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Estudos Em dirEito nEgocial E os mEcanismos contEmporânEos dE rEsolução dE conflitos Tânia Lobo Muniz MigueL eTinger de araujo junior organizadores 1a ediÇÃo birigui - sP 2015 Estudos Em dirEito nEgocial E os mEcanismos contEmporânEos dE rEsolução dE conflitos © 2014 Tânia Lobo Muniz e Miguel Etinger de Araujo Junior ©Direitos de Publicação Editora Boreal R. Aurora, 897 - Birigüi - SP - 16200-263 (18) 3644-6578 www.editoraboreal.com.br boreal@editoraboreal.com.br Direção e Edição Carlos Roberto Garcia Cottas Capa Carlos Roberto Garcia Cottas Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Estudos em direito negocial e os mecanismos contemporâneos de resolução de conflitos / organizadores Tânia Lobo Muniz, Miguel Etinger de Araujo Junior. -- 1. ed. -- Birigüi, SP : Boreal Editora, 2014. Vários autores. Bibliografia. ISBN 978-85-8438-024-4 1. Acesso à justiça 2. Negócios jurídicos 3. Solução de conflitos I. Muniz, Tânia Lobo. II. Araujo Junior, Miguel Etinger de. 15-03482 CDU-347.13 Índices para Catálogo Sistemático: 1. Negócios jurídicos : Direito civil 347.13 TODOS OS DIREITOS RESERVADOS: Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (artigo 184 e parágrafos do Código Penal) com pena de prisão e multa, busca e apreensão e indenizações diversas (artigos 101 a 110 da Lei 9.610/98, Lei dos Direitos Autorais). As opiniões contidas nos capítulos desta obra são de responsabilidade exclusiva dos seus autores, não representando, necessáriamente, a opinião dos organizadores e da editora desta obra. Orgulhosamente elaborado e impresso no Brasil 2014 consElHo Editorial da Editora BorEal Andréia de Abreu doutoranda e Mestre em engenharia de Produção pela uFsCar Antonio Celso Baeta Minhoto doutor em direito pela iTe-bauru Daniel Marques de Camargo Mestre em direito pela uenP Dayene Pereira Siqueira Mestre em educação pelo Centro universitário Moura Lacerda Dirceu Pereira Siqueira Pós-doutor em direito pela universidade de Coimbra - Portugal doutor e Mestre em direito pela iTe-bauru Jaime Domingues Brito doutor em direito pela iTe-bauru Leonides da Silva Justiniano doutor em educação pela unesP doutorando em Ciências sociais pela unesP Luciano Lobo Gatti doutor em Ciências pela uniFesP Marisa Rossignoli doutora em educação pela uniMeP Murilo Angeli Dias dos Santos Mestre em Filosofia pela usjT Sérgio Tibiriçá Amaral doutor em direito pela iTe-bauru prEfácio Um dos aspectos característicos da civilização ocidental moderna é a busca por caminhos que levem a uma sociedade mais justa, sendo entendimento consensual que um dos requisitos para que tal sociedade possa existir reside em um sistema jurídico que propicie solução tempestiva e adequada para os confl itos. Durante boa parte do século passado e neste início de século XXI, o debate no âmbito jurídico tem tido entre os seus aspectos centrais justamente essa questão. Em nosso país, chegou-se ao ponto de inserir na Constituição Federal o denominado direito à duração razoável do processo e à sua efetividade. Além disso, inúmeras alterações legislativas vêm sendo feitas com tal escopo, tendo sido recentemente aprovado pelo Congresso Nacional um novo Código de Processo Civil, cuja principal justifi cativa declarada para sua elaboração foi exatamente a busca por um processo mais célere e, consequentemente, uma Justiça mais efetiva. Indiscutível, pois, a atualidade do presente livro, DIREITO NEGOCIAL & MECANISMOS CONTEMPORÂNEOS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS, que constitui coletânea organizada pelo Curso de Mestrado em Direito Negocial da Universidade Estadual de Londrina, cumprindo o seu papel de fomentar pesquisas de temas ligados aos negócios jurídicos. O livro é constituído de relevantes estudos ligados às suas linhas de pesquisa, especialmente à de Acesso à Justiça, com a participação de alguns de seus docentes, bem como de professores e pesquisadores de conceituadas instituições de ensino do país. Trata-se de obra que retrata o andamento de profi cientes pesquisas realizadas pelos seus autores, divididas pelos organizadores em três partes. A primeira, denominada “ELEMENTOS GERAIS”, é constituída por quatro textos, que buscam analisar as bases fi losófi cas e epistemológicas de alguns modelos contemporâneos de solução de conflitos, jurisdicionais e alternativos, inclusive com reflexões também sobre o ensino jurídico desses meios alternativos. A segunda parte, “QUESTÕES PRÁTICAS”, examina três temas específicos: a modulação da autonomia da vontade e da autonomia privada em face da solução de conflitos envolvendo negócios jurídicos através do juízo arbitral; a utilização do modelo teórico do pluralismo jurídico na solução de conflitos urbanos; e a possibilidade do uso da arbitragem para julgar litígios decorrentes de contratos celebrados eletronicamente. Finalmente, a terceira parte, ASPECTOS DOS CONFLITOS INTERNACIONAIS, é composta por dois textos que examinam questões específicas: Como os organismos jurisdicionais dos Estados Unidos da América têm interpretado e aplicado o conceito de Jurisdição Universal com relação ao Estatuto sobre Responsabilidade Civil de Estrangeiros (Alien Tort Statute – ATS) no que tange à possibilidade de reparação civil a partir de demandas contra empresas transnacionais; e REFLEXÕES SOBRE A DECISÃO DA CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA NO CONFLITO ENTRE COLOMBIA E NICARAGUA, acerca dos limites territoriais nas águas do Caribe entre os dois países. Com a publicação, os autores contribuem decisivamente para o desenvolvimento e aprofundamento dos estudos sobre os temas objeto de seus trabalhos, diretamente ligados ao acesso à justiça, de grande relevância para a teoria e prática jurídicas. Parabenizo os organizadores e os autores pela iniciativa de disponibilizarem à comunidade jurídica o presente trabalho, recomendável tanto a estudantes e pesquisadores, quanto aos profissionais do direito em geral. Londrina, dezembro de 2014. Luiz Fernando Bellinetti autorEs Ademar Pozzatti Junior Mestre e Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor no Curso de Graduação em Direito do Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina (CESUSC). Adriana Silva Maillart Mestre e Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Coordenadora do Curso de Direito, professora e pesquisadora da Universidade Nove de Julho (UNINOVE), titular da disciplina “Gestão de confl itos, (des)construção do litígio e negociação”, do programa de mestrado “Justiça, Empresa e Sustentabilidade”. Ana Claudia Corrêa Zuin Mattos do Amaral Docente no curso de Graduação em Direito e no Programa de Mestrado em Direito Negocial da UEL - Doutora pela PUC-SP. Clodomiro José Bannwart Júnior Pós-doutorando em Filosofi a do Direito, como professor visitante na UNICAMP (Bolsista CNPq); Professor dos Programas de Mestrado em Direito Negocial e Mestrado em Filosofi a na Universidade Estadual de Londrina; Professor convidado nos Cursos de pós-graduação das seguintes instituições: Escola da Magistratura do Paraná; Instituto de Direito Constitucional e Cidadania – IDCC; e Pontifícia Universidade Católica/PR. É diretor vice-presidente do Instituto Latino Americano de Argumentação Jurídica – ILAAJ e Membro da Academia de Letras, Ciências e Artes de Londrina. Eduardo Saldanha Graduado Direito UFPR, Graduando Filosofi a UFPR, Mestre Direito UFSC, DoutorUSP, Pos-doutor Fordham University New York, Elve Miguel Cenci Doutor pela UFRJ e docente do Mestrado em Direito Negocial da Universidade Estadual de Londrina. Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa Professor Associado de Direito Comercial da USP. Mestre, Doutor e Livre-docente em Direito Comercial pela USP – Largo São Francisco. Membro do Centro de Mediação e Arbitragem da Câmara do Comércio Brasil-Canadá. Consultor e advogado. Jussara Borges Ferreira Docente do Programa de Mestrado em Direito da Universidade de Marília - UNIMAR e do Programa de Mestrado em Direito Processual e Cidadania da Universidade Paranaense - UNIPAR - Doutora pela PUC-SP. Miguel Etinger de Araujo Junior Docente do curso de Graduação em Direito e docente e coordenador do Programa de Mestrado em Direito Negocial da UEL - Doutor em Direito da Cidade pela UERJ PIETRO DE JESÚS LORA ALARCÓN Mestre e Doutor pela PUC/SP. Professor dos Cursos de Graduação e Pós-graduação da PUC/SP e do Centro Universitário ITE de Bauru/SP. Ricardo Soares Stersi dos Santos Mestre e Doutor em Direito pelo PPGD/UFSC. Pós-Doutorado na UFPE (2010-11). Professor do Curso de Graduação em Direito da UFSC; do Programa de Pós-Graduação (Mestrado) em Relações Internacionais da UFSC; do Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito da UFSC. Tânia Lobo Muniz Professora associada da Universidade Estadual de Londrina. Docente dos cursos de graduação, especialização e mestrado em Direito. Reflexões pertinentes ao projeto de pesquisa Perspectivas do Direito Internacional Contemporâneo: novas configurações das estruturas sociais e a busca da proteção e efetividade de direitos. Tarcisio Teixeira Professor Doutor de Direito Empresarial da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Mestre e Doutor em Direito Comercial pela USP – Largo São Francisco. sumário ParTe i eLeMenTos gerais CaPÍTuLo i ConFLiTo e dissenso na ConTeMPoraneidade: soLuÇÃo e Consenso a ParTir da Teoria CrÍTiCa HaberMasiana 2 Clodomiro José Bannwart Júnior CaPÍTuLo ii ConsideraÇÕes jusFiLosÓFiCas aCerCa dos Meios aLTernaTiVos Para a resoLuÇÃo de ConFLiTos: uMa PersPeCTiVa KanTiana 17 Elve Miguel Cenci CaPÍTuLo iii o ConFLiTo, os ModeLos de soLuÇÃo, o aCesso À jusTiÇa e a esTruTura oFiCiaL de soLuÇÃo de ConFLiTos 29 Tânia Lobo Muniz CaPÍTuLo iV reFLeXÕes sobre o ensino dos Meios