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HISTÓRIA DA ÁFRICA E DOS AFRICANOS: DA DIVISÃO COLONIAL AOS DIAS ATUAIS Programa de Pós-Graduação EAD UNIASSELVI-PÓS Autoria: Edilson Pereira Brito Edison Lucas Fabricio CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI Rodovia BR 470, Km 71, no 1.040, Bairro Benedito Cx. P. 191 - 89.130-000 – INDAIAL/SC Fone Fax: (47) 3281-9000/3281-9090 Reitor: Prof. Ozinil Martins de Souza Diretor UNIASSELVI-PÓS: Prof. Carlos Fabiano Fistarol Coordenador da Pós-Graduação EAD: Prof. Norberto Siegel Equipe Multidisciplinar da Pós-Graduação EAD: Profa. Hiandra B. Götzinger Montibeller Profa. Izilene Conceição Amaro Ewald Profa. Jociane Stolf Revisão de Conteúdo: Profa. Bruna Scheifer Revisão Gramatical: Profa. Camila Thaisa Alves Bona Diagramação e Capa: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI 960 B862h Brito, Edilson Pereira História da África e dos africanos: da divisão colonial aos Idias atuais / Edilson Pereira Brito; Edison Lucas Fabricio. Indaial : Uniasselvi, 2012. 146 p. : il Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7830-594-9 Ebook 978-85-7141-259-0 1. África – História Geral. I. Centro Universitário Leonardo da Vinci. Copyright © UNIASSELVI 2012 Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: Edilson Pereira Brito Licenciado em História pela Universidade Estadual de Maringá (2006); Mestre em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (2011). Foi professor de educação básica na rede pública de ensino do Estado do Paraná por quatro anos e desde 2012 é aluno do curso de doutorado em História da Universidade Estadual de Campinas. Realiza pesquisas nas áreas de ensino de História, História Social e história dos africanos e seus descendentes no Brasil Meridional. Edison Lucas Fabricio Graduado em História pela Universidade Regional de Blumenau (2008); Mestre em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (2011). Professor nos cursos de História da UNIASSELVI, FURB e UNIDAVI. Sumário APRESENTAÇÃO ......................................................................7 CAPÍTULO 1 Negociação e coNflito: PortugueSeS em áfrica .......................... 9 CAPÍTULO 2 uma Viagem Sombria: eScraVização e tráfico, SéculoS XVii ao XiX................................................................. 35 CAPÍTULO 3 NeocoloNialiSmo Na áfrica em fiNS do Século XiX e iNício do XX .......................................................................... 67 CAPÍTULO 4 “a áfrica é NoSSa”: oS moVimeNtoS de iNdePeNdêNcia Na áfrica ................................................................................ 101 CAPÍTULO 5 ePílogo: aPartheid e raciSmo No Sul da áfrica ....................... 131 APRESENTAÇÃO Caro(a) pós-graduando(a): Neste caderno de estudos iremos continuar os nossos estudos sobre a História da África e dos Africanos, mas desta vez estudaremos o que ocorreu do período colonial até os dias atuais. Dessa forma, esse caderno de estudos foi divido em cinco capítulos: No primeiro capítulo estudaremos os principais motivos que levaram o reino de Portugal a ocupar a vanguardas na expansão ultramarina. Além disso, identificaremos como aconteceu o processo de ocupação dos portugueses na África Central, entre os séculos XV e XVII, e os principais mecanismos utilizados pelos portugueses para assimilar e controlar a população africana e os recursos utilizados por tais africanos para negociar com os europeus. No capítulo seguinte, abordaremos a escravidão e tráfico de negros, pois iremos compreender o modo como o tráfico de escravos evoluiu ao longo dos séculos. Apresentaremos as regiões de embarque, as formas de captura de homens e mulheres transformados em escravos e as interpretações divergentes ao longo da historiografia acerca do número de escravizados embarcados. No terceiro capítulo analisaremos o neocolonialismo na África no final do século XIX e início do século XX, dessa forma falaremos sobre como aconteceu o fim do tráfico de africanos e quais foram os impactos disso para a África e as demais potências europeias. No penúltimo capítulo, o foco de estudo será os movimentos de independência da África, assim como compreender o papel da Primeira Guerra Mundial para o continente africano, assim como a formação do nacionalismo africano, e apresentaremos os desafios contemporâneos da África independente. E por fim, o último capítulo será uma grande conclusão do que estudamos nessa disciplina, visto que abordará o Apartheid e racismo no sul da África, e com isso temos como objetivo, levar você pós graduando, a entender a importância e os motivos da revalorização da África e da cultura negra na sociedade brasileira atual. Bons estudos! Os autores. CAPÍTULO 1 Negociação e coNflito: PortugueSeS em áfrica A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes objetivos de aprendizagem: � Analisar os principais motivos que levaram o reino de Portugal a ocupar a vanguardas na expansão ultramarina. � Identificar como aconteceu o processo de ocupação dos portugueses na África Central, entre os séculos XV e XVII. � Analisar os principais mecanismos utilizados pelos portugueses para assimilar e controlar a população africana e os recursos utilizados por tais africanos para negociar com os europeus. 10 História da África e dos Africanos: Da Divisão Colonial aos Dias Atuais 11 Negociação e coNflito: Portugueses em África Capítulo 1 coNteXtualização Os ibéricos (portugueses e espanhóis) foram os primeiros a lançarem-se ao mar rumo ao desconhecido. Tal estratégia acabou levando com que tais povos conseguissem o que nenhuma outra nação alcançou nos mesmos níveis, um vasto e amplo território. Se compararmos, ainda, os países ibéricos, Portugal conquistou um território maior e mais diversificado do que os seus vizinhos espanhóis. Em meados do século XVII, o pequeno reino português ocupava diversas regiões em todos os continentes do planeta (lembrando que a Oceania ainda não havia sido descoberta), desde o novo mundo americano, passando pela Ásia e terminando na África. Não obstante, foram eles que fizeram a cristandade europeia ocidental tomar conhecimento de que havia povos e civilizações em terras desconhecida e inimagináveis. Cabe lembrar que, durante a Baixa Idade Média, boa parte do território português era composta – como ainda é atualmente – por terrenos rochosos, a terra era imprópria para o cultivo, a produtividade no reino era baixa. Os rios navegáveis eram poucos e insuficientes, as aldeias eram longe umas das outras e sua população totalizava, no máximo, um milhão de habitantes. A epidemia conhecida como “Peste Negra” provocou milhares de mortes, assim como a guerra com Castela (1381-1411). Em 1450, ano de início do chamado século dos descobrimentos (1450-1550), as únicas cidades com alguma importância eram Porto, Braga, Guimarães, Coimbra e Lisboa. A economia fundamentava-se nas trocas e na exploração dos camponeses, maioria esmagadora da população. Diante desse quadro desolador, uma pergunta instigante, porém de difícil resposta, é a seguinte: como Portugal obteve sucesso nas aventuras marítimas? Sem dúvida três mecanismos foram responsáveis pelo sucesso dos portugueses em sua jornada por mares nunca dantes navegados, como escreveu o poeta Luís de Camões, autor do romance “Os Lusíadas”. Mesmo sendo amalgamados, é possível discernirmos, para fins didáticos, aquilo que levou ao sucesso das aventuras marítimas. Em primeiro lugar, a monarquia, em seguida, a religião, e por último, mas definitivamente não menos importante, o aparato tecnológico naval e militar. moNarquia Ao contráriodas outras monarquias européias, o Estado moderno português definiu-se bem mais rápido. Em 1249, seu território localizado mais ao sul , o Algarve, fora tomado de volta dos muçulmanos que haviam ocupado a península desde o século anterior, a partir daí as fronteiras portuguesas estavam 12 História da África e dos Africanos: Da Divisão Colonial aos Dias Atuais praticamente definidas. O reino permaneceu unido durante todo o século XV, livre das guerras que assolavam seus vizinhos. A título de comparação, apenas em 1492 os soberanos Fernando e Isabel conseguiram expulsar os muçulmanos de Granada (BOXER, 2002). Mesmo não fazendo parte de um processo social planejado, contínuo e uniforme, Portugal contou com governantes interessados na prática de navegação e na exploração de novos destinos. O mais famoso, e considerado por boa parte da historiografia portuguesa como uma importante figura das grandes navegações, foi o Infante Henrique de Sagres, conhecido também como Henrique, o navegador. Membro da dinastia de Avis, nascido em 1396, o Infante estimulou seu pai a reconquistar Ceuta em 1415 e alguns anos depois passou a ser o administrador da cidade. Em 1427, juntamente com seus navegadores, descobriram a Ilha dos Açores, que depois veio a ser ocupada por portugueses. O infante também conseguiu licença de Roma para “converter os pagãos africanos” em 1485, por meio da bula Romanus Pontifex. Essa bula endossou a prática de escravização de homens e mulheres da Guiné, que depois eram levados para Lisboa como escravos. Segundo um importante estudioso do Império ultramarino português, o historiador inglês Charles Boxer: Até sua morte, em 1460, o infante dom Henrique foi o concessionário de todo o comércio ao longo da costa ocidental africana, porém isso não significa que ele próprio se encarregasse de todos os negócios. Ao contrário, ele podia (e muitas vezes assim procedeu) autorizar comerciantes privados e aventureiros a fazer viagens, contanto que lhe pagassem um quinto de lucros, ou outra porcentagem combinada (BOXER, 2002, p. 45). Portanto, todo o comércio marítimo esteve dominado pelo Infante e consequentemente atrelado aos interesses da monarquia. Após a morte de D. Henrique, a Coroa resolveu “terceirizar” os negócios ultramarinos, a partir daí um rico mercador de Lisboa, chamado Fernão Gomes, passou a cuidar destes assuntos. Sobre esse tema, vale a pena consultar o belíssimo livro de Valentim Alexandre: “Velho Brasil, Novas Áfricas”. Portugal: Editora Afrontamento, 2004. Em 1475, a monarquia retomou novamente o controle. O infante e herdeiro Mesmo não fazendo parte de um processo social planejado, contínuo e uniforme, Portugal contou com governantes interessados na prática de navegação e na exploração de novos destinos. 