Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
2 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura SUMÁRIO A FORMAÇÃO DO PROFESSOR E A CONSTITUIÇÃO DA DISCIPLINA LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA ..................................................................................................... 4 A Constituição Da Profissionalidade Docente e Da Disciplina Língua Portuguesa E Literatura .............................................................................................................................................................. 4 A ORGANIZAÇÃO DAS ESCOLAS E AS LINHAS DE PENSAMENTO PEDAGÓGICO NO CONTEXTO DO DESENVOLVIMENTO DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS VIGENTES .... 13 Linhas do pensamento pedagógico no contexto do desenvolvimento das políticas educacionais vigentes...................................................................................................................... 16 Pensadores relacionados a outras perspectivas teóricas ........................................................... 17 Pensadores relacionados a outras perspectivas teóricas ........................................................... 18 DIRETRIZES OFICIAIS PARA O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA ... 20 Metodologia do ensino da Língua Portuguesa e Literatura ........................................................ 29 A avaliação ........................................................................................................................................ 34 O que é ser leitor? ............................................................................................................................ 38 O papel da escola na formação de leitores .................................................................................. 41 O papel do professor de Língua Portuguesa na formação de leitores ...................................... 43 CONCEPÇÕES DE LEITURA ........................................................................................................ 47 O ensino da leitura ........................................................................................................................... 49 A LEITURA LITERÁRIA NO ESPAÇO ESCOLAR ...................................................................... 56 A literatura e a sua função .............................................................................................................. 56 O leitor de literatura .......................................................................................................................... 60 O ensino da literatura na escola: para além do que dizem os documentos ............................. 64 Da biblioteca escolar a outros espaços de leitura literária ......................................................... 72 O ensino da literatura no Ensino Fundamental e Médio: estratégias metodológicas ............. 77 O PROCESSO DA ESCRITA NA ESCOLA ................................................................................. 83 O processo da escrita na escola .................................................................................................... 83 O texto e o envolvimento do aluno-escritor .................................................................................. 85 Aprendizagem e desenvolvimento da linguagem escrita e autoria ........................................... 87 Modelos de ensino na pedagogia da língua escrita: pontos de referência em discussão ..... 92 3 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura Atos de ensino para quem se põe como aprendiz do ensinar ................................................. 103 Práticas discursivas no trabalho com textos na escola: as relações de interação no ensino e na aprendizagem ............................................................................................................................ 104 O texto como conteúdo de ensino ............................................................................................... 105 Voltando ao ponto inicial: locutor e interlocutor, partes integrantes do enunciado ............... 109 ANÁLISE LINGUÍSTICA E ENSINO DE GRAMÁTICA ............................................................. 112 Análise linguística ........................................................................................................................... 112 O ENSINO DA GRAMÁTICA ........................................................................................................ 123 REFERÊNCIAS .............................................................................................................................. 