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Antropologia, identidade e diversidade E-book 1 César Niemietz Neste E-book: Introdução ���������������������������������������������������� 3 Sobre a noção de identidade cultural 5 Questões clássicas de Antropologia ��� 7 Os primórdios da perspectiva antropológica ������� 9 A Antropologia moderna e seus objetos de estudos �����������������������������������������������������������������13 As culturas e as mudanças de perspectivas ������ 20 Alteridade, identidade coletiva, mitos e ritos ������ 21 A identidade do “eu” ���������������������������������������������29 Sobre o conceito de indivíduo e individualismo � 32 Considerações finais������������������������������� 35 Síntese ���������������������������������������������������������36 2 E-book 1 E-book 1 INTRODUÇÃO As perguntas a seguir talvez pareçam um tanto confusas para iniciarmos nossa discussão sobre Antropologia, identidade e diversidade, mas vale o esforço de abstração: as noções de eu e de outro são naturais ou são formuladas de acordo com o con- texto cultural em que são enunciadas? As categorias eu e outro estão presentes de maneira semelhante em todas as sociedades? Todos os grupos huma- nos percebem os outros e a si mesmos de maneira parecida? Ou será que essas concepções são dife- rentemente compartilhadas por grupos igualmente distintos? Com essas questões em nosso horizonte, entrare- mos em um terreno amplo e ao mesmo tempo espe- cífico. Amplo, pois trata da complexidade dos agru- pamentos humanos, ou seja, algo necessariamente múltiplo, mas também específico, uma vez que essas características contribuem para formular, como diria o sociólogo e antropólogo Émile Durkheim, as nos- sas maneiras de agir, pensar e sentir o mundo ao nosso redor� Essa aparente ambiguidade está pre- sente em um dos principais eixos sobre o qual o pre- sente material irá se debruçar, a saber: a identidade� A origem da palavra antropologia indica de saída a dimensão humana como central para a análise que essa disciplina promove, uma vez que a junção 3 entre os termos anthropos e logos resulta, de manei- ra literal, em estudo do homem. Todavia, devemos pensar qual é a característica específica desse tipo de estudo sistemático realizado pela Antropologia� A Biologia e a Psicologia não são também discipli- nas que estudam o homem? Então em que difere a Antropologia dos demais modos de compreensão do ser humano? A resposta a essas questões não é simples, pois os próprios problemas não são, mas, para os nos- sos propósitos, tomaremos a especificidade da Antropologia como relacionada à dimensão da cultura e da sociedade� Ou seja, trataremos aqui dos cruzamentos entre a Antropologia cultural e a Antropologia social, deixando provisoriamente de lado as questões que envolvem as características biológicas dos grupos humanos� Podcast 1 4 https://famonline.instructure.com/files/86483/download?download_frd=1 SOBRE A NOÇÃO DE IDENTIDADE CULTURAL Ao abordarmos a noção de identidade pela perspec- tiva da cultura e da sociedade, direcionaremos nosso interesse para o espaço de construção simbólica da identidade, sendo esse o problema característico que nos diferenciará dos estudos biológicos e psi- cológicos acerca desse mesmo assunto� Nesse sentido, tal como defende o antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira (1976), podemos per- ceber que a noção de identidade comporta ao menos duas dimensões fundamentais: pessoal (ou individu- al) e social (ou coletiva)� Embora essas duas formas de identidade sejam difíceis de ser discernidas, uma vez que uma influencia a outra, em menor ou maior grau� Costuma-se atribuir à psicologia a função de exame da perspectiva individual e psíquica, enquanto a dimensão social é investigada pelas ciências so- ciais, destacando-se a sociologia e a antropologia� Quanto à noção de indivíduo, trata-se de noção es- pinhosa para a antropologia, pois exige o constante esforço de analisar essa categoria de acordo com o contexto em que é apresentada� Nas palavras do antropólogo Gilberto Velho: 5 Ora, a antropologia, justamente por ter, por definição, uma perspectiva comparativista, é o ramo do conhecimento que, ao defrontar- -se com sociedades e culturas díspares e diferenciadas, é obrigada a relativizar o indi- víduo, tal como entendido e percebido na so- ciedade e na cultura nas quais a psiquiatria, a psicologia e a psicanálise se desenvolve- ram. Esse indivíduo universal, que varia seu comportamento em função de modelos dife- rentes apresentados por culturas específicas, é que está sendo questionado. Na realidade, parece que se corre o risco de confundir o indivíduo biológico, membro de uma espécie, com a noção de indivíduo, produto particular de uma cultura que, esquematicamente, cha- marei de ocidental-moderna-contemporânea (VELHO, 2012, p.98). Ao leitor iniciante dos textos antropológicos, as questões acima apresentadas correm o risco de soar um tanto quanto esquisitas, pois aparentemen- te estão distantes das nossas reflexões cotidianas� Todavia, ao fim desse nosso percurso, será possível afirmar que não estão, pois essas indagações são fundamentais para a compreensão do mundo ao nosso redor� 6 QUESTÕES CLÁSSICAS DE ANTROPOLOGIA O termo identidade traz consigo diversos sentidos que, por sua vez, são adaptáveis aos diferentes con- textos em que são apresentados� Em termos mais usuais, podemos compreender seu sentido geral como algo que possui uma característica distinguí- vel, ou que estabelece uma relação de semelhança� Porém, essa definição se encontra no registro do senso comum, o que exige de nós uma elaboração teórica para definir de maneira mais precisa o termo, enquadrando seu sentido nos diferentes contextos históricos a que esteve submetido� Podemos afirmar que, de certa maneira, o termo identidade está relacionado a processos de iden- tificação entre os indivíduos em seus espaços de socialização� Por sua vez, tais processos, como ob- servaremos nas seções a seguir, estão relacionados à imagem que os indivíduos fazem de si mesmos (autoconsciência) e com a imagem que fazem tam- bém dos outros indivíduos� Esse duplo movimento de se compreender e compreender os outros traz consigo uma série de questões que são objetos de análise da Antropologia� Quando ampliamos nosso olhar para as identidades dos grupos, esbarramos no conceito de etnicidade� 7 Tal conceito se insere como uma das principais no- ções sobre as quais a antropologia passou a refletir ao longo do século 20� Para nosso objetivo, neste material de estudo, podemos compreender a etni- cidade como uma noção que define o conjunto de aspectos culturais e/ou biológicos semelhantes em relação a grupos humanos específicos. Os traços aos quais o termo se refere não são limitados ex- clusivamente pela Biologia, de modo que a noção de etnia difere significativamente da ideia de raça. Difere também do conceito de nação, pois deve-se levar em consideração o fato de que existem na- ções que são compostas por identidades étnicas distintas, sendo estas anteriores ao advento dos Estados modernos� A Antropologia moderna se distanciou significativa- mente das perspectivas evolucionistas, fundamen- tadas sobre o conhecimento biológico das espécies vivas, uma vez que os autores culturalistas verifi- caram que é impossível indicar uma cultura única que serve como referencial de evolução para todos os agrupamentos sociais, conforme analisamos anteriormente� Desse modo, o interesse nos grupos étnicos pas- sou a fundamentar a experiência antropológica, ampliando o conhecimento humano a respeito da diversidade cultural existente� 8 Os primórdios da perspectiva antropológica Embora a Antropologia moderna tenha sido desen- volvida sobretudo na virada do século 19 para o sé- culo 20, os europeus contaram com dois importantes precursores: Michel de Montaigne (1533-1592) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778)� Diz-se sobre Montaigne que teria sido um provoca- dorde seu tempo – século 16 – e do meio social em que viveu – Europa –, tecendo comentários áspe- ros em ensaios que geralmente causavam grandes polêmicas devido às suas duras críticas� É esse o tom presente, por exemplo, em um comentário seu a respeito das notícias que os franceses receberam sobre a existência dos índios no litoral brasileiro, que, segundo esses relatos, seriam adeptos da an- tropofagia, prática que consistia no consumo ritual da carne dos inimigos guerreiros, com o intuito de incorporar simbolicamente suas virtudes: Penso que há mais barbárie em comer um homem vivo do que em comê-lo morto, em dilacerar por tormentos e suplícios um corpo ainda cheio de sensações, fazê-lo assar pou- co a pouco, fazê-lo ser mordido e esmagado pelos cães e pelos porcos (como não apenas lemos mas vimos de fresca memória, não entre inimigos antigos, mas entre vizinhos e compatriotas, e, o que é pior, a pretexto de piedade e religião) do que em assá-lo e 9 comê-lo depois que está morto [...]