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CDD 056.9 © 2012 D IR E TOR A-SU P E R INTE ND E NTE Claudia Giudice D IR E TOR D E NÚ C LE O Dimas Mietto D IR E TOR E D ITOR IAL Sérgio Gwercman D IR E TOR D E AR TE Fabrício Miranda E D ITOR Alexandre Versignassi C AP A Fabrício Miranda, Rafael Quick e Ricardo Davino P R OJE TO GR ÁF IC O Ricardo Davino ILU STR AÇ ÕE S Estúdio Meio R E VISÃO Alexandre Carvalho dos Santos e Paulo Kaiser C OLAB OR OU NE STA E D IÇ ÃO Anderson C. S. de Faria (arte) S959 Ebook Superinteressante : as 25 melhores reportagens dos 25 anos da revista : 1987-2012 . – São Paulo: Ed. Abril, 2013. 320 p. : il. color. ; 23 cm. Formato PDF ISBN 978-85-364-1421-8 1. Periódicos brasileiros. 2012 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA ABRIL S.A. Av. das Nações Unidas, 7221 05425-902 – Pinheiros – São Paulo – SP - Brasil IMPRESSO NA PANCROM INDÚSTRIA GRÁFICA. Índice Introdução 1. Diário de um Cosmonauta 2. Genocídio Instantâneo 3. Túnel do Tempo, o Sonho Secreto dos Físicos 4. O Sabor da Própria Carne 5. Duelo com o Fantasma 6. A Verdade sobre a Maconha 7. Como Tratar os Animais 8. Como Hitler Pôde Acontecer? 9. Evangélicos 10. Olfato: o Sentido Marginal 11. A Identidade Secreta de Einstein 12. Maçonaria: a Ordem 13. Seu Amigo Psicopata 14. Ciência Nazista: Doutores da Agonia 15. Darwin, o Homem que Matou Deus 16. De Onde Viemos 17. O Último a Sair Apaga a Luz 18. O Fim dos Oceanos 19. Quem Escreveu a Bíblia? 20. Cachorros: Como Eles Viraram Gente 21. Mamãe, Quero Ser Menina 22. A Pílula da Inteligência 23. Sucesso e Fracasso 24. 50 Dias sem Mentir (ou Quase) 25. Amizade A Jubileu de Prata SUPER nasceu em 1987 com uma proposta radical: apresentar assuntos profundos em uma linguagem do dia a dia — e mostrar o que o dia a dia tem de profundo. Era transformar Einstein, Nietzsche, Copérnico, Darwin, em assunto de almoço de domingo. Isso num tempo em que questões bem mais mundanas ocupavam quase todo o tempo dos brasileiros: inflação, desemprego, governo inoperante. Hoje, 25 anos depois, o Brasil é outro: mais rico, mais sério. Um agente poderoso, fundamental para o futuro do planeta. E a Super fez parte dessa história. Não só viu o país mudar, como ajudou a mudar o país. Foi com ela que muitos cientistas, médicos, engenheiros e historiadores tiveram contato pela primeira vez com o mundo da ciência, da medicina, da matemática, da história. Esses leitores cresceram e ajudaram o país a crescer. Já deram, e continuam dando, sua contribuição para mudar o mundo. E a Super só pôde exercer esse papel graças ao trabalho das centenas de jornalistas que fizeram a história da revista, capitaneados pelos 6 diretores de redação que passaram por ela. O primeiro foi Almyr Gajardoni (19871994), que fundou as bases da revista e estruturou seu DNA de publicação voltada para a ciência. Depois veio Eugenio Bucci (1994-1998), um dos jornalistas mais admirados do país. Ele ampliou a cobertura de atualidades da revista e transformou a SUPER numa referência mundial em arte e infografia. O professor de ciência política da USP André Singer (1998-2000), sucessor de Bucci, trouxe sua verve acadêmica para aprofundar a abordagem de temas como história, economia e ciências sociais, que hoje também são pilares da SUPER. Adriano Silva (2000-2005) chegou e transportou a revista para o século 21, dando a ela uma pegada simultaneamente mais pop e mais erudita. Ele também foi o responsável por um grande salto editorial: criou a “família SUPER” uma série de revistas que começaram como edições especiais e depois ganharam vida própria, como MUNDO ESTRANHO E AVENTURAS NA HISTÓRIA. Denis russo Burgierman (2005-2007), pegaria o bastão do Adriano e se tornaria o primeiro diretor de redação que tinha feito toda sua carreira como jornalista dentro da SUPER. Antes, o Denis já tinha se consolidado como um dos repórteres mais importantes da história da revista, ajudando a criar o estilo de texto que ela tem hoje. Sérgio Gwercman (2007-2012), que também já tinha deixado sua marca em grandes reportagens antes de assumir a direção, apontou os radares da revista para o futuro. E hoje a SUPER é mais do que uma revista. É uma máquina que produz conhecimento em larga escala. São 25 edições por ano (13 normais e 12 especiais), livros (só em 2012 foram 5), mais blogs, site, versões para iPad e Android... Tudo para milhões de leitores. Leitores que, para nosso orgulho, desenvolveram uma relação de intimidade e confiança com a revista ao longo desses 25 anos. Este livro é para vocês. ALEXANDRE VERSIGNASSI, EDITOR de um cosmonauta A VIDA COTIDIANA A BORDO DA ESTAÇÃO ESPACIAL MIR, NAS PALAVRAS DE UM COSMONAUTA RUSSO QUE PERMANECEU 211 DIAS NA ÓRBITA TERRESTRE EM 1982. É Setembro, 11 dia de tomar banho. Uma limpeza da cabeça aos pés. Liussia, minha mulher, e Vitalik, meu filho, vieram para a sessão de comunicação e parecem bem. Meu filho mostrou pela televisão seu boletim escolar. Só notas altas. Parabéns! Em seguida, fui me lavar. Durante o banho, a velha e calosa pele das plantas dos pés rebentou e se desprendeu por completo, como a casca de uma batata. Isso porque aqui não andamos apoiados nos pés. Agora eles estão parecidos com os de um recém-nascido: rosados, revestidos de uma fina pele enrugada. Ainda que seja trabalhoso tomar um rápido banho em pleno Cosmos - porque, antes de começar, você deve montar o boxe, abastecê-lo de água e, depois de se lavar, desmontar, jogar fora a água suja e limpar o invólucro -, acho que vale a pena, tamanho é o prazer que dá! Terminado o banho, ponho roupas limpas: camisa, ceroulas e meias. Vestido assim, preparo uma comida quente, saborosa. Setembro, 14 Dia de revisão do “contrato de trabalho”: devemos decidir se prolongamos o prazo de permanência no Cosmo. Hoje também estamos realizando experiências geofísicas. Fotografamos os territórios da União Soviética, de Cuba e dos países africanos com os quais temos acordos na prospecção de recursos naturais. Também registramos com a câmera de vídeo o que Yuri Gagarin viu ao dar uma volta ao redor do planeta (em 1961). Tudo como se fosse com os olhos dele, os do primeiro homem que viu nossa Terra do Cosmo. Às duas da tarde, fizeram-nos a proposta de continuar o voo, ou seja, prolongá-lo 40 dias além do prazo inicialmente previsto. Respondemos que sim, desde que voar mais de 200 dias não fosse um objetivo em si – quer dizer, desde que o novo prazo se justificasse com trabalho suplementar. Pedimos que nos fossem dadas melhores condições para o cumprimento das experiências e maior autonomia na organização da jornada de trabalho. E que fosse considerada a possibilidade de mais uma saída ao espaço exterior. Argumentamos que isso ajudaria a motivar o corpo para o novo trabalho e melhorar nossa disposição emocional. Responderam que discutiriam com os especialistas. Agora, temos pela frente mais três meses de voo – perspectiva que, para ser franco, parece dura. Setembro, 18 Hoje o dia é de descanso. Cada um se ocupa de suas próprias coisas. Peguei a câmera para fotografar a estrutura do horizonte da Terra com o visor ótico Puma, que tem um poder de ampliação de 15 vezes. Quero registrar ainda a aurora boreal com um filme em cores, bem como o nascer do sol, que é um belo espetáculo. Ao passar por trás da atmosfera, o Sol não tem aquela forma redonda a que estamos tão habituados na Terra. Daqui, parece achatado e, à medida que se levanta no horizonte, vai adquirindo uma forma arredondada, como uma bola sendo inflada. Um fenômeno interessante e empolgante. O horizonte é um arco-íris vivo, com faixas coloridas sendo substituídas por outras, variando em largura, brilho, número de camadas e densidade das cores, fazendo com que a atmosfera pareça um prisma manipulando os componentes do espectro solar para formar uma faixa branca cada vez mais intensa. A filmagem do Sol comporta um sério problema: com um aumento de 15 vezes, o ângulo de visão é muito pequeno. Sem contar que se é obrigado a usar um filtro de luz que reduz a luminosidade mil vezes,o que dificulta a operação de apontar a câmera para o lugar em que o astro vai nascer. É preciso olhar durante muito tempo pela vigia da nave para mirar bem. Para isso, tive de colocar a camisa sobre a cabeça e nela abrir dois orifícios, como se fosse uma máscara, protegendo assim o rosto e os olhos. Uma vez cheguei a queimar os olhos, que ficaram com a esclerótica coberta por uma película amarela - um horror! - e tive de me tratar com um unguento especial da farmácia de bordo. Setembro, 20 Acordamos às 5h30. Temos a acoplagem com o transportador Progress- 15. O encontro com o veículo de carga é sempre um acontecimento emocionante. Nele vêm novos aparelhos, para novos e interessantes trabalhos. Chegam também outras coisas bastante agradáveis: presentes dos companheiros de solo, correspondência de casa, edições recentes de jornais e revistas. Esse veículo em particular é importante porque é o último da nossa missão, e é dele que depende a prorrogação da permanência em voo, pois traz combustível, alimentação e água. Depois da acoplagem, tivemos uma sensação de alívio. O voo vai continuar. Para nós, é habitual dizer “chegou o transportador espacial”. Mas como a nave Progress nos localiza no espaço? Como se acopla com a estação? Vou tentar explicar. Uma vez lançado, o transportador espacial é orientado para a órbita de encontro por manobras comandadas da Terra. A fim de garantir a precisão no momento do encontro, um sistema de radionavegação chamado Igla é ligado quando o transportador chega a 20 quilômetros da estação espacial. Estabelecido o contato de rádio entre a nave e a estação, os dois veículos ficam se falando continuamente, trocando informações sobre velocidade, distância e posição angular. Nós permanecemos como simples espectadores. Quando os propulsores de orientação são ligados, ouvem-se pancadas surdas no casco, como se fosse um tambor. Durante o movimento de rotação para acertar a posição de acoplagem, sente-se uma pequena aceleração, momento em que os