Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
A Psicologia Social da Libertação, assim como outras formas de resposta latino- americanas à necessidade de fazer uma psicologia que atenda aos interesses e problemas de nossas nações, foi produzida a partir da crítica. Crítica das desigualdades abismais na distribuição de recursos socioeconômicos; crítica às estruturas sociais e às formas de governo que as sustentam; crítica às concepções de mundo e de seres humanos predominantes em grande parte da intelectualidade latino-americana; crítica ao modo de fazer Psicologia. A relação entre os dois conceitos tem sido tão estreita, que é possível dizer que não há libertação sem crítica, nem crítica que não produza alguma forma de libertação ou de transformação das circunstâncias criticadas ou da pessoa que critica. Então, ser crítico é questionar algum modo de ser ou de estar (na ciência, na sociedade em geral, na vida), que se pretende essencial e imutável. E esse não seguir a via, esse criar atalhos ou abrir brechas, traduz-se na chamada psicologia social crítica em: • uma forma sempre diferente de olhar a prática psicológica. Assim, na mesma medida em que a Psicologia muda quando se produzem novos conhecimentos e novos modos de adquirir e interpretar os fenômenos psicossociais, também muda a crítica; • uma visão holística e comprometida da Psicologia, que relaciona sua prática, sua teoria e os diversos atores sociais envolvidos nela e por ela (indivíduos, organizações, instituições em suas diversas relações); • um questionamento continuo sobre o que fazemos como psicólogos, questionando o que fazemos, por que o fazemos, como o fazemos, com quem e para quem fazemos; • uma avaliação das teorias e práticas da Psicologia em termos de como elas mantêm situações injustas e insatisfatórias e como afetam o bem- estar de indivíduos e de grupos vulneráveis e oprimidos (Prilleltensky & Fox, 1997, p. 3); • um instrumento teórico-metodológico para transformar situações psicossociais de injustiça e desigualdade, a ação e os atores psicológicos que nelas intervêm e a psicologia mesma da qual provêm; • reconhecimento de que o conhecimento não é um reflexo objetivo da realidade. Todo saber está marcado socio historicamente e a ciência, como parte da sabedoria humana, também é uma construção social (Nightingale & Neilands, 1997, p. 75). Psicologia Social Crítica não é: • um ramo específico da Psicologia. Com efeito, quando se fala dessa tendência não se está fazendo referência a um ramo da Psicologia, mas a uma corrente que pode ter manifestações em qualquer área especifica de estudo e aplicação; • não é um cânone de excelência ou correção para emitir juízos de valor. O que os psicólogos críticos fazem não é substituir alguns cânones por outros, algumas regras por outras; mas, sim, submeter ao estudo aquilo que existe para encontrar suas causas efeitos, suas relações com os sistemas de autoridade científicas e e sociais em TEMA 1 Crítica e Libertação na América Latina geral e as relações de produção que conduzem a eles; • não é um movimento monolítico, mas uma variedade de enfoques. Em razão do que se afirmou no ponto anterior, a crítica pode vir de muitos campos, pode ser feita de múltiplas perspectivas; • não é um adjetivo, é um substantivo em ação. Isso quer dizer que não é um mero qualificativo para dar prestigio ou autoridade a algum postulado. Elimina- se do campo da Psicologia Social Critica todos aqueles estudos qualificados de "críticos", que somente repetem ideias e mandamentos de teorias psicológicas ou de doutrinas sociopolíticas de qualquer tendência, sem ter feito uma análise. Crítica não é catecismo de qualquer denominação; • não é um dizer, um enunciado vazio, mas baseia-se práxis comprometida. Não serão críticos, portanto, a repetição de consignas ou o apoio acrítico da crítica feita por algum mestre, guru ou celebridade no campo da Psicologia, cujos ditames ficam isentos de exame ou refutação somente pelo fato de terem sido criadores de alguma linha de conhecimento; • não se trata de descartar ou jogar fora tudo o que foi feito em Psicologia, pois, como já se afirmou, não é a substituição de uma teoria ou de um método por outro, mas, sim, de questionar as origens de um modo de fazer e de pensar o mundo em que se vive, a fim de produzir uma transformação do mundo que produza relações equilibradas entre as pessoas; • não é, e nem será, a forma dominante de pensar, porque questiona justamente as formas estabelecidas que não respondem às necessidades e transformações da sociedade e se transformar em formas de exercer o poder. Uma maneira de apresentar a Psicologia Social Crítica latino-americana é destacar quais são os aspectos que constituíram sua preocupação e para os quais dirigiu suas ações, sendo que estas são focalizadas de diferentes ramos da Psicologia e contribuem para conquistas ou reflexões aplicadas aos aspectos concretos de nossas sociedades. 