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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Graduação em Direito Alice dos Santos Alcântara A (IN) VISIBILIDADE DE GÊNERO NO JUDICIÁRIO BRASILEIRO: a aplicabilidade da lei maria da penha à mulher transgênero Poços de Caldas 2020 Alice dos Santos Alcântara A (IN) VISIBILIDADE DE GÊNERO NO JUDICIÁRIO BRASILEIRO: a aplicabilidade da lei maria da penha à mulher transgênero Monografia apresentada ao Curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Me. Dório Henrique Ferreira Grossi Poços de Caldas 2020 Alice dos Santos Alcântara A (IN) VISIBILIDADE DE GÊNERO NO JUDICIÁRIO BRASILEIRO: a aplicabilidade da lei maria da penha à mulher transgênero Monografia apresentada ao Curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito. ______________________________________________________________ Prof: Dório Henrique Ferreira Grossi – PUC-MINAS (ORIENTADOR) _____________________________________________________________ Professor (a) (Banca Examinadora) PUC-MINAS ______________________________________________________________ Professor (a) (Banca Examinadora) PUC-MINAS Poços de Caldas, __ novembro de 2020. Dedico esse trabalho a minha família e amigos, em especial ao meu namorado, que esteve comigo durante toda a elaboração. AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus, por tudo. Agradeço ao meu namorado, por todo apoio e atenção durante a realização desse trabalho. Agradeço à minha mãe e à minha irmã, pelo apoio de sempre e por toda luta diária. Agradeço aos meus colegas, por toda a ajuda durante a trajetória acadêmica. Agradeço aos professores, por toda a dedicação e carinho no caminho da graduação. Agradeço aos meus amigos de vida, pela amizade de sempre, sem vocês esse caminho não seria o mesmo. Agradeço ao meu orientador que, além de ser uma inspiração, deixou todo esse caminho mais fácil, Obrigada. RESUMO Este trabalho trata da visibilidade de gênero com foco na inclusão da mulher transgênero no meio jurídico brasileiro através da incorporação destes indivíduos à norma protetiva da Lei Maria da Penha. Em seu aspecto social e jurídico, a mencionada legislação atesta- se como marco protetivo nacional ao combate à violência de gênero, sendo referência até para outros países. A Lei, em seu artigo 2°, estatui a proteção da violência em face da “mulher”, não consignando a mulher conforme sua identidade de gênero. Já no artigo 5°, está evidenciado os âmbitos em que ocorre a violência baseada no “gênero”, sendo este determinante a abranger, também, a mulher transgênero. Para tanto, preocupou-se em ser feito um mapeamento histórico do gênero, no qual compreedeu-se que as relaçãoes entre mulheres e homens são desiguais, provenientes de papéis sociais estebelecidos pela erronêa percepção de sexo e gênero enquanto elementos únicos. Ademais disso, o estudo percorreu a análise da identidade de gênero, sendo fundamental para esclarecer a percepção do indivíduo com o seu comportamento e parapoder diferenciar as categorias inseridas no termo “guarda-chuva” transgênero. Não obstante, encerrou-se aqui uma abordagem à violência contra a mulher examinando como o sistema patriarcal fincou raízes nas estruturas de poder, ocasionando na violência silenciosa, que ocorre dentro das relações domésticas e familares. Por fim, objetivando enfrentar a questão cerne deste trabalho, estabeleceram-se os principais mecanismos legislativos de proteçâo à violência baseada no gênero, bem como se cuidou de colher, na jurisrudência, entedimentos com fins à equiparação da mulher transgênero à mulher cisgênero. Para tanto, o método utilizado nesta monografia foi o bibliográfico-jurisprudencial feito a partir da coleta de informações extraídas de textos de artigos cientifícos, trabalhos acadêmicos, notícias, doutrinas, manuais de direito, bem como pela análise de julgados dos Tribunais, com vistas a identificar os fatores que determinam ou contribuem para a ocorrência da falta de legislação específica que vise a proteção da mulher transgênero vítima de violência doméstica, familiar ou em uma relação íntima de afeto. Palavras-chave: Gênero. Sexo. Transgênero. Lei Maria da Penha. Violência. ABSTRACT This work deals with the visibility of gender with a focus on the inclusion of transgender women in the Brazilian legal environment through the incorporation of these individuals to the protective norm of the Maria da Penha Law. In its social and legal aspects, the mentioned legislation is a national protective framework for combating gender violence, being a reference even for other countries. The Law, in its Article 2, statues the protection of violence against "women", not consigning women according to their gender identity. Article 5 highlights the areas in which violence based on "gender" occurs, and this is the determining factor to include transgender women as well. In order to do so, a historical mapping of gender was carried out, in which it was understood that the relationships between women and men are unequal, coming from social roles established by the misperception of sex and gender as unique elements. In addition, the study covered the analysis of gender identity, being fundamental to clarify the perception of the individual with his behavior and to differentiate the categories inserted in the term "transgender umbrella". Nevertheless, an approach to violence against women was concluded here by examining how the patriarchal system has taken root in power structures, resulting in silent violence, which occurs within domestic and family relationships. Finally, in order to address the core issue of this work, the main legislative mechanisms for protecting gender-based violence were established, as well as the collection of biases in the courts to equate transgender women with cisgender women. For this purpose, the method used in this monograph was the jurisprudential bibliography made from the collection of information extracted from texts of scientific articles, academic works, news, doctrines, law manuals, as well as from the analysis of judgments of the Courts, in order to identify the factors that determine or contribute to the occurrence of the lack of specific legislation aimed at the protection of transgender women victims of domestic violence, family violence or in an intimate relationship of affection. Keywords: Gender. Gender. Transgender. Maria da Penha Law. Violence. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais; Art – Artigo; CEDAW - Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres; CID – Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde; CIDH – Comissão Interamericana de Direitos Humanos; Ed. – Editor; ED. – Edição; FONAVID - IBGE – Instituto brasileiro de geografia e estatística; LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e demais indivíduos que se encaixem nesta sigla; OEA – Organização dos Estados Americanos; OMS – Organização Mundial de Saúde; ONU – Oganização das Nações Unidas; PL – Projeto de Lei; SUS - Sistema único de saude; § - Parágrafo. SUMÁRIO 1INTRODUÇÃO...........................................................................................................102 GÊNERO.....................................................................................................................12 2.1 Conceito e evolução histórica do Gênero...............................................................12 2.2 Gênero e Sexualidade..............................................................................................19 2.2.1 Identidade de Gênero.............................................................................................21 2.3 Diferenciação entre transgênero, transexual e travesti........................................22 3 VIOLÊNCIA...............................................................................................................25 3.1 Conceito e formas de violência contra a mulher...................................................25 3.2 Patriarcado e dominação feminina........................................................................27 3.3 Violência de Gênero.................................................................................................29 3.4 O contexto de violência doméstica, familiar ou relação íntima de afeto, baseado na Relação de gênero..................................................................................................32 4 INSTRUMENTOS DE DPROTEÇÃO E DIREITOS FUNDAMENTAIS À MULHER TRANSGÊNERO.....................................................................................36 4.1 Tratados e Convenções internacionais para combate à violência em razão do gênero...........................................................................................................................36 4.2 Lei Maria da Penha............................................................................................................................41 4.3 Interpretação do artigo 5°da Lei Maria da Penha e o princípio da dignidade da pessoahumana.............................................................................................................44 4.4 Projeto de Lei n° 191/2017 e modificações à Lei Maria da Penha............................................................................................................................46 4.5 Das medidas protetivas de urgência e sua aplicabilidade à mulher