13 Negociação e coNflito: Portugueses em África Capítulo 1 do trono, D. João, começou a exercer as atividades dos negócios marítimos. Com a morte de seu pai, ele herdou o trono, adotando o nome de D. João II. Obcecado por aumentar o comércio, principalmente com a África, durante seu governo houve avanços importantes na política ultramarina. Com o objetivo de garantir o monopólio português, ele criou um posto em terras africanas: o castelo de São Jorge da Mina. Durante seu reinado, o navegador português Dio Cão chegou ao Congo em 1484, estabelecendo contato com a população daquela localidade, o Cabo da Boa Esperança foi finalmente contornado em 1488. Outro avanço foi a colonização da Ilha de São Tomé e Príncipe, que tornou-se uma espécie de laboratório da colonização portuguesa (ALENCASTRO, 2002, p. 75-78). Também no governo de D. João II uma disputa com a coroa espanhola foi resolvida, com a promulgação do Tratado de Tordesilhas, dividindo o novo mundo entre Espanha e Portugal. Esses dois primeiros governos realizaram o processo de “conquista” dos territórios ultramarinos lusitanos. A partir deles, ou seja, a partir do final do século XV, os sucessores tiveram que administrar e, sobretudo, negociar os territórios sob jurisdição de Portugal. Vários países ameaçavam os domínios ultramarinos dos lusitanos, tais como França, Holanda, Inglaterra e a sempre perigosa vizinha Espanha. Essa última unificou o reino de Portugal por mais de meio século, período denominado União Ibérica (1580-1640). Para visualizarmos melhor os reis desse primeiro momento da conquista ultramarina, todos da Dinastia de Avis, devemos observar a lista abaixo: Dinastia de Avis Dom João I (1385-1433) Dom Duarte (1433-1438) Dom Afonso V (1438-1481) D. João II (1481-1495) Dom Manuel I (1495-1521) D. João III (1521-1557) Dom Sebastião (1557-1578) Dom Henrique (1578-1580) Percebemos que, depois de 1557, os dois governos foram curtos. Depois do desaparecimento do rei D. Sebastião na Batalha de Alcácer – Quibir contra os muçulmanos, desencadeou-se uma crise dinástica no reino. O sucessor natural de Vários países ameaçavam os domínios ultramarinos dos lusitanos, tais como França, Holanda, Inglaterra e a sempre perigosa vizinha Espanha. 14 História da África e dos Africanos: Da Divisão Colonial aos Dias Atuais D. Sebastião, dada a falta de filhos do monarca, era seu tio, o cardeal Henrique, que assumiu o reino quando contava com 70 anos de idade. Com a morte de D. Henrique, em 1580, o rei Felipe II da Espanha teceu acordos com a nobreza de Portugal e sem maiores confrontos foi coroado rei. Com isso chegava ao fim o reinado dos membros da Dinastia de Avis em Portugal. Para saber mais sobre a construção da memória envolvendo o desaparecimento de D. Sebastião, recomendo o livro de Jaqueline Hermann: “No reino do desejado: a construção do sebastianismo em Portugal, séculos XVI e XVII”. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Em 1640, uma nova dinastia venceu sucessivas batalhas contra os espanhóis e passou a controlar o reino de Portugal, era a dinastia de Bragança. Seus descendentes dominaram o reino lusitano até o primeiro quartel do século XIX, como podemos observar na lista abaixo: Dinastia de Bragança D. João V (1640-1656) D. Afonso VI (1656 – 1667) D. Pedro II (1667- 1706) D. João V (1706-1750) D. José (1750-1777) D. Maria I (1777 – 1792) D. João VI (1792-1816) Esses foram os governantes que, em menor ou maior grau, administraram o território que os portugueses haviam conquistado, com desdobramentos significativos a partir do século XIX. Veremos agora como se deu o processo de outro fator que ajudou a expansão portuguesa: a religião católica. 15 Negociação e coNflito: Portugueses em África Capítulo 1 catoliciSmo e eXPaNSão ultramariNa Na conversão de povos que os portugueses tiveram, homens, mulheres e crianças foram tuteladas por missionários enviados por Lisboa e Roma para encontrarem a “verdadeira fé”. Isso fazia com que a expansão ultramarina tivesse um lado religioso. Vários textos religiosos tornaram-se conhecidos pela população das colônias, por meio de mensagens e traduções, tendo em vista que vários dos padres missionários aprenderam a língua de africanos e indígenas. No reino de Portugal, uma ordem em especial agiu diretamente no trabalho espiritual das colônias, era a Companhia de Jesus, com seus padres chamados de jesuítas. Fundada por Inácio de Loyola em 1515, essa ordem obteve o reconhecimento e aprovação de Roma em 1540, quando seu estatuto foi aprovado pelo Papa Paulo III. Seu lema era “defender e proteger a fé”, tal lema estava associado principalmente ao contexto de sua criação, que era o da Contrarreforma católica, levada a cabo por Roma após a ruptura dentro da Igreja Católica provocada pelo monge alemão Martinho Lutero. Se você quiser saber mais sobre a atuação dos padres jesuítas, recomendo o livro de Jean Lacouture: “Os jesuítas: os conquistadores”. São Paulo: L&PM, 1994. Desde o início, o trabalho missionário dos jesuítas destacou-se, e com ele o crescimentoda Companhia em Portugal. Nesse reino ergueu-se a primeira sede dos Inacianos e Lisboa tornou-se sua Escola para os assuntos de evangelização. As missões saíram para os quatro cantos do planeta, levando a dita fé aos indígenas, chamados de gentios, de acordo com os contemporâneos do período e justificando por vezes o “comércio do resgate de escravos”, que trocando em miúdos era a justificativa para o tráfico de africanos escravizados. Para os missionários, o povo indígena, e em parte o africano, era um “povo sem fé, sem lei e sem rei”, como descreveu o cronista Perô de Magalhães Gândavo, em seu Tratado de 1576. Dentre os jesuítas que mais se destacaram na atividade missionária, podemos citar os padres Manoel da Nóbrega, Francisco Xavier, José de Anchieta e o Padre Antônio Vieira. Vieira atuou em missões evangelizadoras no Brasil e escreveu vários textos sobre a religiosidade e expansão. Para Vieira, Portugal Na conversão de povos que os portugueses tiveram, homens, mulheres e crianças foram tuteladas por missionários enviados por Lisboa e Roma para encontrarem a “verdadeira fé”. 16 História da África e dos Africanos: Da Divisão Colonial aos Dias Atuais representava o Quinto Império e seus escritos buscavam inserir o reino português como representante da cristandade na Europa. De acordo com Menezes: Ao profetizar o estabelecimento do Quinto Império por D. João IV, Antonio Vieira coroou uma longa tradição que atribuía a Portugal, desde suas origens, o cumprimento de desígnios divinos. Contudo, as vésperas do iluminismo, muito mais do que sonhar com a expansão, importava mesmo aos portugueses manter o que restava de seu combalido império ultramarino (MENEZES, 2011, p. 179). Nesse sentido, percebemos que para os jesuítas a atuação missionária estava umbilicalmente ligada à conquista e subjugação dos povos sob o domínio português. Outra ordem que ajudou na colonização dos povos subjugados foram os capuchinhos. No entanto, a hierarquia desses religiosos estava concentrada em Roma e seus interesses estavam bem mais ligados aos espanhóis, franceses e membros dos reinos italianos. Isso fez com que os capuchinhos fossem rivais dos jesuítas em vários empreendimentos, principalmente após o fim da União Ibérica, em 1640, quando os portugueses tiveram dificuldades para obter o reconhecimento de sua independência frente à Espanha pelo Papado. Para uma análise da presença da Igreja nos negócios ultramarinos, veja o filme “1492: a Conquista da América”. Ano: 1992. País: Estados Unidos. Diretor: Ridley Scott. Duração: 150 minutos. NaVegação e força militar Portugal conseguiu dominar vários povos principalmente pelas armas e pela tecnologia que desenvolveu. Os barcos portugueses eram os mais poderosos, capazes de cruzar o atlântico sem maiores dificuldades, guardar diversos mantimentos e travar combate no litoral das regiões a serem ocupadas. Os navios utilizados pelos portugueses eram as caravelas e as naus. As caravelas eram navios pequenos e de fácil navegação. O navegador Pedro Álvares Cabral, ao chegar ao território que viria a ser a América portuguesa, estava pilotando uma delas. Bartolomeu Dias, primeiro navegador que contornou o Cabo Para os jesuítas a atuação missionária estava umbilicalmente ligada à conquista e subjugação dos povos sob o domínio português. 