aLTernaTiVos de resoLuÇÃo de ConFLiTos nos Cursos de direiTo 70 Ademar Pozzatti Junior Adriana Silva Maillart Ricardo Soares Stersi dos Santos ParTe ii QuesTÕes PrÁTiCas CaPÍTuLo V negÓCio jurÍdiCo e juÍzo arbiTraL: ModuLaÇao da auTonoMia da VonTade e da auTonoMia PriVada 99 Ana Claudia Corrêa Zuin Mattos do Amaral Jussara Borges Ferreira CaPÍTuLo Vi PLuraLisMo jurÍdiCo e direiTo negoCiaL eM ConFLiTos urbanos no sÉCuLo XXi 128 Miguel Etinger de Araujo Junior CaPÍTuLo Vii arbiTrageM eLeTrÔniCa 157 Tarcisio Teixeira Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa ParTe iii asPeCTos dos ConFLiTos inTernaCionais CaPÍTuLo iX jurisdiÇÃo uniVersaL e direiTo inTernaCionaL na suPreMa CorTe dos esTados unidos 186 Eduardo Saldanha CaPÍTuLo X reFLeXÕes sobre a deCisÃo da CorTe inTernaCionaL de jusTiÇa no ConFLiTo enTre CoLoMbia e niCarÁgua 203 Pietro de Jesús Lora Alarcón i ElEmEntos gErais conflito E dissEnso na contEmporanEidadE: solução E consEnso a partir da tEoria crítica HaBErmasiana Clodomiro José Bannwart Júnior Pós-doutorando em Filosofia do Direito, como professor visitante na UNICAMP (Bolsista CNPq); Professor dos Programas de Mestrado em Direito Negocial e Mestrado em Filosofia na Universidade Estadual de Londrina; Professor convidado nos Cursos de pós-graduação das seguintes instituições: Escola da Magistratura do Paraná; Instituto de Direito Constitucional e Cidadania – IDCC; e Pontifícia Universidade Católica/PR. É diretor vice- presidente do Instituto Latino Americano de Argumentação Jurídica – ILAAJ e Membro da Academia de Letras, Ciências e Artes de Londrina. 1 A VINCULAÇÃO ENTRE PÚBLICO E PRIVADO. A delimitação entre Estado, economia e empresas tem fi cado cada vez mais tênue diante da intensifi cação e dos desdobramentos alcançados com o processo de globalização, os quais ainda não são plenamente mensurados. A esse respeito, um fato inconteste deve ser considerado: “a globalização dos mercados, o entrelaçamento entre mercados fi nanceiros e a aceleração dos movimentos do capital levaram a um regime econômico transnacional, que limita sensivelmente o espaço de ações das nações”. (HABERMAS, 2003, p. 199) Em um texto de 1999, sobre o futuro da União europeia, Habermas questionava se “a força explosiva do capitalismo internacional, que domina o contexto cultural social e ecológico pode ser colocada novamente sob controle num plano supranacional e global, situado além dos Estados nacionais” (HABERMAS, 2003, p. 101). Isso porque, diante da perspectiva de mercados plenamente globalizados que reagem somente à linguagem lastreada pelo signo econômico, abre-se o fl anco para reinar o ceticismo de que os Estados nacionais capítulo i ConFLiTo e dissenso na ConTeMPoraneidade 3 repletos de burocracia e enfraquecidos politicamente não são mais capazes de cumprir, a contento, a “reinserção ecológica, social e cultural do capitalismo global”. (HABERMAS, 2003, p. 102) Os Estados Nacionais parecem ficar aquém frente ao processo de globalização, enquanto os mercados apontam desenvoltura além dos Estados nações e distanciados da burocracia estatal, conduzem, eles próprios, o processo de globalização. A questão, contudo, nesse cenário, é saber onde situar as empresas, mais precisamente os negócios jurídicos. As empresas, de modo geral, ao exercerem suas atividades além das fronteiras do Estado de origem são qualificadas de empresas transnacionais – (transnational corporations – TNCs) – sendo plenamente possível apontar ganhos, do ponto de vista empresarial, quanto à produção e distribuição global de bens. Vale, contudo, destacar, na visão de José Cretella Neto, que o conceito de empresa transnacional atualmente constituído pela doutrina, sobretudo com extensão no campo do direito internacional, compreende: [...] a sociedade mercantil, cuja matriz é constituída segundo as leis de determinado Estado, na qual a propriedade é distinta da gestão, que exerce controle, acionário ou contratual, sobre uma ou mais organizações, todas atuando de forma concertada, sendo a finalidade de lucro perseguida mediante atividade fabril e/ou comercial em dois ou mais países, adotando estratégia de negócios centralmente elaborada e supervisionada, voltada para a otimização das oportunidades oferecidas pelos respectivos mercados internos. (CRETELLA NETO, 2006, p. 27) Trata-se de conceito doutrinário, conforme faz constar, com caráter jurídico que veicula as condições de ações pragmáticas e utilitaristas que visam a efetivar, no quadrante da economia internacional contemporânea, uma transação fronteiriça pouco burocrática e altamente acelerada de capital e de tecnologias produzidas. Representa, nesse sentido, a impotência do Estado e do cidadão diante das coerções sistêmicas e anônimas de um capitalismo não domesticado politicamente e pouco sensível à preceitos normativos decorrentes de lastros democráticos, que se orienta na arena global apenas a dicção econômica. (HABERMAS, 2003, p. 220) Ao mesmo tempo em que os mercados foram ampliados e o nível de competição entre as empresas intensificadas, também, no nível doméstico, as organizações locais sofreram impactos decisivos desse mesmo processo. A empresa, então, deve ser vista tanto do ponto de vista local como também em relação à sua força de atuação no cenário global, destacando sobremaneira os impactos que resultam do seu poder econômico no âmbito, sobretudo, direiTo negoCiaL e os MeCanisMos ConTeMPorâneos de resoLuÇÃo de ConFLiTos4 transnacional. O que compete perguntar – e aqui seguimos Habermas – é saber a quem debitar as condições eficazes de resolução de conflitos numaarena tão ampla, tão globalizada e internacionalizada? Em outros termos: como criar condições de uma possível ‘responsabilidade global’ tida como necessária sob o ponto de vista normativo? (HABERMAS, 2003, p. 219) Esta tarefa cabe aos Estados limitados juridicamente pela fronteira dos Estados-nações ou ao mercado globalizado, insensível a qualquer outra esfera que não a econômica? Ou cabe aos intérpretes do setor privado que, ademais inflacionadas pelo poder econômico, devem assumir parte da responsabilidade dessa trágica “bomba ecológica” em construção, cujo potencial explosivo só se vê aumentar pelo devastador processo de produção, tão célere numa sociedade de consumo como a nossa. Tais colocações são importantes porque demonstram que a nossa época não sustenta mais a delimitação entre público e privado com a rigidez que a doutrina, por décadas, soube preservar. Os interesses privados que fomentam a realização dos negócios jurídicos não estão desvinculados das consequências coletivas e sociais. O privado perpassa o púbico e vice-versa. Para obter minimamente um delineamento para essa questão, é preciso dar conta de responder se os interesses privados – considerando nesse campo, sobretudo, as empresas – conseguem ir além da esfera de produção material e participar da produção simbólica dos valores socialmente compartilhados. Para isso é essencial a distinção entre produção material e produção simbólica posta por Habermas a partir da diferenciação dos conceitos de trabalho e interação. Nesse ponto, em particular, cabe notar as condições pelas quais as empresas dispõem de condições para se associarem ao plano da interação social, como portadoras de responsabilidade de ações éticas e morais, ultrapassando, assim, a esfera da legalidade jurídica. Hoje é fato inconteste que as empresas atualmente são pressionadas a se inserirem num leque normativo mais vasto, indo além da normatividade jurídica e econômica para contemplar igualmente pressuposições normativas advindas da ética e da moral. A questão persiste em saber até que ponto as empresas, na realização de negócios jurídicos, podem contemplar no seu dinamismo próprio e peculiar de reprodução material (bens, produtos e serviços), também as categorias de reprodução simbólica (ética, moral e Direito), reorientada pelo novo plano de validade da razão prática, derivada de uma moral pós-convencional. O que intercepta a ligação das empresas à moral pós-convencional é o conceito de “responsabilidade social”. O argumento da responsabilidade social, amplamente difundido na atualidade, provém do lastro da realidade histórica do ConFLiTo e dissenso na ConTeMPoraneidade 5 século XX com impactos decisivos em nossa época, na qual as empresas atuam de forma privada, alcançando lucros reservados aos acionistas com imenso lastro de poder econômico no âmbito global e local, porém com pouca atenção aos choques que causam ao ambiente e à sociedade em geral. A reivindicação de ações socialmente responsáveis da parte das empresas é exigência que visa o desdobramento de aspectos inerentes à produção econômica para o âmbito do bem estar social. Ou seja, é uma reivindicação de que as empresas, em razão do poder econômico que dispõem, também se ocupem com uma responsabilidade partilhada em relação à construção de uma sociedade menos desigual e mais justa. Cobra-se, nesse aspecto, que as empresas não apenas se abram para os discursos morais, mas, sobretudo, que tenham sensibilidade e consciência para o desenvolvimento da cidadania, já que estão implicadas nas teias do Estado democrático de direito. Não se trata da realização de atividades caritativas, antes, contudo, que as empresas sejam compreendidas no design democrático das sociedades contemporâneas e possam efetivamente contribuir para o processo de construção de uma sociedade plenamente capaz de realização da cidadania. É o que propõe alguns autores quando mencionam o sentido de “empresas cidadãs”. Não deixa, contudo, sem questionamento a preocupação de as empresas ocuparem o papel que antes competia ao Estado – enquanto dimensão pública – assumindo, desse modo, compromissos numa esfera eminentemente privada. Corre-se