnologia e de dinheiro, especialmente para produzir
e transformar o urânio comum em combustível (ele precisa ser enriquecido com variedades
mais raras de urânio).
A própria guerra, então, daria o empurrão final para a conquista da energia nuclear. Em
meados de 1942, os ditadores Adolf Hitler, da Alemanha, e Benito Mussolini, da Itália,
haviam dominado toda a Europa continental, da França à Polônia. Diante de tamanha
demonstração de força, o presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt, resolveu
encomendar a arma atômica a uma unidade de engenharia do Exército. A ordem foi dada em
junho. Em agosto, nasceu o Projeto Manhattan, cuja função era coordenar o trabalho de todos
os físicos, químicos, engenheiros, técnicos e operários necessários para executar a ordem.
O gatilho da revolução atômica foi a ciência pura. Mas, depois de iniciada, teve de ser
sustentada por uma mobilização monumental de recursos. Até cidades foram construídas.
Algumas saíram do nada, em locais isolados, justamente para garantir o segredo. Existem até
hoje. Outras, que também permanecem, foram refeitas. Hanford, então um povoado
insignificante e perdido do mundo no Estado de Washington, foi invadida, em 1943, por 25
mil trabalhadores. Em menos de um ano, construíram 250 quilômetros de ferrovias, 600
quilômetros de estradas, casas para 40 mil operários e suas famílias, e uma fábrica de
plutônio, combustível nuclear como o urânio.
As cidades cresceram em diversos pontos do país, sempre com o mesmo fim: alimentar a
superbomba. Das novas fábricas, saíam peças ou combustível. Dos laboratórios, números e
medidas. Quantos quilos de urânio ou plutônio seriam necessários? Como detonar a
explosão no momento exato? Até que ponto o urânio comum, extraído das minas, precisaria
ser misturado com o urânio-235, mais radioativo? Em resumo, os cientistas já não faziam
Física pura. Mas só eles eram capazes de manipular as equações descobertas na década
anterior para desenvolver a tecnologia que estava nascendo.
A direção geral do Projeto Manhattan, que coordenava toda a operação, foi entregue a um
general do setor de engenharia do Exército chamado Leslie Groves. Era administrador
competente e autoritário, conhecido por ter levantado o prédio do Pentágono, a secretaria
militar do governo americano. O general estava fora da luta, mas queria combater. Então,
deram-lhe a função de “construir o armamento que acabaria com a guerra”.
Groves teve o bom senso de escolher um cientista brilhante para comandar o time de
gênios: o físico Robert Oppenheimer, que também revelou admirável capacidade gerencial.
Voluntariamente, os pesquisadores se submeteram a uma disciplina militar. Confinados aos
locais de trabalho, moravam longe de suas famílias. Foram divididos em equipes para que
uns não soubessem o que os outros estavam criando. Usavam nomes falsos e escreviam tudo
em código. Ficaram proibidos até de pronunciar palavras denunciadoras, como “físico”. A
vontade de vencer a Alemanha gerou um espírito de cooperação fora do comum.
Houve erros e contratempos. A divisão de tarefas por equipes que não se comunicavam
não funcionou, pois, entre cientistas, pensar significa trocar e debater ideias. O húngaro Leo
Szilard simplesmente não obedeceu às restrições de segurança. E, apesar de ter sido o
primeiro a propor a construção da bomba, foi ameaçado por Groves com a acusação de
traidor. O americano Richard Feynman, outro rebelde incorrigível, se divertia quebrando
códigos secretos e abrindo os mais complicados cofres com perícia de arrombador. Edward
Teller, da Universidade da Califórnia, futuro idealizador da bomba de hidrogênio, muito
mais poderosa que a atômica, brigou com Oppenheimer também por causa da disciplina.
Queria mais autonomia.
Nada disso, porém, comprometeu a eficiência prodigiosa do projeto.
A euforia com o teste de Alamogordo durou pouco. Foi uma emoção passageira. O estado
de espírito dos cientistas era péssimo. Eles já sabiam que o governo americano planejava
um ataque nuclear ao Japão, o último inimigo ainda de pé (alemães e italianos já estavam
vencidos na Europa).
Numa carta à mãe, o físico Richard Feynman descreveu os sentimentos de quase todos:
“Tudo estava perfeito, menos o objetivo”. Oppenheimer, chefe da equipe científica, lembrou
um antigo texto hindu: “Eu me tornei morte/ Destruidor de mundos”. O moral da equipe de
gênios caía vertiginosamente nos últimos dias do Projeto Manhattan.
O ânimo já vinha despencando desde a morte do presidente Franklin Roosevelt, em 12 de
abril de 1945, com quem os cientistas haviam concordado em trabalhar. Eles não se
entenderam bem com o novo presidente, o vice de Roosevelt, Harry Truman. Em seguida,
com a rendição dos alemães no dia 7 de maio de 1945, a tensão aumentou ainda mais. A
derrota nazista, que o resto do mundo recebeu como boa notícia, virou fator de preocupação
dentro do Projeto Manhattan. O que é fácil de explicar: foi contra Hitler que eles tinham se
unido e, com o ditador nazista fora do onflito, desapareciam as justificativas para a
construção de uma arma tão arrasadora. E ainda faltava um mês para o teste de Alamogordo.
Foi então que, para tornar tudo ainda mais torturante, às vésperas do teste, veio a informação
de que o governo americano estudava a hipótese de empregar a nova arma contra o Japão.
Era o início do pesadelo. Até ali, os cientistas alimentavam a ilusão de que o poder
nuclear jamais seria de fato empregado. Na pior das hipóteses, aceitariam lançá-lo contra os
nazistas. Truman vacilou entre argumentos contra e a favor. Por fim, decidiu-se. Era o final
de julho.
Dois anos antes, a máquina militar já começava a se mover. Desde 1943, a Força Aérea
treinava o chamado Esquadrão 509, chefiado por um dos melhores pilotos de bombardeiro
do país, o coronel Paul Tibbets. Na Boeing, em Seattle, ele escolheu pessoalmente seu
avião, o gigantesco quadrimotor B-29, o que havia de melhor na indústria americana. O
objetivo do 509 era lançar uma bomba de 4 mil quilos sobre Hiroshima, fazer uma curva de
180 graus, mergulhar, acelerar e dar o fora.
Hiroshima havia sido escolhida depois que o ministro da Guerra, Henry Stimson,
descartou a opção por Kyoto, ex-capital e maior centro religioso do Japão. Na madrugada de
6 de agosto de 1945, já a caminho do Japão, mas sem saber bem por quê, a tripulação
recebeu a ordem de lançar a bomba. Ela partiu do avião às 8h16 da manhã e, 43 segundos
depois, explodiu.
A cidade ficou coalhada de incêndios. Perto do hipocentro, foco da detonação, gente
virava cinza. Quase ninguém, a menos de 5 mil metros do hipocentro, sobreviveu. Em toda a
cidade, 50 mil edifícios ruíram. Mais tarde, durante anos, a radiação continuou matando. Até
hoje surgem novas vítimas fatais do pikadon, o “raio-trovão”, neologismo criado para
descrever o indescritível. Elas já são mais de 200 mil.