transgênero..................................................................................................................47 4.6 Entendimento dos Tribunais – A aplicação da Lei Maria Penha à mulher transgênero na jurisprudência..................................................................................49 5 CONCLUSÃO.............................................................................................................54 REFERÊNCIAS..........................................................................................................56 BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................................63 10 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como problema principal a seguinte pergunta: Segundo entendimento doutrinário e jurisprudencial, é constitucional, de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana, disposto no inciso III, do art. 1° da Constituição Federal, analisado por Bruno Cunha Weyne, em seu livro: O princípio da dignidade humana: reflexões a partir da filosofia de Kant, a extensão das medidas protetivas de urgência elencadas nos artigos 18 ao 24 da Lei 11.340/06 – Lei Maria da Penha, relativizado à mulher transgênero vítima de violência doméstica, familiar ou em uma relação íntima de afeto? Desta maneira, o objetivo geral do presente trabalho consiste em identificar se é possível a aplicabilidade da Lei Maria da Penha aos indivíduos que biologicamente não são mulheres, no entanto comportam, agem, e se identificam de igual modo. O objetivo geral será alcançado em conjunto aos objetivos específicos que darão suporte para que se possa ser respondida a pergunta que deu origem ao problema. No primeiro capítulo será introduzido o conceito de gênero com sua abordagem histórica, a elementar diferenciação entre gênero e sexo, a definição de identidade de gênero enquanto identificação do sujeito em relação ao seu gênero e a distinção entre as terminologias transgênero, transexual e travesti. Posteriormente, no segundo capítulo, será abordado o conceito geral de violência partindo para as formas específicas do fenômeno em razão do gênero, o patriarcado como meio essencial à dominação feminina e violência de gênero, e os âmbitos de incidência da violência contra a mulher, conforme o disposto no artigo 5° da Lei n° 11.340/06. Por fim, serão analisados os principais documentos internacionais para proteção de gênero. Na esfera nacional, será feito um breve histórico da edificação da Lei Maria da Penha, interpretação de seu artigo 5° com base na análise de gênero, tendo em vista a dignidade da pessoa humana e as medidas protetivas de urgência elencadas no dispositivo para proteção da mulher transgênero, levando em consideração o entendimento dos tribunais em relação à questão. O interesse para o desenvolvimento da presente pesquisa acerca do tema surgiu quando a pesquisadora, em seu o estágio na secretaria da 2ª Vara criminal, Infância e Juventude, situada na comarca de Poços de Caldas/MG, a qual possui competência exclusiva para tratar de processos que envolvem violência doméstica e familiar nos 11 moldes da lei n° 11.340/06, passou a analisar como são processados e julgados, e em que medida as mulheres recorrem à justiça para pleitear a tutela do instituto legal, tendo em vista a condição feminina na sociedade brasileira, e o tratamento que o Direito dá a essas mulheres, ademais as que sofrem qualquer tipo de violência em detrimento do gênero. Ao analisar a questão de um grupo de minorias, ainda mais afetados e subjugados, que tentam de diversas maneiras serem correspondidos pela sociedade e vistos pelo Direito, foi possível verificar que as pessoas pertencentes ao grupo LGBT, sobretudo a mulher transgênero, é recorrente em debates acerca de mecanismos que visariam a sua salvaguarda. Portanto, a escolha do tema se tornou clara através de análises dos casos decorrentes de violência doméstica que puderam ser acessados durante o estágio e estudos a respeito das medidas protetivas de urgência dispostas na Lei Maria da Penha, se poderiam estas também serem aplicadas à mulher transgênero em decorrência da relação doméstica e familiar ou em uma relação íntima de afeto, já que no Brasil, além de prevalecer uma cultura de violência contra a mulher, é o país que mais mata mulheres transgênero no mundo. Fazendo-se extremamente necessário o tema desta pesquisa. Para desenvolvimento deste trabalho será utilizado o método hipotético dedutivo, em que serão elencadas proposições hipotéticas que se entendem viáveis para chegar a uma conclusão específica. Este método se mostra pertinente à pesquisa na medida em que conhecimentos gerais sobre condições e pré-condições sobre discriminação de gênero permeiam discussões sobre o tratamento jurídico dado às pessoas transgêneros. 12 2 GÊNERO 2.1 Conceito e evolução histórica do Gênero O conceito de gênero não é único e especifico, se amonta de várias concepções e em vários ramos do conhecimento. Ao determinar uma definição do que habitualmente se entende por gênero, faz-se necessário remontar aos primeiros estudos que cunharam sua definição. Estes estudos são frutos das investigações do campo médico, feitos pelos cientistas Jonh Money e Robert Stoller1 na década de 50 e 70 do século passado. Money, em 1955, usa pela primeira vez o termo gênero para diferenciar sexo biológico e sexo psíquico. A pesquisa se mostrou pertinente para combater a naturalização das desigualdades de gênero que permeavam as relações sociais. A partir destas análises, concebeu-se que não há uma relaçãonatural entre corpo, sexo biológico e de sua identidade sexual, desta forma, gênero poderia ser entendido como um conceito social. Pelo termo papel de gênero, nós queremos dizer todas aquelas coisas que uma pessoa diz ou faz para se mostrar como tendo o status de menino ou homem, menina ou mulher, respectivamente. Isso inclui, mas não se restringe à sexualidade no sentido de erotismo. Um papel de gênero não é estabelecido no nascimento, mas é construído cumulativamente através de experiências confrontadas e negociadas - através de aprendizagens casuais e não planejadas, através de instruções explícitas e inculcações, e através de, espontaneamente, colocar juntos dois e dois para formar às vezes quatro e às vezes, erroneamente, cinco. Resumindo, um papel de gênero é estabelecido de maneira muito similar a uma língua nativa.2 Stoller, por sua vez, no livro Sex and Gender3, introduz o termo gênero para criar um critério diferente do que usualmente se compreendia da palavra sexo, já que essa era tão somente usada para designar um critério biológico4. Anteriormente ao estudo clínico do que viria a ser gênero segundo Scott5, o termo já era usado pelo movimento feminista dos dois últimos séculos, em prol da luta contra um sistema patriarcal, que definia quais eram os papéis 1 STOLLER, Robert. A further contribution to the study of gender identity. International Journal of Psychoanalysis (tradução nossa) 1968, p. 220-226. 2 MONEY, John. Hermaphroditism, gender and precocity in hyperadrenocorticism: psychologic findings. Bulletin of the Johns Hopkins Hospital (tradução nossa) 1955, n. 96, p. 253-264. 3 STOLLER, Robert. Sex and gender: the development of masculinity and femininity. Nova York: Science House (tradução nossa) 1968. 4 PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. História, Franca, v. 24, n. 1, pág. 77-98, 2005. 5 SCOTT, Joan. "Gênero: uma categoria útil de análise histórica". In Educação e Realidade. Porto Alegre: Faculdade de Educação/UFRGS, v.15, n° 2, jul/dez 1995. 13 sociais atribuídos a homens e mulheres que, ao estabelecer esses papéis, imputava ao sexo biológico comportamentos específicos. A partir disso houve uma ampliação nos estudos envolvendo gênero, pois se pretendia incluir as minorias que não se encaixavam no padrão de “heteronormatividade”, bem como investigar que o biológico não prevalecia sobre o aspecto cultural e social do indivíduo. Fazendo-se necessário analisar como o gênero poderia influenciar os comportamentos e determinações psíquicas. Entra em cena, nesse momento, a percepção de que gênero varia de acordo com o contexto, momento histórico, que as relações homem e mulher se amoldam em uma concepção culturalmente construída, definindo cada indivíduo em conformidade com o seu sexo. O estudo de gênero é, portanto, uma categoria de análise, na qual é possível compreender como as relações feminino-masculino são apresentadas no meio social, não como um fator isolado, mas sim como um processo histórico e cultural. E para entender como se desenvolveu a concepção do termo gênero, preliminarmente será preciso adentrar na história da evolução do gênero. Engels6, em “A origem da família, da Propriedade Privada e do Estado”, apresenta as primeiras civilizações e como se davam as relações entre homem e mulher, demonstrando que, inicialmente, nem todas as civilizações continham a degradação da figura feminina em relação ao masculino. A mulher em algumas destas civilizações era vista como figura de força e comando. A economia doméstica comunista, em que a maioria das mulheres, se não a totalidade, é de uma mesma gens, ao passo que os homens pertencem a outras gens diferentes, é a base efetiva daquela preponderância das mulheres que, nos tempos primitivos, esteve difundida por toda parte — fenômeno cujo descobrimento constitui o terceiro mérito de Bachofen. Posso acrescentar que os relatos dos viajantes e dos missionários acerca do trabalho excessivo com que se sobrecarregam as mulheres entre os selvagens e os bárbaros não estão, de modo algum, em contradição com o que acabo de dizer. A divisão do trabalho entre os dois sexos depende de outras causas que nada têm a ver com a posição da mulher na sociedade. Povos nos quais as mulheres se veem obrigadas a trabalhar muito mais do que lhes caberia, segundo nossa maneira de ver, têm frequentemente muito mais consideração real por elas que os nossos europeus. A senhora civilizada, cercada de aparentes homenagens, estranha a todo trabalho efetivo, tem uma posição social bem inferior à da mulher bárbara, que trabalha duramente, e, no seio do seu povo, vê-se respeitada como uma verdadeira dama (lady, frowa, frau = senhora) e o é de fato por sua própria posição. 