objetos que não estão presos começam a voar pela estação. À tarde, recebemos o sinal positivo para abrir a escotilha do veículo de carga. Entramos nele. Ainda bem que não há guardas alfandegários no espaço. Setembro, 21 Dia de descarga do Progress. Dormi mal. É muito bom estar habituado a esse tipo de trabalho, sabendo por onde começar. É uma operação semelhante ao ato de trinchar um peixe, que você ou pode simplesmente cortar de qualquer jeito e a muito custo, ou dividi- lo da forma certa, rápida e elegante. É o que fizemos com nosso transportador: concluímos o trabalho em apenas um dia, dois antes do prazo programado. E, quando nos disseram que ainda havia cartas numa caixa no fundo do veículo, justamente no local em que existe uma escotilha por onde o lixo é expelido, pus-me a cavar como uma toupeira, afastando as cargas que encontrava no caminho, até alcançar a presa. Fiz esse trabalho sem os óculos de proteção. Torci para que nenhuma farpa metálica caísse nos olhos. Saí do transportador com as cartas, o rosto brilhando de suor e com algumas farpas coladas nele. Encontramos no pacote de guloseimas mostarda, mel, amêndoas, damasco; nossas mulheres haviam acrescentado ainda caranguejos, caviar, cebola e alho. Mas o melhor é o pão de Tula, enviado por Liudmila. É pena que não temos leite gelado. Ao fim do dia, abrimos um grande e grosso envelope ricamente decorado. Dentro encontramos algumas cartas, uma série de desenhos e propostas relativas a futuras experiências no Cosmo - todas feitas por crianças que participaram de um concurso. Algumas das ideias são bastante curiosas, como a de cortar uma minhoca e verificar se, em órbita, sua pele se regenera. Ou saber se as formigas são capazes de construir um formigueiro no estado de imponderabilidade. Ou então descobrir qual seria a forma de uma pérola feita por um molusco a bordo da estação. Quando acabamos de ler essas cartas, percebemos que as crianças conseguiram realizar seu propósito: nos deixaram desconcertados. Setembro, 23 Dia reservado a trabalhos de reparação, estando também previsto continuar a mexer no transportador espacial. Substituímos o conjunto de aparelhagens médicas e trocamos a água do reservatório. Não estou com vontade de fazer observações visuais. Sinto cansaço. Meu corpo parece uma mola sem nenhum milímetro de folga e muito tensa. Vem uma certa apatia. Tudo parece aborrecido. O apetite, entretanto, continua bom, graças a Deus. Lavamos o rosto com lenços úmidos. Escovamos os dentes com uma espécie de dedal coberto por um antisséptico. Você põe no dedo e esfrega os dentes e as gengivas. Uma coisa agradável e cômoda. Também se pode utilizar a escova comum com pasta de dentes, mas aí existe o problema de como enxaguar depois a boca. Temos de aplicar obrigatoriamente um creme no rosto para evitar a secura e irritação da pele. Limpamos o corpo todo com toalhas úmidas e depois o secamos com toalhas secas. Uma sensação prazerosa. Depois de terminada a descarga do Progress, nossa estação está uma verdadeira bagunça. Estão flutuando entre nós sacos cheios de equipamentos. Pelo tom das vozes vindas da Terra, percebemos que o pessoal está tomando o cuidado de nos tratar de maneira especial. Eles falam conosco como quem lida com doentes, preocupados com a duração prolongada do voo. Não compreendem que isso é muito pior porque estraga nossa disposição. À noite, li algumas revistas acomodado em meu lugar preferido, no compartimento onde as naves engatam. Agora, vou dormir. Setembro, 27 Dormi muito bem, um sono de quase onze horas. Ao me levantar, sentia uma pequena dor de cabeça. Mas, pouco depois, passou. À noite, senti o estômago. Acho que foi uma leve gastrite. Tivemos de nos preparar para as experiências durante toda a manhã. Quase não falamos. Quando comecei a experiência com o fotômetro eletrônico, vi Tolia (Anatoli, companheiro de voo de Lebedev) chegar perto e dizer: “Vamos fazer juntos”. Fizemos um bom trabalho. Registramos três estrelas: Beta de Cisne, Vega e Altair. Lembro-me de ter lido em vários artigos que, em órbita, alguns cosmonautas enxergaram casas esparsas, um navio no mar e até um ônibus correndo pela estrada. Será que isso é possível? Vamos ver. A capacidade de resolução do olho humano com boa visão permite distinguir, de uma altura de 350 quilômetros, objetos com dimensões da ordem de 100 metros, ou seja, navios e os maiores edifícios. Em certas condições atmosféricas, com uma iluminação solar favorável e a presença de sombras, é possível discernir coisas menores. Distinguir um veículo e ainda por cima afirmar que é um ônibus é impossível a olho nu. Isso porque é difícil isolar pequenos objetos entre uma infinidade de coisas semelhantes e sobre um fundo muito retalhado. Não digo que, com uma rara combinação de condições atmosféricas sobre determinadas regiões, a camada aérea não possa funcionar como uma lente, possibilitando uma melhora súbita da visibilidade. Eu, porém, nunca vi. Novembro, 6 Pela manhã, executamos uma nova experiência científica. Depois começamos os preparativos para o banho. Me distraí e não fechei direito o recipiente onde colhemos a urina, por isso a tampa pulou fora com a pressão, brotando também água suja misturada com a urina. Uma grande gota amarela ficou pendurada no extremo da mangueira. Grande coisa! Fiz a limpeza. A propósito, não sentimos aqui nojo por tais coisas, compreendendo que tudo isso é nosso, só dos dois. Tomei uma ducha. Tenho sentido ultimamente dor na coluna. Sei, por experiência terrestre, que isso acontece quando pratico pouco esporte. Os músculos se enfraquecem. Por isso fica difícil para a coluna sustentar o peso do corpo, originando uma compressão das vértebras. Aqui, em órbita, acontece o contrário: elas se dilatam. Como voamos há muito tempo, perdemos o sentido do tempo. Sabemos que muito já se passou, mas não podemos perceber exatamente quanto, como fazemos quando estamos em terra. Lá se vive a primavera, o verão, o outono, o inverno e as férias. Aqui, tudo está envolto por um tempo anônimo,uma sucessão de luz e escuridão, quinze vezes por dia. Novembro, 11 Dia da morte de Leonid Brejnev (chefe do governo soviético desde 1964). Lançamento do ônibus espacial americano Columbia. Acordei por volta das cinco da madrugada. Levantei mais cedo para filmar o Extremo Oriente em videoteipe. Vejo a cama de Tolia vazia. Olho para o compartimento de trabalho e o descubro deitado e encolhido no aparelho de esteira rolante. Perguntei o que tinha acontecido. Ele disse que não estava se sentindo bem, parecendo intoxicação, uma dor no lado esquerdo do abdômen. Ao cabo de uma hora, vejo o homem ainda sofrendo. Fui até a farmácia e peguei dois remédios e um comprimido de carvão ativado. Sobrevoamos o território soviético. Digo a Tolia que não temos o direito de esconder sua dor e sugiro entrar em contato com a Terra e informá-los. Ele concorda. Estamos passando sobre o litoral do Extremo Oriente, não estando programada nessa volta uma sessão de comunicação. Faço a chamada: “Aqui Elbrus-2, responda-me”. Entra o operador de plantão do posto terrestre em Ussuriisk. Peço ligação para o Centro de Controle de Voos. Atende Viktor. Solicito um médico, vem correndo Valera, médico de turno. Expliquei-lhe tudo e aí saímos da zona de radiovisibilidade. Somente na comunicação seguinte, às oito da manhã, tive nova conversa com Valera e ele recomendou aplicar uma injeção de atropina. Peguei na farmácia uma seringa e disse: “Vamos, Tolia, mostre o seu traseiro porque vou te dar uma agulhada”. Segurei metade da agulha com os dedos para que não entrasse toda na carne. Ele disse que nem sequer percebeu quando apliquei. Uma hora depois, se sentia aliviado. Na sessão de comunicação seguinte, já haviam reunido uma junta médica para decidir se devíamos ou não aterrissar. Coisa absurda: passar nove anos se preparando para o voo, voar meio ano e ter de aterrissar uma semana antes do recorde de permanência no espaço. Como se isso fosse pouco, entra Riumin (cosmonauta que à época trabalhava no Centro de Controle dos Voos): “Rapazes, estamos preparados para trazê-los de volta”. Bolas! Depois do almoço, o pessoal de terra pediu que, pelo sim, pelo não, nos preparássemos para a descida. Ao meiodia, Tolia já não parecia tão aborrecido. Digo-lhe: “Vamos então comunicar que aterrissamos”. Dezembro, 13 (Depois do regresso) Dia de repouso. Sinto-me muito mais aliviado, já sem aquele cansaço no corpo. Levanto os objetos com mais facilidade, me mexo na cama sem esforço. Participamos de uma entrevista coletiva. Fiquei contente porque parece ter sido uma boa conversa. De dia, fiz um treino na piscina, uma caminhada, exercícios fáceis para as pernas e os braços. Fica-se cansado rapidamente. Estou com bom apetite. Já recuperei o peso de 72 quilos. No primeiro dia em terra, estava com 70,5 quilos. Os médicos estão contentes. O restabelecimento é normal. Só alterações no sangue. Isso porque o organismo se adaptou à imponderabilidade. Agora se inicia o processo contrário. De manhã, fiz uma brincadeira: pus a máscara de fantasia trazida a bordo da estação por Jean-Loup Chrétien (cosmonauta francês que esteve na Saliut). É uma máscara feia. Depois de colocá-la na cabeça, deitei na cama e fiquei imóvel. Alguém foi correndo aos médicos assustado com o que viu. Quando Ivan Skiba, chefe da seção médica, Slava Bogdachevski e o psicólogo entraram no meu quarto, virei o rosto para eles e lancei um grito feroz. Ficaram apavorados. Aconteceu uma cena muda, com minha máscara refletindo-se nas suas fisionomias desfiguradas pelo susto. Quando voltaram a si, desataram a rir. O psicólogo diagnosticou: “Se o paciente está brincando, é sinal de que tudo vai bem”. A instantâneo COMO UM TIME DE VENCEDORES DO PRÊMIO NOBEL DEU À LUZ A BOMBA ATÔMICA. primeira explosão nuclear da História aconteceu em silêncio, na madrugada chuvosa do dia 16 de julho de 1945, numa área de testes de bombardeios do Exército americano, em Alamogordo, Novo México. Uma luz dura, 20 vezes mais brilhante que a do Sol, acendeu