“Os físicos conhecerão a vergonha”. A maldição poderia ter vindo de uma das vítimas de
Hiroshima ou de Nagasaki. Mas seu autor, paradoxalmente, foi um dos arquitetos da bomba,
o físico americano Robert Oppenheimer. Que nunca se arrependeu do que fez. Essa
ambiguidade - a mistura de desonra com falta de arrependimento - foi uma marca que pairou
sobre a ciência e dividiu a sua história em duas partes. Antes e depois da bomba.
A vergonhaficou porque não há como negar: os cientistas produziram a máquina do
genocídio instantâneo conscientemente. Têm a seu favor o fato de que queriam construí-la
antes de Adolf Hitler. Mas, então, por que não foram unânimes em condenar o seu
lançamento contra Hiroshima e Nagasaki, quando Hitler já estava derrotado na Europa? Por
que muitos se conformaram? Tudo leva a crer que, quando terminaram a sua parte do
trabalho, os cientistas, simplesmente, deixaram que ele fosse completado. Bombas são
bombas. Existem para matar gente.
Há nuances, e muitas. O homem que mais lutou para ver a bomba construída foi depois o
que mais fez força para impedir que ela fosse usada: o físico húngaro Leo Szilard. Desde
1933, antes de qualquer outro, ele intuiu no que daria a mistura das equações de Einstein
com a radioatividade. Nos dez anos seguintes, gastou tempo batendo à porta dos governos
inglês e americano para convencê-los de que suas ideias não eram absurdas. Em 1939,
Szilard conseguiu que Einstein, um dos gênios de maior prestígio na época, escrevesse uma
carta a Roosevelt, presidente dos Estados Unidos, dizendo que a bomba era factível e que os
alemães poderiam construí-la durante a guerra. Mas, depois, tentou evitar o bombardeio de
Hiroshima a todo custo. Arrumou encrenca com quem foi preciso. Especialmente com o
então poderosíssimo general Leslie Groves, coordenador do projeto. Derrotado, depois do
ataque nuclear pediu a um padre para rezar uma missa para os mortos.
No final das contas, Szilard foi apenas ingênuo. Obcecado pelos crimes do nazismo, ele
só se deu conta do demônio que havia criado quando já não havia mais como detê-lo. Porque
a arma nuclear, mais do que qualquer outra obra humana, trouxe para dentro da ciência o
poder do sistema de produção em escala. O projeto da bomba virou indústria: posta em
movimento, começou a devorar os seus criadores.
Resumo: ela não acabou apenas com duas cidades japonesas. Ou com o ideal do cientista
como benfeitor da humanidade. Ela acabou também com a noção de liberdade. A começar
pela pesquisa científica. De 1945 em diante, o Estado passou a impor limites à manipulação
de urânio ou de plutônio, que acarreta riscos imensos. Desconhecidos pela humanidade, até
então. Os desastres potenciais são muitos, desde a possibilidade de um acidente causar
contaminação ambiental por longo período, de até milhares de anos, até o perigo de
atentados terroristas com material nuclear. Mas a liberdade também viveu outras limitações.
A informação passou a ser a mais vigiada pelas razões de Estado. No mundo que se seguiu à
Segunda Guerra, até mesmo as convicções ideológicas dos cidadãos viraram matéria de
segurança nacional. A sombra do cogumelo nuclear destruiu a inocência. Científica e
política.
Depois do teste de Alamogordo, já não havia mais lugar para a ingenuidade como a de
Szilard. Oppenheimer, mesmo sentindo vergonha, parece ter compreendido isso melhor do
que seu colega húngaro. Daí porque também não mostrou remorso. Não custa lembrar que,
quando a história da bomba começou, os Estados Unidos estavam em uma guerra selvagem,
na qual o número de atrocidades cometidas pelos vários exércitos superou o de qualquer
conflito anterior.
Mesmo depois da rendição da Alemanha, havia argumentos militares muito fortes a favor
de usar a bomba contra o Japão. Eles iam muito além da necessidade de derrotar o inimigo.
O governo dos Estados Unidos alegava que o recurso atômico quebraria o ânimo dos
generais japoneses, aparentemente dispostos a prolongar a luta até o seu último soldado.
Assim, a bomba poderia custar menos vidas do que a invasão do país com a ajuda de armas
convencionais. Pode ser, mas a estratégia americana não era determinada apenas pelo que ia
acontecer nos meses seguintes. Estava em jogo, principalmente, o equilíbrio do poder sobre
o mundo do futuro. Depois da guerra, restariam duas potências: os Estados Unidos e a então
União Soviética. Isso estava bem claro e pesou decisivamente nos cálculos frios da política
com relação ao Japão. Hiroshima e Nagasaki eram uma oportunidade para os americanos
ostentarem a força de que dispunham.
Há uma ironia na mudança dos tempos, desde a ascensão da ciência, na época do italiano
Galileu Galilei, no século 17, até a era nu clear. Galileu foi um dos pais da física moderna, a
mesma que projetou a arma atômica. Galileu também é lembrado por sua luta contra o
autoritarismo. É famosa a sua frase depois de ter sido obrigado a abandonar a ideia de que a
Terra não estava parada e que girava em torno do Sol. “No entanto, ela se move”, comentou
o sábio, apesar da humilhação a que fora submetido. Pode-se dizer, como uma metáfora, que
ele enfrentou o imobilismo em defesa do prosseguimento da evolução do conhecimento. E da
História. Em 1945, deuse o oposto. A ciência fez o tempo parar. Restou em Hiroshima um
símbolo do horror paralisante causado pelo genocídio instantâneo: um relógio parado,
encontrado junto da ponte Aioi, perto do local da detonação. Deixando de marcar os
minutos, ele parece dizer que, agora, a Terra já não se move.
O relógio de Hiroshima, num sentido muito real, é um herdeiro maldito de Galileu.
Oppenheimer percebeu isso muito bem. Reconheceu que tinha as mãos manchadas de sangue.
Não tinha dúvida de que tinha sido um dos personagens centrais de uma tragédia gigantesca.
Mesmo assim, não queria voltar atrás. Em mais de uma oportunidade, respondeu que faria
tudo de novo. Sua trágica lucidez rompe com a ilusão de neutralidade da ciência e assume as
contradições em que os mais destacados gênios podem sucumbir. A realidade em que
vivemos hoje é um paradoxo fatal. Oppenheimer e seus colaboradores fabricaram o
instrumento de um genocídio inominável. Eles não têm perdão. Mas também não têm
condenação. No mundo que surgiu depois de Hiroshima e Nagasaki, não existe um tribunal
com a isenção necessária para julgá-los. A humanidade ficou assim: de uma vez só, é vítima
e cúmplice da invenção da bomba atômica.
N
do tempo,
o sonho secretodos físicos
ELES NÃO CONTAM PARA NINGUÉM 
E NÃO GOSTAM DE COMENTAR O 
ASSUNTO EM PÚBLICO. MAS CIENTISTAS 
ANDAM ATRÁS DA RESPOSTA: COMO 
É QUE FAZ PARA VIAJAR NO TEMPO?
 Imaginem a gritaria sobre desperdício de dinheiro público se descobrissem que a
National Science Foundation fazia pesquisas sobre viagem no tempo. Por isso, os cientistas
tentam disfarçar seu interesse”.