o risco de transmutação do sentido de cidadania que se mantém na relação entre indivíduo, sociedade e Estado, pelo sentido menor da relação de consumidor que resta entre indivíduo e empresa. A esse respeito, vale conferir a observação de Maria Cecília Prates Rodrigues. [...] quando as empresas deixam de ser unidades de produção econômica e passam a ser também promotoras de bem-estar social, elas ficam politicamente fortalecidas diante de outros atores sociais, como os sindicatos e o próprio Estado. No modelo welfare capitalism, corre- se o risco de contribuir para o esvaziamento do espaço público e da compreensão de que bem-estar social é um direito de cidadania, cuja garantia é obrigação de toda sociedade e não de determinados atores, por mais fortes e influentes que sejam (RODRIGUES, 2005, p. 29). Apesar da complexidade que o tema apresenta, compreende-se razoável que, antes de discutir as consequências possíveis do desdobramento de uma empresa cidadã, é preciso alongar a discussão que permita referendar teoricamente as condições de possibilidade de a empresa assumir seu papel de cidadã na configuração do Estado democrático de direito, concretizando negócios jurídicos que tenham um lastreamento jurídico e ético. Para esse intento é preciso avançar a respeito da possível inserção da empresa na dimensão direiTo negoCiaL e os MeCanisMos ConTeMPorâneos de resoLuÇÃo de ConFLiTos6 simbólica da sociedade, rompendo a leitura unilateral que a deixou aprisionada na dimensão restrita e exclusiva da produção material. É preciso, pois, restituir a vinculação entre os pressupostos públicos e privados. 2 A GLOBALIZAÇÃO: IMPASSES GERADORES DE CONFLITOS. Na medida em que a contemporaneidade se reconfigura numa autocompreensão de “sociedade complexa” e, ademais, consciente das fragilidades do Estado liberal e, também, do Estado social experimentadas ao longo do século XX, registra-se, por oportuno, que a responsabilidade social e, ademais, a viabilidade de consenso normativo seja permeada pela compreensão do Estado democrático de direito e a explicitação da própria complexidade da sociedade. De mais a mais, a atuação do Estado contemporâneo tem perdido, aos poucos, a autonomia diante das transgressões que extrapolam os seus limites, como a questão ambiental, o crime organizado, a atuação das Ongs e a quantidade crescente de negociações operacionalizadas por instituições paraestatais. Sem contar que diante da alta mobilidade das empresas e o deslocamento transnacional das mesmas, o Estado percebe reduzido a sua capacidade de intervenção. Nesse aspecto, cabe notar que a estrutura social complexa e plural da contemporaneidade, associada aos dilemas transnacionais impetradas pela globalização, requer uma leitura acerca da responsabilidade e da solução consensual de conflitos sociais fincada em relação bastante movediça entre Estado, economia, direito e sociedade. E nesse campo, é preciso, sobretudo, contar com uma leitura mais sociológica, ou seja, uma teoria social crítica capaz de, ao menos, tematizar a constelação histórica do tempo presente. Há no cenário mundial, por um lado, duas correntes que cintilam na defesa da globalização, e, por outro, uma corrente que deflagra a renúncia desse processo que conduz à configuração de uma aldeia global. Os defensores da globalização creem, de forma positiva, a desterritorialização e a ampliação das fronteiras do Estado. Apoiados na visão neoliberal, os defensores da globalização compreendem o Estado como um empreendedor, como se o mesmo fosse um Estado empresarial ocupado em assegurar a efetivação de infraestrutura como condição de competição no cenário global. O Estado, nesse caso, agiria baseado em critérios de rentabilidade e de eficiência de mercado para atrair omaior número possível de empresas em seu território. Nesse mesmo caminho seria a atuação do Estado para com os seus cidadãos, os quais teriam resguardas as condições de usarem suas liberdades negativas para perseguirem seus interesses individuais ConFLiTo e dissenso na ConTeMPoraneidade 7 e atuarem de forma competitiva em escala mundial. A leitura da globalização nessa perspectiva coloca-a numa base eminentemente econômica, fazendo girar e gravitar as relações sociais, políticas e empresariais no denominador comum de uma economia quase ortodoxa. Já os contrários à globalização, afetos ao protecionismo territorial e, em grande medida defensores de posturas etnocêntricas – quando não xenófobas –, enxergam o processo de integração transnacional de forma negativa. Por adotarem posturas nacionalistas e atitudes que buscam evitar a fragmentação social e a decomposição de padrões éticos e culturais, acabam inexoravelmente se posicionando contra os fundamentos igualitários e universalistas próprios da democracia. Cometem, a esse respeito, uma contradição performativa democrática. Habermas aponta que entre os favoráveis e os contrários à globalização abre-se uma terceira via com duas possíveis perspectivas: a primeira parte do pressuposto que de o capitalismo já não pode mais ser domesticado politicamente, visto que na arena global o capital não encontra mais limites. Para esta primeira perspectiva, defende-se que o capital deve ser amenizado nos limites e nas forças disponíveis do Estado nacional. A segunda perspectiva aponta como possível estruturar uma força política no plano supranacional para alcançar o mercado que fugiu ao controle dos Estados nacionais. (HABERMAS, 2003, p. 112) A primeira perspectiva da chamada “terceira via” defende que o Estado nacional não deve assumir apenas uma postura defensiva em relação ao processo de globalização e aos efeitos dos mercados mundializados. Deve, pois, adotar uma postura reativa, assumindo uma atitude ativa por meio de políticas públicas que permitam qualificar seus cidadãos para competirem no mercado global. Vigora, em suma, a ideia de que o investimento em “política pública” deve expressar a ‘qualificação de cidadãos’ com capacidade de assumirem os riscos impostos pela concorrência entre os países. Essa nova política social não é menos universalista do que a antiga, mas não se limita, em primeira linha, a proteger o trabalhador dos riscos habituais do mundo do trabalho: procura, ao invés disso, conferir às pessoas qualidades empresariais de ‘portadores de serviços’, que cuidam se si mesmos. A conhecida máxima ‘ajuda para a autoajuda’ adquire aqui o significado econômico de treino para a capacidade e a eficiência (fitness), que deve habilitar todos a assumirem responsabilidade pessoal e a desenvolverem iniciativas que lhes permitam firmar-se, de modo competente, no mercado. Deste modo, eles deixariam de ser ‘perdedores’ obrigados a recorrer ao seguro social do Estado. (HABERMAS, 2003, p. 113). Assim, o Estado passa a se ocupar de fomentar uma sociedade em que os atores – cidadãos, instituições, empresas, etc. – estejam aptos a assumirem direiTo negoCiaL e os MeCanisMos ConTeMPorâneos de resoLuÇÃo de ConFLiTos8 riscos e, sobretudo, responsabilidades pelas suas tomadas de decisões. Trata-se, fundamentalmente, de um modelo de Estado que se ocupa menos da igualdade social e mais da igualdade de oportunidades. Enfim, um Estado tipicamente liberal onde se “espera que todo cidadão se forme para ser ‘o empresário de seu próprio capital humano’” (HABERMAS, 2003, p. 114). Por fim, a segunda perspectiva da terceira via aposta na prioridade da política, na medida em que requer prioridade ao exercício da política em detrimento da lógica de mercado; a deliberação democrática à imposição sistêmica da economia. A polaridade de correntes demarca que o processo de globalização tem modificado substancialmente a constelação histórica da época contemporânea, exigindo um novo olhar à relação entre Estado, sociedade e economia que, em passado recente, era mantida nos limites estabelecidos pelas fronteiras dos Estados nacionais. O aspecto mais negativo desse processo, do ponto de vista estatal, é a ampliação do déficit democrático. Diz Habermas: “O Estado, cada vez mais emaranhado nas interdependências da economia e da sociedade mundial, perde, não somente em termos de autonomia e de competência para a ação, mas também em termos de substância democrática” (HABERMAS, 2003, p. 106). A perda de autonomia do Estado significa que o mesmo já não mais dispõe de força suficiente para a proteção de seus cidadãos quanto aos efeitos de decisões provenientes do âmbito externo, sobretudo, da esfera econômica. “Um capital que está atrás de novas possibilidades de investimento e de lucros especulativos não se submete à obrigação de se fixar numa nação, transitando livremente para cá e para lá” (HABERMAS, 2003, p. 109). É alusão corrente o destaque de que cada vez mais ocorrem tomadas de decisões, fruto de negociações interestatais, firmadas por interesses de grupos e de instituições privadas, destituídas da formação democrática da opinião e da vontade. Se, por um lado, o Estado perdeu aos poucos o substrato que lhe coube por séculos, a saber, o de mantenedor das instituições democráticas, por outro, é preciso ampliar, em um novo contexto e cenário, a inserção dos pressupostos democráticos aos novos personagens que, no plano transnacional, passam a dispor de significativo poder de decisão, entre elas, as empresas que promovem negócios jurídicos. Desse modo, é possível abalizar que os diagnósticos da estrutura social contemporânea apontam a responsabilidade social e a solução consensual de conflitos como conceitos ainda em construção, oriundos da mudança de valores e da ampliação de recursos tecnológicos que estabelecem, com grande intensidade, ampla rede de conectividade social. Resulta a responsabilidade social numa prática requerida por exigências do formato próprio das sociedades CONFLITO