a noite e fez o céu, o deserto e as montanhas próximas ficarem brancos como papel. Apesar da hora, milhares de pessoas, em cinco Estados vizinhos, viram o flash sem ter ideia do que estava acontecendo. Não se ouviu o som. Muito mais lento do que a luz, o som veio muitos segundos depois. Um estalo seco como um tiro, seguido de um trovão. E uma imensa bola de fogo, com 2 mil metros de diâmetro, levantou-se de repente. Mudando de amarelo para laranja, e depois para vermelho, a bola em poucos minutos alcançou 15 quilômetros de altura. Numa reação automática, manifestou-se o gênio do físico italiano Enrico Fermi. Ele calculou quase a olho a energia da detonação: deixando cair pequenos pedaços de papel, quando a onda de choque passou pela casamata em que estava escondido, mediu a distância a que os papéis foram lançados e estimou o poder da energia liberada em pelo menos 10 quilotons. O equivalente a 10 mil toneladas de dinamite. Uma conta excelente, naquelas circunstâncias: o número preciso, como se verificou mais tarde, era de 18 quilotons. De longe, a maior quantidade de energia já produzida de um só golpe pelo homem. Foi um instante de imenso orgulho e alegria. Os cientistas, técnicos, militares e políticos reunidos em Alamogordo pularam, gritaram e se abraçaram na lama que a chuva tinha deixado por toda parte. A montagem final da bomba, a partir do segundo semestre de 1944, e o teste em julho de 1945 tinham sido apenas as últimas etapas de uma longa corrida contra o tempo. Nos três anos anteriores, centenas de milhares de americanos tiveram de ser mobilizados, de engenheiros a trabalhadores da construção civil. Acima de tudo, exigiu-se a colaboração disciplinada de dezenas de físicos, químicos e matemáticos. Um time de cérebros que contava com mais de 20 ganhadores do Prêmio Nobel. Alguns já haviam sido premiados, como o italiano Fermi, o dinamarquês Niels Bohr e o alemão Otto Hahn. Outros seriam futuros escolhidos: o alemão Hans Bethe, o húngaro Eugene Wigner e o americano Richard Feynman. O time aceitou trabalhar voluntariamente, num regime de disciplina militar. Em Alamogordo, uma região seca e arenosa, habitat de escorpiões e cobras, quase deserta de gente, ficava apenas uma parte da equipe. Juntando cientistas, técnicos e soldados, a população chegava a 200. Vida duríssima e sigilo absoluto. Ninguém podia telefonar para fora sem autorização. Nem sair do alojamento, um punhado de barracos levantados às pressas pelo exército em 1944. Aí, durante dez meses, os pesquisadores trabalharam alegremente, com toda boa vontade. No final de 1938, o físico italiano Enrico Fermi aproveitou uma ocasião extraordinária para escapar da ameaça de perseguição que sentia em seu país, então sob o domínio fascista. Numa quebra de sigilo sem precedentes, mas justificável naquelas circunstâncias, ele havia sido informado de antemão que ganharia o Prêmio Nobel de Física daquele ano. Então, sabendo que conseguiria uma autorização para ir a Estocolmo, na Suécia, receber a láurea, planejou secreta mente não voltar mais para a Itália. Fugiu com toda a família para os Estados Unidos. A chegada de Fermi foi decisiva para que a tecnologia do átomo fosse dominada em apenas três anos - um feito, na época, inimaginável para a ciência. Ninguém conhecia melhor do que ele a ação de partículas recém-descobertas no núcleo atômico, chamadas nêutrons, que teoricamente poderiam escapar de seu núcleo original e entrar em outro para quebrá-lo. Assim, liberariam a energia estocada lá dentro. Na prática, não era tão simples. O próprio Fermi sabia apenas que os nêutrons penetravam facilmente nos núcleos: não sabia que os núcleos se quebravam. A fissão nuclear, nome dado a esse fenômeno, foi comprovada em 1939, um ano depois da fuga para os Estados Unidos. Mas Fermi tinha certeza, desde o início do século, de que o núcleo representava a mais densa concentração de matéria já vista. E isso significava muita energia. Um único grama de matéria, seja do que for, representa 20 trilhões de calorias,o suficiente para fazer ferver 900 mil toneladas de água. É o que diz a fórmula descoberta por Albert Einstein em 1905, E=mc2. Energia (E) é igual à massa (m) multiplicada pela velocidade da luz ao quadrado (c2). Em 1939, a alemã Lise Mentner usou a fórmula de Einstein para calcular a força gerada durante a fissão do núcleo do urânio. Nem toda a matéria virava energia (a conversão não chega a 20%, ainda hoje), mas dava de sobra para projetar uma superarma. Só faltava demonstrar que, quando um átomo de urânio se quebra, seus fragmentos provocam sucessivamente a quebra de outros núcleos. Ou seja, uma reação em cadeia, que foi demonstrada por Fermi em 1942. Daí em diante, a construção da bomba já não dependia tanto da Ciência. Era um problema de tecnologia e de dinheiro, especialmente para produzir e transformar o urânio comum em combustível (ele precisa ser enriquecido com variedades mais raras de urânio). A própria guerra, então, daria o empurrão final para a conquista da energia nuclear. Em meados de 1942, os ditadores Adolf Hitler, da Alemanha, e Benito Mussolini, da Itália, haviam dominado toda a Europa continental, da França à Polônia. Diante de tamanha demonstração de força, o presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt, resolveu encomendar a arma atômica a uma unidade de engenharia do Exército. A ordem foi dada em junho. Em agosto, nasceu o Projeto Manhattan, cuja função era coordenar o trabalho de todos os físicos, químicos, engenheiros, técnicos e operários necessários para executar a ordem. O gatilho da revolução atômica foi a ciência pura. Mas, depois de iniciada, teve de ser sustentada por uma mobilização monumental de recursos. Até cidades foram construídas. Algumas saíram do nada, em locais isolados, justamente para garantir o segredo. Existem até hoje. Outras, que também permanecem, foram refeitas. Hanford, então um povoado insignificante e perdido do mundo no Estado de Washington, foi invadida, em 1943, por 25 mil trabalhadores. Em menos de um ano, construíram 250 quilômetros de ferrovias, 600 quilômetros de estradas, casas para 40 mil operários e suas famílias, e uma fábrica de plutônio, combustível nuclear como o urânio. As cidades cresceram em diversos pontos do país, sempre com o mesmo fim: alimentar a superbomba. Das novas fábricas, saíam peças ou combustível. Dos laboratórios, números e medidas. Quantos quilos de urânio ou plutônio seriam necessários? Como detonar a explosão no momento exato? Até que ponto o urânio comum, extraído das minas, precisaria ser misturado com o urânio-235, mais radioativo? Em resumo, os cientistas já não faziam Física pura. Mas só eles eram capazes de manipular as equações descobertas na década anterior para desenvolver a tecnologia que estava nascendo. A direção geral do Projeto Manhattan, que coordenava toda a operação, foi entregue a um general do setor de engenharia do Exército chamado Leslie Groves. Era administrador competente e autoritário, conhecido por ter levantado o prédio do Pentágono, a secretaria militar do governo americano. O general estava fora da luta, mas queria combater. Então, deram-lhe a função de “construir o armamento que acabaria com a guerra”. Groves teve o bom senso de escolher um cientista brilhante para comandar o time de gênios: o físico Robert Oppenheimer, que também revelou admirável capacidade gerencial. Voluntariamente, os pesquisadores se submeteram a uma disciplina militar. Confinados aos locais de trabalho, moravam longe de suas famílias. Foram divididos em equipes para que uns não soubessem o que os outros estavam criando. Usavam nomes falsos e escreviam tudo em código. Ficaram proibidos até de pronunciar palavras denunciadoras, como “físico”. A vontade de vencer a Alemanha gerou um espírito de cooperação fora do comum. Houve erros e contratempos. A divisão de tarefas por equipes que não se comunicavam não funcionou, pois, entre cientistas, pensar significa trocar e debater ideias. O húngaro Leo Szilard simplesmente não obedeceu às restrições de segurança. E, apesar de ter sido o primeiro a propor a construção da bomba, foi ameaçado por Groves com a acusação de traidor. O americano Richard Feynman, outro rebelde incorrigível, se divertia quebrando códigos secretos e abrindo os mais complicados cofres com perícia de arrombador. Edward Teller, da Universidade da Califórnia, futuro idealizador da bomba de hidrogênio, muito mais poderosa que a atômica, brigou com Oppenheimer também por causa da disciplina. Queria mais autonomia. Nada disso, porém, comprometeu a eficiência prodigiosa do projeto. A euforia com o teste de Alamogordo durou pouco. Foi uma emoção passageira. O estado de espírito dos cientistas era péssimo. Eles já sabiam que o governo americano planejava um ataque nuclear ao Japão, o último inimigo ainda de pé (alemães e italianos já estavam vencidos na Europa). Numa carta à mãe, o físico Richard Feynman descreveu os sentimentos de quase todos: “Tudo estava perfeito, menos o objetivo”. Oppenheimer, chefe da equipe científica, lembrou um antigo texto hindu: “Eu me tornei morte/ Destruidor de mundos”. O moral da equipe de gênios caía vertiginosamente nos últimos dias do Projeto Manhattan. O ânimo já vinha despencando desde a morte do presidente Franklin Roosevelt, em 12 de abril de 1945, com quem os cientistas haviam concordado em trabalhar. Eles não se entenderam bem com o novo presidente, o vice de Roosevelt, Harry Truman. Em seguida, com a rendição dos alemães no dia 7 de maio de 1945, a tensão aumentou ainda mais. A derrota nazista, que o resto do mundo recebeu como boa notícia, virou fator de preocupação dentro do Projeto Manhattan. O que é fácil de explicar: foi contra Hitler que eles tinham se unido e, com o ditador nazista fora do onflito, desapareciam as justificativas para a construção de uma arma tão arrasadora. E ainda faltava um mês para o teste de Alamogordo. Foi então que, para tornar tudo ainda mais torturante, às vésperas do teste, veio a informação de que o governo americano