STEPHEN HAWKING, FÍSICO INGLÊS
ão existe sonho mais fantástico do que viajar através do tempo, voltar ao
passado ou avançar pelas décadas à frente. O problema é que, além de
fantástico, esse é um sonho comprometedor. Nenhum cientista pode sonhá-lo em
público sem correr o risco sério de dar uma de maluco. Mas agora, para
surpresa dos próprios físicos, a possibilidade de atravessar os séculos para a
frente e para trás não pode ser de forma alguma descartada. Desde o final da
década passada, o físico americano Kip Thorne, do Instituto de Tecnologia da
Califórnia, trouxe à tona um objeto simplesmente estupendo: o wormhole, que, em
inglês, quer dizer “buraco de minhoca”. Com esse nome nada futurista, até meio
invertebrado, o wormhole pode ser a peça-chave de um futuro ônibus do tempo.
E o que é esse bicho? É uma espécie de túnel que, segundo a teoria, pode existir no
universo. Como se fosse um atalho cósmico, ele ligaria pontos superdistantes de um modo tal
que, se alguém pudesse caminhar por ele, chegaria rapidamente à outra extremidade. Ou
seja, ganharia um tempo enorme. A ideia de Thorne, então, seria aproveitar esses túneis,
deslocando suas extremidades para os pontos desejados e conseguir, com idas e voltas por
dentro deles, saltos não apenas no espaço, mas também no tempo.
Por enquanto, essa máquina do tempo só existe na teoria. Mas, exatamente porque só
existe na teoria, tem aquele fascínio dos aviões e helicópteros esboçados nas pranchetas do
século 15 por Leonardo da Vinci. Como o velho gênio italiano, Kip Thorne foi além dos
limites do que é possível em sua era. Agora você vai ler o que Thorne tem a dizer sobre a
máquinamais fascinante que o homem já desejou criar.
Ir para a frente é fácil. Duro é andar para trás
Você pode não levar a sério, mas viajar no tempo não é apenas possível. É até inevitável, em
certas circunstâncias. A ciência sabe disso desde 1905, data em que o alemão Albert
Einstein formulou a Teoria da relatividade. “O princípio é muito simples”, disse à SUPER o
americano Michael Morris, da Butler university, em Indianápolis, pesquisador vital nos mais
importantes avanços da atualidade. “Basta embarcar numa nave que alcance velocidade bem
próxima à da luz, de 300 mil quilômetros por segundo”, explica Morris. “Automaticamente o
tempo na nave vai começar a passar mais devagar do que na Terra.” Na volta, portanto, o
viajante estará mais jovem do que os que não voaram. Em números, se o relógio da nave,
nessa velocidade, marca a passagem de 12 horas, os da Terra marcam muito mais: uma
década. Ou seja, em relação a quem ficou aqui, o viajante terá feito uma travessia de dez
anos para o futuro.
Sagan faz um pedido
Já não há dúvida alguma sobre esse efeito, que foi testado e comprovado exaustivamente nos
últimos 30 anos. A precisão dos resultados só não é maior porque, como as velocidades
usadas são muito inferiores à da luz, o ritmo do tempo também não se altera muito. Assim, as
viagens já feitas ao futuro geralmente são curtas, da ordem de frações de segundo. Mas a
possibilidade, hoje, é um consenso tranquilo entre todos os físicos, diz Morris.
Em 1985, ele embarcou numa investigação muito mais complicada: era a possibilidade de
viajar para o passado. A história começou com um telefonema do astrofísico, divulgador
científico e escritor Carl Sagan, da universidade Cornell, a um amigo. O amigo era o físico
teórico Kip Thorne, do Instituto de Tecnologia da Califórnia. Sagan estava escrevendo o
romance Contato (1985). Queria saber se era cientificamente plausível viajar pelo
“hiperespaço”, que na ficção-científica é um meio de cruzar imensas distâncias quase
instantaneamente. Foi então que, decidido a mergulhar no assunto, Thorne convocou Morris
para ajudá-lo nas pesquisas.
Thorne chegou a uma conclusão extraordinária: o imaginário hiperespaço talvez pudesse
viabilizar as expedições no tempo. E com destino ao passado, tanto quanto ao futuro! Em
1994, ele lançou um livro clássico com essas conclusões: Black Holes and Time Warps
(“Buracos Negros e Dobras no Tempo”).
Como tirar as dúvidas?
Antes de começar a falar em passeios ao passado, duas coisas precisam ficar claras.
Primeiro, a possibilidade é real, existe mesmo. Não é mágica, não é bruxaria. Segundo, essa
possibilidade está sendo estudada com extrema cautela, pois os conhecimentos atuais da
Física podem não ser suficientes para resolver as dúvidas que ainda existem. Enfim, os
meios materiais para construir uma máquina do tempo como a que a teoria sugere estão
muito além da tecnologia disponível. Muito, muito além. Como escreveu Thorne em seu
livro: “Mesmo se as máquinas do tempo fossem possíveis pelas leis da Física, ainda
estaríamos mais longe delas do que o homem das cavernas estava das viagens ao espaço”.
Como cavar um buraco de metrô no espaço vazio
Para viajar no tempo da maneira como o teórico americano Kip Thorne visualizou é preciso
embarcar num paradoxo: abrir um buraco no espaço vazio, bem do tipo que liga nada a lugar
nenhum. Para entender melhor, pense por um momento nos buracos negros. Eles nascem
quando uma estrela superpesada (pelo menos três vezes e meia maior do que o Sol) se apaga
e fica sem energia luminosa. A estrela escurecida desaba sobre si mesma, produzindo uma
esfera absolutamente preta, ultracompacta, com uma força gravitacional apavorante. Traga
até mesmo os raios de luz. Dentro dela, ninguém sabe direito o que existe. Certamente não é
o espaço comum. Será que, entrando lá, alguém iria sair em outro lugar do universo?
Passeio num wormhole
Em 1986, Thorne já sabia que não. Tudo o que cai num buraco negro é esmagado. Propôs
então viajar dentro de wormholes, os tais “buracos de minhoca” que já eram descritos em
outros estudos de Cosmologia. A grande vantagem dos wormholes (que são conhecidos
apenas em teoria) sobre os buracos negros é que, apesar de também ter densidade altíssima,
eles não trituram ninguém.
Mais do que isso: como os wormholes têm duas bocas, situadas em locais diferentes do
universo, seriam os túneis ideais. Só faltava direcioná-los. A partir da Teoria da
relatividade — que ensina que um relógio em movimento marca o tempo mais devagar em
relação a um relógio que está imóvel —, Thorne imaginou colocar uma das bocas de um
wormhole dentro de uma nave, mandando-a para uma velocíssima viagem. A outra boca
ficaria na Terra. Na volta, uma das bocas, a que viajou, estaria atrasada no tempo. É claro!
Se essa viagem acontecesse hoje, numa velocidade bem próxima à da luz, bastariam 12
horas de passeio para conseguir um intervalo de dez anos na Terra. Pronto! Sai um túnel do
tempo para viagem: uma das bocas estaria em 2006; a outra, em 1996. E quanto tempo
levaria para atravessar o túnel do tempo depois de pronto? Menos de um segundo.