128 4 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura A FORMAÇÃO DO PROFESSOR E A CONSTITUIÇÃO DA DISCIPLINA LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA Vamos, refletimos sobre alguns aspectos da história da formação docente e da constituição da disciplina de Língua Portuguesa e suas implicações no processo de ensino e de aprendizagem. Apresentamos, em síntese, as linhas de pensamento pedagógico no contexto do desenvolvimento das políticas educacionais em curso e as orientações dos documentos oficiais que norteiam a prática pedagógica na definição do objeto de estudo, dos objetivos da disciplina e da orientação metodológica e da avaliação. Tendo isso em vista, os objetivos desta unidade são: • Refletir sobre fatores que intervêm no processo de formação do professor de Língua Portuguesa e Literatura. • Compreender as relações entre a organização dos espaços escolares e o desenvolvimento de práticas sociais de linguagem. • Pensar o processo de ensino e aprendizagem de Língua Portuguesa e Literatura considerando os documentos oficiais de referência e as teorias e os estudos científico-pedagógicos em circulação. • Refletir sobre possibilidades de elaboração didática dos conhecimentos científicos referentes aos processos de ensino e de aprendizagem da linguagem verbal. A Constituição Da Profissionalidade Docente e Da Disciplina Língua Portuguesa E Literatura 5 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura Vivemos, ao final dos anos de 1970 e início da década de 1980, um forte movimento de democratização da sociedade, em que a luta dos educadores trouxe contribuições significativas para a educação e para o modo de se compreender a escola e o trabalho pedagógico. Essa luta colocou “em evidência as relações de determinação existentes entre a educação e a sociedade e a estreita vinculação entre a forma de organização da sociedade, os objetivos da educação e a forma como a escola se organiza”, escreve a pesquisadora em educação, Professora Helena Costa de Lopes Freitas, em seu trabalho Formação de professores no Brasil: 10 anos de embate entre projetos de formação (FREITAS, 2002, p. 138). Os anos de 1980 marcaram, por sua vez, a ruptura com o pensamento mecanicista, que predominava até então, e novas concepções sobre a formação do educador passaram a ser consideradas, ancoradas em perspectiva sócio-histórica (FREITAS, 2002). Pensamento mecanicista No pensamento mecanicista, herdado dos filósofos da Revolução Científica do século XVII, como Descartes, Bacon e Newton, “[…] o valor do novo homem que surge se encontra não mais na família ou linhagem, mas no prestígio resultante do seu esforço e capacidade de trabalho [...] e a ciência deixa de ser um saber contemplativo, formal e finalista para que, indissoluvelmente ligada à técnica, possa servir à nova classe [ao novo modo de produção – o capitalismo]”. A natureza e o próprio homem são comparados a uma máquina. As considerações a respeito do valor, da perfeição, do sentido e do fim são excluídas da ciência. (ARANHA; MARTINS, 1993, p. 148). Discutiam-se, naquela época, as relaçõesentre escola e sociedade, mais especificamente sobre como as formas de organização da sociedade tinham implicações na organização dos espaços escolares e no processo educacional desenvolvido. Há uma nova tradução da obra de Vygotsky feita por Paulo Bezerra (2001), a partir da edição em russo (VIGOTSKI, L.V. A construção do pensamento e da 6 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001), no entanto para a produção deste livro nos utilizamos da versão anterior, a de 1989. Ontogênese Ontogênese refere-se ao desenvolvimento do indivíduo desde a fecundação até a maturidade para a reprodução (FERREIRA, 1988). A perspectiva sócio-histórica ancora-se, dentre outras, na teoria de Vygotsky que aponta novos paradigmas para a compreensão do desenvolvimento humano. Essa teoria, fundamentada no materialismo histórico-dialético, contrapõe-se aos reducionismos das concepções empirista, tecnicista e idealista, indicando perspectivas de superá-los. Vygotsky, em sua teoria social do desenvolvimento humano, compreende o sujeito como constituído e construído nas relações sociais, via linguagem. Ele afirma também que, na ontogênese, deve ser considerada não só a linha natural, biológica, mas também a linha cultural, social, histórica. Segundo Vygotsky, o indivíduo, na condição de ser biológico e de ser sócio-histórico humano, por meio das relações sociais, pela mediação semiótica, constitui suas formas de ação e sua consciência (FREITAS, 1994). Paulo Freire (1921-1997) desenvolveu