1. Quais são as origens psicossociais das situações de desigualdade e de opressão (independente do que podem dizer as teorias e correntes estabelecidas)? Essa pergunta - que cremos ser de caráter universal e não somente latino- americano, já que está presente onde há diferenças sociais, sem distinção de regiões, religiões, etnias ou sistemas políticos - recebeu as mais variadas respostas, se bem que quem as dá acredita, frequentemente, ter dado respostas únicas e definitivas. Desde as relações entre os modos de produção e a propriedade dos meios de produção até a pobreza; desde as crenças religiosas e as explicações sobre elas (por exemplo: a ética de protestantismo ou a busca do Nirvana budista) a crítica social, vez ou outra, leva a questionar a desigualdade e a opressão e mostra a necessidade de encontrar uma causa responsável que, atacada devidamente, conduz a sociedade para formas mais equilibradas de existência. Mais equilibradas, porque o que parece haver ensinado a história é que não existe a sociedade ideal. 2. Como se produzem as mudanças sociais e psicossociais? Como se produzem as mudanças sociais e psicossociais? Essa pergunta deriva da anterior e corresponde à busca do saber necessário para o como fazer. A mudança social é o objetivo fundamental dos movimentos transformadores nas ciências sociais latino-americanas. É a meta par excellence da Psicologia Social Comunitária e da Psicologia da Libertação. Também da Educação popular, da sociologia crítica e, com maior ou menor convicção, de muitos outros programas, projetos e movimentos, tanto latino-americanos, quanto de outras partes do mundo. 3. Quais são os significados que dão os diferentes atores sociais imersos em um mesmo problema social a esse problema e aos seus diferentes elementos? Aqui a pergunta se faz mais concreta e, dentro do paradigma gerado na América Latina, incorpora as pessoas para as quais a transformação social deveria ser a resposta aos seus problemas. Nesse ponto, há um giro ontológico e epistemológico fundamental. Ninguém pode ter a medida exata do desejo do outro. Portanto, é necessário incorporar esse outro na ação transformadora, na convicção de que a resposta mais precisa (que tampouco é exata, porque todo desejo muda) é a que será dada pelas pessoas que sofrem a situação a transformar. 4. Como se manifesta o exercício do poder assimétrico no que estudamos, nas situações nas quais participamos- pesquisamos e em nossa própria prática? Essa é uma pergunta profundamente critica, posto que ela coloca o olhar inquisitivo sobre nós mesmos. Na verdade, muitas vezes, os pesquisadores ou os analistas comportam-se como se estivessem mais além do problema e mais próximos da solução e comose somente a boa intenção ou os belos objetivos lhes dessem um poder especial. Ou como se somente seu saber pudesse decidir. A tal pergunta, as correntes ligadas ao movimento crítico Psicologia Social Comunitária, Psicologia Social da Libertação, Psicologia Social da Política) latino-americano responderam criando ou transformando métodos participativos, que distribuem o poder entre agentes externos e internos aos grupos ou comunidades com os quais se trabalha. 5. De que forma transformar o grupo, a comunidade, a sociedade com os quais trabalhamos e nos quais se produzem os problemas sobre os quais queremos influir? Essa pergunta dirige-se ao como fazer as transformações que consideramos necessárias. A resposta latino-americana, implementada pelas correntes antes indicadas, tem sido a de incorporar as pessoas interessadas. A participação social com voz, voto e veto. Por aquilo que, parafraseando Freire, poderíamos resumir em que “ninguém transforma ninguém e ninguém se transforma sozinho". 6. Por que as pessoas que sofrem injustiça e opressão não atuam mais ativamente para transformar a sua situação? Trata-se de uma pergunta criticamente difícil de responder e para a qual, até o momento, as respostas são especificas (e isso parece correto), pois as condições nas quais se vive podem variar radicalmente de um lugar a outro, sem que por isso deixe de ser peremptória a necessidade de mudança. Todavia, com base nas respostas que foram sendo produzidas, a Psicologia Social foi construindo um acervo interessante, que vai de ação da ideologia e da alienação até o medo e a desesperança aprendida, passando por pautas culturais. 7. Como se manifestam as formas de resistência às situações de desigualdade? Aqui a posição crítica descobriu que, se ninguém é totalmente ativo, tampouco é totalmente passivo; que por trás da indiferença pode existir a decisão consciente de não fazer nada como uma forma de oposição. Isso é apatia não somente em relação à transformação, mas também em relação ao status quo negativo. E que também a resistência pode tomar múltiplas formas. Ao se analisar as perguntas colocadas nas duas colunas do Quadro 1 será notado que coincidem em vários aspectos: 1. A necessidade de que os psicólogos estejam conscientes de que seu trabalho não escapa à influência de seus interesses pessoais, políticos ou de qualquer outra origem. 2. A preocupação pelas consequências sociais do trabalho psicológico. 