17 Negociação e coNflito: Portugueses em África Capítulo 1 da Boa Esperança, também estava pilotando uma caravela. Uma das limitações desse tipo de embarcação era que, pela sua leveza, ela não podia abrigar muitos tripulantes, coisa que para uma viagem longa atrapalhava. Por isso, desenvolveu-se um outro navio bem mais poderoso, com uma capacidade maior de navegação, grande poder de aparelhamento militar e com mais espaço para transportar tripulantes e especiarias. Durante todo o século XVI, a embarcação que chegou ao litoral africano e na Índia, responsável por patrulhar os mares americanos, era a nau, utilizada até o século XVIII nas viagens lusitanas pelo mar. Conforme assevera Boxer, “as embarcações que durante trezentos anos participaram da Carreira da Índia eram basicamente, e sobretudo, as naus, mas essa palavra abrangia ampla variedade de significados”. Vejamos um exemplo dos dois barcos, primeiro uma Caravela, e depois uma Nau. Figura 01 - Caravela portuguesa Fonte: Disponível em: <http://www.dightonrock.com/ osnordicosnuncativeramnadaaverco.htm>. Acesso em: 10 set. 2012. Figura 02 - Nau portuguesa Fonte: Disponível em: <http://www.prof2000.pt/users/hjco/ descoweb/pg000400.htm>. Acesso em: 10 set. 2012. Os navios utilizados pelos portugueses eram as caravelas e as naus. 18 História da África e dos Africanos: Da Divisão Colonial aos Dias Atuais Outro grande aliado do reino português em sua conquista pelo ultramar era seu poder militar. Desde o fim da Restauração, o governo lusitano contava com forças regulares em seu quadro, ou seja, oficiais pagos, vivendo do trabalho militar. Foram estes homens que entraram em confronto com indígenas, africanos e muçulmanos. Aliada a essa força composta por soldados pagos, havia outra não paga, formada por membros não remunerados da sociedade civil, chamada de milícias. Também se contava com uma cavalaria bem- formada, como veremos mais adiante. A estratégia de importar cavalos via oceano Atlântico tornou-se um mecanismo importante para vencer aqueles que resistiam aos avanços portugueses. Geralmente, homens que cometiam crimes em Portugal e escapavam da morte eram banidos do reino, estes eram denominados degredados. Seu banimento era primordialmente para as colônias, na África, Ásia e América. Ao chegarem nessas localidades, os degredados eram automaticamente incorporados ao Exército, essa era uma forma rápida, fácil e barata de a Coroa recrutar soldados. Nas colônias, além de todas essas forças, os portugueses também cooptavam lideranças locais para formar forças com pessoas que conheciam bem a região. As forças locais recrutadas eram chamadas de terços, organizados da seguinte forma: O terço deveria ser formado por 2.500 soldados, repartidos em dez companhias, compostas, cada uma, de 250 homens, todos subordinados ao capitão-mor (ou mestre-de-campo). Estas companhias, sob o comando de um capitão, por sua vez, deviam se dividir em dez esquadras de 25 homens. O capitão de companhia tinha a seu serviço um alferes, um sargento, um meirinho, um escrivão, dez cabos de esquadra e um tambor. O capitão-mor possuía ele mesmo uma das companhias, que era servida também por um sargento-mor, seu substituto natural, e por quatro ajudantes. No caso das ordenanças, os senhores ou os donos das terras de um termo deveriam, a princípio, ser automaticamente providos no comando das tropas como capitães (PUNTONI, 1999, p. 190). Esses terços atuavam com uma estratégia bem diferente nas colônias, readaptando-se à realidade local. Se na Europa os prisioneiros recebiam lugar para descanso e recuperação, com uma guerra pautada no movimento das tropas e ataques pelos flancos, na colônia era diferente, a guerra era marcada por confrontos violentos e a aniquilação total do inimigo. Muitos indígenas foram combatidos com a justificativa da Guerra Justa (MONTEIRO, 1994). A utilização de armas de fogo difundiu-se e na África os principais confrontos tiveram uso deste equipamento. Na África, Índia ou em Estados africanos organizados no novo Mundo, como o Quilombo de Palmares, por exemplo, as técnicas foram estas: confrontos violentos, uso da população local e utilização de armas de fogo e fortalezas. Sem dúvida a estratégia militar dos portugueses favoreceu a conquista em suas colônias. Na África, Índia ou em Estados africanos organizados no novo Mundo, como o Quilombo de Palmares, por exemplo, as técnicas foram estas: confrontos violentos, uso da população local e utilização de armas de fogo e fortalezas.19 Negociação e coNflito: Portugueses em África Capítulo 1 coNVerSaNdo com a hiStoriografia braSileira Autores brasileiros, principalmente os clássicos, questionaram o sucesso dos portugueses e sua herança na formação do povo brasileiro e o ser brasileiro. No contexto da década de 1930, aqueles que vieram a passar pela posteridade como sendo a tríade de interpretação do Brasil deixaram suas impressões sobre os sucessos dos lusitanos. Vamos ver agora rapidamente a opinião desses autores sobre as motivações do sucesso dos portugueses. Gilberto Freyre e seu famoso livro “Casa Grande & Senzala”, publicado em 1933, buscou compreender a origem do povo brasileiro, identificando o etrê nacional como mestiço. Seu trabalho esmiúça o contato entre europeus, indígenas e negros. Dotado de uma grande capacidade narrativa, Freyre conduz o leitor ao universo privado dos domínios senhoriais. Nesse universo predominavam relações lascivas e sexuais, envolvendo portugueses, indígenas e africanos. Tais contatos teriam forjado o povo brasileiro. Para maiores detalhes sobre o texto e sua argumentação, sugiro a leitura do livro, disponível em livrarias e várias bibliotecas públicas. No que tange ao nosso objetivo, o autor busca, antes de adentrar o universo senhorial, traçar um perfil dos conquistadores portugueses. Esses, ao lançarem-se ao mar, possuíam um determinismo para a miscigenação, devido ao domínio muçulmano na península ibérica. Para demonstrar a potencialidade de mestiçagem que os portugueses, em sua gênese, possuíam, ele trabalha com a lenda da mora encantada: O longo contato com os sarracenos deixara idealizada entre os portugueses a figura da “moura encantada”, tipo delicioso de mulher morena e de olhos pretos, envolta em misticismo sexual – sempre de encarnado, sempre penteando os cabelos ou banhando-se nos rios ou nas águas das fontes mal-assombradas – que os colonizadores vieram encontrar parecido, quase igual, entre as índias nuas e de cabelos soltos do Brasil. Que estas tinham também os olhos e os cabelos pretos, o corpo pardo pintado de vermelho, e, tanto quanto as nereidas mouriscas, eram doidas por um banho de rio onde se refrescasse sua ardente nudez e por um pente para pentear o cabelo. Além do que, eram gordas como as mouras. Apenas menos ariscas: por qualquer bugiganga ou caco de espelho estavam se entregando, de pernas abertas, aos “caraíbas” gulosos de mulher (FREYRE, 2006, pp. 12-16). Percebemos nessa descrição as características principais do autor, quanto ao seu modelo e sua argumentação. Segundo ele, o sucesso do reino em suas Gilberto Freyre e seu famoso livro “Casa Grande & Senzala”, publicado em 1933, buscou compreender a origem do povo brasileiro, identificando o etrê nacional como mestiço. 20 História da África e dos Africanos: Da Divisão Colonial aos Dias Atuais aventuras estava associado à capacidade de miscigenação e adaptação. Evidente que o autor adotou o critério antropológico e sexual para descrever as motivações. E outros autores, como fizeram? Veremos agora. Sérgio Buarque de Hollanda, em seu livro “Raízes do Brasil”, publicado originalmente em 1936, também se debruçou sobre a colonização portuguesa. Pensando na realidade do Brasil, o autor questionou-se sobre os motivos que fizeram com que Portugal tivesse sucesso e não outros reinos mais organizados, como Holanda e Espanha. Segundo ele, os portugueses, ao contrário dos ingleses que colonizaram as treze colônias, os castelhanos das América espanhola não demonstravam um orgulho de raça exacerbado, tampouco uma vontade expressiva de impor ao outro sua cultura. Essa falta de orgulho fez com que a colonização portuguesa alcançasse êxito. Entre trazer as parafernálias industriais europeias para adaptar no novo mundo, ou praticar uma agricultura seminômade, em conformidade com as adotadas pelos indígenas, eles, sem dúvida, preferiram a segunda. Entre dormir em camas, como praticado na Europa ocidental, ou dormir em redes como os habitantes do novo mundo naquele período, eles também escolheram deliberadamente a segunda alternativa. O espírito aventureiro, e não altaneiro dos lusitanos, fizeram toda a diferença, para o sucesso de conquista do novo mundo. Como Sérgio Buarque definiu brilhantemente: A colonização portuguesa na América aconteceu de modo desleixado. Fizeram-no com uma facilidade que ainda não encontrou, talvez, segundo exemplo na história. Onde lhes faltasse o pão de trigo, aprendiam a comer o da terra, e com tal requinte, que afirmava Gabriel Soares – a gente de tratamento só consumia farinha e mandioca fresca feita no dia. Habituaram-se também a dormir em redes a maneira dos índios. Aos índios tomaram ainda os instrumentos de caça e pesca, embarcações de casca ou tronco escavado que singravam os rios e águas do litoral, modo de cultivar a terra ateando primeiramente fogo ao mato (BUARQUE DE HOLLANDA, 1997, p. 46). Dessa forma, mesmo trilhando caminhos opostos ao de Freyre para compreender a formação brasileira, observam-se semelhanças quanto aos resultados obtidos pelos dois autores. Ambos atribuem à capacidade de adaptação e miscigenação dos portugueses o sucesso em seus projetos de colonização. Para