o conceito de “educação bancária” em seu livro Pedagogia do oprimido, publicado pela primeira vez no Brasil em 1970. Ele referia-se ao modelo tradicional de prática pedagógica em que o professor é tido como aquele que supostamente tudo sabe e o aluno nada sabe. Os conteúdos escolares são transmitidos passivamente aos alunos, ou seja, o professor deposita na cabeça “vazia” de seus alunos o conteúdo que eles não possuem, como alguém que deposita dinheiro em um banco. Essas concepções em que o professor não mais é visto como mero transmissor de conteúdo enfatizam, então, “[...] a necessidade de um profissional de caráter amplo, com pleno domínio e compreensão da realidade de seu tempo, com desenvolvimento da consciência crítica que lhe permita interferir e transformar as condições da escola, da educação e da sociedade” (FREITAS, 2002, p. 139), corroborando a importância dos processos de formação de professores nessa perspectiva. 7 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura A publicação do livro Pedagogia do oprimido (2005), do grande educador brasileiro Paulo Freire, escrito nos anos de 1967 e 1968, quando de seu exílio no Chile, constitui também esse momento histórico de construção de novos olhares sobre a formação do professor. Freire discute uma nova concepção de educação, a partir da compreensão da realidade social e econômica dos educandos, e denuncia a educação bancária, caracterizada pelo aluno que chega à escola e recebe do professor o conteúdo como se fosse uma mercadoria. As transformações concretas no campo da escola também se deram “[…] no sentido de buscar superar as dicotomias entre professores e especialistas, pedagogia e licenciaturas, especialistas e generalistas, pois a escola avançava para a democratização das relações de poder em seu interior e para a construção de novos projetos coletivos”; construindo, assim, “a concepção de profissional de educação que tem na docência e no trabalho pedagógico a sua particularidade e especificidade” (FREITAS, 2002, p. 139, grifos da autora). Com relação à formação do professor de Língua Portuguesa e Literatura, para os anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio, a Lei no. 9394/96 (Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional) reafirma a obrigatoriedade da formação em nível superior, razão pela qual se organizam, dentre outros programas de formação, os cursos na modalidade de EaD, dada a impossibilidade de oferta de cursos presenciais em todos os municípios brasileiros. No que diz respeito ao ensino da Língua Portuguesa, até os anos 1970 os estudos e pesquisas se faziam na área de conhecimento denominada Didática, que se subdividia em Didática Geral e Didática Especial, que, por sua vez, desmembravase em Didática do Português. A proposta dessa disciplina apontava para um ensino normativo, prescritivo, “um conjunto de normas, recursos e procedimentos que deveriam informar e orientar a prática dos professores”, de forma a poderem prescrever com mais eficácia as normas da língua, diz a professora, doutora e livre docente em Educação Magda Becker Soares (1997, p. X). Os cursos de pedagogia formavam o professor para a sala de aula, orientadores educacionais, supervisores e administradores escolares; esses últimos nomeados de especialistas em educação. Hoje, nos cursos de formação, essa 8 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura divisão não existe mais. Os cursos de pedagogia formam profissionais para atuar na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Considerada uma das maiores pesquisadoras do ensino da Língua Portuguesa de nosso país, é Professora Titular Emérita da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita – CEALE – da referida Faculdade. Ela é autora de várias obras de referência para o ensino da Língua Portuguesa. Destacamos aquelas que são consideradas clássicas: Linguagem e escola: uma perspectiva social, da Editora Ática; Letramento: um tema em três gêneros, da Editora Autêntica; e Alfabetização e Letramento, da Editora Contexto. Lei no. 9394/1996: “Art. 62. A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação, admitida, como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do Ensino Fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal”. Assim como nos cursos de formação regular, Curso Normal e Curso de Letras, a disciplina de Língua Portuguesa foi tendo seu nome alterado também no Ensino Fundamental e Médio ao longo do tempo. Na década de 1960, época do antigo curso ginasial, era denominada Português, subdividida em Estudos de Língua e Estudos de Literatura, ministrados inclusive por professores diferentes. Na