Estigma de físico maluco
É uma hipótese tão doida que Thorne viu-se diante do risco de ser chamado exatamente
disso: doido. Tornou-se muito zeloso da imagem de seus colaboradores, Michael Morris e
ulvi Yurtsever, além da sua própria. Tanto que, em seu livro, escreveu que temia “que a
reputação científica de Morris e Yurtsever fosse manchada com o estigma de físicos malucos
de ficção científica”. Decidiu não falar mais sobre o assunto com a imprensa. Procurado
pela SUPER, apenas reafirmou, por telefone e pela Internet, sua opção pelo silêncio. Morris
foi mais claro: “Muitas coisas que dizemos não significam o que normalmente a imprensa
acha que significam. Nós não gostamos de ver esse assunto ser sensacionalizado, e ninguém
quer ser acusado de ter contribuído para a sua sensacionalização”. A SUPER, com esta
reportagem, cumpre seu papel de informar, revelando a importância que Thorne e Morris
deram à pesquisa sobre o tempo. Como diz o físico brasileiro Carlos Escobar, do Instituto
de Física da universidade de São Paulo, “o tema, sem dúvida, deve ser coberto pela
imprensa. Com toda a seriedade.”
Por que o sonho ainda é só um sonho
As viagens no tempo ainda não estão garantidas por vários motivos. Tecnologicamente, nem
se fala. Se é que existem de fato, os wormholes têm um peso bem maior que o do planeta
Terra. Não existe veículo capaz de carregar a boca de um monstro desses, como seria
necessário para montar uma máquina do tempo. Mas o maior problema é teórico.
Porque a origem dos wormholes tem a ver com a energia espalhada pelo espaço. Mesmo
onde não há nenhum átomo ou fragmento de átomo, existe luz e força gravitacional, e isso é
energia. Ou melhor, é um caos: a energia, em vez de se espalhar por igual, pode muito bem,
sem aviso prévio, acumular-se de forma brutal num ponto qualquer. Pois aí poderiam nascer
os wormholes.
A antigravidade existe?
Mas há dois problemas. Primeiro: eles surgem e somem num piscar de olhos. Tão rápido que
nem dá tempo de transformá-los em túneis do tempo. Segundo problema: no nascimento, eles
seriam infinitamente pequenos. Seria preciso achar alguma coisa que pudesse aumentar o
tamanho do wormhole e mantê-lo aberto durante um período maior.
Essa “alguma coisa”, para Thorne, seria matéria com gravidade negativa, ou
antigravidade. De novo, ele se socorreu na Teoria da relatividade, segundo a qual dois
fatores produzem gravidade. um é a massa, sempre positiva. O outro é uma pressão que a
massa cria à sua volta, e a pressão tanto pode ser positiva (de fora para dentro) quanto
negativa (de dentro para fora). Em algumas situações, a gravidade da pressão negativa
supera a da massa. Portanto, sobra gravidade negativa. A matéria nessas condições seria
útil. Ela serviria para manter o wormhole aberto e aumentá-lo. Os argumentos de Thorne
convenceram diversos cientistas, que agora tentam projetar um “gerador” de wormholes. O
italiano Claudio Maccone,do Centro de Astrofísica de Turim, acredita que um eletroímã
pode dar conta do recado. Ele começou a fazer contas em 1994, concluindo que o eletroímã
precisaria ter no mínimo 3 quilômetros de comprimento. O wormhole resultante teria baixa
densidade, o que não é o ideal. Mas poderia alterar a trajetória de um raio de luz, e se isso
acontecer é sinal de que a ideia do eletroímã funciona.
Outros estudiosos resolveram olhar para o céu em busca de wormholes naturais, gerados
de alguma forma durante a evolução do universo, e que podem ser gigantescos. Se eles
tiverem gravidade negativa, devem criar efeitos de luz marcantes, como as imagens duplas.
É o que sugere John Cramer, da universidade do Estado de Washington. Por isso, caso uma
estrela apareça com a imagem duplicada, é muito provável que ela esteja passando por trás
de um wormhole. Dos grandes. E será magnífico captar esse efeito na Terra. Teríamos uma
demonstração de que a antigravidade expande mesmo o wormhole. Teríamos também um
“sim” da natureza para as mais ousadas conjecturas já feitas sobre o tempo.
D
da própria 
carne
O CANIBALISMO, RITUAL MILENAR DOS 
ÍNDIOS BRASILEIROS, JÁ FOI UMA CERIMÔNIA 
SANGRENTA, QUE MISTURAVA BRAVURA, 
ÓDIO E ATÉ RESPEITO PELO INIMIGO. HOJE, 
SOBREVIVE EM CERIMÔNIAS MISTERIOSAS E 
ULTRAELABORADAS, EM QUE SÃO COMIDOS
OS RESTOS DOS MORTOS QUERIDOS.
ificilmente haverá assunto mais cercado de preconceito. Os brancos, cristãos e
ocidentais veem a antropofagia como símbolo supremo da selvageria indígena. Os
antropólogos, normalmente, não gostam de falar a respeito porque têm medo de expor
os índios. Os índios, por sua vez, quanto mais “civilizados”, mais têm medo de ser
julgados bárbaros. Assim, o canibalismo virou tabu.
A antropologia desconhece, no passado ou no presente, uma sociedade que
consuma carne humana como alimento. O canibalismo sempre foi simbólico. Ou se devoram
os inimigos, como faziam os tupis do litoral brasileiro no século 16, em impressionantes
cerimônias coletivas, ou se pratica uma antropofagia funerária e religiosa. Aí, a ingestão das
cinzas dos mortos homenageia e ajuda a alma daquele que morreu. Esse ritual faz parte,
ainda hoje, dos costumes dos ianomâmis.
Se as cerimônias tupis apavoram pelo que tinham de brutal, o ritual dos ianomâmis é
capaz de chocar o senso comum dos brancos pelo que tem de inesperado. Para um ianomâmi,
comer as cinzas doamigo morto é uma prova de respeito e afeto. O mais desconcertante
desse canibalismo que perdura é exatamente isso: ele não é um gesto de ódio, mas de amor.
Agora, a SUPER vai pôr você em dia com os rituais antropofágicos dos índios
brasileiros. Desde a bravura dos guerreiros que devoravam inimigos para herdar sua
valentia em combate, até a devoção dos praticantes do canibalismo funerário, movido pela
compaixão com os mortos. Sem temores nem tabus.
Comendo a coragem do inimigo
Em 1500, os europeus se espantaram com a belicosidade dos tupinambás, que habitavam a
costa brasileira de São Paulo ao Ceará. Os índios, da família linguística tupi, moravam em
aldeias de 2 mil habitantes, mantinham relações pacíficas entre si e faziam alianças para
atacar outras aldeias.
Em 1553, o alemão Hans Staden naufragou em Itanhaém, litoral de São Paulo, e ficou nove
meses na aldeia do cacique Cunhambebe, na região de Mangaratiba, rio de Janeiro. Ele
mesmo participou de uma expedição de canoa até Bertioga, em São Paulo, para capturar
inimigos. Mortos e feridos foram devorados no campo de batalha e durante a retirada. Os
cativos foram levados para a aldeia, para que as mulheres pudessem participar do ritual
antropofágico.
Segundo o antropólogo Carlos Fausto, do Museu Nacional, da universidade Federal do rio
de Janeiro, “o valor fundamental da sociedade tupinambá era predar o inimigo”.
Fausto enfatiza: “Predação repetida e sem fim. Eles viviam para guerrear.” A lógica da
guerra não era o extermínio, e sim o cultivo da inimizade. “O objetivo era valorizar-se,
apropriando-se das qualidades do oponente.”
O sacrifício honrava vítima e carrasco. A execução podia demorar meses. O captor cedia
sua casa ao cativo. Cedia também uma irmã, ou filha, como esposa.