completar a análise de importantes intérpretes brasileiros que analisaram a colonização portuguesa, finalizamos com o livro “Formação do Brasil contemporâneo”, escrito por Caio Prado Jr no ano de 1942. Para o autor, a aventura marítima lusitana aconteceu principalmente por motivações sociais e econômicas. Afinal, seria difícil para um reino paupérrimo, carente de solo adequado para o cultivo de alimentos, obter recursos sustentáveis internos. Isso levou os portugueses, acostumados com o trabalho marítimo, a buscar recursos 21 Negociação e coNflito: Portugueses em África Capítulo 1 externos. A pilhagem e a exploração para fins econômicos dos portugueses, que criaram aqui uma colônia montada com o objetivo de explorar ao máximo o recurso de suas colônias, caracterizava-se como uma colonização de exploração, diferente do tipo de colonização que a Inglaterra empregou em suas colônias no Novo Mundo. Essa seria empreendida como colônias de povoamento. Logo, para Caio Prado Jr, o “sentido da colonização” portuguesa estaria nos seus mais de três séculos de exploração da população da colônia (PRADO JR, 1994). Depois de apresentar como Portugal alcançou seu sucesso e como a historiografia clássica sobre o Brasil interpretou a passagem dos portugueses por aqui, vamos observar como todos esses mecanismos de expansão foram aplicados na África Central. o reiNo do coNgo e oS PortugueSeS Quando Diogo Cão desembarcou novamente – era a segunda vez que ele aportava – na nascente do rio Zaire, seu objetivo era iniciar contatos amistosos com a população daquele reino até então desconhecido. Desde os primeiros contatos, vários fatores determinaram seu sucesso e a religião acabou sendo o primeiro e mais importante deles. Como vimos anteriormente, o catolicismo representava uma importante arma para o domínio português no ultramar, e na África Central não era diferente. Claro que essa relação era mais dialógica do que pensamos, pois havia também no reino do Congo uma religiosidade própria da cultura daquele povo. Para o africanólogo Alberto da Costa e Silva, uma das hipóteses que fez com que os súditos do rei do congo aceitassem os portugueses caminhava exatamente ao encontro desses pressupostos existentes: Dizem também que os homens que baixaram das embarcações tinham a pele desbotada, falavam uma língua que não se entendia e foram tidos como espíritos. Talvez tenha sido assim. E talvez os congos da foz do rio Zaire também tenham tomado os recém-vindos por seus antigos mortos ou por entes sobrenaturais das águas ou da terra. Haviam surgido do oceano – o oceano que bem podia ser o calunga, ou as grandes águas que ninguém jamais atravessaraem vida e que separavam o mundo dos vivos do mundo dos mortos (SILVA, 2002, p. 359). Assim, talvez para os congoleses a chegada daqueles homens brancos vindos do mar significasse algo metafísico. Daí a certa facilidade de aceitação Depois de apre- sentar como Por- tugal alcançou seu sucesso e como a historiografia clássica sobre o Brasil interpretou a passagem dos portugueses por aqui, vamos ob- servar como todos esses mecanis- mos de expansão foram aplicados na África Central. 22 História da África e dos Africanos: Da Divisão Colonial aos Dias Atuais que Diogo Cão conseguiu no reino do manicongo. Quando de sua volta, o navegador trouxe consigo dois africanos e deixou dois portugueses, como mostra de confiança mútua. Após dois anos, quando retornou, ele trouxe de volta os dois africanos, agora vestidos à moda europeia e falando o idioma português. Neste momento, os contatos entre os dois reinos estreitaram-se ainda mais. O manicongo ouviu atentamente os relatos dos dois homens e ficou encantado com a riqueza e o poder do soberano português. Animado por tais relatos, o rei do Congo enviou uma embaixada ao rei português D. João II. A embaixada levou muitos presentes ao soberano lusitano, como dentes de elefante, objetos de marfim e panos de ráfia. Entre os pedidos do manicongo estava a instrução de dois rapazes enviados para estudar, e o envio de padres católicos para instruí-los na religião. O rei português acolheu todos os pedidos, era a oportunidade que o monarca queria para começar um estreito diálogo com o manicongo (SILVA, 2002, p.401). Quando os portugueses atracaram no reino do Congo ele era composto pela capital Banza Congo e algumas províncias: Soyo, Sundi, Pemba, Bata, Pambo. Cada província possuía um governador que possuía o título de Ngola ou Mani. Todos os governadores pagavam tributo ao rei e também lhe deviam obediência, o rei era chamado de manicongo e morava na capital. Havia rivalidades entre os chefes locais e o manicongo, todos os representantes das elites tencionavam conseguir em algum momento o poder, e para isso era importante aliar-se ao poderoso homem branco, vindo do mar. O primeiro chefe local que se batizou e converteu-se ao cristianismo morava na província do Soyo. Em 1489, antes mesmo do manicongo, ele deixou de chamar-se Nzinga a Nkuwa para ser batizado com o nome cristão de D. Manuel. A justificava apresentada pelo agora D. Manuel para se batizar antes do manicongo era por ser mais velho (SOUZA, 2002, cap. 02). No mesmo dia de seu batismo, após uma grande festa, tudo o que os padres portugueses compreendiam como objetos de idolatria, como imagens e rituais de sacerdócio, tornou-se cinzas. Depois de algum tempo, o manicongo demonstrou desejo de ser batizado. Em 1491, Nzinga Kuwu mandou construir uma igreja de pedra e cal para esse fim. Oficialmente, o reino do Congo tornou-se o primeiro reino africano e católico, isso não significa que o catolicismo adotado no reino fosse puro, ele significou, sobretudo, uma aliança poderosa com um reino superior militarmente, dono de uma tecnologia desconhecida, além de tornar possível às elites locais ampliar negociações fora do continente africano. O manicongo talvez tenha percebido uma oportunidade maior de aceitar a religião dos europeus no momento em que entrou em guerra com os angicos, habitantes do norte do reino. O soberano e seus soldados venceram a guerra, levando para o campo de batalha água benta, O primeiro chefe local que se batizou e converteu-se ao cristianismo morava na província do Soyo. 23 Negociação e coNflito: Portugueses em África Capítulo 1 enviada pelo Papa Inocêncio VIII, uma bandeira de cruzado, barcos e arqueiros que o seu irmão de fé, o rei de Portugal, lhe mandara. Em 1509, o manicongo morreu e seu herdeiro natural seria seu filho Mpanzu a Kitima, mas em luta financiada pelos portugueses, D. Afonso, batizado junto com seu pai, assumiu o trono. Seu irmão derrotado contou com o apoio dos antigos sacerdotes do reino e de lideranças contrárias à aliança com os portugueses. D. Afonso buscou tornar o reino do Congo irmão do reino português. Vários acordos foram estabelecidos. D. Manuel, rei de Portugal, mandou para o reino do Congo vários profissionais, como professores, pedreiros, técnicos em assuntos militares, e recebia em Lisboa filhos da elite congolesa para estudar em seu reino. O interesse em aproveitar as inovações que o reino europeu trazia era imenso, uma escola elementar foi criada na capital Mbanza Congo, cujo professor era africano, mas havia estudado em Lisboa. Ademais, o monarca congolês também ficou conhecido por ser um cristão fervoroso. Católico devoto, aprendeu rapidamente a ler e a escrever em língua portuguesa. Relatos de contemporâneos dizem que D. Afonso passava noites em claro lendo biografias de santos. Dono de uma capacidade de expressão notável, o rei converteu pessoalmente boa parte da nobreza contrária à adoção do catolicismo. Se pensarmos nos relatos de contemporâneos e na historiografia sobre o Congo, dificilmente vamos duvidar da sinceridade de conversão do rei (GONÇALVES, 2011). A instrução tornou-se uma poderosa arma de distinção no reino do Congo. No início havia um intérprete português responsável pelo envio de cartas a Portugal, depois os filhos da aristocracia fizeram o esforço e conseguiram dominar a fala e a escrita em português, isso tornou-se um ponto de legitimação dessa linhagem. Felizmente para os historiadores o número de cartas escritas por africanos e pelo próprio rei Afonso I ao rei de Portugal, e por outros monarcas do reino no século XVII, é grande. Infelizmente para os interessados e pesquisadores brasileiros, esse material não existe publicado no país. Talvez pela grande quantidade de documentos sobre o reinado de D. Afonso I, variadas são as lendas que pairam sobre sua vida, uma das mais citadas pela historiografia é a de que o monarca enterrou viva sua mãe Leonor. Tais lendas, vale a pena dizer, foram escritas cem anos depois de seu reinado por missionários capuchinhos (THORNTON, 2004). Outro ponto também importante de seu reinado foi além das trocas, elaborou-se uma legislação entre os dois reinos, os regimentos. Elaborado por Portugal, essa legislação dava conselhos e normatizava Elaborou-se uma legislação entre os dois reinos, os regimentos. Elabo- rado por Portugal, essa legislação dava conselhos e normatizava procedimentos que os africanos deveriam adotar. 