. Portanto, podemos muito bem chamá-los de bárbaros com relação às regras da razão, mas não com relação a nós, que os ultrapassamos em toda espécie de barbárie (MONTAIGNE, 2010, p.140). Essas questões levantadas por Montaigne datam do longínquo século 16� De lá para cá, tanto os índios descentes dos Tupinambá quanto os europeus pas- saram a atenuar diversos de seus costumes, uma vez que, como estudaremos, mitos quanto os ritos são constantemente reformulados na dinâmica per- manente de construção e reconstrução das culturas� São antigas constatações, mas deixaram uma mar- ca: a ideia de que parece ser mais fácil apontar as culturas alheias como inferiores do que perceber que cada cultura possui características particulares que são irredutíveis às lógicas umas das outras – no caso, utilizava-se pejorativamente o termo bárbaro para tudo aquilo que não fosse apresentado à ima- gem que o europeu tinha de si mesmo� 10 Figura 1: Tapuia (1641), pintado pelo holandês Albert Eckhout, um dos principais responsáveis pela criação do imaginário sobre os in- dígenas brasileiros até a chegada da família real portuguesa. Fonte: https://samlinger.natmus.dk/ES/asset/25615 11 https://samlinger.natmus.dk/ES/asset/25615 Dois séculos adiante, e em uma forma distinta de se considerar os “selvagens”, o filósofo iluminista Jean-Jacques Rousseau também se esforçou para deixar de lado seus preconceitos europeus ao refletir sobre os “outros”� Em sua obra Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, publicada em 1755, Rousseau defendeu a necessidade de se realizar uma história natural, moral e política dos diferentes grupos humanos distribuídos ao redor do mundo, de modo a melhor compreender o próprio horizonte cultural dos euro- peus do seu tempo� A respeito do filósofo iluminista, é considerado como o pai das ciências do homem por um importante antropólogo francês (LÉVI-STRAUSS, [1973], 2018), uma vez que Rousseau teria apresentado a perspec- tiva de investigação humanística das diferentes cul- turas� Desse modo, a perspectiva de Rousseau teria aberto caminho para o desenvolvimento posterior da etnografia e da etnologia, sendo a primeira o traba- lho de registro e descrição, por parte do antropólogo, dos aspectos culturais de cada grupo estudado e a segunda o estudo sistemático das diferentes formas culturais e históricas estudadas pelos antropólogos� 12 A Antropologia moderna e seus objetos de estudos Pode-se afirmar que o surgimento da Antropologia esteve relacionado a certa perspectiva estreita atri- buída aos chamados “evolucionistas”, identificados dessa forma pois aderiam à teoria da evolução de Charles Darwin (1809–1882) para a compreensão dos fenômenos culturais� Para eles, havia apenas uma única cultura considerada superior, de modo que as demais seriam derivações ainda não desen- volvidas� Trata-se de uma visão associada ao et- nocentrismo, ou seja, à concepção que define uma única cultura como central e as demais, por con- seguinte, como marginais em relação a ela� Essa visão etnocêntrica esteve associada inicialmente aos antropólogos europeus, que viam em sua própria cultura indícios de superioridade sobre as demais� Podcast 2 Como resposta ao evolucionismo, estabeleceu-se a moderna Antropologia, fundamentada em uma vi- são abrangente e relativista das posições ocupadas pelas diferentes culturas humanas� A esta nova ma- neira de se considerar os grupos humanos, deu-se inicialmente o nome de culturalismo, uma vez que a pluralidade passou a prevalecer sobre a divisão entre superioridade e inferioridade das culturas� Mas, antes de comentarmos a respeito desses autores, como podemos definir cultura? 13 https://famonline.instructure.com/files/86484/download?download_frd=1 A noção de cultura pode ser compreendida por mais de uma perspectiva� De um lado, no sentido amplo, temos cultura como um todo que engloba tradições, língua, regras, comportamentos e formas de socia- bilidade específicas de um determinado grupo. A origem do termo cultura advém da palavra latina colere, que significava uma série de processos rela- cionados aos verbos habitar, cultivar e proteger, entre outros� Com o passar do tempo, o termo foi adqui- rindo significados em razão dos contextos históricos em que foi considerado� Todavia, se considerarmos a maneira como utilizamos o termo nos dias de hoje, podemos considerar suas origens modernas du- rante o século 19� Trata-se de considerar não mais o termo no singular, mas sim compreender cultura como expressão plural� Segundo Raymond Williams: As culturas especificas e variáveis de dife- rentes nações e períodos, porém também as culturas específicas e variáveis dos grupos sociais e econômicos contidos dentro de uma mesma nação. O movimento român- tico desenvolveu amplamente este sentido como uma alternativa à ‘civilização’ ortodoxa e dominante. Em um primeiro momento se utilizou para ressaltar as culturas nacionais e tradicionais [...]. Posteriormente, utilizou- -se o termo para atacar o que se via como o caráter ‘mecânico’ da nova civilização então emergente: tanto por seu raciona- lismo abstrato como pela ‘desumanidade’ 14 do desenvolvimento industrial do momento (WILLIAMS, 2003, p.90, tradução própria). Em seus usos mais específicos, a cultura designa uma série de processos estudados com atenção, que foram se tornando cada vez mais importantes para se compreender as características de pensa- mentos, ações e sentimentos que diferenciam os grupos humanos� Nesse sentido, gradualmente, deixa-se de defender-se a existência de um mode- lo cultural universal que define a espécie humana, bem como a noção de que existem culturas puras ou superiores, uma vez que se tem constatado, cada vez mais, a pluralidade imensa de formas de se vi- ver que não podem ser reduzidas a modelos sim- plistas que separam culturas em desenvolvidas e subdesenvolvidas� A partir do constante exercício de reflexividade so- bre a ideia de cultura, feita pelos cientistas sociais, pode-se verificar a complexa relação existente entre os objetos e tecnologias produzidos pelos grupos humanos – cultura material – e a produção simbó- lica desses mesmos grupos – cultura imaterial –, pertinente às suas demandas específicas. Percebe- se, assim, o equívoco de se medir ou de se comparar as culturas de acordo com um parâmetro único de desenvolvimento� 15 Enquanto domínio de análise dentro das ciências sociais, a Antropologia moderna, preocupada com o domínio cultural, desenvolveu métodos próprios de investigação dos grupos humanos, sendo Franz Boas (1858-1942) e Bronislaw Malinowski (1884- 1942) dois de seus principais iniciadores� A partir das obras desses dois autores, os grupos passaram a ser cada vez mais analisados, sobretudo em fun- ção de seus contextos e em seus próprios termos� Antropólogo de origem alemã, Franz Boas defendeu a noção de que a Antropologia deveria se afastardas concepções que estabelecem hierarquias entre os grupos humanos� Essa mudança de perspectiva foi fundamental, pois distanciou-se da noção de que os diferentes grupos humanos evoluem de maneira unilinear, sendo esta concepção presente, por exem- plo, entre aqueles que defendiam que as centenas de grupos indígenas então conhecidos estavam em uma etapa primitiva de evolução, enquanto a socie- dade europeia estaria no grau mais elevado� 16 Figura 2: Homem Kwakiutl com vestimentas tradicionais, fotogra- fado por Edward S. Curtis, 1914. Fonte:https://www.britannica.com/ topic/Kwakiutl/images-videos/media/325792/92280 17 https://www.britannica.com/topic/Kwakiutl/images-videos/media/325792/92280 https://www.britannica.com/topic/Kwakiutl/images-videos/media/325792/92280 Embora ainda estivesse relacionada ao espírito de seu tempo, expressando ainda algumas inconsistên- cias analíticas a respeito das relações entre natureza e cultura, que posteriormente foram motivo de am- plos debates entre os antropólogos, pode-se dizer que a importância de Franz Boas foi notável� Como exemplo da agudez de seu pensamento humanis- ta, tem-se o fato de que os nazistas consideraram seus livros perigosos, pois defendiam ideias que iam contra as propostas de supremacia racial de Adolf Hitler, de modo que seus livros foram retirados das prateleiras da Universidade de Heidelberg e quei- mados pela polícia nazista� A percepção de que é necessário compreender-se os detalhes referentes às lógicas internas das culturas resultou na necessidade de se acompanhar de perto o cotidiano dos grupos nativos, ou, em outras pala- vras, tornou-se fundamental desenvolver um estudo imersivo junto aos grupos� Essa percepção resultou na ideia de trabalho de campo, que pode ser definida como a inserção do antropólogo no dia-a-dia dos grupos por ele estudados� Bronislaw Malinowski, antropólogo de origem po- lonesa, desenvolveu diversos estudos a respeito de grupos localizados na costa oriental da Nova-Guiné, nas Ilhas Trombriand� Partindo da premissa de que é necessário conviver com as pessoas dos grupos pesquisados, Malinowski passou a ser um dos prin- cipais defensores do trabalho de campo como es- sencial para a análise realizada pelos antropólogos� 18 Em sua obra mais famosa, Argonautas do Pacífico Ocidental, publicada em 1922, Malinowski defen- de uma forma de análise dos fenômenos culturais a partir da adoção de um método que se tornou fundamental para a antropologia: a observação participante� Figura 3: O antropólogo Bronislaw Malinowski em observação par- ticipante junto aos habitantes das Ilhas Trombriand. Fonte: http:// anthronow.com/wp-content/uploads/2015/10/young-2.jpg Em linhas gerais, a observação participante pode ser compreendida como uma forma de compreen- são dos aspectos culturais dos grupos que exige um esforço de se inserir no cotidiano dos nativos, resultando na compreensão dos “imponderáveis da vida cotidiana”, segundo Malinowski� Por trás dessa prática, encontra-se a ideia de que não basta consultar documentos e realizar entrevistas com os nativos, deve-se entrar de cabeça na cultura que se deseja investigar, de modo a aprender a língua, os 19 http://anthronow.com/wp-content/uploads/2015/10/young-2.jpg http://anthronow.com/wp-content/uploads/2015/10/young-2.jpg valores e os padrões de gostos, bem como as regras explícitas e implícitas que permeiam a sociabilida- de dos grupos. Essa premissa ficou consagrada na representação do antropólogo sempre acompanha- do de seu fiel caderno de anotações. Dentre essas anotações, são ressaltados costumes, aspectos linguísticos, rituais e todo tipo de regularidades es- pecíficas da cultura analisada. Após desenvolver suas próprias perspectivas e téc- nicas, distanciadas das teorias evolucionistas, pode- -se dizer que a Antropologia moderna ingressou em um espaço particular de compreensão da formação das identidades entre