6 ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. ed. 4: Clube dos Autores, 2009, p. 62 e 72. https://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/b/bachofen_johann.htm#_blank 14 Contudo, as civilizações foram evoluindo e a figura da mulher, que antes pudera ocupar uma situação de prestígio social, foi se deteriorando em face à atuação do poder masculino e, em muitos momentos e passagens históricas, é possível verificar essa prevalência do sexo masculino sobre o feminino. “A mulher deve adorar o homem como a um deus. Toda manhã, por nove vezes consecutivas, deve ajoelhar-se aos pés do marido e, braços cruzados, perguntar- lhe: senhor, que desejais que eu faça?”7. Chartier8 define a submissão imposta às mulheres como uma violência simbólica, em que há uma violência consentida, através da relação de dominação, que por sua vez é uma relação cultural e histórica, e em função disso, não se pode afirmar a diferença entre homem e mulher como algo natural e universal. Neste passo, ao investigar como se deram as primeiras relações no então Brasil colonial, verificamos que o primeiro documento produzido no país, a Carta de Pero Vaz de Caminha9, já tratava sobre a desigualdade entre homem e mulher, na qual a descrição das mulheres indígenas estava ligada ao sentimento de vergonha, como se extrai da seguinte passagem: Também andavam, entre eles, quatro ou cinco mulheres moças, nuas como eles que não pareciam mal. Entre elas andava uma com uma coxa, do joelho até o quadril, e a nádega, toda tinta daquela tintura preta; o resto, tudo da sua própria cor. Outra trazia ambos os joelhos, com as curvas assim tintas, e também o colo dos pés; e suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas, que nisso não havia nenhuma vergonha. Mais adiante, no período escravocrata, a situação da mulher na sociedade brasileira fazia parte de um sistema de poder, conhecido como patriarcado, o qual será melhor explanado em um capítulo posterior. Neste sistema, a mulher estava inserida no seio familiar, subjugada à criação dos filhos, aos cuidados com o marido e aos afazeres domésticos. Já ao homem cabia o gerenciamento e o sustento familiar, se ocupando do espaço público, enquanto a mulher pertencia ao espaço privado. Esse sistema de poder em que a mulher é recolhida ao domínio masculino possui raízes da colonização europeia, como ensina Oliveira apud Saffioti10: “O período colonial brasileiro 7 PEREIRA, Lusia Ribeiro. Questão do Gênero como categoria histórica de análise na busca da efetivação do Estado Democrático de Direito. Revista da Faculdade Mineira de Direito, v.13, n. 25, jan./jun. 2010. 8 CHARTIER, Roger. Diferenças entre os sexos e dominação simbólica (nota crítica). Cadernos Pagu, n. 4, p. 37-47, 1 jan. 2008. 9 MINISTÉRIO DA CULTURA. A Carta de Pero Vaz de Caminha. Fundação Biblioteca Nacional. Departamento Nacional do Livro, 2015. 10 SAFFIOTI, 1969 apud OLIVEIRA, Ana Carla Menezes de. “A evolução da mulher no Brasil do período da colônia a república”. In SEMINÁRIO INTERNACIONAL FAZENDO GÊNERO11 & 13TH WOMEN’S WORLDS CONGRESS. Florianópolis, 2017. (Anais Eletrônicos). 15 apresenta uma configuração exótica, na qual podem ser identificados traços das estruturas feudais europeias, da estrutura patrimonialista que se desenvolvia na época, e a exploração da mão de obra escrava”. Sendo permitido no período colonial que o marido castigasse a esposa com chibatadas, o que era comum no tratamento com os escravos. Este tipo de domínio sobre o feminino perdurou longos séculos, até que a mulher começasse a emergir na sociedade brasileira. Contudo, ainda hoje é possível verificar vários resquícios deste sistema dominador. Ainda consoante a Saffioti, o surgimento do modo de produção capitalista foi o principal componente da condição de degradação feminina em toda a conjuntura mundial, pois, enquanto a produção masculina era afirmada e valorizada, a mulher estava submetida à dominação masculina na esfera de classes, conforme se expressa11: O aparecimento do capitalismo se dá, pois, em condições extremamente adversas à mulher. No processo de individualização inaugurado pelo modo de produção capitalista, a mulher contaria com uma desvantagem social de dupla dimensão: no nível superestrutural, era tradicional uma subvalorização das capacidades femininas traduzidas em termos de mitos justificadores da supremacia masculina e, portanto, estrutural, à medida que se desenvolviam as forças produtivas, a mulher vinha sendo progressivamente marginalizada das funções produtivas, ou seja, perifericamente situada no sistema de produção. Com efeito, é possível verificar o que é apontado pela escritora, já que no Brasil a abolição da escravatura seguida das forças implementadas pela Revolução Industrial é constante para a inferiorização do sexo feminino em relação ao poderio masculino, haja vista que foram cansadamente desvalorizadas nos meios de produção capitalista. No ano seguinte ao fim da escravidão, com a proclamação da primeira república, em 1889, a mulher, em passos miúdos, consegue se inserir, quase invisivelmente, no espaço social que até então era apenas ocupado pelo sexo masculino. Enquanto isso, na perspectiva mundial, os movimentos feministas começam a ganhar força após o episódio em que operárias morreram queimadas ao reivindicarem direitos sociais em uma fábrica têxtil situada na cidade de Nova Iorque em 1857. Após este fato, atos em prol da luta de mulheres trabalhadoras se intensificaram, tendo grande enfoque a greve das tecelãs russas em 08 de março 191712, fazendo com que eclodisse a Revolução de Outubro. Em razão destas manifestações, ficou mundialmente estabelecido o 08 de março como Dia Internacional da Mulher, de modo a reconhecer a luta destas operárias que clamavam por direitos e melhores condições de vida, bem como de todas as mulheres que, indubitavelmente, lutaram por igualdade social. 11SAFFIOTI. Heleieth. A Mulher na Sociedade de Classe: Mito e Realidade. Petrópolis: Vozes, 1976.p.18. 12 23 de fevereiro no antigo calendário russo. 16 Em contrapartida, no Brasil, os movimentos feministas davam seus primeiros passos, nos ensinamentos de Pinto13: (...) as primeiras manifestações feministas no Brasil voltadas para os direitos das mulheres desenvolveram-se do final do século XIX até o ano de 1932, no contexto da Primeira República, paralelamente às manifestações de outros grupos que, desde as primeiras décadas do século XX, não compunham a esfera política colonizada dos setores políticos dominantes brasileiros. É em 1932 que as mulheres conquistam o seu direito ao voto e, consequentemente, a ampliação da universalização do seu direito à cidadania. Além do que, poder votar representava para as mulheres desta época ter acesso ao meio político e social, acarretando na emancipação feminina. Alguns anos adiante, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, a presença feminina se fez atuante dentro e fora dos lares. Muitas mulheres passaram a ser chefes de família, tendo em vista que os maridos haviam sido recrutados à guerra. Quando não ocupavam os lugares deles em seus antigos empregos. Nas palavras de Mello14: Em todos os países a saída de homens para atuar nos campos de batalha acabou por defasar a economia, esvaziando indústrias; desestabilizou a agricultura, os serviços civis, etc. A forma de lidar com esta questão em particular foi solucionada, inicialmente, de maneira distinta pelos países que participaram da guerra. Enquanto na Grã-Bretanha viu-se nas mulheres a possibilidade de suprir tal demanda, com uma incrível mobilização para compor tais vagas, na Alemanha, por exemplo, isso já não era tão visível. Winston Churchill ao se dirigir ao povo britânico prometendo “sangue, trabalho, lágrimas e suor” incluía neste discurso também as mulheres. Não raramente também saíam para o combate, atuando junto das tropas, decifrando códigos secretos, nos primeiros socorros dos soldados feridos e, ainda, nos campos de concentração. Embora a força da mulher na guerra não seja muito comentada, é notória que sua participação foi de grande relevância no campo de batalha e fora dele. Resultando, a partir daí, em uma reestrutura da condição da mulher no cenário familiar. Outro avanço conquistado pela mulher brasileira foi o tão conhecido “Estatuto da Mulher Casada”15, instituído no ano de 1962, que por sua vez, modificou artigos do então vigente, Código Civil de 1916, estabelecendo mudanças na relação marido e mulher. Com isso 13 PINTO, 2003 apud PASSOS. Aléxia Dutra Balona. Sexualidade, Corpo e Gênero: ressonâncias anarquistas nos feminismos contemporâneos. 