década de 1970, passou a chamar-se Comunicação e Expressão, e dela não fazia parte a literatura, que passou a integrar o currículo do segundo grau, como estudo de história literária e de autores e obras visando aos concursos vestibulares. Nos currículos atuais temos, no Ensino Fundamental, a disciplina de Língua Portuguesa, e a Literatura faz parte dela. Porém, persiste a tendência de se 9 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura considerarem distintas a língua e a literatura e de o texto literário ser utilizado em sala de aula apenas como pretexto para aulas de leitura, interpretação e estudos gramaticais. Ainda há forte tendência em considerar a gramática normativa e prescritiva como conteúdo central das aulas de língua e compreender o ensino da literatura, quando objetivado, como o estudo para a caracterização de obras e autores. No Ensino Médio, no entanto, embora continue fazendo parte da disciplina de Língua Portuguesa, a “[...] literatura possui alguma autonomia de disciplina”, como afirmam Ramos e Corso (2010, p. 29). Estudar a língua é também estudar literatura e vice-versa, pois o objeto do ensino de Língua Portuguesa e Literatura é a linguagem verbal (a palavra, o texto, a linguagem em uso) nas suas múltiplas formas de manifestação, incluindo a literária, nas diferentes esferassociais. O processo de democratização da sociedade trouxe também a democratização do acesso à escola. O número de alunos dobrou no ensino primário e triplicou no ensino secundário (SOARES, 1997, p. IX apud BATISTA, 1997, p. IX). A Lei nº. 5692/1971 (Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional – LDB) estendeu o ensino obrigatório de quatro para oito anos e ampliou o Ensino Médio, criando os cursos médios profissionalizantes. Até o advento da Lei nº. 5692/1971, denominava-se ensino primário o correspondente aos primeiros quatro anos do ensino formal; ensino ginasial ou secundário, os quatro anos seguintes, do primeiro ao quarto ano ginasial, considerado ensino secundário. Atualmente, o ensino obrigatório é de nove anos, ampliado pela Lei 9394/1996 (nova LDB), que substituiu, entre outras, a Lei nº. 5692/1971. A escola, que até então servia quase que exclusivamente às camadas economicamente mais privilegiadas da sociedade, não consegue atender de forma adequada a esse novo contingente de alunos que a ela chega, pois, os professores não foram preparados para esse trabalho. Começasse a falar da crise da educação e do fracasso escolar. E os indicadores desse fracasso revelam-se principalmente no ensino de Português, pelo alto índice de repetência nos primeiros anos e a constatação de graves problemas de expressão escrita nas avaliações a que são submetidos os alunos concluintes do Ensino Fundamental e do Ensino Médio nos exames vestibulares e em concursos, nas provas de Língua Portuguesa. Esse 10 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura primeiro fenômeno, intitulado crise e fracasso no ensino de Português, impulsionou a produção intelectual dos anos de 1970 e início dos anos de 1980, multiplicando-se os estudos, as pesquisas e reflexões sobre a falência desse ensino, que denunciam as deficiências das crianças e jovens na leitura e produção de textos escritos. Soares (1997) aponta ainda um segundo fenômeno que influenciou a produção intelectual sobre o ensino do Português: a reforma universitária do final dos anos de 1960 extinguiu a disciplina Didática Especial do Português, substituindo-a por Prática de Ensino de Português, passando a ser esta última uma área de conhecimento específico e independente, cuja produção intelectual começou a ser definida por seus próprios princípios e pressupostos. A esse fenômeno, a referida autora acrescenta um terceiro, a chegada dos conhecimentos construídos no campo da Linguística, disciplina introduzida nos cursos de Letras nos anos de 1960, cujos efeitos no ensino da Língua Portuguesa começaram a se fazer sentir somente nos anos de 1980. A partir de então, inúmeras têm sido as publicações direcionadas a questões do ensino da Língua Portuguesa e Literatura e com essas obras e outras que julgamos representativas deste momento atual é que vimos dialogando, no intuito de trazer à reflexão propostas e alternativas metodológicas sobre o que se ensina quando se ensina Língua Portuguesa e Literatura. Na década de 1990, as políticas educacionais tomam rumos um pouco diferentes daqueles em que se enfatizavam as relações de determinação entre a organização da sociedade e a da escola. Os debates não mais se fazem sobre as relações da escola com a sociedade, mas sim sobre os conteúdos escolares do ponto de vista das