pessoas que estão em con- textos históricos e culturais específicos. As culturas e as mudanças de perspectivas Podemos afirmar que, em sua acepção mais comum, o termo perspectiva indica uma posição específica de determinado observador a respeito do seu entor- no� Quando aplicamos essa noção para estudarmos os temas da Antropologia, verificamos necessaria- mente que é possível ampliar nossa perspectiva para além do nosso espaço imediato de observação� Assim, pode-se dizer que a Antropologia possibilita uma significativa extensão de nossas perspectivas, inclusive no que concerne ao reconhecimento de nossa própria identidade e das identidades alheias, como observaremos a seguir� 20 Alteridade, identidade coletiva, mitos e ritos Ao considerarmos as culturas em seus próprios ter- mos, outro campo de preocupações surge� Trata-se das constantes relações de mudanças dos padrões culturais, mediante o encontro entre grupos de ori- gens diferentes� Quando nos referimos à compreensão das diferen- ças dos outros em relação à nossa identidade cul- tural, estamos pensando em termos de alteridade� Essa noção faz parte constitutiva da antropologia, na medida em que o antropólogo procura compreender a diferença em relação aos grupos por ele estudado� É o que afirma Marcio Goldman, por exemplo, ao constatar que o objetivo do antropólogo é neces- sariamente permeado pela alteridade� Diz o autor: [...] O próprio fato de dedicar-se à diferen- ça nunca é desprovido de consequências e, em lugar de simplesmente diferi-la, a Antropologia sempre foi capaz de valori- zar essa diferença, sempre foi capaz de ao menos tentar apreendê-la sem suprimi-la, pensá-la em si mesma, como ponto de apoio para impulsionar o pensamento, não como objeto a ser simplesmente explicado – ex- plicação que, aliás, acaba por deter a própria marcha do pensamento (GOLDMAN, 2006, p.163). 21 SAIBA MAIS: Filme Moi, um noir (Eu, um negro)� Dirigido por Jean Rouch,1958, 70 min� Produzido por Les Fil- ms de la Pléiade� Figura 4: Pôster do filme Moi, um noir, de Jean Rouch�Fonte:https://www�imdb�com/title/ tt0051942/ O cineasta e antropólogo Jean Rouch (1917– 2004) foi um dos nomes fundamentais para o que posteriormente ficou conhecido como et- nocinema. Rouch dirigiu filmes que retrataram questões relacionadas à etnicidade e às múlti- plas identidades de populações marginalizadas� Dentre suas obras fílmicas, talvez a que mais se destaque é Moi, un noir (em português: Eu, um 22 negro). Neste filme, Jean Rouch acompanha a trajetória de jovens desempregados que deixam suas comunidades rurais no interior da Nigéria e partem para as grandes cidades, em busca de oportunidades no “mundo moderno”� Trata-se, como adverte Rouch logo no início do filme, de uma juventude presa entre tradições e máqui- nas, entre o Islã e o álcool, e que não renunciou às suas crenças, mas adora os ídolos modernos do boxe e do cinema. Ao longo do filme surgem questões relacionadas a como os jovens se per- cebem no mundo social, bem como o universo de possibilidades que conseguem identificar para si mesmos em um mundo que se torna cada vez mais complexo� Compreender a cultura em seus próprios termos exige atenção aos conhecimentos compartilhados pelos grupos estudados� Tomemos a questão dos mitos nas sociedades indígenas� Uma visão dis- tanciada e pautada por senso-comum a respeito das dinâmicas culturais afirma que os mitos são heranças de um passado distante, histórias que fi- caram na memória e são revisitadas apenas como nostalgia� Porém essa noção é equivocada� Para Eduardo Viveiros de Castro, um mito não é “apenas o repositório de eventos originários que se perde- ram na aurora dos tempos; ele orienta e justifica constantemente o presente” (CASTRO, 2014, p� 69), ou seja, os mitos são representações vivas no in- consciente coletivo� De maneira geral, o termo mito designa uma narra- tiva que está associada a eventos de fundação de 23 determinados agrupamentos humanos, de início incerto e que foram incorporadosao imaginário des- ses mesmos grupos sociais� Assim, os chamados mitos de origem indicam uma situação que serviu de criação para a formação de uma certa identidade coletiva� Essa perspectiva está presente, por exem- plo, nas palavras de Joseph Campbell, ao afirmar que “mitos são pistas para as potencialidades espiritu- ais da vida humana” (CAMPBELL, 1988, p� 17)� Ou seja, através da compreensão dos mitos, é possível compreender as diferentes formas de construção simbólica dos grupos humanos para além daquelas que nos são próximas no tempo e no espaço� As narrativas associadas aos mitos se apresentam de diversas formas, nem sempre relacionadas a uma perspectiva racional, no sentido que esta palavra passou a adquirir com os desenvolvimentos ociden- tais da ciência� Mas ao separarmos mito e ciência entramos em um problema que ocupou o grande antropólogo francês chamado Claude Lévi-Strauss� Para Claude Lévi-Strauss (1908–2009), a partir dos séculos 17 e 18, ocorreu um importante movimento de construção da diferença entre pensamento mí- tico e pensamento lógico-científico, a partir de no- mes como René Descartes, Isaac Newton e Francis Bacon� A essa separação o antropólogo atribui a noção de divórcio, uma vez que, até então, ambas as formas de explicação do mundo estavam bastante relacionadas entre si� 24 Contudo, a leitura da obra de Lévi-Strauss indica a complexidade existente nas explicações sobre o funcionamento do mundo de acordo com os diferen- tes grupos indígenas, de maneira a se distanciar do senso comum que compreende tais grupos humanos como pouco desenvolvidos em suas capacidades de abstração e de entendimento da realidade ao seu redor� Trata-se precisamente do oposto: esses grupos humanos deixam de ser considerados pelo antropólogo como primitivos, uma vez que talvez o único traço que os distancia de fato das sociedades consideradas desenvolvidas é a sua inclinação à escrita, atuando de maneira intensa em suas pro- duções intelectuais, bem como no desenvolvimento de suas próprias representações a respeito de sua história e de sua ecologia� Evidentemente, os mitos exigem interpretação ade- quada, correndo-se o risco de reduzir-se sua com- preensão aos seus aspectos superficiais. Ou seja, um mito esconde elementos nem sempre visíveis em uma primeira apreensão� Seus significados demandam um grande esforço interpretativo e é nesse ponto que a figura do antropólogo se torna fundamental� As questões anteriormente levantadas por Lévi- Strauss demonstram a contribuição que essas outras maneiras (diferentes) de se refletir sobre o universo podem servir para o desenvolvimento mesmo da ciência ocidental� No limiar do século 20, Lévi-Strauss identificava a necessidade de se repensar essa separação, sem, contudo, abando- 25 nar o conjunto de métodos oferecidos pela própria ciência� Segundo ele: A ciência moderna parece ser capaz de pro- gredir não só segundo a sua linha tradicional – pressionando continuamente para a frente, mas sempre no mesmo canal limitado – mas também, ao mesmo tempo, alargando o ca- nal e reincorporando uma grande quantidade de problemas anteriormente postos de parte (LÉVI-STRAUSS, 2010, pp. 18-19). O mito está relacionado à cosmologia, que pode ser compreendida como uma determinada ambição de se conhecer o universo de maneira total, sendo os mitos parte constitutiva dessa forma ampliada de explicação da realidade existente� A cosmologia, dessa forma, indica as relações existentes entre mitos e a sua dimensão prática, os ritos� Em Antropologia, ritos podem ser compreendidos como cerimônias nas quais ocorrem eventos ex- traordinários (ou seja, que não estão no registro do ordinário), caracterizados por conjuntos de palavras e de ações ordenadas que definem uma determi- nada situação em que predominam as interações simbólicas� Nesse sentido, esse tipo particular de cerimônia está relacionado às mudanças ocorridas nas posições e nas identidades assumidas pelas pessoas ao longo de suas vidas� Arnold van Gennep (1873–1957), um dos primeiros teóricos a investigar 26 de maneira aprofundada as questões relativas aos ritos de passagens, afirma que: É o próprio fato de viver que exige as passa- gens sucessivas de uma sociedade especial a outra e de uma situação social a outra, de tal modo que a vida individual consiste em uma sucessão de etapas, tendo por término e começo conjuntos da mesma natureza, a saber, nascimento, puberdade social, casa- mento, paternidade, progressão de classe, especialização de ocupação, morte (GENNEP, 2013, p. 21). Nessa perspectiva apontada por Gennep (2013), os ritos são fundamentais para demarcar a mudança de espaços e de comportamentos que definem as pessoas em determinados momentos de suas vi- das� Vê-se, desse modo, que a importância dada a tais eventos não está restrita apenas aos seus as- pectos sagrados, uma vez que eles se combinam a todo momento com elementos da nossa vida vulgar, compreendidos como profanos� Essas referidas interações podem ser definidas como detentoras de características particulares, que estão próximas à noção de performance social: A ação ritual nos seus traços constitutivos pode ser vista como “performativa” em três sentidos: 1) no sentido pelo qual dizer é também fazer alguma coisa como um ato 27 convencional [como quando se diz “sim” à pergunta do padre em um casamento]; 2) no sentido pelo qual os participantes expe- rimentam intensamente uma performance que utiliza vários meios de comunicação [um exemplo seria o nosso carnaval] e 3), final- mente, no sentido de valores sendo inferidos e criados pelos atores durante a performance (por exemplo, quando identificamos como “Brasil” o time de futebol campeão do mun- do) (TAMBIAH apud PEIRANO, 2003, p. 10). Dentre os rituais mais comuns, estão aqueles de iniciação, de nascimento, de puberdade, nupciais e de purificação. Há de se ressaltar que, assim como os mitos, os