estudava a hipótese de empregar a nova arma contra o Japão. Era o início do pesadelo. Até ali, os cientistas alimentavam a ilusão de que o poder nuclear jamais seria de fato empregado. Na pior das hipóteses, aceitariam lançá-lo contra os nazistas. Truman vacilou entre argumentos contra e a favor. Por fim, decidiu-se. Era o final de julho. Dois anos antes, a máquina militar já começava a se mover. Desde 1943, a Força Aérea treinava o chamado Esquadrão 509, chefiado por um dos melhores pilotos de bombardeiro do país, o coronel Paul Tibbets. Na Boeing, em Seattle, ele escolheu pessoalmente seu avião, o gigantesco quadrimotor B-29, o que havia de melhor na indústria americana. O objetivo do 509 era lançar uma bomba de 4 mil quilos sobre Hiroshima, fazer uma curva de 180 graus, mergulhar, acelerar e dar o fora. Hiroshima havia sido escolhida depois que o ministro da Guerra, Henry Stimson, descartou a opção por Kyoto, ex-capital e maior centro religioso do Japão. Na madrugada de 6 de agosto de 1945, já a caminho do Japão, mas sem saber bem por quê, a tripulação recebeu a ordem de lançar a bomba. Ela partiu do avião às 8h16 da manhã e, 43 segundos depois, explodiu. A cidade ficou coalhada de incêndios. Perto do hipocentro, foco da detonação, gente virava cinza. Quase ninguém, a menos de 5 mil metros do hipocentro, sobreviveu. Em toda a cidade, 50 mil edifícios ruíram. Mais tarde, durante anos, a radiação continuou matando. Até hoje surgem novas vítimas fatais do pikadon, o “raio-trovão”, neologismo criado para descrever o indescritível. Elas já são mais de 200 mil. “Os físicos conhecerão a vergonha”. A maldição poderia ter vindo de uma das vítimas de Hiroshima ou de Nagasaki. Mas seu autor, paradoxalmente, foi um dos arquitetos da bomba, o físico americano Robert Oppenheimer. Que nunca se arrependeu do que fez. Essa ambiguidade - a mistura de desonra com falta de arrependimento - foi uma marca que pairou sobre a ciência e dividiu a sua história em duas partes. Antes e depois da bomba. A vergonhaficou porque não há como negar: os cientistas produziram a máquina do genocídio instantâneo conscientemente. Têm a seu favor o fato de que queriam construí-la antes de Adolf Hitler. Mas, então, por que não foram unânimes em condenar o seu lançamento contra Hiroshima e Nagasaki, quando Hitler já estava derrotado na Europa? Por que muitos se conformaram? Tudo leva a crer que, quando terminaram a sua parte do trabalho, os cientistas, simplesmente, deixaram que ele fosse completado. Bombas são bombas. Existem para matar gente. Há nuances, e muitas. O homem que mais lutou para ver a bomba construída foi depois o que mais fez força para impedir que ela fosse usada: o físico húngaro Leo Szilard. Desde 1933, antes de qualquer outro, ele intuiu no que daria a mistura das equações de Einstein com a radioatividade. Nos dez anos seguintes, gastou tempo batendo à porta dos governos inglês e americano para convencê-los de que suas ideias não eram absurdas. Em 1939, Szilard conseguiu que Einstein, um dos gênios de maior prestígio na época, escrevesse uma carta a Roosevelt, presidente dos Estados Unidos, dizendo que a bomba era factível e que os alemães poderiam construí-la durante a guerra. Mas, depois, tentou evitar o bombardeio de Hiroshima a todo custo. Arrumou encrenca com quem foi preciso. Especialmente com o então poderosíssimo general Leslie Groves, coordenador do projeto. Derrotado, depois do ataque nuclear pediu a um padre para rezar uma missa para os mortos. No final das contas, Szilard foi apenas ingênuo. Obcecado pelos crimes do nazismo, ele só se deu conta do demônio que havia criado quando já não havia mais como detê-lo. Porque a arma nuclear, mais do que qualquer outra obra humana, trouxe para dentro da ciência o poder do sistema de produção em escala. O projeto da bomba virou indústria: posta em movimento, começou a devorar os seus criadores. Resumo: ela não acabou apenas com duas cidades japonesas. Ou com o ideal do cientista como benfeitor da humanidade. Ela acabou também com a noção de liberdade. A começar pela pesquisa científica. De 1945 em diante, o Estado passou a impor limites à manipulação de urânio ou de plutônio, que acarreta riscos imensos. Desconhecidos pela humanidade, até então. Os desastres potenciais são muitos, desde a possibilidade de um acidente causar contaminação ambiental por longo período, de até milhares de anos, até o perigo de atentados terroristas com material nuclear. Mas a liberdade também viveu outras limitações. A informação passou a ser a mais vigiada pelas razões de Estado. No mundo que se seguiu à Segunda Guerra, até mesmo as convicções ideológicas dos cidadãos viraram matéria de segurança nacional. A sombra do cogumelo nuclear destruiu a inocência. Científica e política. Depois do teste de Alamogordo, já não havia mais lugar para a ingenuidade como a de Szilard. Oppenheimer, mesmo sentindo vergonha, parece ter compreendido isso melhor do que seu colega húngaro. Daí porque também não mostrou remorso. Não custa lembrar que, quando a história da bomba começou, os Estados Unidos estavam em uma guerra selvagem, na qual o número de atrocidades cometidas pelos vários exércitos superou o de qualquer conflito anterior. Mesmo depois da rendição da Alemanha, havia argumentos militares muito fortes a favor de usar a bomba contra o Japão. Eles iam muito além da necessidade de derrotar o inimigo. O governo dos Estados Unidos alegava que o recurso atômico quebraria o ânimo dos generais japoneses, aparentemente dispostos a prolongar a luta até o seu último soldado. Assim, a bomba poderia custar menos vidas do que a invasão do país com a ajuda de armas convencionais. Pode ser, mas a estratégia americana não era determinada apenas pelo que ia acontecer nos meses seguintes. Estava em jogo, principalmente, o equilíbrio do poder sobre o mundo do futuro. Depois da guerra, restariam duas potências: os Estados Unidos e a então União Soviética. Isso estava bem claro e pesou decisivamente nos cálculos frios da política com relação ao Japão. Hiroshima e Nagasaki eram uma oportunidade para os americanos ostentarem a força de que dispunham. Há uma ironia na mudança dos tempos, desde a ascensão da ciência, na época do italiano Galileu Galilei, no século 17, até a era nu clear. Galileu foi um dos pais da física moderna, a mesma que projetou a arma atômica. Galileu também é lembrado por sua luta contra o autoritarismo. É famosa a sua frase depois de ter sido obrigado a abandonar a ideia de que a Terra não estava parada e que girava em torno do Sol. “No entanto, ela se move”, comentou o sábio, apesar da humilhação a que fora submetido. Pode-se dizer, como uma metáfora, que ele enfrentou o imobilismo em defesa do prosseguimento da evolução do conhecimento. E da História. Em 1945, deuse o oposto. A ciência fez o tempo parar. Restou em Hiroshima um símbolo do horror paralisante causado pelo genocídio instantâneo: um relógio parado, encontrado junto da ponte Aioi, perto do local da detonação. Deixando de marcar os minutos, ele parece dizer que, agora, a Terra já não se move. O relógio de Hiroshima, num sentido muito real, é um herdeiro maldito de Galileu. Oppenheimer percebeu isso muito bem. Reconheceu que tinha as mãos manchadas de sangue. Não tinha dúvida de que tinha sido um dos personagens centrais de uma tragédia gigantesca. Mesmo assim, não queria voltar atrás. Em mais de uma oportunidade, respondeu que faria tudo de novo. Sua trágica lucidez rompe com a ilusão de neutralidade da ciência e assume as contradições em que os mais destacados gênios podem sucumbir. A realidade em que vivemos hoje é um paradoxo fatal. Oppenheimer e seus colaboradores fabricaram o instrumento de um genocídio inominável. Eles não têm perdão. Mas também não têm condenação. No mundo que surgiu depois de Hiroshima e Nagasaki, não existe um tribunal com a isenção necessária para julgá-los. A humanidade ficou assim: de uma vez só, é vítima e cúmplice da invenção da bomba atômica. N do tempo, o sonho secretodos físicos ELES NÃO CONTAM PARA NINGUÉM E NÃO GOSTAM DE COMENTAR O ASSUNTO EM PÚBLICO. MAS CIENTISTAS ANDAM ATRÁS DA RESPOSTA: COMO É QUE FAZ PARA VIAJAR NO TEMPO? Imaginem a gritaria sobre desperdício de dinheiro público se descobrissem que a National Science Foundation fazia pesquisas sobre viagem no tempo. Por isso, os cientistas tentam disfarçar seu interesse”. STEPHEN HAWKING, FÍSICO INGLÊS ão existe sonho mais fantástico do que viajar através do tempo, voltar ao passado ou avançar pelas décadas à frente. O problema é que, além de fantástico, esse é um sonho comprometedor. Nenhum cientista pode sonhá-lo em público sem correr o risco sério de dar uma de maluco. Mas agora, para surpresa dos próprios físicos, a possibilidade de atravessar os séculos para a frente e para trás não pode ser de forma alguma descartada. Desde o final da década passada, o físico americano Kip Thorne, do Instituto de Tecnologia da Califórnia, trouxe à tona um objeto simplesmente estupendo: o wormhole, que, em inglês, quer dizer “buraco de minhoca”. Com esse nome nada futurista, até meio invertebrado, o wormhole pode ser a peça-chave de um futuro ônibus do tempo. E o que é esse bicho? É uma espécie de túnel que, segundo a teoria, pode existir no universo. Como se fosse um atalho cósmico, ele ligaria pontos superdistantes de um modo tal que, se alguém pudesse caminhar por ele, chegaria rapidamente à outra extremidade. Ou seja, ganharia um tempo enorme. A ideia de Thorne, então, seria aproveitar esses túneis, deslocando suas extremidades para os pontos desejados e conseguir, com idas e voltas por dentro deles, saltos não apenas no espaço, mas também no tempo. Por enquanto, essa máquina do tempo só existe na teoria. Mas, exatamente porque só existe na teoria, tem aquele fascínio dos aviões e helicópteros esboçados nas pranchetas do século 15 por Leonardo da Vinci. Como o velho gênio italiano, Kip Thorne foi além dos limites do que é possível em sua era. Agora você vai ler o que Thorne tem a dizer sobre a