competências e habilidades a serem desenvolvidas na escola. Aos ideais dos educadores da década de 1980, de uma formação humana multilateral, sobrepõem-se políticas públicas neoliberais em que a qualidade da instrução e do conteúdo é condição para a melhoria do processo de acumulação do capital. Essas políticas traduzem-se, por exemplo, na criação de sistemas de avaliação, tais como SAEB – Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica; ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio; Provão – Exame Nacional de Cursos de Graduação; ANRESC – Avaliação Nacional do Rendimento Escolar, Prova Brasil, Provinha Brasil; IDEB – Índice de Desenvolvimento do Ensino Básico; FUNDEF – 11 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério, dentre outras medidas “que objetivam adequar o Brasil à nova ordem, bases para a reforma educativa que tem na avaliação a chave-mestra que abre caminho para todas as políticas: de formação, de financiamento, de descentralização e de gestão de recursos” (FREITAS, 2002, p. 142). Se por um lado as concepções que subjazem às políticas públicas reduzem o trabalho pedagógico a uma dimensão puramente racional, atribuindo valor excessivo aos dados estatísticos; por outro, impõem ao professor reflexões sobre o sentido da docência e sobre a importância de se manter em constante relação com a sociedade em que se insere. Assim, os professores muitas vezes são responsabilizados pelos baixos índices de desempenho de seus alunos e dos resultados gerais da instituição escolar. Em decorrência, são impelidos a uma formação contínua com vistas à melhoria da eficácia do ensino. A formação do professor: perspectivas da linguística aplicada (2001); Letramento e formação do professor: práticas discursivas, representações e construção do saber (2005), publicados pela Mercado de Letras; e O ensino e a formação do professor: alfabetização de jovens e adultos, pelas Artes Médicas Sul, em 2000. A formação profissional do professor do modo como vem se estruturando – e se procurou sintetizar isso nos parágrafos anteriores – não tem conseguido fazer frente à questão da atribuição injusta de valores de desprestígio social à profissão. Como diz a professora Angela B. Kleiman. O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Pedagógicas (INEP/MEC) criou em 21/05/2010, por meio de portaria, o Exame Nacional de Ingresso na Carreira Docente. Esse exame estabelece padrões de referência para o ingresso de professores na Educação Básica. Diz o texto à página 3: “Esses padrões ressaltam a importância da valorização do professor como alguém que necessita de conhecimentos e habilidades específicas para seu exercício profissional, os quais não podem ser substituídos por mera boa vontade ou desejo de trabalhar com crianças” (BRASIL, 2010). [...] a representação que a imprensa faz das capacidades de ler e escrever das professoras, geralmente baseada em fatos anedóticos, mostra suas falhas tanto 12 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura em relação a práticas cotidianas de leitura e escrita [...] quanto em relação a práticas especializadas [...]. Além disso, ela é representada como não-leitora, não porque não leia, mas porque não tem familiaridade com a apreciação da literatura legítima (em oposição à literatura para as massas). (KLEIMAN, 2001, p. 43). Tal crítica fundamenta-se em concepção de língua cuja norma-padrão, variedade linguística de prestígio social, é a única aceita e na qual a leitura que se considera é, unicamente, a de textos literários. A formação do profissional docente, quando compreendida como um fenômeno social, reveste-se de muita complexidade, pois a profissão não depende unicamente da vontade de cada ser e de suas experiências na área em que atua. Em vista disso, podemos dizer que o depoimento que inicia este capítulo é uma demonstração da atitude positiva da professora frente ao processo de formação e o modo como ele interfere na constituição da profissionalidade docente. Diz a professora: “[...]