ritos não estão restritos às sociedades não-brancas (indígenas e outras), pois são presen- ças constantes mesmo em sociedades industriais e urbanas� Dessa forma, deixamos de compreender os rituais exclusivamente como referentes à esfe- ra do religioso e passamos a pensá-lo também em contextos nos quais existe o predomínio do pensamento racional, a exemplo das sociedades contemporâneas� 28 A identidade do “eu” Em texto intitulado Uma categoria do espírito hu- mano: a noção de pessoa, a de “eu”, publicado ori- ginalmente em 1938, o antropólogo Marcel Mauss (1872–1950) dedicou-se a estudar como a ideia de que existe um eu, relacionado por sua vez a uma pessoa, surgiu e se modificou ao longo dos tem- pos� Para tanto, o autor defende a necessidade de nos afastarmos de uma visão ingênua a respeito do sentido que atribuímos a essas duas categorias� Em primeiro lugar, Mauss defende que mesmo no tempo presente não há um consenso sobre o que seja o eu em todos os grupos humanos espalhados ao redor do mundo� E o mesmo vale para a perspec- tiva histórica: como, durante o desenrolar do tempo, foi elaborada essa noção tão singular, essa forma que adquirimos para pensar sobre nós mesmos atra- vés da noção de eu? Para tanto, Mauss recorre a diferentes códigos legais, costumes e religiões, que estruturam diferentes sociedades e, consequente- mente, diferentes mentalidades� Os exemplos colhidos por Mauss oferecem uma vi- são para além da nossa própria cultura, de maneira a compreender-se as características específicas desse grupo estudado, incluindo a própria forma como eles se veem� De acordo com Mauss, diferentemente de nossa compreensão ocidentalizada do eu como relacionado à noção de indivíduo, os Kwakiutl, por 29 exemplo, compartilham essa noção a partir da ideia de atores que são separados por castas: Ordenam-se as “pessoas humanas”, e, a par- tir destas, ordenam-se os gestos dos ato- res num drama. Aqui, todos os atores são teoricamente todos os homens livres. Mas, destavez, o drama é mais do que estético. É religioso, e ao mesmo tempo cósmico, mi- tológico, social e pessoal (MAUSS, 2003, p. 376). 30 SAIBA MAIS: Os gregos acreditavam em seus mitos? Você já se questionou a respeito de como os gre- gos consideravam os seus mitos? Será que o re- lacionamento que eles tinham com suas crenças é semelhante ao que as pessoas têm nos dias de hoje com suas religiões? Para o historiador Paul Veyne, essa não é uma boa analogia, pois induz a uma adaptação forçada da experiência histórica dos gregos à nossa experiência contemporânea� Segundo ele, os mundos lendários relacionados aos mitos não eram percebidos como mentiras pelos gregos, embora eles compreendessem es- ses universos como pertencentes a um outro lo- cal, no qual a temporalidade era vista de maneira diferente daquela em que as pessoas estavam envolvidas� Trata-se, desse modo, de uma for- ma complexa de se relacionar com os mitos que deve levar em consideração as alternativas cul- turais dessa sociedade� De acordo com Veyne, “um grego colocava os deuses 'no céu’, mas teria ficado atônito se os percebesse no céu” (VEYNE,1983, p� 28)� Vê-se, desse modo, que, para o historiador, a questão não está relacionada exclusivamente à questão da crença, mas também à forma como os gregos entendiam a própria noção de verdade� Assim, diversas percepções a respeito da “verdade” dos mitos eram compartilhadas por diferentes es- tratos da sociedade grega, soando, muitas ve- zes, contraditórias aos nossos ouvidos de hoje, mas fazendo todo o sentido para quem ali se encontrava� 31 Sobre o conceito de indivíduo e individualismo Nossa experiência contemporânea define pessoa como um indivíduo, ou seja, uma unidade indivisível e única que se projeta como distinguível diante do grupo do qual participa� Essa perspectiva, como pu- demos observar, não é universal, uma vez que cada cultura possui formas específicas de representar as pessoas, sendo a nossa demasiado particular� Em outras palavras, a própria forma como conside- rarmos uns aos outros em nosso meio social e no tempo em que vivemos é condicionada por deter- minantes particulares, não sendo possível esperar que toda a diversidade de culturas tenha percebido a experiência humana da mesma forma como per- cebemos nos dias de hoje� O antropólogo Roberto DaMatta define a forma de percepção individual das pessoas como um dado evidente de nossas sociedades contemporâneas� Afirma ele que: [...] Individualidade se associa fortemente à tradição clássica da filosofia política, uma tradição que moldou o pensamento social moderno. Um modo de pensar a sociedade historicamente fundado e, em consequência, sumamente preocupado com as conexões entre instituições, práticas sociais e esfe- ras percebidas como críticas (e universais), como o “religioso”, o “político” e o “econô- mico (DAMATTA, 2000, p. 9). 32 Desse modo, falar de indivíduo em nossa socieda- de demanda uma conexão com a influência que os valores políticos, econômicos e religiosos exercem sobre nossa identidade� Nosso comportamento e a forma como nos identificamos uns com os outros estabelece conexões sobretudo com o tipo de so- ciedade em que vivemos, ou, no nosso caso, com o modelo sócio-histórico denominado capitalismo� As sociedades capitalistas, provenientes dos va- lores e padrões de socialização originados no bojo da Revolução Francesa (final do século 18) e da Revolução Industrial (sobretudo durante o século 19), constituíram-se como sociedades permeadas por ampla diversidade de identidades situadas em espaços cada vez mais urbanos e cosmopolitas� Esse encontro de identidades torna a compreensão da diferença uma necessidade diária aos habitantes das grandes cidades, resultando em uma série de aspectos que demarcam a experiência do homem na multidão� Dessa forma, a individualidade que marca nossa noção de pessoa passa a ser condicionada pelos es- tímulos específicos de nosso tempo. Tem-se, dessa maneira, o advento do individualismo, compreendido como um processo de produção de identidades que induz a uma intensificação da sensação de autono- mia das pessoas diante do mundo em que vivem� Assim, o individualismo resulta em um sistema de pensamentos e de ações que toma como postula- do o valor da pessoa em detrimento da autoridade tradicional dos grupos, ou, em outras palavras, na 33 produção de pessoas autocentradas propensas a afastarem suas personalidades da coletividade� Figura 4: Figura 5: Operários, obra de Tarsila do Amaral (1933, óleo sobre tela, 150x205 cm) Fonte: http://tarsiladoamaral.com.br/obra/ social-1933/ (Acesso em: 12 jun. 2019). 34 http://tarsiladoamaral.com.br/obra/social-1933/ http://tarsiladoamaral.com.br/obra/social-1933/ CONSIDERAÇÕES FINAIS Como estudamos anteriormente, a noção de identi- dade, quando percebida pela perspectiva analítica da Antropologia, indica a existência de uma construção social prévia, ou seja, a identidade é produzida e defi- nida de acordo com os diferentes tempos e espaços em que é formulada, seguindo padrões culturais distintos� Assim, expressões recorrentes como eu e outro ganham novos significados, pois as investiga- ções realizadas pela Antropologia demonstram que essas são formas particulares de compreensão do mundo ao nosso redor, sendo impossível reduzir-se a pluralidade de perspectivas existentes entre todos os grupos humanos a uma construção identitária única e parcial� Na próxima unidade investigaremos outras formas de produção das identidades a partir de estudos clássicos realizados por antropólogos, de maneira a darmos continuidade ao nosso exercício de desna- turalização do senso comum mediante uma compa- ração de diferentes grupos humanos, marcada pelo reconhecimento da alteridade� 35 c) Sobre os conceitos de individuo e individualismo nas sociedades urbanas e industrializadas. b) A identidade do “eu” - Marcel Mauss. c) Franz Boas e Bronislaw Malinowski: ênfase nos aspectos culturais e no funcionamento interno dos grupos. b) A Antropologia moderna, seus métodos, técnicas e objetos de estudo: etnografia, etnologia, etnocentrismo, culturalismo. Questões clássicas presentes nos estudos antropológicos: 2 Sobre a noção de identidade cultural: a formação da identidade das pessoas a partir de suas relações sociais e culturais. Introdução: Antropologia como estudo das formas de interação humanas. Antropologia cultural e social como estudo das formas culturais e sociais das relações entre grupos humanos. a) Primórdios da explicação antropológica a partir de Michel de Montaigne e Jean-Jacques Rousseau: o interesse pela diversidade humana. Perspectivas na compreensão das culturas: 3 a) Alteridade, identidade coletiva, mitos e ritos: Claude Lévi-Strauss e Arnold van Gennep. 