máquinamais fascinante que o homem já desejou criar. Ir para a frente é fácil. Duro é andar para trás Você pode não levar a sério, mas viajar no tempo não é apenas possível. É até inevitável, em certas circunstâncias. A ciência sabe disso desde 1905, data em que o alemão Albert Einstein formulou a Teoria da relatividade. “O princípio é muito simples”, disse à SUPER o americano Michael Morris, da Butler university, em Indianápolis, pesquisador vital nos mais importantes avanços da atualidade. “Basta embarcar numa nave que alcance velocidade bem próxima à da luz, de 300 mil quilômetros por segundo”, explica Morris. “Automaticamente o tempo na nave vai começar a passar mais devagar do que na Terra.” Na volta, portanto, o viajante estará mais jovem do que os que não voaram. Em números, se o relógio da nave, nessa velocidade, marca a passagem de 12 horas, os da Terra marcam muito mais: uma década. Ou seja, em relação a quem ficou aqui, o viajante terá feito uma travessia de dez anos para o futuro. Sagan faz um pedido Já não há dúvida alguma sobre esse efeito, que foi testado e comprovado exaustivamente nos últimos 30 anos. A precisão dos resultados só não é maior porque, como as velocidades usadas são muito inferiores à da luz, o ritmo do tempo também não se altera muito. Assim, as viagens já feitas ao futuro geralmente são curtas, da ordem de frações de segundo. Mas a possibilidade, hoje, é um consenso tranquilo entre todos os físicos, diz Morris. Em 1985, ele embarcou numa investigação muito mais complicada: era a possibilidade de viajar para o passado. A história começou com um telefonema do astrofísico, divulgador científico e escritor Carl Sagan, da universidade Cornell, a um amigo. O amigo era o físico teórico Kip Thorne, do Instituto de Tecnologia da Califórnia. Sagan estava escrevendo o romance Contato (1985). Queria saber se era cientificamente plausível viajar pelo “hiperespaço”, que na ficção-científica é um meio de cruzar imensas distâncias quase instantaneamente. Foi então que, decidido a mergulhar no assunto, Thorne convocou Morris para ajudá-lo nas pesquisas. Thorne chegou a uma conclusão extraordinária: o imaginário hiperespaço talvez pudesse viabilizar as expedições no tempo. E com destino ao passado, tanto quanto ao futuro! Em 1994, ele lançou um livro clássico com essas conclusões: Black Holes and Time Warps (“Buracos Negros e Dobras no Tempo”). Como tirar as dúvidas? Antes de começar a falar em passeios ao passado, duas coisas precisam ficar claras. Primeiro, a possibilidade é real, existe mesmo. Não é mágica, não é bruxaria. Segundo, essa possibilidade está sendo estudada com extrema cautela, pois os conhecimentos atuais da Física podem não ser suficientes para resolver as dúvidas que ainda existem. Enfim, os meios materiais para construir uma máquina do tempo como a que a teoria sugere estão muito além da tecnologia disponível. Muito, muito além. Como escreveu Thorne em seu livro: “Mesmo se as máquinas do tempo fossem possíveis pelas leis da Física, ainda estaríamos mais longe delas do que o homem das cavernas estava das viagens ao espaço”. Como cavar um buraco de metrô no espaço vazio Para viajar no tempo da maneira como o teórico americano Kip Thorne visualizou é preciso embarcar num paradoxo: abrir um buraco no espaço vazio, bem do tipo que liga nada a lugar nenhum. Para entender melhor, pense por um momento nos buracos negros. Eles nascem quando uma estrela superpesada (pelo menos três vezes e meia maior do que o Sol) se apaga e fica sem energia luminosa. A estrela escurecida desaba sobre si mesma, produzindo uma esfera absolutamente preta, ultracompacta, com uma força gravitacional apavorante. Traga até mesmo os raios de luz. Dentro dela, ninguém sabe direito o que existe. Certamente não é o espaço comum. Será que, entrando lá, alguém iria sair em outro lugar do universo? Passeio num wormhole Em 1986, Thorne já sabia que não. Tudo o que cai num buraco negro é esmagado. Propôs então viajar dentro de wormholes, os tais “buracos de minhoca” que já eram descritos em outros estudos de Cosmologia. A grande vantagem dos wormholes (que são conhecidos apenas em teoria) sobre os buracos negros é que, apesar de também ter densidade altíssima, eles não trituram ninguém. Mais do que isso: como os wormholes têm duas bocas, situadas em locais diferentes do universo, seriam os túneis ideais. Só faltava direcioná-los. A partir da Teoria da relatividade — que ensina que um relógio em movimento marca o tempo mais devagar em relação a um relógio que está imóvel —, Thorne imaginou colocar uma das bocas de um wormhole dentro de uma nave, mandando-a para uma velocíssima viagem. A outra boca ficaria na Terra. Na volta, uma das bocas, a que viajou, estaria atrasada no tempo. É claro! Se essa viagem acontecesse hoje, numa velocidade bem próxima à da luz, bastariam 12 horas de passeio para conseguir um intervalo de dez anos na Terra. Pronto! Sai um túnel do tempo para viagem: uma das bocas estaria em 2006; a outra, em 1996. E quanto tempo levaria para atravessar o túnel do tempo depois de pronto? Menos de um segundo. Estigma de físico maluco É uma hipótese tão doida que Thorne viu-se diante do risco de ser chamado exatamente disso: doido. Tornou-se muito zeloso da imagem de seus colaboradores, Michael Morris e ulvi Yurtsever, além da sua própria. Tanto que, em seu livro, escreveu que temia “que a reputação científica de Morris e Yurtsever fosse manchada com o estigma de físicos malucos de ficção científica”. Decidiu não falar mais sobre o assunto com a imprensa. Procurado pela SUPER, apenas reafirmou, por telefone e pela Internet, sua opção pelo silêncio. Morris foi mais claro: “Muitas coisas que dizemos não significam o que normalmente a imprensa acha que significam. Nós não gostamos de ver esse assunto ser sensacionalizado, e ninguém quer ser acusado de ter contribuído para a sua sensacionalização”. A SUPER, com esta reportagem, cumpre seu papel de informar, revelando a importância que Thorne e Morris deram à pesquisa sobre o tempo. Como diz o físico brasileiro Carlos Escobar, do Instituto de Física da universidade de São Paulo, “o tema, sem dúvida, deve ser coberto pela imprensa. Com toda a seriedade.” Por que o sonho ainda é só um sonho As viagens no tempo ainda não estão garantidas por vários motivos. Tecnologicamente, nem se fala. Se é que existem de fato, os wormholes têm um peso bem maior que o do planeta Terra. Não existe veículo capaz de carregar a boca de um monstro desses, como seria necessário para montar uma máquina do tempo. Mas o maior problema é teórico. Porque a origem dos wormholes tem a ver com a energia espalhada pelo espaço. Mesmo onde não há nenhum átomo ou fragmento de átomo, existe luz e força gravitacional, e isso é energia. Ou melhor, é um caos: a energia, em vez de se espalhar por igual, pode muito bem, sem aviso prévio, acumular-se de forma brutal num ponto qualquer. Pois aí poderiam nascer os wormholes. A antigravidade existe? Mas há dois problemas. Primeiro: eles surgem e somem num piscar de olhos. Tão rápido que nem dá tempo de transformá-los em túneis do tempo. Segundo problema: no nascimento, eles seriam infinitamente pequenos. Seria preciso achar alguma coisa que pudesse aumentar o tamanho do wormhole e mantê-lo aberto durante um período maior. Essa “alguma coisa”, para Thorne, seria matéria com gravidade negativa, ou antigravidade. De novo, ele se socorreu na Teoria da relatividade, segundo a qual dois fatores produzem gravidade. um é a massa, sempre positiva. O outro é uma pressão que a massa cria à sua volta, e a pressão tanto pode ser positiva (de fora para dentro) quanto negativa (de dentro para fora). Em algumas situações, a gravidade da pressão negativa supera a da massa. Portanto, sobra gravidade negativa. A matéria nessas condições seria útil. Ela serviria para manter o wormhole aberto e aumentá-lo. Os argumentos de Thorne convenceram diversos cientistas, que agora tentam projetar um “gerador” de wormholes. O italiano Claudio Maccone,do Centro de Astrofísica de Turim, acredita que um eletroímã pode dar conta do recado. Ele começou a fazer contas em 1994, concluindo que o eletroímã precisaria ter no mínimo 3 quilômetros de comprimento. O wormhole resultante teria baixa densidade, o que não é o ideal. Mas poderia alterar a trajetória de um raio de luz, e se isso acontecer é sinal de que a ideia do eletroímã funciona. Outros estudiosos resolveram olhar para o céu em busca de wormholes naturais, gerados de alguma forma durante a evolução do universo, e que podem ser gigantescos. Se eles tiverem gravidade negativa, devem criar efeitos de luz marcantes, como as imagens duplas. É o que sugere John Cramer, da universidade do Estado de Washington. Por isso, caso uma estrela apareça com a imagem duplicada, é muito provável que ela esteja passando por trás de um wormhole. Dos grandes. E será magnífico captar esse efeito na Terra. Teríamos uma demonstração de que a antigravidade expande mesmo o wormhole. Teríamos também um “sim” da natureza para as mais ousadas conjecturas já feitas sobre o tempo. D da própria carne O CANIBALISMO, RITUAL MILENAR DOS ÍNDIOS BRASILEIROS, JÁ FOI UMA CERIMÔNIA SANGRENTA, QUE MISTURAVA BRAVURA, ÓDIO E ATÉ RESPEITO PELO INIMIGO. HOJE, SOBREVIVE EM CERIMÔNIAS MISTERIOSAS E ULTRAELABORADAS, EM QUE SÃO COMIDOS OS RESTOS DOS MORTOS QUERIDOS. ificilmente haverá assunto mais cercado de preconceito. Os brancos, cristãos e ocidentais veem a antropofagia como símbolo supremo da selvageria indígena. Os antropólogos, normalmente, não gostam de falar a respeito porque têm medo de expor os índios. Os índios, por sua vez, quanto mais “civilizados”, mais têm medo de ser julgados bárbaros. Assim, o canibalismo virou tabu. A antropologia desconhece, no passado ou no presente, uma sociedade que consuma carne humana como alimento. O canibalismo sempre foi simbólico. Ou se devoram os inimigos, como faziam os tupis do litoral brasileiro no século 16, em impressionantes cerimônias coletivas, ou se pratica uma