2020. Tese (Pós–Graduação em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2020. 14 MELLO, Ana Claudia de Rezende Costa Dutra e. As mulheres de Churchill: Análise da participação feminina na marinha e aeronáutica britânicas durante a segunda guerra mundial .2015. Dissertação (Pós-Graduação em História) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Urca, 2015. 15 Dispõe sobre a situação jurídica da mulher casada. Lei n° 4.121 de 27 de agosto de 1962. Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. 17 a mulher poderia trabalhar fora de casa, dispensando a autorização do esposo, assim como lhe foi dado o direito de guarda sobre os filhos, restringindo o poder de chefia do homem sobre a família. Enquanto isso, o feminismo mundo afora estava em seu auge, mais forte do que nunca. O movimento feminista ressurgia amparado de outros movimentos que desembocaram na década de sessenta e seguintes, a exemplo do movimento hippie, sexual. É neste momento que Stoller, Money e outros estudiosos lançam mão de teorias acerca do gênero, concebendo que gênero partia de um conceito social, contudo, havia uma naturalização em relacionar gênero ao sexo. Nesta época, surgem grandes propulsoras do feminismo e das questões de gênero, particularmente impulsionados por Simone de Beauvoir16 e sua obra Segundo Sexo, publicado em 1949, com destaque para Butler17e Scott18. e No Brasil, dentre muitas, merece especial realce Heleieth Saffioti19, devido à sua atuação com trabalhos envolvendo as relações de gênero. Todas estas estudiosas, ao seu modo, possibilitaram através de suas investigações criar um cenário em que as pudessem se inserirem, serem ouvidas, enfim existirem. Ainda, nessa onda de conquistas femininas, a promulgação da Constituição Cidadã, em 198820, oportunizou à mulher igualdade jurídica frente ao homem, inviabilizando formalmente a distinção entre os sexos, o que é perceptível através do artigo 5° da norma supra, a qual define que homens e mulheres são iguais em direito e obrigações. A Carta Magna é um marco no combate à desigualdade de gênero, uma vez que os instrumentos legais até 1988 visavam garantir de todo modo os direitos masculinos, pois a mulher raramente via-se inseridano cenário político, econômico e social. Esse é o entendimento de Moraes21: A Constituição de 1988 trouxe modificações aguardadas no século passado, como o reconhecimento da união estável como entidade familiar (art. 226, § 3º), a entidade formada por apenas um dos progenitores (§ 4º) e a igualdade plena de direitos do homem e da mulher na sociedade conjugal (§ 5º), além de reconhecer a possibilidade 16 Filósofa e escritora francesa, Beauvoir foi a voz do feminismo moderno e dona da célebre frase: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. 17 Filósofa e escritora americana. Sua marca está nas questões de gênero, além de ser uma das pioneiras na teoria queer. 18 Historiadora e escritora americana. Realizou estudos acerca do gênero, partindo de uma abordagem histórica. 19 Socióloga brasileira. Em sua obra gênero, patriarcado e dominação feminina relata como as relações de poder são bem estruturas através do sistema patriarcal. 20 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. 21 MORAES, Guilherme Peña de et al. 30 Anos da CF e o Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2018.p.496. 18 de divórcio, sem qualquer adjetivação (§ 6º) e a assunção legal de direitos iguais para os filhos, não importando sua origem, inclusive adotiva (art. 227, § 6º). Traçando um paralelo aos avanços conquistados pelas mulheres transgêneros neste período, o Conselho Federal de Medicina, em 1997, pela primeira vez regulamenta a cirurgia de redesignação sexual, proporcionando aos indivíduos que não se identificam com seu sexo biológico a realização de mudança para o gênero identificado. Em 2006, o Ministério da Saúde entende pela implementação deste tipo de cirurgia pelo SUS, acarretando na inclusão de mais pessoas que não se sentem contentes com sua genitália. Nesse ínterim, há também a revogação da Lei Civil de 191622 pelo Código Civil de 200223, afirmando a igualdade trazida pela Constituição de 1988, além de dispor que a mulher não era mais incapaz. Contudo, mesmo diante de direitos alcançados ao longo de muitos séculos, a mulher ainda ocupa uma posição subalterna frente ao homem, posto que está estigmatizado padrões sociais tendentes a inferiorizar a mulher em razão do gênero, assim muito bem pontua Marodin24: A estrutura social é que prescreve uma série de funções para o homem e para a mulher, como próprias ou ‘naturais’ de seus respectivos gêneros. Essas diferem de acordo com as culturas, as classes sociais e os períodos da história. [...] A maioria dessas caracterizações, estabelecidas pela sociedade, é transmitida via família, pois essa é a fonte fundamental de transmissão de normas e valores da cultura, ensinando aos indivíduos o que significa ser masculino ou feminino a partir do nascimento. Cabe também a valorosa menção ao instituto da Lei Maria da Penha, edificado no ano de 2006. Apesar de muito recente em termos de legislação, a lei é um importante instrumento no combate à violência em razão do gênero, além de ser uma resposta a uma sociedade machista e patriarcal, que insiste em perpetuar práticas de dominação e discriminação dos que não se encaixam em normas há muito afirmadas. Outrossim, A Lei Maria da Penha traz em seu bojo normas destinadas não só a proteção da mulher, como também impõe medidas ao agressor que não são apenas de caráter punitivo, mas muitas com viés educativo. Considerando os marcos de gênero, será enfrentado neste trabalho se é possível a extensão do supracitado instituto legal aos sujeitos que não são biologicamente mulheres, mas se comportam e entendem assim. 22 BRASIL. Lei n° 3071, de 01 de janeiro de 1916. Brasília/DF: Presidência da República, [2020]. 23 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002. 24 MARODIN, Marilene. As relações entre o homem e a mulher na atualidade. In: STREY. Marlene Neves. Mulher, estudos de gênero. São Leopoldo: UNISINOS, 1997. p. 9-18. 19 Portanto, as posições adotadas pelo homem e mulher não são biologicamente estruturadas, são fruto de um processo histórico, cultural e socialmente construído, em que o passado atua constantemente no presente. O que permite compreender como determinadas práticas sociais que aparentemente são julgadas ultrapassadas permeiam as mais simples relações do cotidiano. 2.2 Gênero e Sexualidade Com estudos mais avançados em relação ao que vem a ser gênero e o implemento de seu conceito, tornou-se essencial diferenciar gênero de sexo. Porquanto ambos eram percebidos através de uma ótica binária, concatenando a exclusão daqueles que não se encaixavam nessa perspectiva. Diante disso, necessário é trazer à tona o conceito de sexo. Conforme Szaniawski25: “o sexo constitui um dos caracteres primários da identificação da pessoa e pode ser definido como o conjunto de características que distinguem o macho da fêmea”. Tem-se, em concordância com essa definição, o sexo como meio necessário à diferenciação do que é ser homem e mulher. O que faz perceber o sexo biológico de forma elementar à caracterização do sujeito. Alguns doutrinadores definem que o sexo biológico não persiste por si só, uma vez que pode ser composto por outras atribuições como; morfológicas, endócrinas, genéticas e psíquicas. Segundo Choeri26: O sexo genético, como o próprio nome o diz, é aquele definido geneticamente, através da realidade cromossômica: XX para mulher, XY para o homem. O sexo endócrino é o formado pelas glândulas sexuais (gônadas), testículos e ovários, destinadas a produzir hormônio e por outras glândulas (tiroide e a epífese), que atribuem outros traços de masculinidade e feminilidade [...]. O sexo morfológico diz respeito à forma ou aparência de uma pessoa na conformação anatômica de seus órgãos genitais, da presença da correspondência dos caracteres sexuais secundários (mamas, pilosidade, timbre de voz) com os primários (pênis, vagina, escroto, útero, testículos, trompas, ovários). No que tange ao sexo psíquico, para Szaniawski, o mesmo é formado por inúmeras características decorrentes das reações psicológicas do sujeito, as quais são percebidas em determinadas situações. 25 SZANIAWSKI, Elimar. Da noção de transexualidade. Limites e possibilidades do direito de redesignação do estado sexual: estudo sobre o transexualismo: aspectos médicos e jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 29-69. 26 CHOERI, Raul. “Transexualismo e identidade pessoal: cirurgia de transgenitalização”. In: BARBOZA, Heloisa Helena; BARRETO, Vicente de Paulo (Orgs.). Temas de Biodireito e Bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 239-240. 