1 ALGUMAS QUESTÕES INICIAIS Referências BOAS, Franz� Antropologia cultural� Zahar, 2004� CAMPBELL, Joseph� O poder do mito� São Paulo: Palas Athenas, 1988� CASTRO, Eduardo Viveiros de� A inconstância da alma selvagem� São Paulo: Editora Cosac Naify, 2014� CASTRO, Celso� Textos básicos de antropologia, cem anos de tradição: Boas, Malinowski, Lévi-Strauss e outros� Rio de Janeiro: Zahar, 2016� DAMATTA, Roberto� Individualidade e liminaridade: considerações sobre os ritos de passagem e a mo- dernidade� Mana, Rio de Janeiro, v� 6, n� 1, p� 7-29, Abr� 2000� GENNEP, Arnold van� Os ritos de passagem: estudo sistemático dos ritos da porta e da soleira, da hos- pitalidade, da adoção, gravidez e parto, nascimento, infância, puberdade, iniciação, coroação, noivado, casamento, funerais, estações etc� Petrópolis: Vozes, 2013� GEERTZ, Clifford� Nova luz sobre a antropologia� Rio de Janeiro: Zahar, 2014� GOLDMAN, Marcio� Alteridade e experiência: Antropologia e teoria etnográfica� Etnográfica, Lisboa, v� 10, n� 1, p� 161-173, mai� 2006� GOMES, Márcio Pereira� Antropologia: ciência do homem, filosofia da cultura� São Paulo: Editora Contexto, 2008�LEIRNER, Piero de Camargo� Hierarquia e individu- alismo� Rio de Janeiro: Zahar, 2003� LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e significado. Lisboa: Edições, 2010� LÉVI-STRAUSS, Claude� Antropologia estrutural dois� São Paulo: Editora Ubu, 2018� MAUSS, Marcel� Sociologia e antropologia� São Paulo: Cosac Naify, 2003� MONTAIGNE, Michel de� Os ensaios: uma seleção� São Paulo: Companhia das Letras, 2010� OLIVEIRA, Roberto Cardoso de� Identidade, etnia e estrutura social� São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1976� PEIRANO, Mariza� Rituais ontem e hoje� Rio de Janeiro: Zahar, 2003� VELHO, Gilberto� Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea� Rio de Janeiro: Zahar, 1987� VELHO, Gilberto� Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea� Rio de Janeiro: Zahar, 2012� VELHO, Gilberto� Um antropólogo na cidade: ensaios de antropologia urbana� Rio de Janeiro: Zahar, 2013� WILLIAMS, Raymond� Palabras clave: un vocabulario de la cultura y de la sociedade� Buenos Aires: Nueva Visión, 2003� Antropologia, identidade e diversidade E-book 2 César Niemietz Neste E-book: Introdução ��������������������������������������������������� 3 Sobre as técnicas e os métodos empregados pela Antropologia ������������4 A divisão sexual relativizada por Margaret Mead �������������������������������������������� 9 E� E� Evans-Pritchard e o estudo de um grupo nilota �����������������������������������������13 Os mortos e os vivos: a noção de “pessoa” para os Krahô���������������������������21 Analisando a sociedade capitalista por óculos antropológicos ��������������������30 Considerações finais�������������������������������37 Síntese �������������������������������������������������������� 40 2 E-book 1 E-book 2 INTRODUÇÃO Se na seção anterior delimitamos o horizonte que demarca algumas das principais preocupações teóricas que a Antropologia passou a ter com os desdobramentos de suas análises centradas na no- ção de cultura, nesta unidade abordaremos alguns estudos importantes que ampliaram a perspectiva antropológica a respeito das construções sociais e culturais das identidades humanas. 3 SOBRE AS TÉCNICAS E OS MÉTODOS EMPREGADOS PELA ANTROPOLOGIA Os tipos de estudos aos quais vamos nos referir nesta unidade se caracterizam como pesquisas sis- temáticas a respeito de certas questões identitárias que envolvem grupos humanos. De saída, devemos ter em mente que a pesquisa em ciências sociais exige o cumprimento de algumas etapas, sendo que as principais são: o levantamento e a preparação da própria pesquisa; a coleta de informações; a filtra- gem dessas informações; a transformação dessas informações em dados e a interpretação desses referidos dados. Todavia, são muitas as maneiras possíveis para se realizar esses procedimentos, o que indica uma bem recebida pluralidade de abor- dagens realizadas pelos cientistas sociais. Essa diversidade de abordagens resulta na ope- racionalidade de métodos distintos de pesquisa, mas se relaciona também com uma reflexão inicial sobre os caminhos que se deseja trilhar ao longo da pesquisa. Segundo Maria Isaura Pereira de Queiroz: 4 A proposição das questões a serem estuda- das, a coleta e a análise dos dados, depen- derão em grande parte do grau de assimi- lação crítica das teorias pelo pesquisador – entendendo-se por assimilação crítica a reflexão aprofundada do pesquisador sobre os conjuntos de abstrações que já encontra prontos ao iniciar o trabalho (QUEIROZ, 1999, p. 17). Essa reflexão inicial sobre os objetivos e sobre a situação de partida do próprio pesquisador indica- rá a delimitação daquilo que podemos denominar como metodologia de pesquisa. Em linhas gerais, podemos compreender um método como a própria forma de organização da pesquisa, ou como o modo de proceder que o pesquisador empregará em sua análise, de maneira a indicar o percurso lógico que desenvolverá para o estudo de seu objeto de inves- tigação. As técnicas de pesquisa, por sua vez, são ferramentas utilizadas pelo pesquisador durante sua prática de investigação. Como observamos na unidade anterior, enquanto ciência social, a Antropologia moderna passou a enfatizar a presença do antropólogo junto ao grupo que pretende estudar. Essa imersão sinalizou uma tentativa de compreender de maneira mais refinada os costumes, valores e padrões de interação entre as pessoas que compõem o grupo a ser estudado. Distanciou-se, assim, do método de pesquisa com- parativo, operado pelos “antropólogos de gabine- 5 tes”, que consistia em comparar diferentes dados de segunda mão a respeito de culturas distantes (tal método foi particularmente difundido ao lon- go do século 19, com os autores evolucionistas). A essa mudança de paradigma metodológico deu-se o nome de observação participante. A introdução da observação participante à práti- ca do antropólogo abriu novos horizontes para a disciplina, e a etnografia – registro exaustivo das observações feitas em campo – tornou-se cada vez mais detalhada. Desde então, os antropólogos passaram a se dedicar cada vez mais às sutilezas que envolvem as produções simbólicas dos grupos, tornando necessária a ampliação de seu repertório de técnicas. Dentre essas, podemos destacar algu- mas das mais recorrentes: a) Genealogia: técnica muito comum nos primór- dios da Antropologia, que consiste em investigar a origem dos indivíduos pesquisados, de maneira a remontar as linhagens genealógicas. Esse tipo de estratégia contribui para a elucidação das relações de parentesco, e os diagramas de parentesco por sua vez, bem como das relações das diferentes matrizes genealógicas entre si, que em um grupo podem ser aliadas, rivais, cooperativas, amigáveis etc. b) Análise documental: investigação a partir de registros feitos por viajantes, instituições como o Estado, ou mesmo pelos próprios grupos e pessoas que serão analisados. Nesse tipo de pesquisa, o antropólogo busca reconstruir certas linhas narra- 6 tivas sobre o grupo ou o evento por ele pesquisado, de modo a restabelecer um determinado discurso. c) Entrevistas e depoimentos: a partir dessa técnica, há a possibilidade de se aproximar da perspectiva que as pessoas têm a respeito de si mesmas, bem como suas opiniões sobre eventos e situações que o pesquisador deseja investigar. Trata-se de material que pode ser estruturado, semiestruturado ou aber- to. Esse tipo de técnica gera materiais bastante ricos em sentidos, caracterizado por certa pessoalização do discurso (ZALUAR, 1985), embora possa trazer limites no que concerne à padronização e à busca por regularidades. d) Histórias de vida e biografias: tentativa de re- construção linear da vida de pessoas, grupos e ins- tituições. Assim como as demais técnicas, possui certas limitações, uma vez que opta por uma re- construção histórica parcial. Contemporaneamente, a técnica da prosopografia passou a se sobrepor à biografia, pois focaliza sobretudo as condições históricas e os vínculos sociais aos quais as pes- soas estão ligadas, de modo a evitar aderir a uma construção ilusória e interessada a respeito das qualidades dos indivíduos estudados. e) Estudo de caso (case study): estudo detalhado a respeito de um determinado evento. Pode-se tam- bém analisar os desdobramentos de um determina- do caso em continuidade, possibilitando o estudo sequencial de casos. 7 Deve-se ressaltar que, durante a pesquisa, raras são as situações em que o antropólogo utiliza apenas uma dessas técnicas, uma vez que a confrontação entre essas diferentes ferramentas analíticas contri- bui para o controle da objetividade da análise. Assim, por exemplo, ao reconhecer que eventualmente existem limites nos depoimentos dos informantes (lapsos de memória ou distorções propositais), o pesquisador pode lançar mão de outra técnica, a exemplo da pesquisa documental, de modo a com- parar os dois registros para se ter umcerto controle sobre a informação. Tais reajustes são caracterís- ticas do próprio método científico, que, segundo Oracy Nogueira, caracteriza-se por ser progressivo e autocorretivo: Pelo recurso ao método científico, não ape- nas novas adições estão sendo constan- temente feitas ao repertório de cada uma das ciências, mas ainda conclusões de um menor grau de probabilidade estão constan- temente sendo substituídas por conclusões de um grau de probabilidade mais elevado (NOGUEIRA, 1977, p. 77). A seguir, estudaremos algumas importantes pesqui- sas realizadas no âmbito da antropologia, de modo a verificar como o conhecimento do outro pode con- tribuir para a compreensão dos limites de nossas percepções sobre identidades. 8 A DIVISÃO SEXUAL RELATIVIZADA POR MARGARET MEAD Margaret Mead (1901–1978) tornou-se uma das principais antropólogas de seu tempo, responsável pela popularização da Antropologia fora dos circui- tos acadêmicos. Inspirada pelos princípios de Franz Boas de que as diferenças entre os grupos humanos seriam condicionadas sobretudo por componentes culturais (e não biológicos, como afirmavam os evo- lucionistas), Mead foi para a Papua Nova Guiné em 1925, estudar as grupos que lá viviam, e, a partir de então, iniciou uma série de estudos a respeito de comunidades não ocidentais, resultantes de im- portantes produções etnográficas que se tornaram bastante conhecidas, a exemplo de Coming of age in Samoa (1928), Growing up in New Guinea (1930) e Sexo e temperamento em três sociedades primi- tivas (1935). Sobre a obra Sexo e temperamento em três socie- dades primitivas, pode-se afirmar que foi recebida sob polêmicas quando de sua publicação. Partindo da análise de três grupos que habitavam a região, Mead percebeu que os padrões comportamentais das pessoas variavam de maneira profunda no que concerne aos seus papéis em comparação com os costumes ocidentais – sobretudo estadunidenses, país de origem da antropóloga. 