24 História da África e dos Africanos: Da Divisão Colonial aos Dias Atuais procedimentos que os africanos deveriam adotar. O lusitano que levou às mãos do rei do Congo esse documento, Simão da Silva, tornou-se conselheiro do manicongo em todo seu governo. A influência portuguesa no reino do Congo era enorme, tanto que a nobreza congolesa adotou títulos nobiliárquicos europeus: viscondes, duques, condes e marqueses. O rei enviou seu filho, D. Henrique, para estudar em Portugal, depois de sua volta ele tornou-se o primeiro bispo nascido no Congo e assumiu a representação religiosa de Roma junto à população. Após a morte de D. Afonso I houve uma ferrenha disputa pelo controle do trono, e os portugueses apoiaram quem não merecia, de acordo com as normas locais, ocupá-lo. Tentarei resumir brevemente essa disputa. Os portugueses apoiaram e conseguiram colocar no trono o filho primogênito de D. Afonso I, chamado D. Pedro I. Seu reinado, porém, seria muito curto, pois segundo os costumes locais ele não poderia assumir o trono por conta de sua mãe, que não era a primeira mulher do rei. Quatro anos depois que assumiu o poder, ele perdeu o trono, as elites locais conseguiram emplacar o neto de D. Afonso I, chamado D. Henrique, no cargo. A partir do reinado de D. Henrique iniciou-se um processo dramático de luta pelo poder no reino. Este último foi assassinado por seu irmão, D. Bernardo I, que o sucedeu entreos anos de 1561 e 1567. Morto numa batalha, seu filho, D. Henrique I, entrou em seu lugar, este também morto em confronto cedeu lugar a seu filho, D. Álvaro I, em 1568, que teve um reinado muito difícil, pois enfrentou represálias armadas do jovem soberano português D. Sebastião pela morte de alguns europeus no reino, e uma dramática batalha contra os Jagas, povos guerreiros que habitavam as regiões fronteiriças do reino. Quem substituiu D. Álvaro I foi seu filho, D. Álvaro II, em 1596. Ele conseguiu restabelecer uma relação amistosa com Portugal e em seu governo foi criada a diocese do Congo e Angola. Após sua morte, quem o substituiu foi seu tio, alegando a pouca idade do filho do antigo soberano, e com a ajuda de pessoas influentes, D. Bernardo conseguiu o reino em 1614. Após a morte desse soberano, uma nova disputa estabeleceu-se e vários soberanos tiveram curtos reinados no Congo. Entre 1614 e 1650, o reino teve nada mais, nada menos, que 10 reis. O que fica caracterizado nesse período pode ser, grosso modo, definido como o início da centralização do poder, inaugurada por D. Afonso I. Ademais, o reino, mesmo com a presença dos portugueses, conseguiu manter sua autonomia. Tal autonomia esteve ligada principalmente ao catolicismo, trazido pelos próprios portugueses. Desde o reinado de Afonso I, reis congoleses obtiveram uma instituição de apelo, por conta de suas relações privilegiadas com Roma. No começo da catolização do reino do Congo, as elites locais tentaram controlar o processo missionário. Exemplo disso foi a escolha do filho do rei para ocupar o bispado da capital Mbanza Congo, que posteriormente teve outro nome e passou a chamar-se São Salvador. Essa religiosidade, porém, não passou incólume ao seu contato com os reinos africanos. Para Reginaldo: 25 Negociação e coNflito: Portugueses em África Capítulo 1 Alguns indivíduos eram capacitados e socialmente reconhecidos como intermediários entre eles, como os nganga. Com o auxílio de minkisi (plural de nkinsi), “objetos mágicos indispensáveis à execução dos ritos religiosos”, prestavam serviços privados ou, em determinadas situações, sociais comunitários. Nos primeiros catecismos e dicionários de kikongo, elaborados nos séculos XVI e XVII, os sacerdotes católicos também eram denominados ngangas e os objetos de culto cristão minkisi. É possível que, por um lado, os sacerdotes quisessem assumir o lugar dos ngangas, de outra perspectiva, também é preciso reconhecer que a informação primária, que permitia a tradução para os idiomas europeus, provinha dos próprios congueses (REGINALDO, 2011, p. 20). Observamos que, para a autora, a prática religiosa congolesa esteve sempre ligada à sua ancestralidade. Mesmo convertidos, tais homens, mulheres e crianças jamais deixaram de esquecer a calunga e a representatividade que os Deuses que eram louvados antes da chegada dos europeus tinham. Assim, fica difícil pensarmos em um catolicismo próprio, europeu, o que realmente acontecia era um catolicismo africano, uma miscelânea religiosa em que portugueses e africanos reinventaram uma nova religião, baseada largamente no catolicismo europeu. Os congoleses souberam explorar as rivalidades envolvendo as ordens. Em 1645, chegaram ao Reino missões capuchinhas, compostas principalmente por italianos, estes eram naturalmente rivais dos jesuítas e dos portugueses. Ao contrário dos Inacianos, essa ordem estava subordinada diretamente a Roma, e sua chegada esteve concentrada principalmente no momento em que Lisboa estava em atrito com Roma, pois o Papa não havia reconhecido a independência do reino de Portugal frente a Espanha no período. Por vezes, os opositores dos capuchinhos, diziam que eram eles inimigos do reino de Portugal e infiltrados de Castela. Sofrendo uma situação hostil os padres, por outro lado, levaram as reivindicações do reino do Congo para Roma, fazendo com que os portugueses não levassem a cabo uma política de domínio como aquela efetuada em Luanda. Dessa forma, a religiosidade serviu bem ao propósito dos africanos do reino do Congo, ao menos até a Batalha de Ambuíla, de 1665. aNgola PortugueSa Para compreendermos a presença portuguesa em Angola, é necessário remontarmos até 1575, ano em que Paulo Dias de Novais, neto de Bartolomeu Dias, estabeleceu-se em Luanda como governador. Num primeiro momento, a tentativa dos portugueses era de estabelecer na região uma colonização parecida com a do Brasil, por meio de concessão de territórios e a fundação de algumas Para compreen- dermos a presen- ça portuguesa em Angola, é neces- sário remontarmos até 1575, ano em que Paulo Dias de Novais, neto de Bartolomeu Dias, estabeleceu-se em Luanda como governador. 26 História da África e dos Africanos: Da Divisão Colonial aos Dias Atuais fortalezas no interior: Massanango, Cassange, Ambaca, Muxima. Novais recebeu a carta e assumiu os compromissos para com a Coroa de colonizar e explorar aquela terra, que não lhe pertencia. Os povos que habitavam a região eram principalmente os Ibamgalas, Jagas e Andongos. O nome Angola foi dado em primeiro lugar pelos europeus que habitavam a região, pois os reis eram chamados de Ngola, alguns de mani, dada a proximidade com o Congo. O nome que os habitantes naturais do lugar chamavam Angola era Dongo. O regime de governo era descentralizado, não havia uma um único soberano, os reinos eram em parte independentes, cada cidade possuía um governador que recebia as honras de um rei, seu Ngola. Os reinos mais poderosos eram o Dongo, Matamba e Cassange. No começo de sua estadia, Novais estabeleceu uma relação amistosa com o mais importante governante local, responsável pela Ilha de Luanda, este identificou o perigo de ter um estrangeiro em suas fronteiras apenas em 1580, quando entrou em confronto armado com os portugueses. A guerra entre Novais e o Ngola durou nove anos, recheada de vitórias e derrotas para ambos os lados, com uma vantagem inquestionável para os lusitanos. Tal vantagem decorria principalmente das armas dos portugueses. Além da capacidade de recrutar degredados de outras colônias, os portugueses valiam-se do uso de armas de fogo, e utilizavam em suas campanhas cavalos importados do Brasil. Esses animais, além de concederam vantagens no campo de batalha, causavam medo na maioria dos africanos. Na visão das autoridades, a principal vantagem do uso de cavalos viria do suposto terror que estes animais produziam nos africanos. Tal visão é atestada por numerosos relatos do século XVI e XVII. Segundo o governador Fernão de Souza, o terror dos africanos em relação aos cavalos era tamanho que tornaria desnecessário o uso de arcabuzes pelas tropas governamentais. Mais tarde o ex-governador Francisco Vasconcellos da Cunha afirmou que os africanos têm mais medo de 20 cavaleiros do que de duas companhias da infantaria (FERREIRA, p. 12). Essa visão africana sobre os cavalos, evidentemente não durou todo o processo de colonização, mas acabou sendo substancial para as vitórias lusitanas. Se durante o período de Guerra com o primeiro governador não podemos proclamar um vencedor, ao menos se pode dizer que as ocupações e a iniciativa da guerra era toda dos europeus. Enquanto o rei estava defendendo seu povo e seus privilégios de comércio, os portugueses acreditavam que Angola era um novo Peru, e que tinha vários campos de Prata e demais metais preciosos (GLASGOW, 1982). 