20 Paralelamente a essas atribuições, no decorrer da história, o sexo passou a ser percebido como elemento de formação de um processo subjetivo do indivíduo, em que são colocadas as particularidades intrínsecas da sexualidade como norteadoras de uma sociedade. Nesse mesmo entendimento, argumenta Altmann27: A sexualidade é o que há de mais íntimo nos indivíduos é aquilo que os reúne globalmente como espécie humana. Está inserida entre as "disciplinas do corpo" e participa da "regulação das populações". A sexualidade é um "negócio de Estado", tema de interesse público, pois a conduta sexual da população diz respeito à saúde pública, à natalidade, à vitalidade das descendências e da espécie, o que, por sua vez, está relacionado à produção de riquezas, à capacidade de trabalho, ao povoamento e à força de uma sociedade. De outro modo, a partir dessa ideia de sexualidade como norteadora da subjetividade do indivíduo, esta é vista como instrumento de poder na era moderna, de modo que o sexo é proveniente de um conjunto de práticas bem definidas, interligadas ao prazer e ao conhecimentode si mesmo, conforme aponta Foucault28. Com essa construção sobre um saber especializado na sexualidade, o sexo se torna um ideal de controle sobre os corpos, intensificando um padrão de sexualidade, em que aqueles que não se encaixam nesse padrão são tidos como transgressores. Após tratar sobre sexo/sexualidade, cumpre diferenciá-lo de gênero. De acordo, com o disposto no início deste capítulo, gênero e sexo eram compreendidos como uma categoria binária, que não se opunha. De acordo com esse entendimento, o feminino está naturalmente associado ao masculino, não compreendendo outras formas de identidades. Contrário a esse pensamento, urge salientar os desenvolvimentos na área científica, já mencionados no tópico anterior, que estabeleceram gênero e sexo como objetos independentes entre si. Adentrando nos trabalhos acerca das categorias gênero e sexo, Butler29 fundamenta sexo enquanto característica biológica e gênero como algo que se constrói: Se o gênero é o significado cultural que os corpos sexuados assumem, então, um gênero não pode decorrer de um sexo em nenhuma forma. Levado ao seu limite lógico, a distinção sexo / gênero sugere uma descontinuidade radical entre corpos sexuados e gêneros culturalmente construídos [...]. Essa divisão radical do sujeito do gênero levanta ainda um outro conjunto de problemas. Podemos nos referir a um "determinado sexo" ou um "gênero dado" sem primeiro investigar como o sexo e / ou gênero é dado e através de que meios? E o que é "sexo" de qualquer maneira? É 27 ALTMANN, Helena. Orientação Sexual nos parâmetros curriculares nacionais. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, vol. 9, n.2, 2001. 28 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber, tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J.A Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal. 1988. 29 BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão de identidade. Tradução de Renato Aguiar. 8.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. 21 natural, anatômico, cromossômico, ou hormonal [...]?. O sexo tem uma história? Será que cada sexo tem uma história diferente, ou histórias? [...] Não faria sentido, então, a definir o gênero como a interpretação cultural do sexo, se o sexo em si é uma categoria de gênero. Gênero não deve ser concebido apenas como a inscrição cultural de significado sobre um sexo pré-dado (uma concepção jurídica); gênero deve designar o aparelho de produção em que os próprios sexos são estabelecidos [...] a produção do sexo como a pré-discursivo deve ser entendida como o efeito do aparelho de construção cultural desenhado por sexo. Relacionado a esse entendimento, Dias30 pontua: “A distinção entre sexo e gênero é significativa. Enquanto sexo está ligado à condição biológica do homem e da mulher, gênero é uma construção social, que identifica papéis sociais de natureza cultural, e que levam a aquisição da masculinidade e da feminilidade”. De fato, pode-se compreender sexo ao que é biológico, do ponto de vista morfológico, anatômico, fisiológico, isto é, o que concede características físicas ao indivíduo, de maneira que gênero está ligado ao social, ao que é culturalmente construído e, por si, atribuí papéis sociais à mulher e ao homem. 2.2.1 Identidade de Gênero Neste subtópico, será feita uma breve análise sobre identidade de gênero, visando complementar o estudo tão essencial sobre gênero. A expressão identidade de gênero surgiu por meio de um tratamento realizado em um menino de cinco anos de idade, que apresentava problemas com sua “identidade de gênero”. Devido a isso, o psicanalista Ralph Greenson, analisou o comportamento do menino que tinha uma certa compulsão por usar roupas de sua mãe e sua irmã. Para que ocorresse o estudo, Greenson convidou o garoto para ficar em sua casa durante um tempo e intensifica o relacionamento dele com seu pai. Ficando constatado, posteriormente, que o garoto passou a ter comportamento tido como “masculinizado”31. Em linhas gerais, Identidade de Gênero pode ser compreendida como a identificação do sujeito em relação ao seu gênero, e não precisamente ao seu sexo biológico, ou seja, a forma como ele se entende, homem ou mulher, independentemente de sua genitália. Sendo que essa identidade não é única e permanente, de modo que é fruto de um constante processo de socialização. 30 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência contra a mulher. 3 ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p.44. 31 LATTANZIO, Felippe Figueiredo; RIBEIRO, Paulo de Carvalho. Nascimento e primeiros desenvolvimentos do conceito de gênero. Psicol. clin. Rio de Janeiro, v. 30, n. 3, p. 409-425, dez. 2018. 22 Nesse diapasão, Foucault32 estabelece que definir a identidade de gênero pela vinculação do órgão genital masculino ao homem e do órgão genital feminino à mulher remete ao século XIX, quando o sexo exercia papel dominador sobre o indivíduo. Logo, a identidade de gênero não se confunde com sexualidade, pois essa não está necessariamente ligada à genitália de nascimento. Importante consignar, portanto, que há uma distinção entre identidade de gênero e orientação sexual. A orientação sexual é pertinente à atração sexual que o indivíduo sente, seja em relação ao mesmo sexo, seja em relação ao sexo oposto, ou ainda em relação a ambos. Desta forma, uma mulher em se tratando de sua orientação sexual, pode vir a se sentir atraída por um homem, por uma mulher, ou pelos dois e vice versa. Segundo Louro, a orientação sexual se refere à forma como os indivíduos gozam sua sexualidade, ao se relacionarem com pessoas do mesmo sexo, de outro sexo, de ambos, ou ainda de nenhum. Ao passo que a identidade de gênero concerne à maneira como os indivíduos se identificam, podendo se entender como homem ou mulher, a partir da percepção social e histórica vivenciada.33 Pensar a identidade de gênero é, então, conceber que os sujeitos se identificam a partir daquilo que é construído consoante às suas vivências, do que conseguem apreender das relações que desenvolvem. A concepção de masculino e feminino é decorrente dessas práticas, e não indispensavelmente do órgão genital que se nasce. 2.3 Diferenciação entre transgênero, transexual e travesti Consoante ao apontado por Foucault, a partir do século XVIII surge um grande interesse entre os estudiosos em desvendar a sexualidade, que até então era repreendida e pouco se falava sobre ela, estando o sexo à mercê das instituições de poder34 que regulamentavam como os indivíduos deviam agir em relação a este, considerando que aqueles que destoassem do critério imposto eram vistos como subversivos. Embora a Organização Mundial de Saúde (OMS) não considere mais a transgeneridade como um transtorno mental35 por tê-la retirado da lista da CID, ainda há um constante apelo de determinados setores da sociedade em classificá-la como uma patologia, o que dificulta 32 Ibid. p. 65. 33 LOURO. Guacira Lopes. Gênero, Sexualidade e Educação: uma perspectiva pós estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997, p.09. 34 Ibid. p.15 35 OMS retira a transexualidade da lista de doenças mentais. El País, Madri, 18 jun.2018. 23 identificar os sujeitos tal qual sua percepção de gênero. Diante disso, para fins de conceituação e melhor compreensão do tema, será feita a classificação de cada sujeito transgênero, transexual e travesti. Transgênero é um termo amplo que engloba todas pessoas que não se compreendem conforme o sexo que lhes foi atribuído ao nascer, transitando entre os gêneros masculino e feminino, dentro deste termo podem estar inseridos transexuais e travestis. Entendido isso, será utilizado neste trabalho o termo transgênero para estabelecer relação às demais pessoas que se identificam/classificam enquanto travestis ou transexuais.O transexual masculino é o indivíduo que apresenta cromossomo do tipo 46, XY o qual é responsável por atribuir características masculinas ao Homem. No entanto, esse sujeito se identifica e quer ser visto como pertencente ao sexo feminino, já o transexual feminino possui cromossomo do tipo XX, que por sua vez concebe atribuições femininas à mulher, contudo, deseja ser reconhecida enquanto pertencente ao sexo masculino36. Destaca-se que o transexual não se identifica com o seu sexo biológico, e por isso possui grande aversão ao seu corpo. Muitos procuram através de tratamentos hormonais, intervenções cirúrgicas, como próteses de silicone, no caso de transexual feminino ou a retirada das mamas, quando se trata de transexual masculino, e recorrem à cirurgia de redesignação sexual e mudança de nome para chegarem ao corpo e identidade desejados. Ressalta-se que o transexual se “diferencia” dos demais indivíduos não pela sua orientação sexual, mas sim, como já exposto, por não reconhecer que seu gênero está adequado ao seu sexo anatômico. Podendo um homem transexual sentir atração por uma mulher, e por isso ser considerado heterossexual, caso sinta atração por um homem ser considerado homossexual, de modo que o mesmo se aplica à mulher transexual. Por sua vez, a travesti – as pessoas que assim se classificam preferem usar o termo no feminino - utiliza vestimentas e acessórios femininos e não necessariamente sente insatisfação pela sua genitália. A travesti vivencia papéis de gênero feminino, mas não sente a necessidade de modificar seu corpo para se adequar a esse gênero. Para Barbosa37: [...] A profunda identificação com o outro gênero é relacionada ao termo transexual e aos transtornos de desordem de identidade de gênero, enquanto a categoria travesti é 36COSTA, Elaine M, F.; MENDONCA. Berenice B. Manejo clínico de sujeitos transexuais. Arq Bras Endocrinol Metab. 