9 Figura 1: Imagem: Margaret Mead (cerca de 1928-1929) com crian- ças das Ilhas Samoa. Fonte: https://npg.si.edu/ A obra de 1935 focaliza três grupos: os Arapesh, os Mundugumor e os Tchambuli. Para o primeiro gru- po, a divisão sexual do trabalho era relativamente harmoniosa, uma vez que homens e mulheres co- operavam de maneira cordial uns com os outros. Dessa forma, não se evidenciava uma separação entre os comportamentos dos dois sexos, uma vez que a atuação dos dois segmentos tinha como meta a criação dos filhos: 10 https://npg.si.edu/ A vida arapesh está organizada em torno desta trama central: como homens e mu- lheres, fisiologicamente diferentes e dotados de potencialidades diversas, unem-se numa façanha comum, que é primordialmente ma- ternal, nutritiva e orientada para fora do eu, em direção às necessidades da geração se- guinte (MEAD, 1979, p. 41). De outro lado, os Mundugumor se apresentavam como o oposto dos Arapesh. Tratava-se de um grupo com comportamentos considerados agressivos pela antropóloga, tanto em relação aos homens quanto também em relação às mulheres. Dessa forma, não se verificava a noção ocidental de que os homens estariam mais propensos à violência, uma vez que a agressividade dos comportamentos de homens e mulheres eram semelhantes. A análise dos dois grupos investigados não indica necessariamente a ausência de diferenças, uma vez que, segundo Mead, os Arapesh acreditavam que a pintura a cores deve ser reservada aos homens, e os Mundugumor, por sua vez, defendiam que a pes- ca era um tipo de tarefa que deveria ser realizada sobretudo por mulheres. No entanto, os comporta- mentos de homens e mulheres não destoavam uns dos outros, de modo que não é possível verificar de- sigualdades que favorecem um sexo em detrimento a outro em suas funções sociais desempenhadas. Diferente é o caso dos Tchambuli, terceiro grupo estudado pela antropóloga, pois não apenas apre- 11 sentam características distintas em relação aos dois primeiros grupos, mas também designam com- portamentos específicos para homens e mulheres. Contudo, para a surpresa da antropóloga, os padrões culturais compartilhados entre eles diferiam nova- mente daqueles comumente atribuídos ao modelo ocidental. Entre os Tchambuli, homens mostravam atributos de sensibilidade intensa, dedicando-se aos cuidados da casa e das crianças, enquanto as mulheres dedicavam-se à caça, pesca e ao comércio, detendo grande poder sobre os homens do grupo. Desse modo, Mead passou a colocar em questão o senso comum ocidental de que de maneira universal os homens seriam os provedores e guerreiros, reser- vando às mulheres os papéis de mães e cuidadoras do espaço doméstico. 12 E. E. EVANS- PRITCHARD E O ESTUDO DE UM GRUPO NILOTA Edward Evan Evans-Pritchard (1902–1973) foi um antropólogo britânico que desenvolveu importantes estudos sobre grupos em continente africano. Entre suas obras mais famosas estão Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande (1937) e Os Nuer: uma des- crição do modo de subsistência e das instituições políticas de um povo nilota (1940). É sobre esta úl- tima obra que falaremos para compreender como as formas de percepção das identidades também estão sujeitas a rearranjos sofisticados no que diz respeito à organização política e social do mundo. 13 Figura 2: Figura 1: E.E. Evans-Pritchard junto ao povo Nuer durante a década de 1930. Fonte: https://www.babelio.com/auteur/Edward- Evans-Pritchard/169230. Acesso em: 27 jun. 2019. A obra de Evans-Pritchard teve como interesse inicial a realização de uma análise das formas de sub- sistência e das instituições políticas de um grupo localizado no Sudão, às margens do rio Nilo, deno- minado Nuer, composto então por aproximadamente duzentas mil pessoas. O antropólogo chegou à co- 14 munidade em 1930 e prosseguiu com seus estudos ao longo dessa década. Esse clássico estudo de Pritchard exerceu fascínio e influência sobre a ge- ração posterior de antropólogos, pois levou a sério a noção de compreender um determinado grupo em seus próprios termos culturais e sociais, esforçando- -se para deixar de lado os valores europeus e esta- dunidenses que ainda definiam a visão de mundo da maioria dos antropólogos. No que concerne à forma como os Nuer se veem, deve-se levar em consideração, em primeiro lugar, a importância que a ecologia local exerce sobre suas identidades. Desse modo, a forma como eles se percebem enquanto grupo, suas noções de tempo e de espaço, bem como a forma como os outros grupos são vistos por eles, possuem estreitas re- lações com os ciclos de colheitas e de secas, com a pecuária e outros componentes que resultam em influências importantes para se compreender quem é uma pessoa Nuer. A reflexão sobre como diversos elementos influen- ciam na definição de uma identidade pode ser desta- cada de uma passagem retirada da obra de Pritchard em que o autor aponta como o gado contribui para a definição da identidade Nuer: 15 A atitude do Nuer e seu relacionamento com povos vizinhos são influenciados pelo amor ao gado e pelo desejo de adquiri-lo. Eles nutrem profundo desprezo por povos com pouco ou nenhum gado, como os Anuak, en- quanto que as guerras contra as tribos Dinka tem objetivado tomar o gado e o controle dos pastos (PRITCHARD, 1978, p. 23). Na passagem acima, podemos notar que as formas de reconhecimento do valor do outro pelos Nuer são influenciadas pelo gado, uma vez que grupos vizinhos, a exemplo dos Anuak e os Dinka, são vis- tos com desprezo ou como motivos de disputas em função de suas relações de pastoreio. Todavia, o gado não se restringe apenas aos outros, mas tam- bém às próprias relações entre os Nuer. Prossegue o antropólogo: A malha de relações de parentesco que liga os membros das comunidades locais é cau- sada pela eficácia de regras exogâmicas, fre- quentemente colocadas em função do gado. A união do matrimônio é realizada através do pagamento em gado e todas as fases do ritual são marcadaspela transferência ou sacrifício do mesmo. O status legal dos côn- juges e dos filhos é determinado por direi- tos e obrigações sobre o gado (PRITCHARD, 1978, p. 25). 16 A importância da análise de Pritchard se tornou no- tável, uma vez que, mesmo muitas décadas depois de seu estudo, a estrutura básica de relações entre os Nuer se manteve relativamente estável, passando pelo teste da história, tal como afirma a antropólo- ga Beatriz Perrone-Moisés a respeito da organiza- ção contemporânea dos Nuer, em texto intitulado Conflitos recentes, estruturas persistentes: notícias do Sudão (2001). No artigo, Perrone-Moisés avalia as transformações ocorridas no final do século 20 entre os Nuer e seus vizinhos. Em primeiro lugar, um aumento demográfico sig- nificativo: os Nuer sudaneses, quando da pesquisa de atualização da antropóloga, correspondiam en- tão a cerca de 740 mil, com população também na Etiópia, e os Dinka – vizinhos contra quem os Nuer guerreavam – ampliaram sua população para cerca de um milhão e trezentas mil pessoas. Em segundo lugar, uma mudança drástica, decorrente da inser- ção de armas de fogo no território por estrangeiros provenientes do continente Europeu e dos Estados Unidos da América: 17 O fato é que todos os jovens dinka e nuer passaram a carregar cotidianamente armas pesadas, e as mortes se multiplicaram em proporções assustadoras. Ao longo dos anos 90, toda a faixa de fronteira Dinka/Nuer ficou vazia: as aldeias tinham sido dizimadas ou sua população tinha sido raptada e os even- tuais sobreviventes haviam fugido. Não há como calcular quantas vítimas essa guerra civil no Sudão meridional fez (PERRONE- MOISÉS, 2001, p. 130). Embora se trate de uma tragédia potencializada pela adoção de um componente externo – a arma de fogo –, há que se levar em consideração a perma- nência do conflito como motivado sobretudo pelas desavenças que remontam àquelas identificadas por Pritchard, a saber: o rapto de mulheres e o rou- bo de gado. Entretanto, para se compreender o que significa isso para os Nuer, é necessário o estudo das particularidades culturais e sociais desse grupo. As observações feitas por Perrone-Moisés, ao evi- denciar como as estruturas sociais perduram, são importantes para percebermos a importância que as pesquisas realizadas no âmbito da antropologia possuem para a compreensão e para a tradução dos dilemas com que as populações não-europeias têm que lidar. 18 SAIBA MAIS: F o n t e : h t t p s : / / p e r i o d i s t a s - e s . c o m / abrazo-la-serpiente-mito-la-esperanza-65185 F o n t e : h t t p s : / / w w w . r 7 a . c l / a r t i c l e / el-boton-de-nacar-de-patricio-guzman/ Os dois filmes tratam de questões relacionadas à identidade indígena na América Latina e seus con- tatos com povos europeus. O abraço da serpente (2017), de Ciro Guerra, traz uma série de reflexões sobre alteridade a partir da história de um viajante europeu que vai para a floresta amazônica a pretex- to de investigar a fauna local. No caminho, trava con- tato com o indígena Karamakate, que aceita condu- zi-lo durante a viagem. Já O botão de pérola (2015), dirigido por Patri- cio Guzmán, trata da relação entre o extermínio indígena na região da Patagônia e a relação da ditadura chilena com os presos políticos, mui- tos dos quais foram lançados ao mar ainda vivos. 19 https://periodistas-es.com/abrazo-la-serpiente-mito-la-esperanza-65185 https://periodistas-es.com/abrazo-la-serpiente-mito-la-esperanza-65185 El botón de nácar (O botão de pérola). 2016. 1h 22min. Dirigido por Patricio Guzmán. Produzido por Ataca- ma Productions, Valdivia Film, Mediapro. El abrazo de la serpente (O Abraço da Serpente). 2015. 2h 5min. Dirigido por Ciro Guerra. Produzido por Bu- ffalo Films, Buffalo Producciones, Caracol Televisión. 