antropofagia funerária e religiosa. Aí, a ingestão das cinzas dos mortos homenageia e ajuda a alma daquele que morreu. Esse ritual faz parte, ainda hoje, dos costumes dos ianomâmis. Se as cerimônias tupis apavoram pelo que tinham de brutal, o ritual dos ianomâmis é capaz de chocar o senso comum dos brancos pelo que tem de inesperado. Para um ianomâmi, comer as cinzas doamigo morto é uma prova de respeito e afeto. O mais desconcertante desse canibalismo que perdura é exatamente isso: ele não é um gesto de ódio, mas de amor. Agora, a SUPER vai pôr você em dia com os rituais antropofágicos dos índios brasileiros. Desde a bravura dos guerreiros que devoravam inimigos para herdar sua valentia em combate, até a devoção dos praticantes do canibalismo funerário, movido pela compaixão com os mortos. Sem temores nem tabus. Comendo a coragem do inimigo Em 1500, os europeus se espantaram com a belicosidade dos tupinambás, que habitavam a costa brasileira de São Paulo ao Ceará. Os índios, da família linguística tupi, moravam em aldeias de 2 mil habitantes, mantinham relações pacíficas entre si e faziam alianças para atacar outras aldeias. Em 1553, o alemão Hans Staden naufragou em Itanhaém, litoral de São Paulo, e ficou nove meses na aldeia do cacique Cunhambebe, na região de Mangaratiba, rio de Janeiro. Ele mesmo participou de uma expedição de canoa até Bertioga, em São Paulo, para capturar inimigos. Mortos e feridos foram devorados no campo de batalha e durante a retirada. Os cativos foram levados para a aldeia, para que as mulheres pudessem participar do ritual antropofágico. Segundo o antropólogo Carlos Fausto, do Museu Nacional, da universidade Federal do rio de Janeiro, “o valor fundamental da sociedade tupinambá era predar o inimigo”. Fausto enfatiza: “Predação repetida e sem fim. Eles viviam para guerrear.” A lógica da guerra não era o extermínio, e sim o cultivo da inimizade. “O objetivo era valorizar-se, apropriando-se das qualidades do oponente.” O sacrifício honrava vítima e carrasco. A execução podia demorar meses. O captor cedia sua casa ao cativo. Cedia também uma irmã, ou filha, como esposa. O preso circulava pela aldeia e era exibido aos vizinhos. A execução atraía convidados em festas e danças regadas a cauim (uma bebida fermentada à base de mandioca). O preso recebia a chance de vingar sua morte, antecipadamente. Pintado e decorado, era amarrado pelo ventre com a mussurama (uma corda de algodão) e recebia pedras para jogar contra a audiência. Insultava a todos, provando sua coragem. O carrasco vestia um manto de penas, imitava uma ave de rapina e usava uma ibirapema (borduna). O padre Anchieta conta, em suas Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões, que viu um preso desafiar o algoz, aos gritos: “Mata- me! Tens muito que te vingar de mim! Comi teu pai. Comi teu irmão! Comi teu filho! E meus irmãos vão me vingar e comer vocês todos.” Golpe de misericórdia um golpe na nuca rompia o crânio. Acudiam mulheres velhas, com cabaças, para recolher o sangue. Tudo era consumido por todos. As mães besuntavam os seios de sangue para os bebês também provarem do inimigo. O cadáver era esquartejado, destrinchado, assado numa grelha e disputado por centenas de participantes - que comiam pedacinhos. Se fossem muito numerosos, fazia-se um caldo dos pés, mãos e tripas cozidas. Os hóspedes retornavam às aldeias levando pedaços assados. Só o carrasco não comia. Entrava em resguardo, em jejum, e, após a reclusão, adotava um novo nome. O acúmulo de nomes era sinal de bravura: indicava o número de inimigos abatidos. Grandes guerreiros tinham até cem apelidos. Comer o inimigo era afirmar potência. “O canibalismo exprimia a força do predador, na sua capacidade máxima”, diz Carlos Fausto. “Para eles, os seres potentes eram devoradores. Como o jaguar.” A catequese dos brancos acabou com esse canibalismo guerreiro. O ritual pertencia a uma cultura estável, que foi desestruturada até em grupos mais arredios. A última tribo tupi contatada no Brasil, em 1994, os tupi-de-cunimapanema, no norte de Santarém, não tinha vestígio de antropofagia. No purê de banana, as cinzas dos amigos Há 25 mil ianomâmis nas montanhas da fronteira do Brasil com a Venezuela, numa das áreas mais remotas e intactas do mundo. Desses, 10 mil estão em território brasileiro. Moram em mais de cem aldeias, falam quatro dialetos e mantêm um estado de guerra intermitente uns com os outros. Para todos eles, não há morte natural. Morre-se pela ação dos inimigos ou pela trama de um feiticeiro. Portanto, toda morte requer vingança. Esses ianomâmis praticam o endocanibalismo (comem gente da própria tribo). É uma cerimônia que reitera o compromisso de vingar o morto. “O ritual organiza um estado de hostilidade permanente”, diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, do Museu Nacional. “A cerimônia é quase uma eucaristia.” Só os amigos sem laços de consanguinidade são convidados para o funeral. O cadáver é pranteado e colocado sobre uma plataforma, fora da aldeia. A carne é separada dos ossos e cremada. Os ossos são limpos e moídos num pilão até virarem cinza. No funeral, os vizinhos e aliados comem as cinzas com purê de banana. “Ao contrário do culto cristão do ancestral”, explica Viveiros de Castro, “a antropofagia ianomâmi realiza o apagamento total do antepassado”. Tudo o que era do morto é destruído, e seu nome deixa de ser pronunciado. Como o espírito deseja companhia, atraindo os vivos para a morte, todas suas posses e traços são destruídos para que ele viaje para o mundo dos mortos - que fica nas “costas do céu”. Até pegadas, na mata, são apagadas. Predação sem ódio Até o final dos anos 1960, os waris de rondônia também praticavam o endocanibalismo. O ritual funerário era elaborado. Os mortos eram pranteados durante dias, com a família agarrada ao cadáver. Convidavam-se os amigos de outras aldeias para o funeral. O corpo era cortado, e os ossos, quebrados. Alguns órgãos eram cremados. Fígado e coração eram assados, embrulhadosem folhas. Desfiados e estirados em uma esteira, eram comidos, entre lágrimas, com pão de milho assado. Quase sempre, o corpo já estava se deteriorando. Os waris apreciam carne gordurosa. Mas não tocavam no tronco humano, cheio de gordura, porque a cerimônia era simbólica, não gastronômica. “Eles comiam naquinhos, pedacinhos da carne do morto”, explica a antropóloga Aparecida Villaça. Se o corpo estivesse realmente estragado, era queimado. O crânio era quebrado, os ossos moídos, e as cinzas, comidas com mel. O luto durava seis meses, durante os quais a família queimava e destruía as posses do morto até esquecer seu nome. Para a antropóloga, há uma continuidade entre o endocanibalismo e o exocanibalismo dos waris, que comiam os inimigos para expropriar-lhes a humanidade. “Comer é a prova irrefutável da não-humanidade da coisa comida. Tanto para os inimigos, que não eram considerados gente, quanto para os parentes, cuja morte é difícil de aceitar. O endocanibalismo dos waris é uma predação sem hostilidade. Também aí, comer o morto acaba com sua humanidade.” A o fantasma VISÕES ESTRANHAS ATEMORIZAM PESQUISADORES NUM LABORATÓRIO INGLÊS. VEJA COMO UM CIENTISTA DE VERDADE ENFRENTA ASSOMBRAÇÕES. noite gelada enchia de bruma esbranquiçada as ruas estreitas e medievais da cidade de Warwick, no interior da Inglaterra. Na velha fábrica de equipamentos médicos, só uma janela permanecia iluminada depois do expediente. Era o laboratório do professor Victor Tandy. Concentrado em projetar máquinas de oxigênio para pacientes com problemas respiratórios, o engenheiro trabalhava em silêncio. De repente, a tranquilidade foi sacudida. Tandy sentiu um pavor inexplicável. “Eu suava frio. Parecia que estava sendo observado”, disse à SUPER. Com os cabelos da nuca arrepiados e uma tontura que quase o derrubou, viu, apavorado, com o canto do olho, “a coisa”. “Era uma mancha cinza”, descreve. “Ela se movia como uma pessoa, mas era uma sombra.” Presença estranha Paralisado de pânico, Tandy resolveu esperar que o espectro fosse embora. Mas ele continuava lá. O jeito era encará-lo. respirou fundo, criou coragem, virou-se e... a assombração desapareceu. Afobado, agarrou o paletó e fugiu para casa. Sabia que não era a primeira vez que coisas estranhas aconteciam ali. Mas isso não o deixava menos apavorado. De fato, a faxineira e os colegas de laboratório já tinham relatado sustos com a tal “presença estranha” no lugar. Até mesmo ele já havia se sentido mal. Mas nunca daquela forma. No dia seguinte, à tarde, haveria uma competição de esgrima, o esporte favorito do professor. Tandy pegou o florete e levou-o para o trabalho. Ao chegar, colocou a arma sobre uma mesa. Ainda era cedo, oito da manhã, quando — uau! — a lâmina começou a tremer, freneticamente. Por um segundo, os olhos do professor se encheram de pavor. Mas logo ele abriu um sorriso. Tinha desvendado o mistério. A aventura do engenheiro exorcista Como não acredita em fantasmas, Victor Tandy logo se deu conta de que apenas uma fonte de energia poderia causar a tremedeira do florete. E, com certeza, era essa mesma fonte que havia provocado os acontecimentos da noite anterior. Para descobrir onde ela estava, resolveu assumir o papel do velho Sherlock Holmes. E começou a interrogar funcionários. Percebeu que todas as assombrações apareceram exatamente depois da instalação do enorme e barulhento ventilador de exaustão do laboratório. Mas como um ventilador pode criar fantasmas? Elementar. A culpada só podia ser a ressonância Quando se bate num objeto, ele vibra, emitindo ondas sonoras em determinada frequência (de um tamanho específico). “Qualquer corpo tem uma frequência de ressonância”, explica, no Brasil, o arquiteto ualfrido Del Carlo, ex-diretor da Faculdade de Arquitetura e urbanismo da USP. “Se ele recebe ondas sonoras vindas de outro lugar com uma frequência igualzinha à sua, ele treme.” Assim, se um sino toca perto de outro igual, o segundo também começa a vibrar. Movido pela lembrança dessas regras da Física, depois de