2014, vol.58, n.2, pp.188-196. ISSN 1677-9487, 2014. 37BARBOSA, Bruno César. Imaginando trans: saberes e ativismos em torno das regulações das transformações corporais do sexo. 2015. Tese (Pós-Graduação em Antropologia Social) –Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. 24 compreendida como um distúrbio do desejo sexual. O desejo da cirurgia de transformação genital, a repulsa ao órgão genital e a identificação com o outro gênero desde a mais tenra idade, são relacionados a categoria transexual. Os desvios do prazer sexual – as perversões /ou parafilias – são relacionados a categoria travesti. Logo, enquanto os transexuais sofrem de um transtorno de gênero, travestis sofrem de um transtorno sexual. Apreende-se, então, que apesar das travestis viverem ainda que integralmente de maneira feminina, sentem-se em harmonia com o sexo designado. Evidenciando que, pelo motivo das travestis terem o desejo de vivenciar o sexo oposto, nada tem a ver com os transexuais, pois estes de fato desejam pertencer ao sexo contrário ao de nascença. Isto posto, é importante colocar que essas categorias estão em constante mudança e, a depender do contexto e da época, sua classificação toma novos significados. 25 3 VIOLÊNCIA 3.1 Conceito e formas de violência contra a mulher Historicamente, a violência era intrínseca ao homem primitivo, que desta usava como meio de imposição de poder em detrimento a outros homens, tidos como mais fracos, para com isso dominá-los e expandir seu poderio. As primeiras civilizações, desta maneira, se estruturaram através da violência, a qual persistiu em todos os graus de sociabilidade humana. A violência, apesar de ressignificada pelo contexto social de cada época, traz em seu bojo o conceito geral de disposição em causar mal deliberado a si ou a outrem. Para melhor conceituar a violência, insta explorar a sua definição segundo o Relatório Mundial sobre Violência e Saúde da OMS38: Existem várias maneiras de se definir a violência. A Organização Mundial da Saúde define violência como: O uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação. Muszkat39 entende que a violência pode ser compreendida como uma ação de força física, permeada pelo excesso de poder, tendente a atingir a integridade física, moral, emocional, religiosa, familiar ou profissional do sujeito. A necessidade de conceituar e definir a violência se deve ao ensejo desta figurar como um dos maiores casos de saúde pública em escala mundial. Mesmo a violência estando presente desde os primórdios da humanidade, a sua proporção se elevou significativamente no século passado, a julgar pelas inúmeras atrocidades decorrentes das duas últimas guerras que assolaram a humanidade, permanecendo os seus vestígios até os dias atuais, posto que neste século a maioria das mortes apontava para causas violentas. Tendo isso em vista, inúmeros tratados e convenções, ainda no século XX, foram criados visando introduzir em contexto nacional e internacional, o combate a qualquer forma de violência e, por sua vez, garantir aos indivíduos proteção jurídica dos direitos humanos. Os movimentos feministas da década de 60, conjuntamente com o apogeu dos direitos humanos, deram início à luta pela igualdade entre os sexos, tal qual a contenção da violência que constantemente permeava o meio feminino. Assim, ao lado dos institutos jurídicos voltados 38 KRUG, E.G. et al. World report on violence and health. Geneva: World Health Organization, 2002. 39 MUSZKAT, Malvina; MUSZKAT; Susana. Violência familiar. São Paulo: Blucher, 2016. p.36. 26 à proteção do homem, surgiu a obrigação de resguardar os direitos da mulher vítima de violência. Cumpre neste momento estabelecer quais são as modalidades de violência contra a mulher. Diante do mencionado anteriormente por Muszkat, a violência pode ser refletida em vários aspectos do indivíduo (moral, físico, psicológico, emocional). Por isso, se faz necessário compreender as diversas formas de violência e sua configuração. Considerando que, ingenuamente, quando se fala em violência, há uma tendência de apenas relacioná-la a uma agressão física. A violência contra a mulher, de acordo com a Convenção de Belém do Pará40, resulta de qualquer conduta comissiva ou omissiva, de agressão, inferiorização ou coerção ao sexo feminino, resultando-lhe dano, morte ou sofrimento físico, psicológico e sexual, tanto no âmbito público quanto no privado. O artigo 7° da Lei n° 11.340/06, em seu rol meramente exemplificativo41, prescreve quais são as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, dentre as quais a violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. As modalidades elencadas no aludido artigo não ostentam pena, mas são associadas a outras condutas que configuram crimes. A modalidade violência física contra a mulher pode ser compreendida como qualquer conduta que ofenda a sua integridade e saúde corporal. Valendo o agressor de sua força física para agredir a vítima, ressalta-se que nesta modalidade, a ofensa pode deixar ou não marcas aparentes no corpo da vítima. No tocante à violência psicológica, esta resulta da ação de diminuição da autodeterminação da vítima, infligindo lhe prejuízo à sua saúde mental e pessoal. Ou seja, o agressor em uma série de práticas abusivas (ameaça, constrangimento, manipulação, vigilância, perseguição contumaz) coloca a vítima na situação em que ela não consegue realizar suas próprias escolhas, impedindo-a de desenvolver sua autonomia. Por sua vez, a violência sexual se restringe à conduta de obrigar a mulher a praticar ou manter relação sexual indesejada, além de limitar a sua liberdade sexual e reprodutiva. A exemplo deste tipo de violência, tem-se o aborto forçado,a prostituição, o estupro, uso de contraceptivos contra sua vontade, ou ainda quando é coagida a utilizar ou comercializar sua sexualidade. Já a violência patrimonial resulta da compreensão de que há violação aos direitos econômicos da vítima. Pois a conduta tipificada implica na retenção, subtração, destruição 40 A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. 41 Demais formas de violência contra a mulher podem estar taxadas em outros dispositivos legais. 27 parcial ou total dos objetos da mulher, bem como instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores, direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades. Por fim, a violência moral, podendo ser entendida enquanto qualquer prática que configure calúnia, difamação ou injúria. Consistindo a calúnia em imputar falso crime a alguém. Na difamação, há a imputação de um fato ofensivo à reputação do sujeito, e a injúria, trata-se de atribuir fato desonroso à dignidade de outrem, designando-lhe qualidades negativas. Denota- se, inclusive, que a violência moral está amplamente ligada à violência psicológica, pois ambas necessitam da degradação da imagem feminina. 3.2 Patriarcado e dominação feminina Inicialmente, convém suscitar as heranças deixadas pelo patriarcado na sociedade brasileira. O poder patriarcal estruturou as organizações familiares, criando padrões éticos e sociais que deveriam ser seguidos. De acordo com esse poder, a figura paterna era responsável por manter e sustentar a família, centrando-se neste todo o poder familiar, enquanto à mulher cabia apenas os trabalhos domésticos, trato com os criados e a criação dos filhos. A mãe só poderia exercer o poder sobre os filhos caso o pai viesse a falecer. Inobstante a essa definição, o patriarcado também compreendia a relação dos grandes proprietários de terras com seus escravos e outros bens, o que não será aqui abordado, por não ser o foco deste trabalho. O poder patriarcal, de acordo com Engels42, remonta à pré-história, em que o homem já detinha poder sobre a mulher, o que se centraliza no estabelecimento da propriedade privada, quando o homem passou a ser dono de inúmeras propriedades. Para não ter seus bens divididos, necessitava controlar a reprodução feminina por meio da monogamia. Outrossim, o sexo feminino consoante ao patriarcado, via-se recolhido à esfera da família, recluso a todas as manifestações provenientes do meio privado, podendo deste sair apenas para frequentar lugares tidos como adequados a uma dama, conforme bem leciona Leal: “O espaço feminino delimitava-se à missa, único local em quem poderiam romper minimamente com sua clausura, pois a rua era um ambiente no qual estavam aptos a frequentar apenas os homens e as prostitutas, única mulher que poderia caminhar sem maiores restrições”43. 42 Ibid. 43 LEAL, José Carlos. A Maldição da Mulher: de Eva aos dias de hoje. São Paulo: Editora DPL, 2004, p.168. 