E DISSENSO NA CONTEMPORANEIDADE 9 contemporâneas, não deixando o conceito meramente limitado à adjetivação mercadológica de marketing social, impondo, ademais, que subsidie a solução consensual de conflitos. Se, por um lado, é possível destacar no escopo das teorias sociais o reconhecimento da responsabilidade social como conceito que integra os valores inerentes da sociabilidade, por outro, é plenamente compreensível o uso que as empresas fazem da responsabilidade social como fator de investimento e geração de rentabilidade. É um conceito que se projeta como exigência social e, ao mesmo tempo, como instrumento de gestão empresarial passível de agregar valor à produtos e serviços. Assim, a leitura do conceito adquire um caráter interdisciplinar, o que exige a aproximação de várias áreas do conhecimento, numa espécie de consórcio, capaz de aprender o seu real significado e sentido. As empresas, de modo geral, têm conferido atenção ao consumidor e aos cidadãos, os quais, cada vez mais exigentes, deliberam em razão de produtos e marcas certificadas pelo reconhecimento social. Logo, é possível afirmar que as marcas disponibilizadas no mercado estão, a todo o momento, cruzando a malha de interdependência de informações que circulam com rapidez, sobretudo, nas redes virtuais. As empresas têm consciência de que os seus produtos e serviços carregam uma marca a preservar e que o menor descuido pode arruinar definitivamente o empreendimento de anos. Daí a necessidade de ações transparentes, negociações legítimas, balanços publicizados e transmissão de confiança ao consumidor. São atitudes que oportunizam ganhos dos dois lados da moeda: para a empresa e, igualmente, para a sociedade. Por derradeiro, vale referendar que “a responsabilidade social cifra-se no conceito amplo e alargado da esfera pública, lócus capaz de referendar a legitimidade de ações que têm implicações, consequências e desdobramentospara além do caráter meramente privado” (BANNWART, 2012, p. 106). 3 ARBITRAGEM DE CONFLITO E FORMAÇÃO COLETIVA DA VONTADE. Dois elementos são fundamentais para resguardar a prática do exercício democrático no contexto do Estado de direito. De um lado, a soberania popular e, de outro, a preservação e o respeito das liberdades subjetivas. O que importa para o efetivo exercício democrático é a possibilidade de o Estado de direito resguardar os procedimentos e os pressupostos comunicativos necessários para a formação institucional da opinião e da vontade. A soberania expressa na formulação do Estado de direito, matizado por Habermas à luz da teoria DIREITO NEGOCIAL E OS MECANISMOS CONTEMPORÂNEOS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS10 do discurso, ocorre sem a encarnação real do povo, mas por intermédio de círculos de comunicação, de expressão anônima, de redes sociais e de outros meios de comunicação social. Isso, por sua vez, tende a assimilar a orientação de autonomia privada e pública, transplantada para a gestão política sedimentada no Estado de Direito. E na interface entre público e privado há formas distintas de processar a realização consensual de conflitos e de interesses. Habermas toma Parsons como referência ao apontar que as interações sociais ocorrem dotadas de padrões de comportamento e que, por esse motivo, há no seio da própria interação coexistem mecanismos de coordenação de ação que conduzem ora à influenciação (ação estratégica/ posição do observador), ora à geração do entendimento (ação comunicativa/ posição do participante). É importante notar que a coordenação de ações problemáticas ou de ações que exigem a tematização de seus fundamentos são avaliadas em duas perspectivas: ou se trata de conflitos individuais em que há a defesa de posições inconciliáveis, o que exige a regulação de conflitos interpessoais; ou se trata de situações em que há a necessidade de escolher dentre várias possibilidades uma que seja a mais viável para a realização de fins coletivos, circunstância em que se trata da orientação de objetivos e de programas coletivos. (DD I, p. 177) Habermas, então, distingue duas categorias analíticas em se tratando de resolução de conflitos e realização de fins coletivos: arbitragem de litígios e formação coletiva da vontade. A arbitragem de litígios visa a recuperação da estabilização de expectativas de comportamento, recompondo as condições do exercício da sociabilidade que foram frustradas em algum momento. Nesse caso o ponto fundamental perpassa pela resposta à seguinte questão: “Quais são as regras de nossa convivência?” Na arbitragem de litígios conta-se com duas possiblidades de encaminhamentos: ou o consenso ou a arbitragem propriamente dita. No primeiro caso, as partes podem chegar a um ponto comum quanto ao conflito instaurado mediado pela consciência dos valores que partilham comumente. Conta-se com um lastro de preceitos normativos (morais) e valorativos (éticos), cuja partilha comum, permite um direcionamento consensual do direcionamento a ser tomado diante do conflito. Há, no segundo caso, a possibilidade de apelar para arbitragem, por intermédio de um mediador, em condições de promover entre as partes uma negociação, apontando as vantagens e desvantagens, as compensações de interesses além das indenizações que possivelmente surjam. (DD I, p. 178) CONFLITO E DISSENSO NA CONTEMPORANEIDADE 11 Já a formação coletiva da vontade se refere à escolha de fins alcançados consensualmente. Nesse caso, o ponto destacado passa pela solução da seguinte questão: “Que tipos de objetivos queremos atingir e por qual caminho?” Na formação coletiva da vontade, cuja pretensão é a realização cooperativa de fins, conta-se com conceitos mais abstratos, como “autoridade” e “compromisso”. Uma autoridade goze de condições imprescindíveis para exercer, de forma autorizada e reconhecida, a hermenêutica de valores comumente partilhados com o objetivo de orientar a melhor forma de realização de fins coletivos. E envolve ainda o “compromisso” possível de ser assumido pelas partes litigantes no sentido de cooperação mútua na realização dos fins coletivamente almejados. (DD I, p. 179) Nos processos interacionais é possível contemplar o agir orientado por valores, na qual prevalece o consenso; e o agir por interesses, cuja primazia está na realização de objetivos pessoais. Assim, a perspectiva do ator é fundamental para determinar o modelo de coordenação de ações. No primeiro caso, trata-se do enfoque performativo em que a orientação do agente é o entendimento; e, no segundo caso, trata-se do enfoque objetivador, a partir do qual o agente mensura as consequências da ação à luz de preferencias subjetivas, alcançando o que Habermas denomina de negociação. (DD I, p. 177) A prática do entendimento é geradora de consenso, com base em normas e valores comumente partilhados; a prática da negociação é geradora de pacto à luz dos interesses colocados pelas partes. (DD I, p. 178) Evidencia-se, pois, na apresentação de Habermas, quatro possibilidades de solução de coordenação de ações. A arbitragem de conflitos que reflete situações de interesse e conta com o consenso e a arbitragem propriamente dita; e a formação coletiva da vontade que reflete orientações valorativas e conta com a autoridade e o compromisso. Veja o quadro a seguir: Arbitragem de conflito Situações de interesse Consenso Arbitragem Formação coletiva da vontade Orientações valorativas Autoridade Compromisso Habermas, no entanto, coloca a arbitragem e o compromisso na ótica de situações de interesse, em que parte de sociedades estratificadas quanto à posições do poder social, ou seja, de um poder integrado à visão de mundo, à cosmovisão que permite a estratificação de famílias que ocupam posições hierárquicas superiores. DIREITO NEGOCIAL E OS MECANISMOS CONTEMPORÂNEOS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS12 E o litígio solucionado pelo consenso ou pela autoridade na ótica da formação coletiva está, de antemão, apoiado num complexo normativo em que ética e direito estão integrados de forma simbiótica, ou seja, revelam a unidade existente entre facticidade e validade. (DD I, p. 179) É com essa explanação que Habermas acredita possível esclarecer a constituição co-originária do direito político e do poder político. (DD I, p. 179) Parte-se do pressuposto daquele que detém em determinada comunidade, reputação reconhecida socialmente, para realizar a tarefa de arbitragem de litígio e acumula, com o tempo, a função também de hermeneuta exclusivo das normas que comportam aquela sociedade. Uma sociedade assim constituída e revestida com o manto do sagrado, acaba por gerar duas consequências: a primeira é que as normas são impostas com força obrigatória e aquele que exerce o oficio de ‘arbitrar litígio e interpretar as normas’ passa a ser legitimado como autoridade normativa. Tanto a norma como o poder fático, ambos, estão legitimados pela força do sagrado. (DD I, p. 180) Significa que esse poder pré- estatal, que dá ensejo a um direito tradicional de característica fática, é mantido sob a força da autoridade sagrada e também do poder social, entendendo por poder social, nas sociedades tradicionais, o privilégio e o prestigio de caciques, sacerdotes, famílias e outros na hierarquia do estamento social. (DD I, p. 176) Poder sagrado e poder social confluem para a formação de uma jurisdição com força de imposição obrigatória, servindo-se de ameaças de sanção. Não se trata mais de normas de cunho sagrado com força impositiva do ponto de vista ético. A imposição normativa passa a decorrer do poder fático constituído da junção do poder sagrado e do poder social que juízes, chefes, reis e sacerdotes gozam na estrutura social. Desse modo Habermas justifica sua tese de que há uma simultaneidade no surgimento do direito e do poder político. “A autorização do poder através do direito sagrado e a sanção do direito através do poder social realizam-se uno acto”.