O preso circulava pela aldeia e era exibido aos vizinhos. A execução atraía convidados
em festas e danças regadas a cauim (uma bebida fermentada à base de mandioca). O preso
recebia a chance de vingar sua morte, antecipadamente. Pintado e decorado, era amarrado
pelo ventre com a mussurama (uma corda de algodão) e recebia pedras para jogar contra a
audiência. Insultava a todos, provando sua coragem.
O carrasco vestia um manto de penas, imitava uma ave de rapina e usava uma ibirapema
(borduna). O padre Anchieta conta, em suas Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e
Sermões, que viu um preso desafiar o algoz, aos gritos: “Mata- me! Tens muito que te vingar
de mim! Comi teu pai. Comi teu irmão! Comi teu filho! E meus irmãos vão me vingar e
comer vocês todos.”
Golpe de misericórdia
um golpe na nuca rompia o crânio. Acudiam mulheres velhas, com cabaças, para recolher o
sangue. Tudo era consumido por todos. As mães besuntavam os seios de sangue para os
bebês também provarem do inimigo. O cadáver era esquartejado, destrinchado, assado numa
grelha e disputado por centenas de participantes - que comiam pedacinhos. Se fossem muito
numerosos, fazia-se um caldo dos pés, mãos e tripas cozidas. Os hóspedes retornavam às
aldeias levando pedaços assados.
Só o carrasco não comia. Entrava em resguardo, em jejum, e, após a reclusão, adotava um
novo nome. O acúmulo de nomes era sinal de bravura: indicava o número de inimigos
abatidos. Grandes guerreiros tinham até cem apelidos. Comer o inimigo era afirmar
potência. “O canibalismo exprimia a força do predador, na sua capacidade máxima”, diz
Carlos Fausto. “Para eles, os seres potentes eram devoradores. Como o jaguar.”
A catequese dos brancos acabou com esse canibalismo guerreiro. O ritual pertencia a uma
cultura estável, que foi desestruturada até em grupos mais arredios. A última tribo tupi
contatada no Brasil, em 1994, os tupi-de-cunimapanema, no norte de Santarém, não tinha
vestígio de antropofagia.
No purê de banana, as cinzas dos amigos
Há 25 mil ianomâmis nas montanhas da fronteira do Brasil com a Venezuela, numa das áreas
mais remotas e intactas do mundo. Desses, 10 mil estão em território brasileiro.
Moram em mais de cem aldeias, falam quatro dialetos e mantêm um estado de guerra
intermitente uns com os outros. Para todos eles, não há morte natural. Morre-se pela ação
dos inimigos ou pela trama de um feiticeiro. Portanto, toda morte requer vingança.
Esses ianomâmis praticam o endocanibalismo (comem gente da própria tribo). É uma
cerimônia que reitera o compromisso de vingar o morto. “O ritual organiza um estado de
hostilidade permanente”, diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, do Museu Nacional.
“A cerimônia é quase uma eucaristia.” Só os amigos sem laços de consanguinidade são
convidados para o funeral.
O cadáver é pranteado e colocado sobre uma plataforma, fora da aldeia. A carne é
separada dos ossos e cremada. Os ossos são limpos e moídos num pilão até virarem cinza.
No funeral, os vizinhos e aliados comem as cinzas com purê de banana.
“Ao contrário do culto cristão do ancestral”, explica Viveiros de Castro, “a antropofagia
ianomâmi realiza o apagamento total do antepassado”. Tudo o que era do morto é destruído,
e seu nome deixa de ser pronunciado. Como o espírito deseja companhia, atraindo os vivos
para a morte, todas suas posses e traços são destruídos para que ele viaje para o mundo dos
mortos - que fica nas “costas do céu”. Até pegadas, na mata, são apagadas.
Predação sem ódio
Até o final dos anos 1960, os waris de rondônia também praticavam o endocanibalismo. O
ritual funerário era elaborado. Os mortos eram pranteados durante dias, com a família
agarrada ao cadáver. Convidavam-se os amigos de outras aldeias para o funeral. O corpo
era cortado, e os ossos, quebrados. Alguns órgãos eram cremados. Fígado e coração eram
assados, embrulhadosem folhas. Desfiados e estirados em uma esteira, eram comidos, entre
lágrimas, com pão de milho assado. Quase sempre, o corpo já estava se deteriorando.
Os waris apreciam carne gordurosa. Mas não tocavam no tronco humano, cheio de
gordura, porque a cerimônia era simbólica, não gastronômica. “Eles comiam naquinhos,
pedacinhos da carne do morto”, explica a antropóloga Aparecida Villaça. Se o corpo
estivesse realmente estragado, era queimado. O crânio era quebrado, os ossos moídos, e as
cinzas, comidas com mel. O luto durava seis meses, durante os quais a família queimava e
destruía as posses do morto até esquecer seu nome.
Para a antropóloga, há uma continuidade entre o endocanibalismo e o exocanibalismo dos
waris, que comiam os inimigos para expropriar-lhes a humanidade. “Comer é a prova
irrefutável da não-humanidade da coisa comida. Tanto para os inimigos, que não eram
considerados gente, quanto para os parentes, cuja morte é difícil de aceitar.
O endocanibalismo dos waris é uma predação sem hostilidade. Também aí, comer o morto
acaba com sua humanidade.”
A
o fantasma
VISÕES ESTRANHAS ATEMORIZAM 
PESQUISADORES NUM LABORATÓRIO
INGLÊS. VEJA COMO UM CIENTISTA DE 
VERDADE ENFRENTA ASSOMBRAÇÕES.
noite gelada enchia de bruma esbranquiçada as ruas estreitas e medievais da cidade
de Warwick, no interior da Inglaterra. Na velha fábrica de equipamentos médicos, só
uma janela permanecia iluminada depois do expediente. Era o laboratório do
professor Victor Tandy. Concentrado em projetar máquinas de oxigênio para pacientes
com problemas respiratórios, o engenheiro trabalhava em silêncio.
De repente, a tranquilidade foi sacudida. Tandy sentiu um pavor inexplicável. “Eu
suava frio. Parecia que estava sendo observado”, disse à SUPER. Com os cabelos da nuca
arrepiados e uma tontura que quase o derrubou, viu, apavorado, com o canto do olho, “a
coisa”. “Era uma mancha cinza”, descreve. “Ela se movia como uma pessoa, mas era uma
sombra.”
Presença estranha
Paralisado de pânico, Tandy resolveu esperar que o espectro fosse embora. Mas ele
continuava lá. O jeito era encará-lo. respirou fundo, criou coragem, virou-se e... a
assombração desapareceu. Afobado, agarrou o paletó e fugiu para casa.
Sabia que não era a primeira vez que coisas estranhas aconteciam ali. Mas isso não o
deixava menos apavorado. De fato, a faxineira e os colegas de laboratório já tinham relatado
sustos com a tal “presença estranha” no lugar. Até mesmo ele já havia se sentido mal. Mas
nunca daquela forma.
No dia seguinte, à tarde, haveria uma competição de esgrima, o esporte favorito do
professor. Tandy pegou o florete e levou-o para o trabalho. Ao chegar, colocou a arma sobre
uma mesa. Ainda era cedo, oito da manhã, quando — uau! — a lâmina começou a tremer,
freneticamente. Por um segundo, os olhos do professor se encheram de pavor. Mas logo ele
abriu um sorriso. Tinha desvendado o mistério.