28 O ideal de família, exaltado pelo patriarcalismo, oportunizou a disseminação de seus valores para todo o espaço público, notadamente às estruturas políticas, sociais, de consumo que daí ratificaram as condutas centralizadas em um padrão masculino, branco e heterossexual. A partir disso, ao lado do poder familiar estava a igreja, a qual exercia um papel fundamental nas questões sociais, sobremaneira nas relações familiares. Muitas atitudes discriminatórias, autoritárias, que visavam tão somente subjugar o feminino eram aceitas e legitimadas pela igreja à época pois a religião educava as mulheres para o lar. Com o apoio desta instituição que mandava e desmandava na era colonial, a instituição familiar exercia sua dominação conforme lhe convinha. Portanto, os papéis desiguais assumidos pelas mulheres e homens eram naturalizados, pois se atribuíam espaços e funções específicas a cada um, ao passo que até mesmo o Direito concebia essa desigualdade e a confirmava através de ordenações e decretos, nas palavras de Porto44: [...] do reconhecimento sociológico de que não há, substancialmente, uma igualdade entre homens e mulheres. Tal isonomia em terra brasilis, predominantemente formal, circunscrita está a um inarredável princípio constitucional, refletido múltiplas vezes na legislação ordinária, todavia não se transferiu completamente da solenidade de textos constitucionais para a práxis cotidiana. [...] Para além dessa percepção, Almeida afirma que o patriarcado se fundamenta em um sistema de dominação estrutural e institucionalizado: “É um sistema de dominação que se faz presente nas diferentes instituições sociais, desde a família ao Estado, apresentando-se em todos os espaços da sociedade”45. Nesse contexto, é possível compreender o patriarcado não mais como um fator isolado e derivado apenas de práticas masculinas, em virtude de sua propagação e naturalização em todo seio social, denota-se a todos os indivíduos desta sociedade, a confirmação de práticas reiteradas de exploração e opressão das mulheres. Necessário, também, levar em consideração a problemática da violência contra a mulher enquanto fruto deste sistema patriarcal. Diante do mencionado alhures, a violência foi instaurada como meio de expansão de domínio do homem primitivo. Nesse ínterim, o patriarcalismo se usa da violência, já enraizada, para propagar seu poder sobre o feminino. 44 PORTO, Pedro Rui da Fontoura. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER: LEI 11.340/06 ANÁLISE CRÍTICA E SISTÊMICA. 3. ED. PORTO ALEGRE: LIVRARIA DO ADVOGADO EDITORA, 2014. 45ALMEIDA, Janaiky Pereira de. As multifaces do patriarcado: uma análise de gênero nas relações homoafetivas.2010. Dissertação (Pós Graduação em Serviço Social – UFPE) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2020. 29 A condição em que se mantém a classe feminina, tida como submissa e inferiorizada, advém da dominação e exploração masculina calcada no poder patriarcal. Deste modo, as raízes de uma sociedade, comandada pela força masculina, assentavam as práticas mormente aceitas em uma época antiga e que, devido a sua estruturação, restou configurada até a atualidade. O patriarcado pode ser entendido como um sistema social cuja finalidade dispõe o poder primário do homem-pai diante da entidade familiar, exercendo sobre tal seu domínio e, por conseguinte, culminado na fragilização feminina. 3.3 Violência de Gênero Para melhor especificar o uso do termo violência, este será agora direcionado à sua análise em relação ao gênero, isto é, será abordado o fenômeno da violência perpetrada em razão unicamente do indivíduo ser mulher ou homem. No entanto, é cediço que a violência se perpetua, notadamente, em relação a esse primeiro indivíduo. Ao considerar a violência com vistas a uma imposição sobre a mulher, esta deve ser refletida como fruto de um processo histórico, simbólico, cultural e social. Pois sempre existiu uma tendência em qualificar o feminino como inferior, desigual, subalterno. Para manter esse padrão de inferiorização, necessário foi o uso da violência “para colocar as mulheres em seus devidos lugares”. Resultado disso, pode-se compreender essa violência como fruto do patriarcado: Norteado por um sistema patriarcal, a violência de gênero consolida essa estrutura, uma vez que configura a dicotomia do papel de ser homem e ser mulher, sendo reservado para essa um papel subalterno até nos seus relacionamentos, onde são submetidas a agressões por parte de seus parceiros e esses perpetuam essa violência por existirem mulheres que se sujeitam a esse papel. A violência é evidenciada de diversas formas, a construção social vigente em uma determinada cultura sofre influências do ponto de vista ético uma vez que isso induz essa caracterização, existindo certa dificuldade para isso, pois alguns pontos são perpetuados por estasociedade, configurando-se um fenômeno histórico e social. 46 Nessa compreensão, Freitas e Pinheiro47 articulam que a violência de gênero, não só abarca condutas praticadas por homens em detrimento das mulheres, de modo que o fenômeno resulta em um aparato muito bem construído nas esferas de poder, que por sua vez delimitam os comportamentos de cada gênero. 46 SILVA, Emília Guilherme da. et al. Violência de gênero sob o olhar das mulheres prostitutas, 2016. In: Revista de Enfermagem – UFPE on line. Anais eletrônicos. Recife: UFPE. p.02. 47 FREITAS, Lúcia; PINHEIRO. Vera Lúcia Pinheiro. Violência de Gênero, Linguagem e Direito: Análise de discurso crítica em processos na Lei Maria da Penha. Jundiaí: Paco Editorial, 2013. p.24. 30 Notadamente, é preciso esclarecer que há outras categorias de violência que guardam certa similaridade com a violência de gênero, contudo essas não se confundem por ser a violência de gênero mais ampla. Todavia a forma com que cada uma acontece será objeto de verificação a posteriori. Insta pontuar neste momento, nos dizeres de Safiotti48, o que é violência doméstica e familiar, com seus conceitos correlatos e diferenciações, para de maneira adequada entender a violência de gênero. Segundo a autora, a violência doméstica, em linhas gerais, imbrica na relação da vítima com o agressor, em que estes convivam em um mesmo espaço. A violência familiar, ao seu turno, abrange relações com laços de sangue e afetividade. Ambas as categorias se relacionam por tratarem da violência que acomete indivíduos inferiorizados em meio a um sistema de poder. Compreendido isso, pode-se verificar, por sua vez, que um sujeito pode sofrer tanto a violência baseada no gênero quanto a violência de caráter doméstico e familiar. É imprescindível, ao tratar sobre violência de gênero, inserir a violência sofrida por indivíduos transgêneros, ao passo que a violência de gênero não é cometida apenas por homens e exclusivamente contra mulheres cisgênero, muitos são os casos de violência cometida em face dos sujeitos que se comportam de acordo sua identidade de gênero. Os incompreendidos por uma sociedade que impele cada ser a viver com base em seu órgão sexual anatômico e, por divergirem dessa ordem, estão à mercê de serem constantemente violentados. A mulheres trasngênero vivem em uma situação de extrema fragilidade na sociedade brasileira por motivos de discriminação e preconceito. Uma maioria dessas mulheres acaba indo para o mundo da prostituição e das drogas, sem maiores expectativas de uma vida melhor. Deste modo, por estarem constantemente incluídas em um quadro de marginalidade, estão mais suscetíveis, de certo modo, a enfrentar episódios de violência. Segundo Silva et al apud Sousa et al49: Sobre a principal ocupação laboral das interlocutoras, eram majoritariamente cabelereiras e garotas de programa. As travestis e transexuais têm sido consideradas, no Brasil, como os principais alvos de violência na rua que, aliado à baixa qualificação e falta de oportunidade no mercado formal, encontram na prostituição um meio de renda, tornando-se alvo de mortes por fatores externos. Essa realidade de vida nas ruas, além de importar em agressões e assassinatos contra essas mulheres, implica também em uma menor qualidade de vida, visto que a expectativa de 48 SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo.2004. p. 44. 49 SOUSA, 2013 apud SILVA, Glauber Weder dos Santos et al. Situações de violência contra travestis e transexuais em um município do nordeste brasileiro. Rev. Gaúcha Enferm. Porto Alegre, v. 37, n. 2, e56407, 2016. 