20 OS MORTOS E OS VIVOS: A NOÇÃO DE “PESSOA” PARA OS KRAHÔ Para as pessoas que habitam as sociedades urbanas e industrializadas, é comum que se entendam como indivíduos autônomos e vivos. Embora pareça óbvio, em um primeiro momento, compreender nossa iden- tidade social como a de alguém que está vivo, em oposição às pessoas que não estão, é algo que de- marca nossa experiência social, embora de maneira secundária, pois dificilmente se pensa nisso a todo o momento. Entretanto, alguns estudos indicam que essa oposição vivo/morto não é um dado universal, ou seja, algo compartilhado de maneira idêntica por todas as pessoas em diferentes contextos culturais. A separação entre vivos e mortos é algo que está presente em muitas sociedades, uma vez que a com- preensão da finitude de nossa experiência humana é uma questão que engendra ansiedades de diver- sas ordens. Mas como esse tema é tratado por gru- pos que possuem padrões culturais diferentes dos nossos? Antes de começarmos, vale refletir acerca dessa proposição em termos antropológicos. Desse modo, pode-se afirmar que a construção de nossa identidade requer pontos de referência. 21 Em termos de construção de identidades pessoais e coletivas, os estudos de Manuela Carneiro da Cunha a respeito dos índios Krahô apresentam interes- santes resultados. A autora procurou identificar o valor que a noção de pessoa possui para esse grupo indígena, tomando como ponto de partida a própria dissolução da personalidade social, ou seja, a morte. Localizados na região entre Tocantins e Goiás, no momento em que a antropóloga realizou o seu es- tudo de campo, o grupo indígena contava com cerca de 600 integrantes. Figura 3: Imagem 2: Krahô recebe de volta machadinha que se en- contrava no Museu Paulista. Fonte: Foto de Alfredo Rizzuti, 1986. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Krah%C3%B4 Podcast 1 22 https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Krah%C3%B4 https://famonline.instructure.com/files/86485/download?download_frd=1 O estudo de Manuela Carneiro da Cunha, intitulado Os mortos e os outros: uma análise do sistema fu- nerário e da noção de pessoa entre os índios Krahô (1978), traz uma série de dados colhidos pela an- tropóloga junto aos índios Krahô. Segundo a autora, para os Krahô, a oposição entre vivos e mortos é um elemento primário para a organização das identi- dades. Isso se deve ao fato de que, para os Krahô, os mortos são vistos como a alteridade máxima, ou seja, o avesso total da experiência dos vivos. Entretanto, não são apenas diferentes, uma vez que viveriam em uma espécie de antissociedade, hostil à sociedade dos vivos, uma vez que roubam seus membros. Diz Cunha que “os mortos configuram- -se assim duplamente como ‘outros’ enquanto es- trangeiros, isto é, bárbaros, e enquanto inimigos” (CUNHA, 1978, p. 3). A morte requer rituais e cerimônias específicas, sen- do que cada grupo social estabelece o seu próprio meio de lidar com esse momento. A antropóloga, dessa forma, distancia-se de uma visão redutora que identifica o significado social da morte. Em outras palavras, se a morte biológica é um processo natural, a morte social não é. Nas palavras de Cunha: 23 Não existe [...] um modo de se pensar os mortos que de tão natural seria de cer- ta foram ‘universal’. Na realidade, vivos e mortos podem ou não serem concebidos como antônimos, par de opostos em uma classificação, ou melhor, não é na realidade tanto a existência da oposição que interessa – provavelmente sempre se poderá, em certo contexto, opor vivos e mortos – mas antes a precedência desta classificação sobre as outras. Se por exemplo a linhagem onde ela exista for um operador classificatório mais importante do que a distinção vivo-morto, esta esmaecerá e passará a um segundo plano (CUNHA, 1978, p. 3). Adentrando as representações coletivas dos Krahô, a autora inicia uma busca sobre os sentidos existentes nas questões básicas de orientação da própria iden- tidade dos integrantes do grupo, uma vez que a com- preensão da morte indica uma certa orientação a respeito da própria experiência de vida. Desse modo, Cunha (1978) compreendeque os ritos funerários são permeados por um conjunto de mitos muito particulares e diferentes dos nossos. Enquanto o sentido que atribuímos à morte está muito arraigado às descobertas científicas – e que, de algum modo, fazem parte dos mitos em que acreditamos –, para os Krahô a origem da morte está relacionada a duas forças antagônicas: a origem da morte, como de to- dos os males que afligem a humanidade, remonta a 24 Pëdleré, Lua, que forma com seu amigo formal, Pëd, o Sol, o par de demiurgos, cujas andanças são lon- gamente contadas em um ciclo de episódios míticos. Trata-se do próprio sentido que orienta a morte e, desse modo, também a vida. A análise desse grupo indígena ainda traz outras elucidações que podem contribuir para compreendermos como a noção de pessoa varia de acordo com os contextos culturais em que são apresentadas. Conforme Julio Cézar Mellati constatou em seu es- tudo também sobre os índios Krahô, o sistema de atribuição dos nomes segue regras que para nós talvez sejam pouco compreensíveis em um primeiro momento. Segundo Mellati: O indivíduo do sexo masculino recebe nome daqueles parentes consanguíneos a que apli- ca o termo keti, o qual engloba, entre outras categorias de parentesco, o irmão da mãe, o pai da mãe, o pai do pai e seus primos para- lelos. Já o indivíduo do sexo feminino recebe o nome pessoal das parentas consanguíneas a que aplica o termo de parentesco tïi, que abrange, entre outras categorias de paren- tesco, as de irmã do pai, filha da irmã do pai, mãe do pai, mãe da mãe e suas primas paralelas (MELLATI, 1968, p. 4). 25 Conforme o trecho anterior, os nomes destinados aos Krahô estão relacionados de maneira ampla com a totalidade do grupo, uma vez que o processo de nomeação traz consigo uma complexa rede de afirmações interrelacionais. A criação do nome e, por conseguinte, das identidades dentre os Krahô possibilita uma série de obrigações formais entre as diferentes pessoas do grupo, mesmo entre aquelas que, de outro modo, não se relacionam – ou entre as formas de amizade e as estruturas sociais. Distingue-se, desse modo, os chamados amigos formais (ikhuanare), que são evitados de maneira respeitosa (não se pronuncia os seus nomes, não se tem relações sexuais, evita-se caminhar pe- los mesmos lugares), dos amigos não formais, ou companheiros. A propósito da chamada amizade formal, pode-se compreendê-la como um “complexo que abrange ao mesmo tempo uma estrita relação de evitação (com os amigos formais) e uma relação prazenteira (com certos parentes seus)” (CUNHA, 1978, p. 83). A quebra dessas regras de distanciamento formal encerra igualmente a própria relação entre esse nível de interação. Cunha narra brevemente o caso de uma mulher que, sem saber que sua interlocutora era uma amiga formal, fez certos gracejos com ela. Posteriormente, descobriu que se tratava de uma amiga formal, embora já fosse tarde demais, uma vez que a amizade foi desfeita. Em outro texto, ainda sobre os Krahô, Cunha afirma que: 26 A amizade formal, em seu duplo aspecto de evitação e de relações prazenteira, é uma modalidade de um processo de construção da pessoa. Vimos que o amigo formal é con- ceitualmente o estranho, o outro, e enquanto tal, ele pode ser o mediador, o restaurador da integridade física e da posição social (CUNHA, 1978, p.37). De outro lado estariam os chamados ikhuionõ, con- siderados companheiros com os quais se compar- tilha as liberdades que não se tem com os amigos formais, incluindo-se a troca de mulheres nos rituais de encerramento das estações chuvosas e estações secas (CUNHA, 1978, p.88). Tem-se, a partir dessa complexa trama, funções sociais atribuídas a cada uma das pessoas: aos amigos formais atribui-se o papel de outros e aos companheiros (ikhuionõ) o papel de semelhante. Para além do caráter – aos nossos olhos, possivel- mente exótico – dessas representações, importa compreender que a noção de pessoa considerada como possuidora de autonomia e liberdade não é algo universalmente constatável. Fundamentada em seus estudos, a autora afirma que: 27 Embora cada cultura tenda a perceber sua noção de pessoa como sendo por assim di- zer natural, cada uma elabora no entanto representações específicas sobre o ser hu- mano enquanto indivíduo inserido no grupo (CUNHA, 1978, p. 89). SAIBA MAIS: Conheça a Enciclopédia dos povos indígenas do Brasil: http://pib.socioambiental.org/ Imagem 3: Página inicial do site Povos indígenas no Brasil. Fonte: http://pib.socioambiental.org/. (Acesso em 12 jun. 2019). O Instituto SocioAmbiental, organização sem fins lucrativos que conta com a participação de diversos antropólogos e lideranças indígenas ao redor do Brasil, desenvolveu uma importante pla- taforma com dados e informações diversas so- bre os vários povos que permanecem resistindo na luta pelos direitos de populações originárias. 28 http://pib.socioambiental.org/ http://pib.socioambiental.org/ Contando com vasta gama de documentos produzidos desde a década de 1970 pelo Cen- tro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), é possível encontrar informações deta- lhadas sobre povos como os Araweté, Cinta Lar- ga, Tikuna, Pataxó, Kalapalo, Bororo, Ashaninka, além de muitos outros. Podcast 2 29 https://famonline.instructure.com/files/86486/download?download_frd=1 ANALISANDO A SOCIEDADE CAPITALISTA POR ÓCULOS ANTROPOLÓGICOS Até aqui notamos o predomínio das análises antro- pológicas voltadas aos grupos não ocidentais, que, via de regra, organizam-se às margens das socie- dades capitalistas, embora não estejam totalmente apartadas destas. Embora a Antropologia tenha se consagrado como uma disciplina que procura in- vestigar o outro, em suas formas de organizações específicas, diversos antropólogos voltaram suas análises para suas próprias sociedades, ou seja, para as sociedades urbanas e industrializadas. De fato, consagrou-se, ao longo do tempo, a vertente denominada Antropologia urbana, que busca com- preender a produção das identidades nas grandes cidades. A propósito dos fundamentos das sociedades ca- pitalistas, o antropólogo Marshall Sahlins (1930–) desenvolveu uma série de reflexões profundas sobre as dinâmicas de produção de comportamentos e de disposições referentes às identidades formuladas nessas sociedades, em estudo intitulado La pensée bourgeoise: a sociedade ocidental enquanto cultura. 