(DD I, p. 180) Porém, com o Estado organizado de acordo com o direito caminha-se para a autonomia e independência que o Estado passa a dispor, pois, ele próprio passa a deter um poder que lhe é próprio: um poder organizado pelo Estado. O Estado passa a se servir do direito como um meio de organização em condições de, inclusive, realizar fins coletivos sob a força de decisões obrigatórias. (DD I, p. 181) O direito passa a compor a estrutura do Estado por intermédio de seus tribunais, assumindo, assim, a “função de estabilizar expectativas de comportamento generalizadas temporal, social e objetivamente”. (DD I, p. 181) A estabilização de expectativas de comportamento dada pelo direito implica, de certa forma, no desenvolvimento do que se entende por “segurança jurídica”, CONFLITO E DISSENSO NA CONTEMPORANEIDADE 13 uma forma de assegurar aos destinatários do direito calcularem estrategicamente suas ações à luz das consequências de comportamento. (DD I, p. 182) Ao dar forma jurídica ao poder político, o direito serve de meio para a organização do poder do Estado. E na medida que o Estado reforça as decisões judiciais, ele contribui para a consolidação do direito e de todo o corpus jurídico que é produzido pelos tribunais quanto à pronúncia acerca do que é direito ou não. Há, nesse aspecto, segundo Habermas, a utilização do poder (entenda-se poder estatal) “para a institucionalização política do direito”. (DD I, p. 182) O direito, assim, não se ocupa apenas com a sua função própria e peculiar de estabilizar expectativas de comportamentos sociais, mas assume uma função recíproca com o Estado, na medida em que serve de meio para a organização do poder político. (DD I, p. 183. 4 PRAGMÁTICA, ÉTICA E MORAL É importante notar que o princípio do discurso, fomentador do entendimento por meio do processo comunicacional, ao ser aplicado à regulação simétrica de interações em um circulado ilimitado de destinatários, configura-se como discurso moral. Mas, ao ser aplicado a um contexto interacional limitado, na qual as normas suscitadas assumem uma forma jurídica, o princípio do discurso avoca diferentes tipos de discursos – pragmático, ético e moral – além de negociações. (DDI, p. 199) Na formação política da vontade os discursos são plurais e a admissibilidade dos mesmos apenas reforça a integralidade de uma razão prática complexa para um modelo de sociedade igualmente envolto em complexidade. O discurso apresenta-se diante de casos de conflitos de ação que exigem resposta à pergunta “O que devemos fazer?”. Uma resposta presumivelmente racional exige a formação da opinião e da vontade que assume posicionamentos distintos. Quando se trata da ‘resolução de fins coletivos’ ou de ‘meios para se atingir determinados fins’, assume-se uma postura teleológica e pragmática; quando se trata de ‘regulamentação normativa de convivência’, assume-se a postura de tentar entender o comportamento que se pode esperar uns dos outros. São planos distintos apresentados na esfera quotidiana e que expressam maneiras diferenciadas de lidar com a estrutura pragmática, ética e moral da razão prática. A diferença fundamental apresentada por Habermas está posto quando tais questionamentos em relação ao que devemos fazer são colocados com o fito inquirir a ‘formação política da opinião e da vontade’. Aqui, trata-se de uma ‘formação da opinião e da vontade’ que é política e está inclusa no código do DIREITO NEGOCIAL E OS MECANISMOS CONTEMPORÂNEOS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS14 direito e do poder. Nesse contexto, os cidadãos deliberam, mas o resultado de tais deliberações fica à encargo de instancias de poder que dispõem de condições para viabilizar a implementação das mesmas. A questão “o que devemos fazer?” quando colocada sob a perspectiva da política, com o objetivo de criar leis ou políticas públicas, sofre modificações de acordo com a matéria a ser regulada. E, nesse caso, Habermas considera o uso da razão prática sob enfoques diferenciados da pragmática, da ética e da moral. (DD I, p. 200) Questões pragmáticas envolvem ou a ‘escolha pragmática de meios’ ou a ‘avaliação racional de fins à luz de valores’. Trata-se, respectivamente, da ponderação pragmática de meios e da ponderação de fins sob a orientação de valores partilhados. (DD I, p. 200) Em ambos há uma compreensão de imperativos condicionados ao saber empírico daqueles que manejam os discursos pragmáticos. Mas, quando os valores, eles próprios, se tornam problemáticos e objetos de reflexão, então, a tematização discursiva expande além do caráter meramente teleológico, exigindo, pois, uma autocompreensão coletiva dos valores que pretendem servir de padrão afim de realizar projetos comuns de vida. Situações assim resultam na revisão de valores que informam a autocompreensão cultural e política de uma comunidade historicamente determinada. “O esclarecimento dessa autocompreensão é dado por uma hermenêutica que se apropria criticamente das próprias tradições, contribuindo deste modo para a conscientização intersubjetiva de convicções axiológicas e orientações de vida autenticas”. (DD I, p. 201) Habermas deixa bastante claro que a ‘formação política da opinião e da vontade’, ao contemplar discursos pragmáticos – que pressupõe a escolha de estratégias de ação adequadas a fins adequados – e discursos ético-políticos – que leva em conta valores apreciados como bons à realização social –, deve, igualmente, contemplar discursos morais, os quais pressupõem avaliar se aquilo que foi considerado ‘adequado’ ou ‘bom’ pode ser ‘justo’, a saber: aceito simetricamente por todos. “Em discursos morais, a perspectiva etnocêntrica de uma determinada coletividade se alarga, assumindo a perspectiva abrangente de uma comunidade comunicativa não-circunscrita”. (DD I, p. 203) Contudo, quando se trata da ‘formação discursiva da opinião e da vontade de um legislador político’ há de se levar em conta a interligação que Habermas aponta existir entre “normatização jurídica e a formação do poder comunicativo”. (DD I, p. 204) A explicação dessa relação perpassa a lógica de argumentação que parte dos discursos pragmáticos, passando pelos discursos éticos, além de negociações, até alcançar os discursos morais e alcançarem a capa CONFLITO E DISSENSO NA CONTEMPORANEIDADE 15 normativa, a saber, o controle jurídico das normas. (DD I, p. 204) Habermas apoia-se na mutação da relação razão e vontade que marca o sentido do dever- ser e dos “imperativos” no interior da razão prática. Assim diz: “as constelações formadas pela razão e pela vontade modificam-se de acordo com os aspectos pragmáticos, éticos e morais da matéria a ser regulada”. (DD I, p. 205) A formação política da vontade, por envolver questões de ordem política, se move de acordo com a pauta dos assuntos disponibilizados. Por exemplo, em se tratando de programas de governo a serem executados, cabem os discursos pragmáticos que avaliarão as consequências possíveis da escolha racional desses programas enquanto fins ou a escolha de meios estratégicos para realizá-los. Neste caso, não se está diante da “formação racional da vontade”, mas de uma necessária postura pragmática. Quando, ao contrário, se está diante questionamentos valorativos, eticamente relevantes para a sociedade, como problemas ecológicos, étnicos, culturais e religiosos, o discurso ético-político se encarrega de buscar um auto entendimento acerca desses problemas conflitantes tornado reflexivo os valores que a comunidade preserva de forma consciente. As questões morais, por sua vez, ao colocarem problemas que ultrapassam a ordem valorativa, como problemas relacionados a aborto, formas de punibilidade no direito penal, distribuição de riquezas, etc., exigem um teste de generalização universal, ocupando-se, para esse fim, da matriz de direitos e princípios fundamentais configurados constitucionalmente. A questão, contudo, foge desse parâmetro tripartite da razão prática quando se deparacom interesses não passiveis de universalização ou com valores que não encontram concordância absoluta na estrutura complexa e plural da sociedade. Nesses casos adentra-se na esfera das negociações. “Processos de negociação são adequados para situações nas quais não é possível neutralizar as relações de poder, como é pressuposto dos discursos racionais”. (DD I, p. 207) Significa, pois, que na esfera legislativa os partidos podem não alcançar um “acordo racionalmente motivado” por intermédio de discursos racionais, mas, tão-somente firmar um “compromisso”, aceito pelas partes por razões distintas e não propriamente por consenso. A negociação, mesmo não conseguindo ‘neutralizar as relações de poder’, pode, ainda assim, ‘equilibrar os interesses conflitantes’. (DD I, p. 207) Habermas deseja mostrar que as negociações comportam o princípio do discurso, na medida em que este viabiliza condições de imparcialidade e um equilíbrio mínimo de ‘consenso não-coercitivo’. “Negociações justas não destroem, pois, o princípio do discurso, uma vez que o pressupõem”. (DDI, p. 209) Com isso, demonstra-se que não há como reduzir a “formação política da DIREITO NEGOCIAL E OS MECANISMOS CONTEMPORÂNEOS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS16 vontade” à “formação de compromissos”, já que as negociações, elas próprias, trafegam nas condições dadas pelo princípio do discurso e isso, por si só, permite ligar todos os discursos à justificação moral que, em sequência, aparecem revestidos em linguagem jurídica. REFERÊNCIAS BANNWART JÚNIOR, Clodomiro José; BANNWART, Michele Christiane de Souza. Responsabilidade Social e Moral Pós-convencional: os desafios normativos da Empresa Contemporânea. In: CAMPOS, Adriana Pereira; NEVES, Edson Alvisi; HANSEN, Gilvan Luiz. História e Direito: Instituições Políticas, Poder e Justiça. Vitória/ES: GM Editora, 2012, p. 93-111. CRETELA NETO, José. Empresa Transnacional e Direito Internacional. Exame do Tema à Luz da Globalização. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006. GIDDENS, Anthony. Politics, Sociology and Social Theory. 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Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. considEraçõEs jusfilosóficas acErca dos mEios altErnatiVos para a rEsolução dE conflitos: uma pErspEctiVa Kantiana Elve Miguel Cenci Doutor pela UFRJ e docente do Mestrado em Direito Negocial da Universidade Estadual de Londrina. Mais conhecida pela Crítica da Razão Pura, Crítica da Razão Prática e Crítica da Faculdade do Juízo, marco de toda a fi losofi a, a obra do fi lósofo alemão Immanuel Kant é muito mais vasta e rica nos temas e problemas discutidos. Se obras como a Metafísica dos Costumes ou a Fundamentação da Metafísica dos Costumes são marcos teóricos para o debate ético e jurídico, não menos importância tem os pequenos ensaios escritos pelo fi lósofo que, apesar da brevidade na extensão e da linguagem mais acessível, não comportam menor grau de rigor na análise fi losófi ca. Na lista desses textos mais curtos, um em especial merece destaque para nossa discussão. O opúsculo Beantwortung zu der Frage: Was ist Aufklärung? (Resposta à pergunta: o que é o Esclarecimento?), publicado originalmente no fi nal de 1784 no Mensário Berlinense, objetivava como artigo de jornal atingir um público mais vasto e amplo do que o estritamente fi losófi co. A própria linguagem denuncia tal pretensão, menos árida e densa mas não menos profunda do que a das Críticas. O texto kantiano citado é de fundamental importância para a discussão em torno do eixo norteador da obra coletiva aqui escrita a muitas mãos, focada no debate em torno dos meios alternativos de resolução de confl itos, por abordar aquele que provavelmente seja o aspecto mais importante do diálogo que a obra pretende: o resgate da autonomia do sujeito na condução e resolução das demandas que, hoje, congestionam as varas do Poder Judiciário. Para abordar capítulo ii direiTo negoCiaL e os MeCanisMos ConTeMPorâneos de resoLuÇÃo de ConFLiTos18 a temática o presente capítulo se divide em duas partes: i) Kant e o conceito de esclarecimento; ii) a busca alternativa de resolução de conflitos à luz da filosofia kantiana. 1 KANT E O CONCEITO DE ESCLARECIMENTO Kant (2005, p. 63) começa o opúsculo definindo Aufkärung1. Para ele, esclarecimento é “a saída do homem da menoridade, da qual ele próprio é culpado”. Kant entende a menoridade como sendo a “incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo”. E o culpado pela menoridade, com exceção dos casos em que falta o entendimento, é o próprio homem, movido pela falta “de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem”. Por fim, Kant ressalta que o lema do esclarecimento está condensado na máxima sapere aude ou “tenha coragem de fazer uso do próprio entendimento”. Apresentamos quase literalmente esse primeiro parágrafo do texto por estar carregado de significados. Logo de início, Kant vincula o esclarecimento entendido como um processo que o homem necessita fazer mediante o uso da razão à menoridade, e culpa o próprio indivíduo pelo fato de ser menor. Ou seja, aquele que por falta de “decisão e coragem” se torna dependente dos outros, dos tutores, dirá Kant em outro momento do texto, é o responsável pela sua própria condição. Ao mesmo tempo que faz o diagnóstico, Kant já indica o remédio: ousar saber, fazer uso do entendimento. Esse é o antídoto à menoridade. Para Kant é fato que muitos homens continuam menores a vida toda sem que isso constitua um problema, ou seja, passam pela vida sem “ousar saber”, ou, de forma mais precisa, ao não fazerem uso do entendimento, tornam-se dependentes dos outros. Tal postura normalmente tem como causas “preguiça” e “covardia”. O problema, prossegue Kant, é que é “cômodo ser menor”, e nesse sentido é fácil compreender as razões do por que os homens preferem que tutores indiquem seus caminhos em vez de agir por conta própria. O tutor pode ser qualquer um: um livro, um diretor espiritual ou um método. Com a 1. Como toda expressão dotada de múltiplos significados, a tradução do termo Aufklärung para o português comporta algum grau de dificuldade. Os tradutores se dividem entre dois grupos: aqueles que optam pelo termo iluminismo e os que preferem esclarecimento. Iluminismo é uma expressão literalmente mais próxima do termo alemão, no entanto pode levar à confusão ao restringir o entendimento do conceito a uma época ou movimento histórico delimitado. O termo não se limita ou se restringe ao “século das luzes” ou “época da ilustração”. Já esclarecimento retrataria melhor o conceito kantiano ao explicitar um “processo”. Essa é a opção de Floriano de Souza Fernandes. Já Artur Mourão opta pelo termo iluminismo. A questão é inconclusiva, e as duas versões comportam argumentos favoráveis e contrários. No presente texto optamos pelo termo esclarecimento por ser o mais utilizado no Brasil. ConsideraÇÕes jusFiLosÓFiCas aCerCa dos Meios aLTernaTiVos Para a resoLuÇÃo de ConFLiTos 19 crítica, Kant não quer afirmar que tais meios sejam desnecessários, isto é, que a dieta não deva seracompanhada por um médico, por exemplo, mas ataca a dependência criada em torno dessas figuras. Para Kant, apesar do fácil diagnóstico, o problema reside no fato de a maioria da humanidade considerar a ruptura com a dependência e a sua superação algo “difícil e perigoso”. Essa dificuldade em grande parte é potencializada pela ação de tutores. Quem age tutelado e é desestimulado sentirá dificuldade ante os atos mais simples se for fazê-los sozinho. Nesse sentido, para Kant, o uso do entendimento guarda analogia com o andar. A exemplo da criança que cai nas primeiras tentativas que faz para se locomover sem o apoio da mãe ou do pai, da mesma forma o indivíduo, se desestimulado, tende a não tomar novamente a iniciativa após as primeiras tentativas para pensar por conta própria. Se ampliarmos a análise kantiana para a sociedade, perceberemos que é muito mais difícil que “um indivíduo ouse fazer uso do entendimento sem a tutela de outrem” do que uma coletividade. Nas palavras de Kant (2005, p. 64), a menoridade é quase que uma “segunda natureza”, ou seja, é como se a dependência dos tutores fosse incorporada pelo indivíduo como uma condição biológica em relação à qual não há muito o que fazer, a não ser capitular. Por ter tido suas possibilidades limitadas pela própria condição, o homem acaba por “amar os grilhões que o aprisionam”. O mecanismo utilizado para a permanência dos indivíduos na menoridade é o uso de “preceitos e fórmulas”. Nessa perspectiva, o mais adequado é pensar segundo comandos previamente determinados. Os tutores fazem a sua parte ao reforçar o como agir já previamente determinado. Cabe ao indivíduo, por sua vez, obedecer e seguir o comando. Aqui estaria a razão por que poucos indivíduos saem da menoridade, uma vez que qualquer tentativa representaria um “salto no escuro” para quem não está habituado e é desestimulado de tentar. Essa ruptura, no entanto, é possível porém penosa. E será mais penosa se o postulante for um indivíduo ao invés de uma coletividade. Porém, para que isso aconteça, uma condição terá que ser observada: a liberdade (KANT, 2005, p. 65). Nesse sentido Kant é otimista, pois com ela não só o esclarecimento se torna uma possibilidade real, mas será muito difícil contê-lo. Uma razão para que tal fato ocorra é que entre os indivíduos ou até entre os tutores existem sujeitos que pensam por conta própria. Os tutores, como ressaltado, após terem expulsado de si a menoridade, podem difundir a atitude de “pensar por si mesmo”. Essa é a conduta do esclarecimento. O paradoxal nesse processo é que, caso os tutores optem por romper com os grilhões da menoridade, serão eles direiTo negoCiaL e os MeCanisMos ConTeMPorâneos de resoLuÇÃo de ConFLiTos20 próprios contidos pelos antigos tutelados. É por essa razão que Kant acredita que o esclarecimento é algo que só acontece de forma muito lenta. Ao refletir sobre o processo de esclarecimento na perspectiva da coletividade, Kant (2005) introduz uma importante reflexão sobre as revoluções. Normalmente associadas à ruptura com um determinado modo de pensar, os revolucionários tendem a pensar que basta a queda do despotismo para a implantação de um novo modo de pensar. Ocorre que um levante até pode acabar com uma determinada forma de despotismo que vigora no momento, no entanto o fim da opressão imediata não significa que a antiga forma de pensar vá igualmente mudar. O que normalmente ocorre é simplesmente a substituição do velho pelo novo, saem velhos preconceitos, entram novos. O caminho para o esclarecimento passa por outras searas. Depende como condição de possibilidade da liberdade. E liberdade para fazer “uso público da razão”. No cotidiano a prática recorrente é oposta a esse princípio. O tempo todo ouvimos o preceito da obediência e não o uso público da razão como conduta a ser seguida. O uso público, segundo Kant (2005, p. 66), pode ser compreendido como aquele que um homem faz, na condição de sábio ou douto2, perante o mundo letrado. Em outras palavras, utilizando-se do espaço proporcionado por um jornal, a exemplo do que Kant faz com a publicação do artigo que serve de base para o presente texto, o indivíduo opina sobre determinado assunto dialogando com seus interlocutores em potencial. Obviamente que nem sempre o indivíduo deve adotar tal conduta perante as situações cotidianas. No exercício de certas funções públicas, kant entende que é mais conveniente que se faça “uso privado da razão” (KANT, 2005, p. 66). Não seria conveniente que todo aquele que pensa algo diferente acerca do seu ofício aplicasse imediatamente no exercício de uma função que lhe tenha sido confiada. O espaço para propor algo novo, crítico, é o do sábio e não o do executor na consecução de determinado ofício. Kant parece querer resguardar a sociedade do risco da anarquia. Já na condição de sábio, isto é, de “cidadão do mundo” e não na situação de executor de uma função, o cidadão pode e deve manifestar-se publicamente3. O exemplo citado por Kant que ilustra o 2. Sábio ou douto aqui não signfica uma categoria em especial, mas todo aquele que opta por participar de um debate público sobre determinado assunto. Se pensarmos uma tradução para o nosso tempo, diríamos que o Gelehrter kantiano é todo aquele indivíduo que faz uso do seu direito de se manifestar sobre assuntos de relevância coletiva nos múltiplos fóruns de debate. Assim como no tempo de Kant, as colunas dos jornais continuam a valer como espaço de debate, acrescidas dos meios de comunicação tradicionais como rádios e tvs e das novas mídias. Alguns blogs são até mesmo mais lidos e mais influentes do que os tradicionais cadernos de política ou economia. 