31 vida dessa população é de 35 anos consoante dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).50 Junte-se a isso a falta de oportunidades no mercado de trabalho, a baixa escolaridade, falta de apoio familiar são resultantes na saúde física e psicológica das transgênero, em decorrência disso, acabam cometendo suicídio. Os atos violentos contra transgêneros se exprimem como ataques, discriminações, preconceito, aversão, a contar também pelos vários tipos de violência tais como: sexual, física, emocional, psíquica e patrimonial. A violência psicológica, mesmo que não usualmente difundida pela mídia, também é uma preponderante para a vulnerabilidade da transgênero. Zucchi et al, em seu artigo intitulado “Bem-estar psicológico entre travestis e mulheres transexuais no Estado de São Paulo, Brasil”, realizam uma investigação sobre como as discriminações e violências são marcadores no desiquilíbrio psíquico das transgêneros: No nosso estudo, condições de desigualdade social e de exposição à violência simbólica e sexual estão associadas a um pior bem-estar psicológico de travestis e mulheres transexuais. Por outro lado, apesar da alta prevalência, a ausência de efeito da violência física e de chantagem, extorsão ou violência policial no bem-estar psicológico pode ser lida como a expressão de resiliência, resultado de um aprendizado de resistência e enfrentamento a estas condições do ponto de vista psicossocial. Mesmo que não plenamente, conseguir realizar transformações corporais desejadas e o respeito ao nome social materializam o reconhecimento da legitimidade de uma identidade ou expressão de se “poder ser quem se é de verdade”.51 Em suma, esses atos podem resultar na chamada transfobia. Podestá52, em sua dissertação reforça a transfobia enquanto elemento constitutivo do assassinato contra pessoas trânsgenero:“(...) a transfobia participa do grupo de violências de gênero, com sua especificidade característica, alcançando gravíssimas agressões físicas e assassinatos. Socialmente generalizada e acompanhada de crimes de ódio, a transfobia é um componente do genocídio trans no Brasil”. A despeito disso, a Antra53 promoveu um Boletim apontando o número de assassinatos contra pessoas transgênero no Brasil, de janeiro a outubro de 2020. O país segue sendo o recordista mundial em atentados contra a vida desse grupo. Mesmo diante da pandemia do 50 TRANSFOBIA compromete a saúde das mulheres trans. Medicina UFMG, Belo Horizonte, 16 mar. 2020 51 ZUCCHI, Eliana Miura et al. Bem-estar psicológico entre travestis e mulheres transexuais no Estado de São Paulo, Brasil. Caderno Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 35, n. 3, 2019. 52 PODESTÁ, Lucas Lima de. Os usos do conceito de transfobia e as abordagens das formas específicas de violência contra pessoas trans por organizações do movimento trans no Brasil. 2018. Dissertação (Pós- Graduação em Sociologia) -Universidade Federal de Goiás. Goiânia, 2018. 53 Associação Nacional de Travestis e Transexuais, fundada no ano de 2000, na cidade de Porto Alegre. 32 COVID-1954, os homicídios não cessaram, ganhando grande impulsão se comparado ao ano de 2019, conforme ressalta a associação:55 Os assassinatos de pessoas trans apresentam o quinto aumento consecutivo em 2020, muito pela falta de ações do estado que segue ignorando esses índices que vem sendo insistentemente divulgados e publicizado nos maiores veículos do país, e não implementou nenhuma medida de proteção junto a população LGBTI+, mesmo depois da decisão do Supremo Tribunal Federal que reconheceu a LGBTIfobia como uma forma do crime de racismo. O Atlas da violência/2020 denuncia, além do aumento de violência geral, a informação de que apenas 11 estados fazem levantamentos de dados sobre violência contra a população LGBTI+ a partir do SINAN e Disque 100, mas nenhum dos 26 estados e o DF trouxeram dados sobre assassinatos. Especialmente de travestis e demais pessoas trans, que vem enfrentando aumento desproporcional no número de assassinatos em relação a 2019. Até o dia 31/10/2020, todas as 151 pessoas assassinadas expressavam o gênero feminino, sejam travestis ou mulheres trans. Nos chamando atenção para recorrentes casosonde o ódio a identidade de gênero se faz presente, nos trazendo reflexões sobre como a violência de gênero como fator relacionado a essa violência. Conciliado a isso, há um grande déficit informacional para contabilizar de forma precisa os dados de violência contra a comunidade LGBT, bem como a escassez de políticas públicas para enfrentamento da transfobia e inserção desses indivíduos na sociedade. O que leva à cultura da dizimação em massa dos transgêneros, de modo que essa minoria não é vista pelas instituições governamentais. Essas informações, por si só, apenas reforçam a cruel realidade de pessoas trânsegenero no Brasil, que estão à margem da sociedade e por isso não têm seus direitos devidamente resguardados. 3.4 O contexto de violência doméstica, familiar ou relação íntima de afeto, baseado na Relação de gênero Tendo em vista os vários tipos de violência cometidos contra a mulher, quer no espaço privado, quer no espaço público, o advento da Lei n° 11.340/06, possibilitou delimitar o âmbito em que a violência ocorre, de sorte que a depender do local onde foi cometida, o legislador cuidou em agravar a punição pela prática do delito, conforme se verifica disposto no artigo 61, inciso II, alínea “f” e artigo 129, § parágrafo 9° (incluindo pela Lei Maria da Penha) ambos do Código Penal, “in verbis”: 54 Doença infeciosa causada por um vírus recém descoberto - corona vírus, e por sua vez pode causar síndrome respiratória grave. 55 ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS. Boletim n° 05/2020 - 01 de janeiro a 31 de outubro de 2020: Assassinatos contra travestis e transexuais brasileiras em 2020. 2020. 33 Art. 61 - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime: (...) II - ter o agente cometido o crime: (...) f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específica. Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: (...) § 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos. 56 Nesse sentindo, importa classificar cada contexto em que sobrevém a violência em razão do gênero feminino. Haja vista os ensinamentos de Bianchini:57 O agressor conhece a condição privilegiada decorrente de uma relação de convívio, intimidade e privacidade que mantém ou tenha mantido com a vítima, prevalecendo- se dela para perpetrar suas atitudes violentas. De fato, seguro do controle do “seu” território, dificilmente exposto a testemunhas o indivíduo violento aumenta seu potencial ofensivo, adquirindo a conformação de um assassino em potencial. Por essas especificidades, não se pode tratar indistintamente um delito que tenha sido praticado por um desconhecido e outro perpetrado por alguém de convivência próxima. O supramencionado instituto da Lei Maria da Penha, no artigo 5°, incisos de I a III, estabelecem quais são os âmbitos de incidência, a saber:58 I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. 56 BRASIL. Decreto Lei n° 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez. 1940. 57 BIANCHINI, Alice. Lei Maria da Penha: lei n. 11.340/2006 aspectos assistenciais, protetivos e criminais da violência de gênero. Coleção saberes monográficos. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p.35. 58 BRASIL. Lei n° 11340, de 07 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Brasília, DF: Presidente da República. [2020]. 34 Primeiramente, no âmbito da unidade doméstica, a autora citada acima afirma se tratar do ambiente com indivíduos já fixados, ou seja, as relações desses indivíduos são duradouras, independentemente ou não de vínculo familiar, neste âmbito se incluem os esporadicamente agregados, abrangendo pessoas com breve convívio entre si. Concluindo o legislador, por configurar a conduta, quando esta for cometida no meio em que a vítima conviva. Bianchini surge com a questão relacionada à doméstica, questionando a possibilidade de esta ser ou não tutelada pelo referido artigo, o que ainda se mostra um cerne conflituoso e sem resposta específica.59 Com efeito, a própria Lei Maria da Penha traz em seu interior o conceito de família, de acordo com Dias: “(...) a Lei Maria da Penha tenta definir família (art 5.°, II): “comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa”60. Neste segundo contexto, para que fique caraterizada a violência no cenário familiar (observa-se aqui qualquer tipo de família, para além daqueles ancorados pelo Código Civil e pela Constituição), insta comprovar que o agressor prevalecendo das relações familiares com a vítima, se usa de sua autoridade ou ligação familiar para agredi-la. A violência contra o gênero feminino nos âmbitos doméstico e familiar por muito tempo foi mascarada por ser a família considerada como uma entidade inviolável. Por isso, o que ocorria dentro deste núcleo não era de conhecimento de outras pessoas e as poucas que possuíam certo acesso ao ambiente não intervinham no cotidiano dos indivíduos que ali viviam, uma vez que entendiam como um problema atinente apenas ao homem e à mulher. Por último, a relação de afetividade da vítima com o agressor, dispensando a coabitação. Embora identificar o que é uma relação íntima de afeto seja um trabalho árduo, este contexto poderá ser interpretado como sendo um conhecimento profundo, de carinho e confiança que o agressor tenha pela vítima e vice-versa. Usando-se desta confiança e carinho da vítima para praticar violência em seu desfavor. Este contexto se mostra bastante incontroverso no que se refere a quais relações poderiam ser abarcadas pelo referido inciso. Bianchini traz julgados importantes sobre a relação de namoro ou ex namoro poder configurar relação íntima de afeto, demonstrando que apesar de não pacificada a controversa, alguns 59 Ibid. p.36-38. 60 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência contra a mulher. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.43. 35 tribunais entendem a possibilidade de incluir essas relações no âmbito da violência doméstica e familiar.61 Particularmente, o fenômeno violência especificamente em razão do sujeito mulher e do sujeito que se identifica enquanto mulher se perpetua por se tratar de um problema de grande complexidade, de proporções em escala mundial, pois atinge todas as esferas e classes sociais. Isso se deve a inúmeros fatores que favorecem para que aconteça esse tipo de prática. A julgar pela relação da vítima com o agressor, sendo esta de inferiorização, dominação,
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