uma reconfortante xícara de chá, Tandy resolveu medir as ondas emitidas pelo ventilador. Percebeu que, além do ruído audível, havia infrassom — barulhos tão graves que não podem ser captados pelo ouvido humano. Como a sala era estreita e tinha exatamente o mesmo comprimento da onda, o infrassom se multiplicava. O laboratório estava apinhado de energia sonora. Touché! Só podia ter sido essa a energia que fez o florete mexer. Desconfiado de que ela agira também no seu organismo, o engenheiro buscou a confirmação do médico Anthony Lawrence, professor, como ele, na universidade de Coventry, Inglaterra. “Ondas sonoras também fazem vibrar partes do corpo humano, causando efeitos estranhos”, confirmou Lawrence à SUPER. O brasileiro Miguel Nassif, especialista em fisiologia cardiorrespiratória e professor da USP, especifica: “Se o centro respiratório do bulbo cerebral, que controla a respiração, entrar em ressonância, é possível que provoque uma hiperventilação, criando mesmo sensação de pânico.” O olho chacoalha O médico inglês foi mais longe. De acordo com ele, a frequência de ressonância do globo ocular é muito parecida com a do ventilador. Ou seja, o olho do engenheiro podia estar chacoalhando, e isso o convenceu de que vira um fantasma. Outro especialista brasileiro, o oftalmologista Newton Kara José, da USP, sustenta: “É possível que uma vibração forte pressione a retina e forme um clarão.” Por último, o mesmo fenômeno explica a vertigem. “Ela pode ser consequência da ressonância do labirinto, que regula o equilíbrio do corpo”, diz o otorrinolaringologista Mário Munhoz, da universidade Federal de São Paulo. Entre os mistérios sobrenaturais que o “efeito Tandy” - como a tese foi batizada na Inglaterra - explica está a preferência das aparições por corredores compridos, sempre após uma rajada de vento. É que o sopro de ar, entrando enviesado por uma janela lateral, também pode gerar infrassom. Cauteloso, Victor Tandy não garante que não existam fantasmas. Mas sobre uma coisa ele não tem mais dúvidas: com o ventilador substituído, seu laboratório está devidamente exorcizado. P sobre a maconha POUCOS ASSUNTOS DÃO MARGEM A TANTA MENTIRA, TANTA DETURPAÇÃO, TANTA DESINFORMAÇÃO. AFINAL, QUAIS OS VERDADEIROS MOTIVOS POR TRÁS DA PROIBIÇÃO DA MACONHA? A DROGA FAZ MAL OU NÃO? E ISSO IMPORTA? or que a maconha é proibida? Porque faz mal à saúde. Será mesmo? Então, por que o bacon não é proibido? Ou as anfetaminas? E, diga-se de passagem, nenhum mal sério à saúde foi comprovado para o uso esporádico de maconha. A guerra contra essa planta foi motivada muito mais por fatores raciais, econômicos, políticos e morais do que por argumentos científicos. E algumas dessas razões são inconfessáveis. Tem a ver com o preconceito contra árabes, chineses, mexicanos e negros, usuários frequentes de maconha no começo do século 20. Deve muito aos interesses de indústrias poderosas dos anos 1920, que vendiam tecidos sintéticos e papel, e queriam se livrar de um concorrente: o cânhamo. Tem raízes também na bem-sucedida estratégia de dominação dos Estados unidos sobre o planeta. E, é claro, guarda relação com o moralismo judaico-cristão (e principalmente protestante-puritano), que não aceita a ideia do prazer sem merecimento – pelo mesmo motivo, no passado, condenou-se a masturbação. Não é fácil falar desse assunto – admito que levei um dia inteiro para compor o parágrafo acima. O tema é tão carregado de ideologia, e as pessoas têm convicções tão profundas sobre ele, que qualquer convite ao debate, qualquer insinuação de que estamos lidando mal com o problema já é interpretada como “apologia às drogas” –e, portanto, punível com cadeia. O fato é que, apesar da desinformação dominante, sabe-se muito sobre a maconha. Ela é cultivada há milênios, e centenas de pesquisas já foram feitas sobre o assunto. O que tentei fazer foi condensar nestas páginas o conhecimento que a humanidade reuniu sobre a droga nos milênios em que convive com ela.Por que é proibido? “O corpo esmagado da menina jazia espalhado na calçada um dia depois de mergulhar do quinto andar de um prédio de apartamentos em Chicago. Todos disseram que ela tinha se suicidado, mas, na verdade, foi homicídio. O assassino foi um narcótico conhecido na América como marijuana e na história como haxixe. usado na forma de cigarros, ele é uma novidade nos Estados unidos e é tão perigoso quanto uma cascavel.” Começa assim a matéria “Marijuana: assassina de jovens”, publicada em 1937 na revista American Magazine. A cena nunca aconteceu. O texto era assinado por um funcionário do governo chamado Harry Anslinger. Se a maconha, hoje, é ilegal em praticamente todo o mundo, não é exagero dizer que o maior responsável foi ele. Nas primeiras décadas do século 20, a maconha era liberada, embora muita gente a visse com maus olhos. Aqui no Brasil, maconha era “coisa de negro”, fumada nos terreiros de candomblé para facilitar a incorporação, e nos confins do País por agricultores depois do trabalho. Na Europa, ela era associada aos imigrantes árabes e indianos e aos incômodos intelectuais boêmios. Nos Estados unidos, quem fumava eram os cada vez mais numerosos mexicanos – meio milhão deles cruzaram o rio Grande entre 1915 e 1930 em busca de trabalho. Muitos não acharam. Ou seja, em boa parte do Ocidente, fumar maconha era relegado a classes marginalizadas e visto com antipatia pela classe média branca. Pouca gente sabia, entretanto, que a mesma planta que fornecia fumo às classes baixas tinha enorme importância econômica. Dezenas de remédios – de xaropes para tosse a pílulas para dormir – continham cannabis. Quase toda a produção de papel usava como matéria- prima a fibra do cânhamo, retirada do caule do pé de maconha. A indústria de tecidos também dependia da cannabis – o tecido de cânhamo era muito difundido, especialmente para fazer cordas, velas de barco, redes de pesca e outros produtos que exigissem um material muito resistente. A Ford estava desenvolvendo combustíveis e plásticos feitos a partir do óleo da semente de maconha. As plantações de cânhamo tomavam áreas imensas na Europa e nos Estados unidos. Em 1920, sob pressão de grupos religiosos protestantes, os Estados unidos decretaram a proibição da produção e da comercialização de bebidas alcoólicas. Era a Lei Seca, que durou até 1933. Foi aí que Henry Anslinger surgiu na vida pública americana – reprimindo o tráfico de rum que vinha das Bahamas. Foi aí também que a maconha entrou na vida de muita gente – e não só dos mexicanos. “A proibição do álcool foi o estopim para o boom da maconha”, afirma o historiador inglês richard Davenport-Hines, especialista na história dos narcóticos, em seu livro The Pursuit of Oblivion (“A busca do esquecimento”, ainda sem versão para o Brasil). “Na medida em que ficou mais difícil obter bebidas alcoólicas, e elas ficaram mais caras e piores, pequenos cafés que vendiam maconha começaram a proliferar”, escreveu. Anslinger foi promovido a chefe da Divisão de Controle Estrangeiro do Comitê de Proibição e sua tarefa era cuidar do contrabando de bebidas. Foi nessa época que ele percebeu o clima de antipatia contra a maconha que tomava a nação. Clima esse que só piorou com a quebra da Bolsa, em 1929, que afundou a nação numa recessão. No sul do país, corria o boato de que a droga dava força sobre-humana aos mexicanos, o que seria uma vantagem injusta na disputa pelos escassos empregos. A isso se somavam insinuações de que a droga induzia ao sexo promíscuo (muitos mexicanos talvez tivessem mais parceiros que um americano puritano médio, mas isso não tem nada a ver com a maconha) e ao crime (com a crise, a criminalidade aumentou entre os mexicanos pobres, mas a maconha é inocente disso). Baseados nesses boatos, vários Estados começaram a proibir a substância. Nessa época, a maconha virou a droga de escolha dos músicos de jazz, que afirmavam ficar mais criativos depois de fumar. Anslinger agarrou-se firme à bandeira proibicionista, batalhou para divulgar os mitos antimaconha e, em 1930, quando o governo, preocupado com a cocaína e o ópio, criou o FBN (Federal Bureau of Narcotics, um escritório nos moldes do FBI para lidar com drogas), ele articulou para chefiá-lo. De repente, de um cargo burocrático obscuro, Anslinger passou a ser o responsável pela política de drogas do país. E quanto mais substâncias fossem proibidas, mais poder ele teria. Mas é improvável que a cruzada fosse motivada apenas pela sede de poder. Outros interesses devem ter pesado. Anslinger era casado com a sobrinha de Andrew Mellon, dono da gigante petrolífera Gulf Oil e um dos principais investidores da igualmente gigante DuPont. “A DuPont foi uma das maiores responsáveis por orquestrar a destruição da indústria do cânhamo”, afirma o escritor Jack Herer, em seu livro The Emperor Wears No Clothes (“O imperador está nu”, ainda sem tradução). Nos anos 1920, a empresa estava desenvolvendo vários produtos a partir do petróleo: aditivos para combustíveis, plásticos, fibras sintéticas como o náilon e processos químicos para a fabricação de papel feito de madeira. Esses produtos tinham uma coisa em comum: disputavam o mercado com o cânhamo. Seria um empurrão considerável para a nascente indústria de sintéticos se as imensas lavouras de cannabis fossem destruídas, tirando a fibra do cânhamo e o óleo da semente do mercado. “A maconha foi proibida por interesses econômicos, especialmente para abrir o mercado das fibras naturais para o náilon”, afirma o jurista Wálter Maierovitch, especialista em tráfico de entorpecentes e exsecretário nacional antidrogas. Anslinger tinha um aliado poderoso na guerra contra a maconha: William randolph Hearst, dono de uma imensa rede de jornais. Hearst era a pessoa mais influente dos Estados unidos. Milionário, comandava suas empresas de um castelo monumental na Califórnia, onde recebia artistas de Hollywood para passear pelo zoológico particular ou dar braçadas na piscina coberta, adornada com estátuas gregas. Foi nele que Orson Welles se inspirou para criar o