30 Distanciando-se das representações comuns a respeito das motivações econômicas presentes nas sociedades capitalistas – ou burguesas, como prefere o autor –, a análise de Sahlins focaliza a dimensão cultural. Diz o autor que a própria noção de produção material de bens corresponde a uma intencionalidade cultural. Dessa forma, as pessoas, nas sociedades burguesas, tenderiam a pensar seus hábitos e valores como o único modo de existência possível. Ou seja, Sahlins inverte o senso comum a respeito da lógica estritamente utilitarista. Segundo ele, o mecanismo de oferta, demanda e preço que caracteriza as sociedades capitalistas é proveniente de um código simbólico de objetos próprio de uma cultura particular que é a nossa: Essa visão da produção como a substancia- lização de uma lógica cultural deveria impe- dir-nos de falar ingenuamente da geração de demanda pela oferta, como se o produto social fosse a conspiração de uns poucos “tomadores de decisão”, capazes de impor uma ideologia da moda através dos enganos da publicidade (SAHLINS, 2003, p. 232). Em outras palavras, o que Sahlins procura enfati- zar é a relação necessária entre os símbolos que estão presentes em nossa cultura e nosso próprio pensamento. Dessa forma, deixa-se de se inter- pretar nossas ações como relacionadas apenas às necessidades materiais, o que significa dizer que o 31 cultural não está subordinado ao econômico, sendo que este sim é subsidiário dos padrões produzidos por nossa cultura: A explicação positivista de certas práticas culturaiscomo efeitos necessários de al- guma circunstância material, seja para uma técnica específica de produção, seja para um grau de produtividade ou diversidade produ- tiva, ou para uma insuficiência de proteínas ou escassez de adubo — qualquer proposta científica desse tipo seria falsa (SAHLINS, 2003, p.232). A essas observações, o antropólogo procura inserir a importância dos símbolos sobre a própria relação de trocas existentes no capitalismo. Abaixo podemos observar uma pequena amostra da imagem sobre a qual Sahlins trabalha em seu texto, extraída da obra de Stephen Baker, que procurava orientar os publicitários estadunidenses na década de 1960: 32 Figura 4: O sexo dos objetos na publicidade. Orientação para publi- citários em Visual Persuasion, de Stephen Baker (1961), citado por Marshall Sahlins em La pensée bourgeoise: a sociedade ocidental enquanto cultura, Sahlins Fonte: Marshall Sahlins (2003, p.250), tra- dução de Sérgio Tadeu de Niemayer Lamarão. Como podemos observar na imagem anterior, re- cortada de uma imagem mais extensa contida no referido texto de Marshall Sahlins, a própria ins- trução dada aos publicitários está de acordo com formas culturais que predominam em determinados períodos históricos de nossa sociedade. A imagem original datava de 1961, o que evidentemente deve 33 ser levado em consideração, uma vez que os padrões de gêneros estão em constante modificação nas sociedades contemporâneas. Essas relações propriamente culturais também exer- cem poder sobre a formatação dos nossos gos- tos. Desse modo, podemos dizer que, sim, para a Antropologia, gosto é algo que se discute. Entretanto, essa discussão se torna mais profunda quando res- paldada por estudos rigorosos, a exemplo da pesqui- sa clássica realizada pelo sociólogo e antropólogo francês Pierre Bourdieu. Em A Distinção: crítica social do julgamento, publi- cado em 1979, Pierre Bourdieu parte do problema de se compreender como os gostos e os julgamentos são produzidos. Assim, mobilizando extenso mate- rial proveniente de pesquisas qualitativas e quanti- tativas, Bourdieu procura desvelar os mecanismos sociais que definem nossas preferências estéticas e éticas. Ao iniciar sua pesquisa sobre o assunto, Bourdieu partiu do ponto zero em relação às nossas percep- ções estéticas. Antes de mais nada, o autor procura se distanciar da noção de senso comum segun- do a qual a arte e a estética estão relacionadas a instâncias superiores e sublimes – cristalizada na expressão “arte pela arte”. Ou seja, propõe que o reconhecimento oferecido por nossa sociedade a respeito do que é e do que não é uma obra de arte deve ser colocado sob análise crítica: 34 A ciência do gosto e do consumo cultural começa por uma transgressão que nada tem de estético: de fato, ela deve abolir a fronteira sagrada que transforma a cultura legítima em um universo separado para descobrir as relações inteligíveis que unem ‘escolhas’, aparentemente incomensuráveis, tais como as preferências em matéria de música e de cardápio, de pintura e de esporte, de litera- tura e penteado (BOURDIEU, 2006, p. 14). A obra de Bourdieu tornou-se um clássico imedia- to junto às ciências sociais, pois trouxe dados que comprovavam como os gostos estão relacionados a certas posições que as pessoas ocupam nas so- ciedades em que vivem. Embora não seja necessa- riamente uma regra, tem-se a tendência de que as pessoas que vivem nas frações dominadas com- partilham de certos gostos relacionados a vestuá- rio, comida e arte, enquanto as frações dominantes desenvolvem gostos particulares que lhes conferem atributos distintivos. Em linhas gerais, de acordo com o sociólogo e antro- pólogo, os indivíduos na sociedade francesa da dé- cada de 1970 orientavam seus padrões de consumo conforme as disposições – ou, como prefere o autor, o habitus – que foram engendradas socialmente. Essas disposições, por sua vez, podem ser com- preendidas como matrizes geradoras de padrões de gostos, de maneira tal que acabam por definir um 35 certo espaço ordenado de acordo com as classes sociais das quais fazem parte. A grande inovação da análise empreendida por Bourdieu se deve ao fato de que ele conseguiu demonstrar, diferentemente de Marshall Sahlins, através de dados, essas tendências de gosto re- lacionadas com as classes sociais. Nesse senti- do, as identidades individuais estariam sujeitas às características especificas do espaço e do tempo em que as pessoas se situam. Dito de outra forma, os gostos passam por transformações – o que as classes dominadas consomem nos dias atuais é diferente do que consumiam na década de 1970 –, porém a distinção entre as classes através de seus gostos permanece como um marcador de desigual- dades sociais. Por fim, cabe ressaltar que os gostos trazem consigo símbolos culturais que tornam possível identificar a quais classes as pessoas tendem a pertencer. Esses símbolos, por sua vez, são reproduzidos por institui- ções como a família e a escola, uma vez que atuam como agentes capazes de definir o que é considera- do legítimo para cada grupo e para cada indivíduo. 36 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo das páginas anteriores, fizemos um per- curso que procurou indicar algumas importantes análises que os antropólogos fizeram desde que passaram a compreender a cultura como elemento fundamental dos grupos humanos. Evidentemente, muitos outros textos igualmente importantes foram deixados de lado, mas espera-se que a apresenta- ção dessas questões fomente o interesse do leitor pela produção antropológica contemporânea. Para isso, recomenda-se a busca por fontes reconhecidas pela comunidade de antropólogos, bem como suas revistas de divulgação científica. Além disso, o objetivo desta unidade também foi o de apresentar para o leitor como a identidade é formada de acordo com condicionantes que ini- cialmente estão situados externamente aos indiví- duos. Escolhemos as pesquisas de Margaret Mead, E. E. Evans Pritchard, Manuela Carneiro da Cunha, Marshall Sahlins e Pierre Bourdieu pois elas indicam que questões, mesmo categorias muito naturaliza- das por nós, estão sujeitas a processos de elabora- ções e reelaborações culturais: a divisão sexual do trabalho, o reconhecimento de nós e dos outros, as noções de vida e morte, nossos padrões de consumo nas sociedades capitalistas e nossos gostos. 37 De maneira mais abrangente, observamos que a identidade, enquanto noção de pessoa, é algo sus- cetível a diversas comparações entre culturas dife- rentes. Dessa forma, podemos afirmar que, a des- peito da base biológica que os indivíduos carregam consigo e que são nitidamente diferentes, a cultura molda os comportamentos e as percepções que tais indivíduos têm sobre si mesmos e sobre os outros. No próximo módulo, refletiremos sobre como surgem as identidades nacionais e como são construídos os afastamentos e as aproximações entre comu- nidades ocidentais e não ocidentais, segundo uma perspectiva antropológica e histórica. SAIBA MAIS: Ailton Krenak e a luta pelos direitos indígenas no Brasil Escritor e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, Ailton Krenak se tornou uma das principais lideranças na luta pelos direitos indí- genas no Brasil. Abaixo estão os links para dois vídeos que apresentam um pouco a perspectiva que ele possui a respeito da identidade dos ín- dios no Brasil contemporâneo, marcado por dis- putas políticas de reconhecimento da origem ét- nica dos povos originários. O primeiro vídeo, de 1987, mostra o discurso de Krenak na Câmara dos deputados, durante o contexto de redemo- cratização do país. O segundo, mais recente, traz 38 algumas ideias compartilhadas por Krenak para a compreensão da relação entre identidade, sus- tentabilidade e consumo, através da perspectiva indígena. Discuso histórico no Plenário da Câmara dos Deputados, em 04 de setembro de 1987: https://www.youtube.com/ watch?v=kWMHiwdbM_Q (Acesso em 08 jun. 2019).
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