A aventura do engenheiro exorcista
Como não acredita em fantasmas, Victor Tandy logo se deu conta de que apenas uma fonte de
energia poderia causar a tremedeira do florete. E, com certeza, era essa mesma fonte que
havia provocado os acontecimentos da noite anterior.
Para descobrir onde ela estava, resolveu assumir o papel do velho Sherlock Holmes. E
começou a interrogar funcionários. Percebeu que todas as assombrações apareceram
exatamente depois da instalação do enorme e barulhento ventilador de exaustão do
laboratório. Mas como um ventilador pode criar fantasmas?
Elementar. A culpada só podia ser a ressonância
Quando se bate num objeto, ele vibra, emitindo ondas sonoras em determinada frequência
(de um tamanho específico). “Qualquer corpo tem uma frequência de ressonância”, explica,
no Brasil, o arquiteto ualfrido Del Carlo, ex-diretor da Faculdade de Arquitetura e
urbanismo da USP. “Se ele recebe ondas sonoras vindas de outro lugar com uma frequência
igualzinha à sua, ele treme.” Assim, se um sino toca perto de outro igual, o segundo também
começa a vibrar.
Movido pela lembrança dessas regras da Física, depois de uma reconfortante xícara de
chá, Tandy resolveu medir as ondas emitidas pelo ventilador. Percebeu que, além do ruído
audível, havia infrassom — barulhos tão graves que não podem ser captados pelo ouvido
humano. Como a sala era estreita e tinha exatamente o mesmo comprimento da onda, o
infrassom se multiplicava. O laboratório estava apinhado de energia sonora.
Touché! Só podia ter sido essa a energia que fez o florete mexer. Desconfiado de que ela
agira também no seu organismo, o engenheiro buscou a confirmação do médico Anthony
Lawrence, professor, como ele, na universidade de Coventry, Inglaterra. “Ondas sonoras
também fazem vibrar partes do corpo humano, causando efeitos estranhos”, confirmou
Lawrence à SUPER.
O brasileiro Miguel Nassif, especialista em fisiologia cardiorrespiratória e professor da
USP, especifica: “Se o centro respiratório do bulbo cerebral, que controla a respiração,
entrar em ressonância, é possível que provoque uma hiperventilação, criando mesmo
sensação de pânico.”
O olho chacoalha
O médico inglês foi mais longe. De acordo com ele, a frequência de ressonância do globo
ocular é muito parecida com a do ventilador. Ou seja, o olho do engenheiro podia estar
chacoalhando, e isso o convenceu de que vira um fantasma. Outro especialista brasileiro, o
oftalmologista Newton Kara José, da USP, sustenta: “É possível que uma vibração forte
pressione a retina e forme um clarão.”
Por último, o mesmo fenômeno explica a vertigem. “Ela pode ser consequência da
ressonância do labirinto, que regula o equilíbrio do corpo”, diz o otorrinolaringologista
Mário Munhoz, da universidade Federal de São Paulo.
Entre os mistérios sobrenaturais que o “efeito Tandy” - como a tese foi batizada na
Inglaterra - explica está a preferência das aparições por corredores compridos, sempre após
uma rajada de vento. É que o sopro de ar, entrando enviesado por uma janela lateral, também
pode gerar infrassom.
Cauteloso, Victor Tandy não garante que não existam fantasmas. Mas sobre uma coisa ele
não tem mais dúvidas: com o ventilador substituído, seu laboratório está devidamente
exorcizado.
P
sobre a 
maconha
POUCOS ASSUNTOS DÃO MARGEM A
TANTA MENTIRA, TANTA DETURPAÇÃO, 
TANTA DESINFORMAÇÃO. AFINAL, QUAIS 
OS VERDADEIROS MOTIVOS POR TRÁS 
DA PROIBIÇÃO DA MACONHA? A DROGA 
FAZ MAL OU NÃO? E ISSO IMPORTA?
or que a maconha é proibida? Porque faz mal à saúde. Será mesmo? Então, por que o
bacon não é proibido? Ou as anfetaminas? E, diga-se de passagem, nenhum mal sério
à saúde foi comprovado para o uso esporádico de maconha. A guerra contra essa
planta foi motivada muito mais por fatores raciais, econômicos, políticos e morais do
que por argumentos científicos. E algumas dessas razões são inconfessáveis. Tem a
ver com o preconceito contra árabes, chineses, mexicanos e negros, usuários
frequentes de maconha no começo do século 20. Deve muito aos interesses de indústrias
poderosas dos anos 1920, que vendiam tecidos sintéticos e papel, e queriam se livrar de um
concorrente: o cânhamo. Tem raízes também na bem-sucedida estratégia de dominação dos
Estados unidos sobre o planeta. E, é claro, guarda relação com o moralismo judaico-cristão
(e principalmente protestante-puritano), que não aceita a ideia do prazer sem merecimento –
pelo mesmo motivo, no passado, condenou-se a masturbação.
Não é fácil falar desse assunto – admito que levei um dia inteiro para compor o parágrafo
acima. O tema é tão carregado de ideologia, e as pessoas têm convicções tão profundas
sobre ele, que qualquer convite ao debate, qualquer insinuação de que estamos lidando mal
com o problema já é interpretada como “apologia às drogas” –e, portanto, punível com
cadeia. O fato é que, apesar da desinformação dominante, sabe-se muito sobre a maconha.
Ela é cultivada há milênios, e centenas de pesquisas já foram feitas sobre o assunto. O que
tentei fazer foi condensar nestas páginas o conhecimento que a humanidade reuniu sobre a
droga nos milênios em que convive com ela.Por que é proibido?
“O corpo esmagado da menina jazia espalhado na calçada um dia depois de mergulhar do
quinto andar de um prédio de apartamentos em Chicago. Todos disseram que ela tinha se
suicidado, mas, na verdade, foi homicídio. O assassino foi um narcótico conhecido na
América como marijuana e na história como haxixe. usado na forma de cigarros, ele é uma
novidade nos Estados unidos e é tão perigoso quanto uma cascavel.” Começa assim a
matéria “Marijuana: assassina de jovens”, publicada em 1937 na revista American
Magazine. A cena nunca aconteceu. O texto era assinado por um funcionário do governo
chamado Harry Anslinger. Se a maconha, hoje, é ilegal em praticamente todo o mundo, não é
exagero dizer que o maior responsável foi ele.
Nas primeiras décadas do século 20, a maconha era liberada, embora muita gente a visse
com maus olhos. Aqui no Brasil, maconha era “coisa de negro”, fumada nos terreiros de
candomblé para facilitar a incorporação, e nos confins do País por agricultores depois do
trabalho. Na Europa, ela era associada aos imigrantes árabes e indianos e aos incômodos
intelectuais boêmios. Nos Estados unidos, quem fumava eram os cada vez mais numerosos
mexicanos – meio milhão deles cruzaram o rio Grande entre 1915 e 1930 em busca de
trabalho. Muitos não acharam. Ou seja, em boa parte do Ocidente, fumar maconha era
relegado a classes marginalizadas e visto com antipatia pela classe média branca.