3. Se colocássemos hoje a mesma pergunta proposta por Kant mais de dois séculos atrás, isto é, se vivemos ou não uma época de esclarecimento, talvez tivéssemos a mesma resposta. Vivemos em uma época em esclarecimento. Em alguns campos do saber, sobretudo aqueles que envolvem preceitos religiosos e autoridade, ainda impera ConsideraÇÕes jusFiLosÓFiCas aCerCa dos Meios aLTernaTiVos Para a resoLuÇÃo de ConFLiTos 21 debate é atual e esclarecedor. Não pode o sujeito recusar-se a pagar tributos por desaprová-los, fato que poderia provocar uma situação de “desobediência geral”. No entanto, mesmo cumprindo rigorosamente com a obrigação, tal fato não impede que esse mesmo indivíduo critique ou manifeste seu entendimento divergente acerca da obrigação ou conveniência de determinado tributo. As questões até agora apresentadas buscam explorar uma ideia central do pensamento de Kant: a necessidade de o homem pensar livre de condicionamentos e, portanto, manifestar-se sem impedimentos. Trata-se, como ressaltado, da possibilidade de fazer uso público da razão. Usar publicamente a razão significa poder falar ou escrever publicamente sobre qualquer questão, isto é, refletir sobre as práticas e condutas para, na sequência, externá-las. Esse pensamento livre de amarras e tutores constitui o núcleo da ideia kantiana aqui explorada de um sujeito autômomo. Se hoje escrever um artigo no jornal para criticar uma iniciativa governamental ou opinar sobre um tema polêmico figura como normal por vivermos em uma democracia, o mesmo não ocorria no tempo de Kant. É por isso que em determinada altura da discussão surge a pergunta “vivemos agora em uma época esclarecida”? e Kant responde: “não, vivemos em uma época de esclarecimento” (KANT, 2005, p. 69). A colocação da pergunta não é por acaso. Na sequência Kant responde que falta muito ainda, sobretudo em matéria religiosa. O tema religião não surge como mero exemplo. Kant havia sido proibido por Guilherme Frederico II, em 1792, de escrever e lecionar sobre a matéria. Reconhece, no entanto, que sobre artes e ciências a ingerência dos tutores não é similar por “falta de interesse”. Se pensar de forma autônoma significa romper com tutores e pensar livre de preceitos e fórmulas, implica também colocar-se no lugar dooutro, alargar o pensamento. Essa importante discussão está presente na Crítica da Faculdade do Juízo, mais especificamente no § 40. Nessa parte da obra, Kant (1995, p 139) introduz inicialmente a noção de entendimento humano comum. Esse conceito pressupõe algo que todo homem deva possuir, mesmo que não implique em um pensamento mais elaborado. Esse é o motivo por que a expressão também recebe a denominação pejorativa de senso comum (sensus communis). Possuir o senso comum, portanto, não implica em nenhum mérito. No entanto Kant destaca que a compreensão do conceito de sensus communis deve seguir em outra direção, isto é, deve-se substituir a percepção do o obscurantismo. O debate político, mesmo levado a termo no interior do Estado laico, ainda é em muitos momentos permeado pelo obscurantismo. Não o do fenômeno religioso, mas o do dogmatismo inerente a determinadas condutas e compreensões religiosas. Da mesma forma no meio acadêmico, exatamente aquele local que deveria ser o celeiro do pensamento livre de preceitos e fórmulas, sobretudo em parte das instituições privadas, é praticamente nula a possibilidade de pensar livremente e refletir sobre as práticas institucionais. Falar algo é o primeiro passo para ser imediatamente desligado da instituição. direiTo negoCiaL e os MeCanisMos ConTeMPorâneos de resoLuÇÃo de ConFLiTos22 senso comum pela “ideia de um sentido comunitário” (gemeinschaftlichen). O conceito deve ser entendido como: [...] a ideia de uma faculdade do ajuizamento que em sua reflexão toma em consideração em pensamento (a priori) o modo de representação de qualquer outro, como que para ater o seu juízo à inteira razão humana e assim escapar à ilusão que, a partir de condições privadas subjetivas – as quais facilmente poderiam ser tomadas por objetivas – teria influência prejudicial ao juízo (KANT, 1995, p.139-0). O que Kant propõe é colocar-se no lugar do outro, isto é, olhar a partir de um horizonte mais amplo que vai além do indivíduo. Em sintonia com essa perspectiva, ainda na Crítica da Faculdade do Juízo (§ 40), Kant apresenta três máximas do entendimento humano comum que contém princípios importantes para o problema central do presente texto. A primeira delas advoga o “pensar por si”. Para Kant pensar por si implica “pensar livre de preconceitos”4. Trata-se de uma razão, nas palavras de Kant, não passiva. Em oposição a uma razão passiva, heterônoma, temos dois conceitos caros a Kant: autonomia e esclarecimento. O sujeito autônomo é aquele que rompe com preconceitos e superstições para pensar por si. Pensar por si, como destacado, significa adentrar a seara do pensamento esclarecido. Voltamos ao ponto de origem da discussão: pensar significa romper com a menoridade, manifestada de diversas formas, a exemplo dos preconceitos e superstições, e fazer uso da razão de forma autônoma e esclarecida. A segunda máxima, igualmente importante, apregoa o pensar no lugar do outro. A máxima que nutre essa máxima é o “pensar alargado”, isto é, olhar determinada questão ampliando o horizonte de análise. Trata-se de uma perspectiva “que reflete sobre o seu juízo desde um ponto de vista universal” (Kant, 1995, §). É imaginar-se “do ponto de vista dos outros”. Colocar-se no lugar dos outros possibilita construir um juízo ampliado que, em tese, no caso concreto permite que se chegue à solução de um conflito ou entendimento sobre determinada matéria. Mesmo diante de uma contenda, a postura de olhar o problema de forma mais ampla do que a perspectiva meramente privada já representa um importante passo para o entendimento. A terceira máxima proposta por Kant é o “pensar consequente”. Para Kant ela é a mais difícil de ser atingida e só pode ser obtida pela observância das outras máximas explicitadas. Age de forma consequente quem pensa por si, isto é, pensa livre de preconceitos, de forma esclarecida e coloca-se no 4. Em sentido kantiano, a noção de preconceito deve ser pensada como “princípio que gera juízos falsos”, isto é, preconceito não é consequência mas causa que gera consequências. É com base no preconceito que são gerados efeitos decorrentes do mesmo. (KANT, 1995, p. 141) ConsideraÇÕes jusFiLosÓFiCas aCerCa dos Meios aLTernaTiVos Para a resoLuÇÃo de ConFLiTos 23 lugar dos outros, ampliando o horizonte de referência em uma perspectiva universalista. 2 COMO PENSAR A BUSCA ALTERNATIVA DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS À LUZ DA FILOSOFIA KANTIANA Se observarmos o papel do mediador na busca pela resolução de determinado conflito, veremos que em muitos casos o seu papel é auxiliar as partes no papel de filtrar o que é essencial para a boa resolução da demanda, visando chegar ao entendimento, e descartar ruídos e questões secundárias, normalmente de natureza privada, a exemplo de sentimentos como raiva, competição, vaidade ferida, etc. Tais empecilhos, apesar de reais e de efetivamente atrapalharem a busca de uma solução satisfatória, não sobrevivem ao crivo da segunda máxima citada, uma vez que, ao colocar-se no lugar do outro, ou na linguagem kantiana pensar a partir de uma perspectiva universalista, teriam que ser expurgados e deixados de lado. Indubitavelmente a mediação na área de família é a que mais enfrenta o desafio de separar questões privadas, sobretudo sentimentos negativos muitas vezes acumulados ao longo de décadas, daqueles temas que deveriam ocupar centralidde no processo de deliberação. No momento em que questões mais objetivas são colocadas para deliberação, a exemplo da guarda dos filhos, pensão alimentícia, educação, direito de visita, etc, todos temas passíveis de resolução mediante entendimento, a possibilidade de acordo em sintonia com o melhor interesse para os filhos menores é sabotada por esses fatores não resolvidos. Questões dessa natureza não podem ser vistas como disputa para ver quem ganha, quem tem mais força, como um litígio qualquer. Fundamentalmente exigem um outro olhar, não “aversarial” mas que olhe o conflito de forma “integral”. Ao tratar sobre o instituto da mediação, Muniz (2006, p. 244) assim se manifesta: Dentre estes institutos, a mediação, em especial, é um mecanismo diferente do modelo tradicional