protagonista do filme Cidadão Kane. Hearst sabidamente odiava mexicanos. Parte desse ódio talvez se devesse ao fato de que, durante a revolução Mexicana de 1910, as tropas de Pancho Villa (que, aliás, faziam uso frequente de maconha) desapropriaram uma enorme propriedade sua. Sim, Hearst era dono de terras e as usava para plantar eucaliptos e outras árvores para produzir papel. Ou seja, ele também tinha interesse em que a maconha americana fosse destruída – levando com ela a indústria de papel de cânhamo. Hearst iniciou, nos anos 1930, uma intensa campanha contra a maconha. Seus jornais passaram a publicar seguidas matérias sobre a droga, às vezes afirmando que a maconha fazia os mexicanos estuprarem mulheres brancas, outras noticiando que 60% dos crimes eram cometidos sob efeito da droga (um número tirado sabe-se lá de onde). Nessa época, surgiu a história de que o fumo mata neurônios, um mito repetido até hoje. Foi Hearst que, se não inventou, ao menos popularizou o nome marijuana (ele queria uma palavra que soasse bem hispânica, para permitir a associação direta entre a droga e os mexicanos). Anslinger era presença constante nos jornais de Hearst, onde contava suas histórias de terror. A opinião pública ficou apavorada. Em 1937, Anslinger foi ao Congresso dizer que, sob o efeito da maconha, “algumas pessoas embarcam numa raiva delirante e cometem crimes violentos”. Os deputados votaram pela proibição do cultivo, da venda e do uso da cannabis, sem levar em conta as pesquisas que afirmavam que a substância era segura. Proibiu-se não apenas a droga, mas a planta. O homem simplesmente cassou o direito da espécie Cannabis sativa de existir. Anslinger também atuou internacionalmente. Criou uma rede de espiões e passou a frequentar as reuniões da Liga das Nações, antecessora da ONu, propondo tratados cada vez mais duros para reprimir o tráfico internacional. Também começou a encontrar líderes de vários países e a levar a eles os mesmos argumentosaterrorizantes que funcionaram com os americanos. Não foi difícil convencer os governos – já na década de 1920, o Brasil adotava leis federais antimaconha. A Europa também embarcou na onda proibicionista. “A proibição das drogas serve aos governos porque é uma forma de controle social das minorias”, diz o cientista político Thiago rodrigues, pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos. Funciona assim: maconha é coisa de mexicano, mexicano é uma classe incômoda. “Como não é possível proibir alguém de ser mexicano, proíbe-se algo que seja típico dessa etnia”, diz Thiago. Assim, é possível manter sob controle todos os mexicanos – eles estarão sempre ameaçados de cadeia. Por isso, a proibição da maconha fez tanto sucesso no mundo. O governo brasileiro achou ótimo mais esse instrumento para manter os negros sob controle. Os europeus também adoraram poder enquadrar seus imigrantes. A proibição foi virando uma forma de controle internacional por parte dos Estados unidos, especialmente depois de 1961, quando uma convenção da ONU determinou que as drogas são ruins para a saúde e o bem-estar da humanidade – e, portanto, eram necessárias ações coordenadas e universais para reprimir seu uso. “Isso abriu espaço para intervenções militares americanas”, diz Maierovitch. “Virou um pretexto oportuno para que os americanos possam entrar em outros países e exercer os seus interesses econômicos.” Estava erguida uma estrutura mundial interessada em manter as drogas na ilegalidade, a maconha entre elas. um ano depois, em 1962, o presidente John Kennedy demitiu Anslinger – depois de nada menos que 32 anos à frente do FBN. um grupo formado para analisar os efeitos da droga concluiu que os riscos da maconha estavam sendo exagerados e que a tese de que ela levava a drogas mais pesadas era furada. Mas não veio a descriminalização. Pelo contrário. O presidente richard Nixon endureceu mais a lei, declarou “guerra às drogas” e criou o DEA (em português, “Escritório de Coação das Drogas”), um órgão ainda mais poderoso que o FBN, porque, além de definir políticas, tem poder de polícia. Maconha faz mal? Taí uma pergunta que vem sendo feita faz tempo. Depois de mais de um século de pesquisas, a resposta mais honesta é: faz, mas muito pouco e só para casos extremos. O uso moderado não faz mal. A preocupação da ciência com esse assunto começou em 1894, quando a Índia fazia parte do Império Britânico. Havia, então, a desconfiança de que o bhang, uma bebida à base de maconha muito comum na Índia, causava demência. Grupos religiosos britânicos reivindicavam sua proibição. Formou-se a Comissão Indiana de Drogas da Cannabis, que passou dois anos investigando o tema. O relatório final desaconselhou a proibição: “O bhang é quase sempre inofensivo quando usado com moderação e, em alguns casos, é benéfico. O abuso do bhang é menos prejudicial que o abuso do álcool.” Em 1944, um dos mais populares prefeitos de Nova York, Fiorello La Guardia, encomendou outra pesquisa. Em meio à histeria antimaconha de Anslinger, La Guardia resolveu conferir quais os reais riscos da tal droga assassina. Os cientistas escolhidos por ele fizeram testes com presidiários (algo comum na época) e concluíram: “O uso prolongado da droga não leva à degeneração física, mental ou moral”. O trabalho passou despercebido no meio da barulheira proibicionista de Anslinger. A partir dos anos 1960, várias pesquisas parecidas foram encomendadas por outros governos. relatórios produzidos na Inglaterra, no Canadá e nos Estados unidos aconselharam um afrouxamento nas leis. Nenhuma dessas pesquisas foi suficiente para forçar uma mudança. Mas a experiência mais reveladora sobre a maconha e suas consequências foi realizada fora do laboratório. Em 1976, a Holanda decidiu parar de prender usuários de maconha desde que eles comprassem a droga em cafés autorizados. resultado: o índice de usuários continua comparável aos de outros países da Europa. O de jovens dependentes de heroína caiu – estima-se que, ao tirar a maconha da mão dos traficantes, os holandeses separaram essa droga das mais pesadas e, assim, dificultaram o acesso a elas. Nos últimos anos, os possíveis males da maconha foram cuidadosamente escrutinados – às vezes por pesquisadores competentes, às vezes por gente mais interessada em convencer os outros da sua opinião. Veja a seguir um resumo do que se sabe: Câncer Não se provou nenhuma relação direta entre fumar maconha e câncer de pulmão, traqueia, boca e outros associados ao cigarro. Isso não quer dizer que não haja. Por muito tempo, os riscos do cigarro foram negligenciados, e só nas últimas duas décadas ficou claro que havia uma bomba-relógio armada – porque os danos só se manifestam depois de décadas de uso contínuo. Há o temor de que uma bomba semelhante esteja para explodir no caso da maconha, cujo uso se popularizou a partir dos anos 1960. O que se sabe é que o cigarro de maconha tem praticamente a mesma composição de um cigarro comum – a única diferença significativa é o princípio ativo. No cigarro é a nicotina, na maconha o tetrahidrocanabinol, ou THC. Também é verdade que o fumante de maconha tem comportamentos mais arriscados que o de cigarro: traga mais profundamente, não usa filtro e segura a fumaça por mais tempo no pulmão (o que, aliás, segundo os cientistas, não aumenta os efeitos da droga). Em compensação, boa parte dos maconheiros fuma muito menos e para ou reduz o consumo depois dos 30 anos (parar cedo é sabidamente uma forma de diminuir muito o risco de câncer). Em resumo: o usuário eventual de maconha, que é o mais comum, não precisa se preocupar com um aumento grande do risco de câncer. Quem fuma mais de um baseado por dia há mais de 15 anos deve pensar em parar. Dependência Algo entre 6% e 12% dos usuários, dependendo da pesquisa, desenvolve um uso compulsivo da maconha (menos que a metade das taxas para álcool e tabaco). A questão é: será que a maconha é a causa da dependência ou apenas uma válvula de escape? “Dependência de maconha não é problema da substância, mas da pessoa”, afirma o psiquiatra Dartiu Xavier, coordenador do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Escola Paulista de Medicina. Segundo Dartiu, há um perfil claro do dependente de maconha: em geral, ele é jovem, quase sempre ansioso e eventualmente depressivo. Pessoas que não se encaixam nisso não desenvolvem o vício. “E as que se encaixam podem tanto ficar dependentes de maconha quanto de sexo, de jogo, de internet”, diz. Muitos especialistas apontam para o fato de que a maconha está ficando mais perigosa – na medida em que fica mais potente. Ao longo dos últimos 40 anos, foi feito um melhoramento genético, cruzando plantas com alto teor de THC. Surgiram variedades como o skunk. No último ano, foram apreendidos carregamentos de maconha alterada geneticamente no Leste Europeu – a engenharia genética é usada para aumentar a potência, o que poderia aumentar o potencial de dependência. Segundo o farmacólogo Leslie Iversen, autor do ótimo The Science of Marijuana (“A ciência da maconha”, sem tradução para o português) e consultor para esse tema da Câmara dos Lordes (o Senado inglês), esses temores são exagerados e o aumento da concentração de THC não foi tão grande assim. Para além dessa discussão, o fato é que, para quem é dependente, maconha faz muito mal. Isso é especialmente verdade para crianças e adolescentes. “O sujeito com 15 anos não está com a personalidade formada. O uso exagerado de maconha pode ser muito danoso a ele”, diz Dartiu. O maior risco para adolescentes que fumam maconha é a síndrome amotivacional, nome que se dá à completa perda de interesse que a droga causa em algumas pessoas. A síndrome amotivacional é muito mais frequente em jovens, e realmente atrapalha a vida – é quase certeza de bomba na escola e de crise na família. Danos cerebrais “Maconha mata neurônios”. Essa frase, repetida há décadas, não passa de mito. Bilhões de dólares foram investidos para comprovar que o THC destrói tecido cerebral–às
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