Pouca gente sabia, entretanto, que a mesma planta que fornecia fumo às classes baixas
tinha enorme importância econômica. Dezenas de remédios – de xaropes para tosse a pílulas
para dormir – continham cannabis. Quase toda a produção de papel usava como matéria-
prima a fibra do cânhamo, retirada do caule do pé de maconha. A indústria de tecidos
também dependia da cannabis – o tecido de cânhamo era muito difundido, especialmente
para fazer cordas, velas de barco, redes de pesca e outros produtos que exigissem um
material muito resistente. A Ford estava desenvolvendo combustíveis e plásticos feitos a
partir do óleo da semente de maconha. As plantações de cânhamo tomavam áreas imensas na
Europa e nos Estados unidos.
Em 1920, sob pressão de grupos religiosos protestantes, os Estados unidos decretaram a
proibição da produção e da comercialização de bebidas alcoólicas. Era a Lei Seca, que
durou até 1933. Foi aí que Henry Anslinger surgiu na vida pública americana – reprimindo o
tráfico de rum que vinha das Bahamas. Foi aí também que a maconha entrou na vida de muita
gente – e não só dos mexicanos. “A proibição do álcool foi o estopim para o boom da
maconha”, afirma o historiador inglês richard Davenport-Hines, especialista na história dos
narcóticos, em seu livro The Pursuit of Oblivion (“A busca do esquecimento”, ainda sem
versão para o Brasil). “Na medida em que ficou mais difícil obter bebidas alcoólicas, e elas
ficaram mais caras e piores, pequenos cafés que vendiam maconha começaram a proliferar”,
escreveu.
Anslinger foi promovido a chefe da Divisão de Controle Estrangeiro do Comitê de
Proibição e sua tarefa era cuidar do contrabando de bebidas. Foi nessa época que ele
percebeu o clima de antipatia contra a maconha que tomava a nação. Clima esse que só
piorou com a quebra da Bolsa, em 1929, que afundou a nação numa recessão. No sul do país,
corria o boato de que a droga dava força sobre-humana aos mexicanos, o que seria uma
vantagem injusta na disputa pelos escassos empregos. A isso se somavam insinuações de que
a droga induzia ao sexo promíscuo (muitos mexicanos talvez tivessem mais parceiros que um
americano puritano médio, mas isso não tem nada a ver com a maconha) e ao crime (com a
crise, a criminalidade aumentou entre os mexicanos pobres, mas a maconha é inocente
disso). Baseados nesses boatos, vários Estados começaram a proibir a substância. Nessa
época, a maconha virou a droga de escolha dos músicos de jazz, que afirmavam ficar mais
criativos depois de fumar.
Anslinger agarrou-se firme à bandeira proibicionista, batalhou para divulgar os mitos
antimaconha e, em 1930, quando o governo, preocupado com a cocaína e o ópio, criou o
FBN (Federal Bureau of Narcotics, um escritório nos moldes do FBI para lidar com drogas),
ele articulou para chefiá-lo. De repente, de um cargo burocrático obscuro, Anslinger passou
a ser o responsável pela política de drogas do país. E quanto mais substâncias fossem
proibidas, mais poder ele teria.
Mas é improvável que a cruzada fosse motivada apenas pela sede de poder. Outros
interesses devem ter pesado. Anslinger era casado com a sobrinha de Andrew Mellon, dono
da gigante petrolífera Gulf Oil e um dos principais investidores da igualmente gigante
DuPont. “A DuPont foi uma das maiores responsáveis por orquestrar a destruição da
indústria do cânhamo”, afirma o escritor Jack Herer, em seu livro The Emperor Wears No
Clothes (“O imperador está nu”, ainda sem tradução). Nos anos 1920, a empresa estava
desenvolvendo vários produtos a partir do petróleo: aditivos para combustíveis, plásticos,
fibras sintéticas como o náilon e processos químicos para a fabricação de papel feito de
madeira. Esses produtos tinham uma coisa em comum: disputavam o mercado com o
cânhamo.
Seria um empurrão considerável para a nascente indústria de sintéticos se as imensas
lavouras de cannabis fossem destruídas, tirando a fibra do cânhamo e o óleo da semente do
mercado. “A maconha foi proibida por interesses econômicos, especialmente para abrir o
mercado das fibras naturais para o náilon”, afirma o jurista Wálter Maierovitch, especialista
em tráfico de entorpecentes e exsecretário nacional antidrogas.
Anslinger tinha um aliado poderoso na guerra contra a maconha: William randolph Hearst,
dono de uma imensa rede de jornais. Hearst era a pessoa mais influente dos Estados unidos.
Milionário, comandava suas empresas de um castelo monumental na Califórnia, onde recebia
artistas de Hollywood para passear pelo zoológico particular ou dar braçadas na piscina
coberta, adornada com estátuas gregas. Foi nele que Orson Welles se inspirou para criar o
protagonista do filme Cidadão Kane. Hearst sabidamente odiava mexicanos. Parte desse
ódio talvez se devesse ao fato de que, durante a revolução Mexicana de 1910, as tropas de
Pancho Villa (que, aliás, faziam uso frequente de maconha) desapropriaram uma enorme
propriedade sua. Sim, Hearst era dono de terras e as usava para plantar eucaliptos e outras
árvores para produzir papel. Ou seja, ele também tinha interesse em que a maconha
americana fosse destruída – levando com ela a indústria de papel de cânhamo.
Hearst iniciou, nos anos 1930, uma intensa campanha contra a maconha. Seus jornais
passaram a publicar seguidas matérias sobre a droga, às vezes afirmando que a maconha
fazia os mexicanos estuprarem mulheres brancas, outras noticiando que 60% dos crimes
eram cometidos sob efeito da droga (um número tirado sabe-se lá de onde). Nessa época,
surgiu a história de que o fumo mata neurônios, um mito repetido até hoje. Foi Hearst que, se
não inventou, ao menos popularizou o nome marijuana (ele queria uma palavra que soasse
bem hispânica, para permitir a associação direta entre a droga e os mexicanos). Anslinger
era presença constante nos jornais de Hearst, onde contava suas histórias de terror. A
opinião pública ficou apavorada. Em 1937, Anslinger foi ao Congresso dizer que, sob o
efeito da maconha, “algumas pessoas embarcam numa raiva delirante e cometem crimes
violentos”.
Os deputados votaram pela proibição do cultivo, da venda e do uso da cannabis, sem
levar em conta as pesquisas que afirmavam que a substância era segura. Proibiu-se não
apenas a droga, mas a planta. O homem simplesmente cassou o direito da espécie Cannabis
sativa de existir.
Anslinger também atuou internacionalmente. Criou uma rede de espiões e passou a
frequentar as reuniões da Liga das Nações, antecessora da ONu, propondo tratados cada vez
mais duros para reprimir o tráfico internacional. Também começou a encontrar líderes de
vários países e a levar a eles os mesmos argumentosaterrorizantes que funcionaram com os
americanos. Não foi difícil convencer os governos – já na década de 1920, o Brasil adotava
leis federais antimaconha. A Europa também embarcou na onda proibicionista.
“A proibição das drogas serve aos governos porque é uma forma de controle social das
minorias”, diz o cientista político Thiago rodrigues, pesquisador do Núcleo de Estudos
Interdisciplinares sobre Psicoativos. Funciona assim: maconha é coisa de mexicano,
mexicano é uma classe incômoda. “Como não é possível proibir alguém de ser mexicano,
proíbe-se algo que seja típico dessa etnia”, diz Thiago. Assim, é possível manter sob
controle todos os mexicanos – eles estarão sempre ameaçados de cadeia. Por isso, a
proibição da maconha fez tanto sucesso no mundo. O governo brasileiro achou ótimo mais
esse instrumento para manter os negros sob controle. Os europeus também adoraram poder
enquadrar seus imigrantes.