27 Negociação e coNflito: Portugueses em África Capítulo 1 Em 1591, o rei Felipe II da Espanha e Portugal rescindiu as capitanias hereditárias e nomeou um governador-geral para Angola. Essa mudança institucional fez com que os andongos sitiassem os portugueses, que ficaram restritos em seus fortes. Em 1602 houve uma reviravolta e o Ngola foi derrotado. Finalmente os portugueses chegaram às suas cobiçadas minas, que no final compunham-se apenas de chumbo. A coroa espanholacontrolava então o reino, sempre, claro, tendo que encarar revoltas de alguns Ngolas do interior (idem). Em 1617, chegou a Luanda o novo governador-geral, Luís Mendes de Vasconcelos, com grandes propósitos: manter a paz no território, conter o comércio ilegal de escravos, estancar a corrupção e desvencilhar-se dos imbangalas “comedores de carne humana”. No mesmo ano de sua chegada, depois de sangrentas disputas sucessórias, subiu ao trono Ngola Mbandi, marcado por sua crueldade. Podemos perceber até aqui o quanto a força militar e a luta armada estiveram presentes na ocupação portuguesa em Angola. Ao contrário do reino do Congo, onde houve uma negociação e uma tentativa de assimilação por meio da religião, na vizinha Angola o modus operandi era diferente. O que os portugueses não contavam, no caso angolano, era com o contexto atlântico europeu. A Holanda criou uma companhia para rivalizar com os portugueses e conquistar territórios no ultramar. Em 1630, os holandeses invadiram Pernambuco, permanecendo por lá 14 anos, não satisfeitos, avançaram também sobre as possessões africanas dos lusitanos. Para saber mais sobre a ocupação holandesa em Pernambuco, ver: Evaldo Cabral de Mello. Olinda restaurada: guerra e açúcar no nordeste (1630-1654). São Paulo: Editora 34, 2007. Os holandeses estavam presentes na região desde, ao menos, 1622, quando comerciavam com o Nsoyo. Nesse período, uma rainha guerreira de Matamba havia entrado em guerra com seu irmão pela disputa do poder. O irmão, Ngola Aire, apoiado por portugueses, impôs em vários momentos derrota para sua irmã, inimiga dos portugueses. Como inimiga dos lusitanos, Nzinga se viu em uma posição difícil, pois não possuía armas à altura, e não tinha o poder de recrutar gente de outras O que os por- tugueses não contavam, no caso angolano, era com o contexto atlânti- co europeu. 28 História da África e dos Africanos: Da Divisão Colonial aos Dias Atuais regiões, como ocorria com os portugueses. Uma importante estratégia da rainha foi negociar com os inimigos de Portugal. Assim, a rainha teceu alianças com a comunidade dos ambundos e com os holandeses. Para Roy Glasgow, “somente em 1647 que se firmou uma tríplice aliança entre holandeses, congoleses e ambundos com o compromisso de empreender uma investida conjunta para exterminar os exércitos lusos” (GLASGOW, 1982, p. 128). A rainha conseguiu em determinado momento juntar forças para combater seus inimigos. Conhecida por sua alta educação e capacidade de diálogo, a rainha conhecia bem o idioma português e os costumes católicos. Nzinga havia sido batizada em 1622 e seu nome cristão era Ana de Souza, sua desenvoltura e capacidade de oratória eram conhecidas há muito tempo pelos portugueses. Quando esteve em Luanda, negociando com o governador português, após o governador deixá-la de pé e sentar-se em sua cadeira, ela não titubeou e pediu para que um dos seus servos se postasse de cócoras para ela sentar sobre suas costas e negociar em pé de igualdade com o representante da coroa europeia. A aliança com os holandeses não surtiu muito efeito, pois os flamengos estavam sem força no período em que Nzinga os procurou, faltando pouco para a reconquista de Angola por Portugal. A expulsão dos holandeses de Angola não teve quase nenhum tipo de envolvimento da nobreza de Lisboa, ela foi patrocinada por membros da elite baiana e pernambucana. Uma tropa patrocinada pelo nobre Salvador de Sá Benevides, composta por negros do terço dos Henriques de Pernambuco, degredados indianos e portugueses, além de soldados pagos brasileiros, conseguiu reconquistar Luanda. Esse patrocínio vai ao encontro das afirmações do historiador Luiz Felipe de Alencastro, que em seu livro “O trato dos viventes” levanta a hipótese plausível e interessante de que as autoridades portuguesas entendiam a região de Angola como parte do novo mundo da América. Nzinga, no entanto, continuou sua batalha. Dez anos depois ela ainda estava em guerra, utilizando os mais variados recursos, talvez tenha pensando também em utilizar-se da religião, como os membros da dinastia congolesa. Em 1657, missionários capuchinhos conseguiram fazer com que a rainha aceitasse novamente a fé católica. Lembrando que os capuchinhos eram rivais dos portugueses, ou ao menos encarados como tal no reino de Angola e Luanda. A rainha combateu de forma heroica os portugueses, enfrentando todos seus recursos bélicos, utilizando todos os artifícios que havia ao seu alcance. Para seu biógrafo: A rainha Nzinga simbolizou o primeiro movimento de resistência sistemático africano à dominação portuguesa. Tendo um compromisso total e absoluto para com a libertação 29 Negociação e coNflito: Portugueses em África Capítulo 1 e o nacionalismo angolanos, ela foi de 1620 até sua morte em 1663, a personalidade mais importante de Angola. Nzinga fracassou na missão de expulsar os portugueses e de se tornar rainha da “Etiópia Oriental”, incluindo Matamba e o Dongo. Entretanto, sua importância histórica transcende esse fracasso, pois despertou e encorajou o primeiro movimento nacionalista de que se tem conhecimento na África Central, organizando uma aliança nacional e internacional em sua oposição total à dominação europeia (GLASGOW, 1982, p.177). Sua morte aconteceu 1663, seu legado continou. Hoje ainda temos grupos de capoeira, maracatu, com o nome da soberana. Dentre os nomes africanos que batizam várias crianças brasileiras, esse é o mais recorrente. O seu nome abrasileirado tornou-se sinônimo da dança utilizada por capoeiras, a Jinga. Talvez, esse legado tenha atravessado séculos por conta dos guerreiros dessa soberana. Depois de sua morte, cerca de 7000 deles foram escravizados e enviados para o Brasil. Tal escravização aconteceu depois de uma importante batalha, que mudou a história da África Central. a batalha de ambuíla O governador-geral André de Vidal Negreiros, depois de fazer uma aliança com os Imbangala, derrotar os Jagas e as forças da rainha Nzinga, estava convencido de que era chegada a hora de derrotar o reino do Congo, que havia aproveitado sua religiosidade para segurar a invasões portuguesas. O ataque estava sendo organizado há alguns meses. Negreiros conseguiu autorização de Lisboa para ocupar as minas do Congo. Reuniu várias tropas, desde soldados remanescentes da expulsão dos holandeses, militares profissionais enviados de Lisboa, degredados, munidos de armas de fogo e dos temidos cavalos. Ao todo foram reunidos cerca de seis a sete mil soldados. Sob a chefia do experimentado comandante Luís Lopes de Serqueira, marcharam para Ambuíla em 1665. Do outro lado, o soberano congolês D. Antônio I não deixou por menos. Convocou às armas qualquer pessoa capaz de manusear um instrumento letal para defender seu reino e a vida de seus súditos. Os governadores locais (manis) fizeram o mesmo em suas províncias, havia ainda nas tropas africanas o reforço de 190 mestiços e 29 portugueses que moravam na capital Banza Congo. Ao todo, as fontes relatam que suas tropas somavam aproximadamente cem mil homens. Sua morte acon- teceu 1663, seu legado continou. Hoje ainda temos grupos de capo- eira, maracatu, com o nome da soberana. 30 História da África e dos Africanos: Da Divisão Colonial aos Dias Atuais A princípio, a batalha aparentava certo equilíbrio. Os portugueses, em menor número, organizaram suas formas em forma de quadrado, buscando atingir preferencialmente as chefias congolesas. Eles contavam com a chuva para tornar ineficazes as armas de fogo dos portugueses, e a chuva veio. O quadrado português estava sendo demolido pelas forças africanas, quando tudo parecia próximo do fim, uma pequena bala acertou em cheio o manicongo D. Antônio I, que caiu morto, logo um soldado negro, aliado dos portugueses, rapidamente degolou a cabeça do rei e ergueu-a o mais alto que pôde com sua lança. Houve um arrefecimentodas forças africanas, e os africanos acabaram derrotados e saqueados. Para uma melhor descrição desse episódio, permita-me, prezado cursista, a longa transcrição do trecho de um contemporâneo deste evento: Teve o governador notícia certa que, quando foi o sucesso da batalha do rei do Congo, da nossa gente que de lá fugiu com temor de tão numeroso poder, alguns soldados brancos e muita gente preta passando pelas terras e senhoria do Dembo Manimotemo Aquingengo, toda a nossa gente do arraial era degolada, que esta foi a primeira nova que até a cidade chegou de ser todo o nosso exército roto e desbaratado. Este dito Soba por que ter também ser participante com o nosso inimigo naquele gosto e contento, degolou tudo o que lhe veio dar as suas terras que não estavam bem distantes onde foi a batalha, depois disso vendo e sabendo o nosso bom sucesso, verificando a cabeça do próprio rei que lhe passou por sua banza e senhorio, ficou muito atônito do que havido obrado contra a nação portuguesa, o que verificou-se e sabendo com certeza se resolveu o governador em mandar castigar semelhante excesso, para o que chamou de conselho e propôs esta matéria com pessoas doutas se era justo castigar semelhante crime e desaforo; e pelas pessoas que podiam ter voto sobre semelhante malefício foi resolvido que sem embargo que aquele Soba Dembo reconhecia em outro tempo ao rei do Congo, e estava em nosso poder e reféns e penhor do comprimento das capitulações, não podia bulir consigo em favorecer o partido daquele rei ainda que fosse de seu senhorio se não mostrasse neutral e não fazer nada de si nem por uma parte nem outra com o que havia delinquido, e era digno de todo castigo pelo que havia obrado (CADORNEGA, p. 218). Apesar do português um tanto quanto arcaico, podemos perceber o grande impacto causado pela batalha de Ambuíla em 1665. No imaginário português, a Guerra seria a vitória do verdadeiro cristão sobre os infiéis africanos, e em última análise ela representou a unificação dos reinos da África central e um controle maior sobre o grande pulmão que passou a impulsionar a atuação dos europeus na África Central: o tráfico de escravos, tema de nosso próximo capítulo. A princípio, a batalha aparentava certo equilíbrio. Os portu- gueses, em menor número, organizaram suas formas em forma de quadrado, buscando atingir preferencialmente as chefias congolesas. 