3. O interesse por transformações sociais que modifiquem as circunstâncias imperantes na sociedade. Creio que ambos os grupos de interrogações se complementam e são úteis na tarefa analítica, pois o valor da crítica reside no que nos capacita para: ver as alternativas, as causas e os efeitos; reconhecer a diversidade dos atores sociais que intervêm em uma. situação dada e a pluralidade de papéis que desempenham, assim como sua capacidade para produzir transformações nessa situação; e entender a relação entre o fenômeno estudado e seu contexto, tanto cultural como histórico e social. No Quadro 2 pode-se ver uma síntese de ideias críticas formuladas na Psicologia Social latino-americana, entre 1979 e 2003. Na América Latina, surgiu um movimento que dirigiu seu olhar para as condições de vida dos países que configuram nossa parte do continente e que buscou responder aos seus problemas. A inclusão das comunidades e, com elas, da cultura popular, a visão crítica e a orientação libertadora surgem do mesmo tronco psicossocial, com poucos anos de diferença entre a primeira a surgir - a Psicologia Social Comunitária - e a última a aparecer - a Psicologia Social da Libertação. Assim, entre meados dos anos 70 e meados dos anos 80, já havia uma Psicologia Social Comunitária latino-americana, um movimento de Psicologia Social Crítica que marcava diversas formas do fazer psicológico e, entre 1986 e 1989, a ideia de uma Psicologia Social da Libertação já havia sido lançada e suas premissas já tinham sido expostas por Ignacio Martín-Baró (1986; 1989/1990). A ideia de libertação, na Psicologia, está unida, em suas bases, à perspectiva crítica. Libertar é uma ação que parte de uma aguda critica das sociedades latino-americanas e se, aos escritos pioneiros de Martin-Baró e a outros produzidos durante o desenvolvimento dessa corrente psicológica dos anos 90, fizessem as perguntas contidas no Quadro 1, creio que encontraríamos respostas que delineariam claramente o perfil crítico da Psicologia Social da Libertação. Porém, além disso, o aspecto crítico da libertação também marcou a crítica. Assim, fazer critica com espírito libertador significa: • Não somente boas intenções e desejos, pois não basta fazer uma declaração de valores e princípios que não é correspondida com uma práxis. E, portanto, mais um fazer que um dizer. Não se trata somente de discursos. Se algo aborrecia o criador da ideia de Psicologia da Libertação, eram manifestações sem sentido, muitas vezes, produto do oportunismo acadêmico. E, na verdade, algo que tem sido denunciado pela crítica em todas suas manifestações são os postulados que não correspondem a nenhuma forma de manifestação prática que liberta os grupos excluídos, oprimidos ou, de alguma maneira, necessitados. • Uma visão da Psicologia que reconhece a presença do Outro e de sua relação com Nós. Portanto, a crítica libertadora está sempre a serviço do outro e de sua inclusão. • E como corolário do anterior, é um diálogo continuo com as pessoas e grupos com os quais trabalhamos e com nós mesmos como psicólogos e como pessoas. Um continuo revisar a quem servimos e para que servimos. Martin-Baró (1986) sugeria que uma das condições básicas de uma Psicologia da Libertação era descentrar sua atenção de seu status cientifico. Por um lado, a Psicologia deve, e em muitos aspectos faz isso, manter uma vigilância crítica sobre seu fazer e seu dizer para atentar às manifestações de poder opressor que podem ser geradas em seu próprio seio. Deve cuidar das interpretações e das práticas e teorias que reduzem categorias de pessoas a objetos e que se ajustam aos desejos e às tendências que mantêm a desigualdade social. Por outro lado, se analisamos os três pontos antes enumerados, vemos que sublinham como a Psicologia, ao invés de ser um discurso vazio - cheio de termos e de pseudoteorias que soam como se dissessem algo, mas que na verdade somente repetem frases complacentes temperadas de conceitos na moda deve ser uma práxis que diz e ajuda a transformar aqueles com quem se executa, que diz ao conjunto das ciências às quais enriquece e que diz ao mundo. Porque quando se trabalha com as pessoas com base em situações problemáticas concretas, se diz ao mundo, já que em cada ser humano e em cada grupo humano está refletida toda a humanidade. Nesse sentido, a psicologia, ao se centrar em pessoas necessitadas, descentra-se de si mesma, não para converter-se em um ativismo irreflexivo, mas para ser um fazer gerador de conhecimentos e não simplesmente uma prática moduladora do que se diz em alguma parte. Esse aspecto crítico inerente à Psicologia da Libertação outorga-lhe uma característica que pode parecer dura, mas que é própria de seu objeto de estudo e de seu caráter humano: trata-se do fato de que a libertação nunca pode ser perfeitamente conhecida ou obtida. Quiçá somente nos produz um instante de reconhecimento, um relâmpago que se faz realidade no momento de "mudança" em si mesmo (Rappaport & Stewart, 1997, p. 306). E isso é assim porque é uma tarefa sem fira, que corno a tarefa de Sísifo, deve ser reiniciada a cada dia. Nenhuma independência, nenhuma libertação é global e quandoé alcançada em uma parte, a opressão mostra-se ou reaparece em outra. Mesmo em situações nas quais se supõe que há desenvolvimento ou independência (não são sinônimos), a necessidade de libertação está presente. O processo de libertação é uma constante batalha e a crítica é um dos meios para conquistá-la. MONTERO, Maritza. Ser, Fazer e Aparecer: Crítica e libertação na América Latina. In: GUZZO, Raquel S. L.; JR., Fernando Lacerda. Psicologia Social para a América Latina: O resgate da Psicologia da Libertação. 2. ed. rev. Campinas: Alínea, 2011. cap. 4, p. 87-100.
Compartilhar