de justiça, cuja tendência é de enxergar o mundo por uma ótica jurídica, imutável, condicionada a priorização de peças processuais, pela qual a sentença traz a finalidade maior da jurisdição, pacificação social, formatado pela litigiosidade e confirmador de uma visão adversarial de solução que gera mais conflitos – litigiosidade residual contida, pois, solucionar conflitos vai muito além da prolação da sentença, depende de uma visão integral da questão e dos envolvidos e da possibilidade de intervenção social efetiva para se chegar à pacificação social. direiTo negoCiaL e os MeCanisMos ConTeMPorâneos de resoLuÇÃo de ConFLiTos24 A passagem citada apresenta expressões que representam as bases de uma nova perspectiva para a solução de conflitos. Ao invés de adversários que aguardam que um terceiro, no caso o juiz, diga quem está com a razão pondo fim à disputa mediante sentença prolatada, a mediação leva em conta o contexto da demanda e a possibilidade de se chegar a uma solução. Ao invés de transferir integralmente para um advogado ou juiz a condução da resolução do conflito, o indivíduo participa ativamente da busca do entendimento. Nesse sentido cabe aqui a referência a dois conceitos desenvolvidos na primeira parte do texto. O primeiro é o conceito de autonomia. Ao dissertar sobre a saída da menoridade, Kant ressalta exatamente a necessidade de o indivíduo fazer uso do próprio entendimento. Ser menor significa abdicar dessa prerrogativa em favor de um tutor que resolva as minhas demandas. Por que assumir a resolução de um conflito se posso simplesmente pagar para que alguém o faça? Por que buscar o entendimento se o juiz decide por mim? A cultura litigante5 instaurada em nossa sociedade mostra como a maioria dos conflitos que poderiam ser resolvidospelos próprios envolvidos acabam nas salas dos tribunais ou até mesmo na corte maior. Sobretudo em casos de menor importância, sujeitos que poderiam por conta própria ou com auxílio de terceiros6 resolver tais demandas recorrem sistematicamente ao juidiciário-tutor para que este dê uma resposta definitiva e diga quem está certo. O que implica no século XXI fazer uso do entendimento sem a direção de outras pessoas? O que significa não ser tutelado? Kant ressalta a necessidade de fazer uso do entendimento nos limites e possibilidades de cada indivíduo. Porém, se não o faz mesmo podendo, age como menor. O exemplo da dieta é ilustrativo. Por que retornar ao médico sistematicamente para que seja dito o que fazer se basta seguir a dieta já recomendada? O médico é, sim, necessário na medida da sua competência, porém existe o papel do indivíduo de tomar conta da sua dieta e segui-la. Há, aqui, o papel do indivíduo autônomo que faz o que precisa se feito. Por analogia, advogados, juízes e tribunais são necessários. O acesso à justiça é condição básica em qualquer sociedade democrática. Na nossa, infelizmente, sequer temos uma defensoria pública institucionalizada de forma minimamente aceitável. A questão aqui, no no entanto, é outra. Por que 5. Dados do Conselho Nacional de Justiça divulgados no final de 2013 mas relativos a 2012 mostraram que existiam no Brasil, à epoca, 92,2 milhões de ações em tramitação. 6. Em décadas passadas, sobretudo no campo, os conflitos eram administrados por pessoas da própria comunidade que, munidas de sua autoridade espontânea exercida no meio social, intercediam em favor do entendimento das partes em conflito. Davam conselhos, propunham soluções, hipotecavam a “palavra” em nome de uma solução pacífica e duradoura. As demandas não chegavam ao Poder Judiciário, posto encontrarem solução dentro da própria comunidade. Em muitas comunidades esse papel era iniciado por membros do grupo e finalizado pelo padre ou pastor. ConsideraÇÕes jusFiLosÓFiCas aCerCa dos Meios aLTernaTiVos Para a resoLuÇÃo de ConFLiTos 25 acessar o judiciário para uma infinidade de questões, inclusive problemas do “mundo da vida”7, que poderiam e deveriam ser resolvidas de outras formas ou por outros meios? Se não vivemos mais em sociedades tradicionais onde as divergências eram resolvidas pelos anciões ou líderes religiosos, temos outros mecanismos alternativos, céleres e eficientes para a resolução de conflitos sem, necessariamente, recorrer ao Poder Judiciário. Porém o próprio Kant ressalta que, se por um lado é culpa do próprio indivíduo essa condição de menoridade, por outro é difícil ter coragem para usar o entendimento. O problema é que é cômodo ser menor, afinal por que resolver uma demanda se posso simplesmente pagar transferindo para um advogado ou para ou juiz a responsabilidade pela decisão? Não se trata de descartar a importância do Poder Judiciário, mas por que transferir a decisão para outros se posso eu mesmo deliberar? Quando a demanda assim o exigir, aí sim cabe ao magistrado prolatar a sentença. Provavelmente a expressão mais feliz que sintetiza a contribuição kantiana para o debate esteja contida na passagem em que nosso autor diz: “…não tenho a necessidade de pensar, quando posso simplesmente pagar”. Poderíamos incluir um exemplo a mais: por que buscar a resolução de um conflito se posso simplesmente pagar um advogado para resolver o problema por mim? Por que buscar o entendimento se um juiz pode resolver e decidir ao término da contenda? Posso inclusive transferir ao magistrado a responsabilidade pelo sucesso ou insucesso da demanda. Passivamente ataco ou elogio a posteriori a decisão, lamentando ou festejando. Como ser autônomo poderia ter deliberado e construído cooperativamente a decisão, no entanto optei por transferi-la para terceiros. A menoridade está alicerçada no uso de preceitos e fórmulas. Seguir algo já determinado implica em não pensar. Basta obedecer. Essa formação levada a termo pelos tutores para a heteronomia faz com que o indivíduo não ouse sair da zona de conforto. Se o fizer, tenderá a recuar diante do menor impasse. É por 7. O conceito de mundo da vida é assim descrito por Habermas: “Podemos imaginar os componentes do mundo da vida, a saber, os modelos culturais, as ordens legítimas e as estruturas da personalidade, como se fossem condensações e sedimentações dos processos de entendimento, da coordenação da ação e da socialização, os quais passam através do agir comunicativo. Aquilo que brota das fontes do pano de fundo do mundo da vida e desemboca no agir comunicativo, que corre através das comportas da tematização e que torna possível o domínio de situações constitui o estoque de um saber comprovado de prática comunicativa. Esse saber consolida-se através dos trilhos da interpretação, assumindo a forma de modelos de interpretação, os quais são transmitidos; na rede de interações de grupos sociais ele se cristaliza na forma de valores e normas; pelo caminho dos processos de socialização ele se condensa na forma de enfoque, competências, modos de percepção e identidades. Os componentes do mundo da vida resultam da continuidade do saber válido, da estabilização de solidariedades grupais, da formação de atores responsáveis e se mantêm através deles. A rede da prática comunicativa cotidiana espalha-se sobre o campo semântico dos conteúdos simbólicos, sobre as dimensões do espaço social e sobre o tempo histórico, constituindo o meio através do qual se forma e se reproduz a cultura, a sociedade e as estruturas da personalidade. (HABERMAS, 1990, p. 96) direiTo negoCiaL e os MeCanisMos ConTeMPorâneos de resoLuÇÃo de ConFLiTos26 isso que Kant acredita ser mais penoso que um indivíduo saia da menoridade do que um público. Faz sentido, afinal não se rompe com uma cultura litigante em prol da busca autônoma da resolução de um conflito apenas pela ação isolada de um indivíduo. Faz-se mister a construção de uma cultura favorável à busca por meios alternativos de resolução de conflitos. Nesse sentido o clamor kantiano pelo uso público da razão está diretamente relacionado a essa necessidade de o indivíduo agir de forma autôma tomando para si a resolução de suas demandas. Assim como Kant preconiza a necessidade de se fazer uso público da razão como ato de liberdade e conduta em sintonia com o esclarecimento, a cultura da nossa sociedade não estimula o pensar ou posicionar-se livre. Isso ocorre nas diversas dimensões da vida social, passando pela política, escolhas de consumo, padrões e comportamentos e chega às relações interpessoais. Ao propor a ruptura com tutores e o pensar livre de “preceitos e fórmulas”, Kant preconiza a necessidade de enfrentamento diante de determinadas concepções arraigadas no pensamento da sua época. Por analogia, no nosso tempo, a forma de pensar dominante é a da cultura litigante. Romper com ela, agindo seguindo um novo olhar, implica adotar nova perspectiva que não ignora o fato de existirem conflitos, mas busca novos caminhos para solucioná-los. Ao invés da postura de litigantes8 que buscam vencer a disputa, como ocorre em alguns casos em que determinada demanda judicial se torna a causa da existência9, exige-se do indivíduo que se coloque no lugar do outro, alargue o pensamento e vá além. Ampliar o pensamento até a perspectiva do outro permite buscar a solução para determinado conflito que é elemento constitutivo do humano. O conflito não apenas ocorre na esfera individual entre partes, mas é também elemento da vida em sociedade, isto é, dos grupos10. É importante ressaltar que o conflito em si não é nem positivo nem negativo. Citando Martineli, Muniz (2014) destaca que o conflito é 8. Como bem destaca Tânia Lobo Muniz no capítulo de sua autoria na presente obra, “… uma das partes impõe a sua solução preferida levando a uma resolução rápida e decisiva, porém insatisfatória, uma vez que não considera o envolvimento dos demais na questão,
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