31 Negociação e coNflito: Portugueses em África Capítulo 1 Atividades de Estudos: 1) Com base nos temas estudados nesse capítulo, pesquise e crie um texto comparando o processo de ocupação portuguesa efetuado no Brasil e na África Central. ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ 2) Com base no material desse capítulo, crie uma aula e apresente aos seus colegas em forma de seminário, contendo os seguintes itens: a) tempo de duração; b) material utilizado; c) atividades que irá desenvolver; d) resposta esperada dos alunos. ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ 32 História da África e dos Africanos: Da Divisão Colonial aos Dias Atuais algumaS coNSideraçõeS Caro pós graduando, neste capítulo estudamos os principais motivos que levaram o reino de Portugal a ocupar a vanguardas na expansão ultramarina. Além disso, identificamos como aconteceu o processo de ocupação dos portugueses na África Central, entre os séculos XV e XVII, e os principais mecanismos utilizados pelos portugueses para assimilar e controlar a população africana e os recursos utilizados por tais africanos para negociar com os europeus. No capítulo seguinte, abordaremos a escravidão e tráfico de negros, pois iremos compreender o modo como o tráfico de escravos evoluiu ao longo dos séculos. Apresentaremos as regiões de embarque, as formas de captura de homens e mulheres transformados em escravos e as interpretações divergentes ao longo da historiografia acerca do número de escravizados embarcados. referêNciaS ALENCASTRO, Luís Felipe de. O trato dos viventes: a formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. BOXER, Charles. O império marítimo português, 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. BUARQUE DE HOLLANDA, Sérgio. Raízes do Brasil. Companhia das Letras, 1997. CARDONEGA. 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Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002. 34 História da África e dos Africanos: Da Divisão Colonial aos Dias Atuais CAPÍTULO 2 uma Viagem Sombria: eScraVi- zação e tráfico, SéculoS XVii ao XiX A partir da concepção do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes objetivos de aprendizagem: � Examinar o modo como o tráfico de escravos evoluiu ao longo dos séculos. � Apresentar as regiões de embarque e as formas de captura de homens e mulheres transformados em escravos. � Apresentar as interpretações divergentes ao longo da historiografia acerca do número de escravizados embarcados. 36 História da África e dos Africanos: Da Divisão Colonial aos Dias Atuais 37 Uma Viagem Sombria: eScraVização e Tráfico, SécUloS XVii ao XiX Capítulo 2 coNteXtualização Prezados pós-graduando, neste capítulo vamos estudar um processo de suma importância para compreendermos todo o continente africano e a formação do Brasil: o tráfico de escravos. Entre a segunda metade do século XVII e a primeira metade do século XIX, cerca de 10 milhões de pessoas, homens, mulheres e crianças, foram arrancadas violentamente de sua terra natal para realizar uma longa travessia, deixando para trás familiares, bens materiais, amigos, redes de sociabilidades, enfim, tudo o que amavam, com destino ao Brasil. Essa viagem, sem dúvida, configurou-se na maior imigração forçada do planeta, conhecida também como diáspora africana. O conceito de diáspora nos remete à mudança de um povo. Podemos definir como tal a imigração forçada ou não. O Brasilformou-se por meio de várias diásporas étnicas, principalmente de imigrantes europeus no final do século XIX. No entanto, sem dúvida, a africana foi a maior e a mais brutal. Ela representou uma mudança na estrutura social da África e a completa mudança da sociedade brasileira. Veremos, neste capítulo, um pouco mais sobre esse tema. Quantos escravos foram trazidos? O que a bibliografia diz acerca deste tema? Quais as interpretações clássicas? Como é possível quantificar o número de africanos vindo para as Américas? Espero que você, cursista, possa compreender um pouco mais esta dinâmica e intricada rede. o tráfico O tráfico de seres humanos escravizados existiu em várias sociedades ao longo do processo social não planejado chamado pelos historiadores de história. Essa prática era comum em várias culturas europeias, incluindo eslavos e nórdicos, passando por orientais, como chineses e japoneses. Todas elas em algum momento tiveram a organização do trabalho de maneira compulsória, chamada de escravidão, e também de corveia na Idade Média europeia. Essa prática era comum em várias culturas euro- peias, incluindo eslavos e nórdi- cos, passando por orientais, como chineses e japoneses. 38 História da África e dos Africanos: Da Divisão Colonial aos Dias Atuais A escravidão na Grécia: na antiguidade também houve o processo de escravização de pessoas. Na Grécia os escravos eram usados principalmente na agricultura, o principal pilar econômico da Grécia. Alguns pequenos donos de terras podiam possuir um ou dois escravos. Um grande acervo de manuais para donos de terras confirma a presença de dezenas de escravos nas maiores propriedades; eles podiam ser trabalhadores comuns ou capatazes. A extensão do emprego de escravos na agricultura é motivo de debate; sabe-se, contudo, que escravidão rural era muito comum em Atenas. Mão-de-obra escrava também prevalecia em minas e em pedreiras, onde grandes populações escravas eram frequentemente contratadas por cidadãos ricos. General Nicias contratou mil escravos que trabalhavam nas minas de prata de Laurium; na Ática Hiponicos, contratou 600; e Filomides, 300. Xenofonte indica que cada escravo recebia um óbolo por dia, somando, assim, 60 dracmas por ano. Esse era um dos investimentos mais valorizados pelos atenienses. O número de escravos trabalhando nas minas de Laurium, ou então nos moinhos que trabalhavam os minérios, era estimado em 30000. Xenofonte sugeriu que a cidade comprasse mais escravos, de modo que cada cidadão tivesse três escravos, pois a contratação deles asseguraria uma boa renda para todos os cidadãos. Para que tal forma de trabalho obtivesse resultado, era necessário “reduzir” (termo utilizado no século XIX) a pessoa à escravidão. Quando tal redução atingia o status de negócio, era preciso montar uma estrutura mais ampla envolvendo diversas redes de negociantes e fornecedores. Os cálculos e o detalhamento dos custos de cada ação deveriam ser feitos minuciosamente, para cada ação deveria existir uma pessoa habilitada para sua execução, e várias eram as atribuições específicas do comércio de seres humanos. No continente africano, esta formação de um mercado específico para tal fim começou a partir de 1650, mas o tráfico já existia desde as chegadas dos portugueses no século XV, na África Central, mas tomou proporções alarmantes em fins do século XVIII até meados do século XIX. A escravidão, praticada até então de forma menos intensa e mais ligada à política, transformou-se. Ela passou a crescer e a tomar conta da sociedade em várias partes do continente. Ninguém conseguiu conter suas redes. A África e os portugueses transformaram a escravidão numa Hidra de Lerna. Essa prática era comum em várias culturas europeias, incluindo eslavos e nórdicos, passando por orientais, como chineses e japone- ses. . 39 Uma Viagem Sombria: eScraVização e Tráfico, SécUloS XVii ao XiX Capítulo 2 A Hidra de Lerna era um animal da mitologia grega. Um dragão com sete cabeças e para cada uma das cabeças cortadas nasciam duas. Em seu segundo trabalho, Hércules, personagem da mitologia grega, derrotou a Hidra, utilizando a técnica de cicatrizar rapidamente a cabeça cortada com fogo. O diplomata e historiador Alberto da Costa e Silva escreveu dois importantes livros sobre a África. O primeiro, um tomo de aproximadamente seiscentas páginas, é dedicado à África pré-colonial, já o segundo, igual em tamanho, analisa o impacto da presença dos europeus, principalmente os portugueses, no continente. Tal divisão não se deu de forma aleatória, representa o impacto e o choque de civilizações que tivemos depois dos primeiros contatos entre as duas culturas. Logo, o próprio título do material demonstra claramente o quanto o continente africano foi influenciado pelos europeus. Para compreender e se aprofundar mais neste tema, recomendo estes dois tomos como os melhores guias sobre África em língua portuguesa. Alberto da Costa e Silva. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. _____. A manilha e o libambo: a África e a escravidão de 1500- 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. Voltando aos nossos temas iniciais, a escravidão e o tráfico, cabe responder algumas indagações sobre a parte mais importante envolvida nessa imbricada rede: os africanos. Quais as ligações com a América? Quais os Estados envolvidos? O que recebiam? Em que parte lhes cabia a agência (termo emprestado do inglês agency, sem 40 História da África e dos Africanos: Da Divisão Colonial aos Dias Atuais tradução específica para nossa língua)? Essas são questões complexas sobre as quais iremos nos debruçar doravante. tráfico africaNo e coNeXõeS braSileiraS O destino da quase totalidade dos africanos escravizados era a América, dentre os países da América, o que mais recebia escravos, o líder absoluto, era o Brasil. No continente africano, os lugares que frequentemente forneciam homens e mulheres para a travessia atlântica era a África central, representada por vários Estados, denominados genericamente de região de Angola e região do Congo, o Golfo do Benim e a Costa do Ouro. Na África Central, os portugueses detinham um controle privilegiado, como estudamos capítulo anterior. E desta parte saíram a maioria dos escravos desembarcados nas Américas. Dessa forma, constatamos que boa parte dos escravizados no Brasil nasceram em Angola, certo? Não, errado. As etnias dos africanos eram múltiplas e o fato de Angola ter fornecido o maior número de pessoas não quer dizer que os escravos fossem em sua maioria angolanos. Até porque a mobilidade de homens e mulheres escravizados era enorme, principalmente depois de 1650 até o terceiro quarto do século XIX. Além disso, no Brasil, a reprodução dos escravos, por meio de casamentos, criou uma segunda geração de cativos, denominados pelos contemporâneos de crioulos. O número de cativos diminuiu também com o fim do tráfico de escravos para o Brasil, aprovado pelo congresso em 1850. Para uma análise dos debates e embates envolvendo essa lei, ver o livro: RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiência do final do tráfico de africanos para o Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2000. O destino da quase totalidade dos africa- nos escravizados era a América, dentre os países da América, o que mais recebia escravos, o líder absoluto, era o Brasil. 41 Uma Viagem Sombria: eScraVização e Tráfico, SécUloS XVii ao XiX Capítulo 2 O termo crioulo guarda uma particularidade. Até hoje é comum ouvirmos pessoas referindo-se de forma pejorativa a pessoas negras pelo nome de crioulo, para homens, e crioula, para mulheres. A maioria dos escravizados da África Central passavam pelo mesmo caminho: o mercado do Valongo, localizado na cidade do Rio de Janeiro, neste período já capital do Brasil.Figura 3 - Mercado de Valongo Fonte: Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ sinapse/ult1063u156.shtml>. Acesso em: 10 nov. 2012. A pintura do famoso pintor francês Jean Baptiste Debret retrata o Mercado de Valongo, que ficava localizado hoje no centro da cidade do Rio de Janeiro, onde, no século XIX, os escravos africanos recém chegados eram vendidos. O comércio entre o Rio de Janeiro e Luanda estava estabelecido desde 42 História da África e dos Africanos: Da Divisão Colonial aos Dias Atuais o começo do século XVIII e se enraizou no século seguinte. Tal comércio transformou a cidade brasileira, na primeira metade do século XIX, numa espécie de pequena África, devido ao grande número de escravizados que fizeram com que o índice de africanos entre a população fosse altíssimo. Essa maciça presença de africanos não passou despercebida por pintores que representaram a cidade por meio de seus pincéis, como os europeus Debret e Rugendas. Carlos Eugênio Líbano Soares, em seu importante estudo sobre a capoeira escrava na capital fluminense da primeira metade do século XIX, comentou alguns aspectos da pintura do último pintor citado: Como transparece nas gravuras de Debret, os africanos do Rio de Janeiro joanino gostavam de se apresentar vistosamente, misturando estilos africanos e enfeites europeus. As formas de identificação étnica variavam. Tudo indica que o barrete vermelho e as fitas eram símbolos exclusivos de algumas etnias, enquanto outros africanos, como os da África Ocidental, partilhavam diferentes formas de identificação (SOARES, 2004, p. 81). Figura 4 - Fazenda de café no Rio de Janeiro Fonte: Disponível em: <http://historiacepae.blogspot.com.br/2012/04/ memorias-analise-da-imagem-batuque.html>. Acesso em: 10 nov. 2012. 43 Uma Viagem Sombria: eScraVização e Tráfico, SécUloS XVii ao XiX Capítulo 2 Atividade de Estudos: 1) O que é possível analisar a partir da obra do pintor Rugendas (Figura 2), na qual os escravos foram retratados em uma fazendo de café no Rio de Janeiro? ____________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ Os grupos no começo do século estavam formados, isso quer dizer que existiam formas de solidariedades étnicas na cidade desse período, tendo em vista que os grupos de africanos da parte central do continente andavam juntos, e este tipo de identificação era diferente dos oriundos da África Ocidental. A partir deste pequeno trecho, é possível perceber o grande número e a diversidade de pessoas que a cidade recebia. Para saber mais sobre africanos no Rio de Janeiro do século XIX, ver o livro: KARASH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Outra rota secular que envolvia o tráfico de escravos no Brasil era Salvador e o Golfo do Benim. A capital baiana possui um dos índices mais altos de pessoas declaradamente negros e negras atualmente. Segundo o recenseamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 82,4% da população da cidade é formada por negros ou pardos. A maioria dos escravos importados para o norte do Império (não existia o termo nordeste) desembarcava na Baía de todos os Santos. Os falantes de língua ioruba e os Haussás muçulmanos entraram maciçamente na região, ocupando, além de Salvador, o Recôncavo baiano, que contava com várias cidades como Cachoeira, Amargosa, Santo Amaro da Purificação, entre outras. Os grupos no começo do século estavam formados, isso quer dizer que existiam formas de solidariedades étnicas na cidade desse período, tendo em vista que os grupos de africanos da parte central do conti- nente andavam juntos, e este tipo de identificação era diferente dos oriundos da África Ocidental. 44 História da África e dos Africanos: Da Divisão Colonial aos Dias Atuais Sobre as revoltas de africanos na Bahia, veja o livro : REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil: a História do Levante dos Malês em 1835 (Edição revista e ampliada). 2ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. Os traficantes baianos mantinham relações de amizade com grandes traficantes africanos e até mesmo com soberanos locais. Era comum o envio de filhos de reis africanos para estudar na Bahia, e alguns deles viajavam para a África duas ou três vezes por ano, para administrar seus negócios naquele continente e conhecer a região que os tornava ricos e poderosos. Francisco Félix de Souza, conhecido como Xaxá, foi um dos mais conhecidos destes comerciantes. Nascido na cidade de Salvador em 1754, ele morreu no ano de 1849 em Uidá, no Benim. Com uma identidade cultural difícil de ser decifrada, o “brasileiro” teceu relações comerciais com a África muito além do mero escambo. Casado com várias mulheres africanas, filho de um traficante baiano, assumiu o cargo de governante da fortaleza portuguesa de São Batista de Ajudá no começo do século XIX e depois passou a investir pesadamente no mercado de escravos, enriquecendo muito. Em sua trajetória africana, ele desafiou alguns soberanos locais, se tornou conselheiro de outros, sempre vivendo na sua dupla fronteira cultural. Terminou seus dias no reino de Daomé, não desfrutando da riqueza de antes, mas com prestígio perante a monarquia. Sua biografia pode ser lida no belíssimo livro de Costa e Silva, publicado no Brasil no ano de 2004. Para ele, o Xaxá tinha as seguintes características: “Francisco Félix era, ao que tudo indica, um homem de notável inteligência, incomum habilidade e grande encanto pessoal, no trato com os brancos e com os grandes do Daomé” (COSTA E SILVA, 2004, p. 147). Ele escolheu deixar o Brasil e fixar-se em África, onde chegou a construir, em dado momento, um verdadeiro império, a partir de suas redes dos dois lados do extenso oceano atlântico. Seu caso, apesar de extraordinário, representa bem os laços seculares que envolviam baianos e habitantes do Golfo do Benim. Segundo Costa e Silva, essa proximidade teve como facilitadora a qualidade de um produto que era trocado por escravos no Golfo do Benim e também na Costa do Ouro, o tabaco baiano, muito apreciado pelos africanos. Os comerciantes levaram o navio carregado deste material e retornavam cheio de pessoas: Os traficantes baianos mantinham relações de ami- zade com grandes traficantes africanos e até mesmo com soberanos locais. 45 Uma Viagem Sombria: eScraVização e Tráfico, SécUloS XVii ao XiX Capítulo 2 Os brasileiros contavam com uma vantagem: o tabaco. Mercadoria indispensável ao comércio na região, os próprios holandeses e ingleses procuravam adquiri-lo dos barcos baianos, a fim de compor os conjuntos de produtos que ofereciam pelos escravos. Nessas relações, era raro faltar o tabaco. Não qualquer tabaco: o tabaco em rolo da Bahia. Nem tampouco qualquer tabaco em rolo da Bahia, mas aquele feito com folhas partidas e banhado em melaço, que, na Europa, se tinha como de qualidade inferior. Na África era, porém apreciadíssimo: os mais exigentes consumidores não dispensavam o seu sabor adocicado (SILVA, p. 542). Figura 5 - O navio Negreiro representado por Rugendas Fonte: Disponível em: <http://www.revistamuseu.com.br/ artigos/art_.asp?id=26542>. Acesso em: 10 nov. 2012. Essas relações comerciais e interpessoais tornaram a Bahia uma referência para os falantes da língua ioruba. Deriva desse momento a formação dos cultos de candomblé de Nação Ketu, conhecidos mundialmente. Candomblé: os praticantes dessa religião cultuam Deuses dessas regiões, principalmente da Nigéria. Chamados de Orixás, essas divindades representam a natureza e são tidas como as fundadoras
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