A proibição foi virando uma forma de controle internacional por parte dos Estados
unidos, especialmente depois de 1961, quando uma convenção da ONU determinou que as
drogas são ruins para a saúde e o bem-estar da humanidade – e, portanto, eram necessárias
ações coordenadas e universais para reprimir seu uso. “Isso abriu espaço para intervenções
militares americanas”, diz Maierovitch. “Virou um pretexto oportuno para que os americanos
possam entrar em outros países e exercer os seus interesses econômicos.”
Estava erguida uma estrutura mundial interessada em manter as drogas na ilegalidade, a
maconha entre elas. um ano depois, em 1962, o presidente John Kennedy demitiu Anslinger –
depois de nada menos que 32 anos à frente do FBN. um grupo formado para analisar os
efeitos da droga concluiu que os riscos da maconha estavam sendo exagerados e que a tese
de que ela levava a drogas mais pesadas era furada. Mas não veio a descriminalização. Pelo
contrário. O presidente richard Nixon endureceu mais a lei, declarou “guerra às drogas” e
criou o DEA (em português, “Escritório de Coação das Drogas”), um órgão ainda mais
poderoso que o FBN, porque, além de definir políticas, tem poder de polícia.
Maconha faz mal?
Taí uma pergunta que vem sendo feita faz tempo. Depois de mais de um século de pesquisas,
a resposta mais honesta é: faz, mas muito pouco e só para casos extremos. O uso moderado
não faz mal. A preocupação da ciência com esse assunto começou em 1894, quando a Índia
fazia parte do Império Britânico. Havia, então, a desconfiança de que o bhang, uma bebida à
base de maconha muito comum na Índia, causava demência. Grupos religiosos britânicos
reivindicavam sua proibição. Formou-se a Comissão Indiana de Drogas da Cannabis, que
passou dois anos investigando o tema. O relatório final desaconselhou a proibição: “O bhang
é quase sempre inofensivo quando usado com moderação e, em alguns casos, é benéfico. O
abuso do bhang é menos prejudicial que o abuso do álcool.”
Em 1944, um dos mais populares prefeitos de Nova York, Fiorello La Guardia,
encomendou outra pesquisa. Em meio à histeria antimaconha de Anslinger, La Guardia
resolveu conferir quais os reais riscos da tal droga assassina. Os cientistas escolhidos por
ele fizeram testes com presidiários (algo comum na época) e concluíram: “O uso prolongado
da droga não leva à degeneração física, mental ou moral”. O trabalho passou despercebido
no meio da barulheira proibicionista de Anslinger.
A partir dos anos 1960, várias pesquisas parecidas foram encomendadas por outros
governos. relatórios produzidos na Inglaterra, no Canadá e nos Estados unidos aconselharam
um afrouxamento nas leis. Nenhuma dessas pesquisas foi suficiente para forçar uma
mudança. Mas a experiência mais reveladora sobre a maconha e suas consequências foi
realizada fora do laboratório. Em 1976, a Holanda decidiu parar de prender usuários de
maconha desde que eles comprassem a droga em cafés autorizados. resultado: o índice de
usuários continua comparável aos de outros países da Europa. O de jovens dependentes de
heroína caiu – estima-se que, ao tirar a maconha da mão dos traficantes, os holandeses
separaram essa droga das mais pesadas e, assim, dificultaram o acesso a elas.
Nos últimos anos, os possíveis males da maconha foram cuidadosamente escrutinados –
às vezes por pesquisadores competentes, às vezes por gente mais interessada em convencer
os outros da sua opinião. Veja a seguir um resumo do que se sabe:
Câncer
Não se provou nenhuma relação direta entre fumar maconha e câncer de pulmão, traqueia,
boca e outros associados ao cigarro. Isso não quer dizer que não haja. Por muito tempo, os
riscos do cigarro foram negligenciados, e só nas últimas duas décadas ficou claro que havia
uma bomba-relógio armada – porque os danos só se manifestam depois de décadas de uso
contínuo. Há o temor de que uma bomba semelhante esteja para explodir no caso da
maconha, cujo uso se popularizou a partir dos anos 1960. O que se sabe é que o cigarro de
maconha tem praticamente a mesma composição de um cigarro comum – a única diferença
significativa é o princípio ativo. No cigarro é a nicotina, na maconha o tetrahidrocanabinol,
ou THC. Também é verdade que o fumante de maconha tem comportamentos mais arriscados
que o de cigarro: traga mais profundamente, não usa filtro e segura a fumaça por mais tempo
no pulmão (o que, aliás, segundo os cientistas, não aumenta os efeitos da droga).
Em compensação, boa parte dos maconheiros fuma muito menos e para ou reduz o
consumo depois dos 30 anos (parar cedo é sabidamente uma forma de diminuir muito o risco
de câncer). Em resumo: o usuário eventual de maconha, que é o mais comum, não precisa se
preocupar com um aumento grande do risco de câncer. Quem fuma mais de um baseado por
dia há mais de 15 anos deve pensar em parar.
Dependência
Algo entre 6% e 12% dos usuários, dependendo da pesquisa, desenvolve um uso compulsivo
da maconha (menos que a metade das taxas para álcool e tabaco). A questão é: será que a
maconha é a causa da dependência ou apenas uma válvula de escape? “Dependência de
maconha não é problema da substância, mas da pessoa”, afirma o psiquiatra Dartiu Xavier,
coordenador do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Escola Paulista de
Medicina. Segundo Dartiu, há um perfil claro do dependente de maconha: em geral, ele é
jovem, quase sempre ansioso e eventualmente depressivo. Pessoas que não se encaixam
nisso não desenvolvem o vício. “E as que se encaixam podem tanto ficar dependentes de
maconha quanto de sexo, de jogo, de internet”, diz.
Muitos especialistas apontam para o fato de que a maconha está ficando mais perigosa –
na medida em que fica mais potente. Ao longo dos últimos 40 anos, foi feito um
melhoramento genético, cruzando plantas com alto teor de THC. Surgiram variedades como
o skunk. No último ano, foram apreendidos carregamentos de maconha alterada
geneticamente no Leste Europeu – a engenharia genética é usada para aumentar a potência, o
que poderia aumentar o potencial de dependência. Segundo o farmacólogo Leslie Iversen,
autor do ótimo The Science of Marijuana (“A ciência da maconha”, sem tradução para o
português) e consultor para esse tema da Câmara dos Lordes (o Senado inglês), esses
temores são exagerados e o aumento da concentração de THC não foi tão grande assim.
Para além dessa discussão, o fato é que, para quem é dependente, maconha faz muito mal.
Isso é especialmente verdade para crianças e adolescentes. “O sujeito com 15 anos não está
com a personalidade formada. O uso exagerado de maconha pode ser muito danoso a ele”,
diz Dartiu. O maior risco para adolescentes que fumam maconha é a síndrome
amotivacional, nome que se dá à completa perda de interesse que a droga causa em algumas
pessoas. A síndrome amotivacional é muito mais frequente em jovens, e realmente atrapalha
a vida – é quase certeza de bomba na escola e de crise na família.
Danos cerebrais
“Maconha mata neurônios”. Essa frase, repetida há décadas, não passa de mito. Bilhões de
dólares foram investidos para comprovar que o THC destrói tecido cerebral–às

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