... antigamente se tinha essa visão [...] a faculdade me fez enxergar além... [...] eu passei a enxergar outros [textos]”. Assim, toda a complexidade de que se reveste a história do ensino da Língua Portuguesa em nosso contexto educacional impõe, por conseguinte, que os professores estejam em constante formação. As palavras da professora, postas em epígrafe, mais uma vez corroboramo que vimos apresentando. Quando a professora diz: “[...] eu trabalhava muito com textos assim... qualquer texto para mim... quanto mais fáceis... Antigamente se tinha essa visão, por exemplo, quando tu falaste da letra T [referindo-se a uma outra professora], procurava textos que tinha um monte de T, aquela coisa... eram textos de cartilha [...]”, este seu posicionamento em relação ao trabalho com textos, de trabalhar com “qualquer texto”, e “quanto mais fáceis [melhores]”, expõe que a professora desenvolvia um ensino em que os conteúdos valiam por si mesmos, um ensino marcado pela ênfase dada a aspectos superficiais da linguagem, em que o saber sobre a língua torna-se mais importante do que o domínio de seus usos. Os textos quando objetos de ensino eram de livros didáticos, não importando se eram ou não significativos aos alunos. Mas a situação narrada também aponta mudança. O ingresso no curso superior possibilitou, então, a essa professora “enxergar além”, comprovando a importância da formação continuada. 13 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura Reflexão •O que é ensinar Língua Portuguesa e Literatura? •Que conhecimentos são necessários ao professor de Língua Portuguesa e Literatura? Que capacidades lhe são requeridas? •Que fatores intervêm nos modos de organização escolar e na prática pedagógica dos professores? •O que dizem os documentos que orientam essa prática de ensino de Língua Portuguesa e Literatura? De Língua Portuguesa e Literatura? •Afinal, qual é a função do professor de Língua Portuguesa e Literatura? Reflexões sobre essas questões sugeridas serão desenvolvidas nos capítulos que seguem, pois, como dissemos, a profissionalidade docente reveste-se de toda a complexidade que permeia a sociedade e, por ser um fenômeno social, requer que se compreenda o contexto de atuação do professor. A ORGANIZAÇÃO DAS ESCOLAS E AS LINHAS DE PENSAMENTO PEDAGÓGICO NO CONTEXTO DO DESENVOLVIMENTO DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS VIGENTES Nossas escolas hoje mantêm a organização que apresentavam desde o início de sua existência. Os alunos são agrupados, em geral, por faixa etária, distribuídos em turmas ou séries que por um período de tempo, em média quatro horas, ocupam as denominadas salas de aula, espaços físicos retangulares e com características idênticas (principalmente nas escolas públicas), mesmo tratando-se de comunidades culturais diversas. Os prédios escolares são construídos dentro de um mesmo padrão: salas de administração e corredores que dão acesso às salas de aula, as quais se distribuem uma após a outra. Nas salas de aula, os alunos sentam-se em carteiras, enfileiradas uma atrás da outra. O professor posiciona-se, em geral, à frente dos alunos, dirigindo-se a todos ao mesmo tempo, e em algumas situações faz perguntas a alunos em particular e os 14 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura demais, quando desejam manifestar-se, levantam o braço – sinal de pedir licença para fazer uso da palavra. São poucos os momentos em que se mudam os padrões de interação, o que faz com que a cultura escolar perpetue formas de comunicação bastante diferentes daquelas usadas fora da escola. São modos de uso da língua empregados apenas no ambiente escolar. O desenvolvimento dos meios de comunicação e as mudanças por que passa a sociedade tornam-na cada vez mais grafocêntrica, e o avanço dos recursos tecnológicos de comunicação (web, internet) impõem novos modos de uso da linguagem verbal, o que constitui desafio ao trabalho docente no sentido de possibilitar que os alunos tenham acesso a esse conhecimento e possam assim participar das várias práticas sociais que se utilizam da leitura e da escrita. Embora continuem persistindo modos de ensinar como aqueles que Paulo Freire denominava de educação bancária, em que o professor se julga o único conhecedor do assunto e o transmite/entrega aos alunos como se o saber fosse uma mercadoria, há outros em que os professores ousam mudar tal condição, como aqueles em cujas interações em sala de aula o professor se coloca como mediador, no processo de aprendizagem, entre o conhecimento que os alunos já possuem e o que precisa ser ensinado. Vygotsky fala da passagem necessária de conceitos cotidianos a conceitos científicos, aqueles que a escola necessariamente tem de ensinar, aumentando assim as experiências de linguagem dos alunos, promovendo sempre mais a inclusão social e provocando aprendizagem e desenvolvimento. Sugerimos, para enriquecer seus conhecimentos sobre formas de interação em sala de aula, a leitura do seguinte livro: COX, Maria Inês Pagliarini; ASSISPETERSON, Ana Antônia de (Orgs.). Cenas de sala de aula. Campinas: Mercado de Letras, 2001. Sociedade Grafocêntrica Dizemos que uma sociedade é grafocêntrica quando nela a escrita desempenha papel importante; as atividades nas instâncias sociais são centradas na escrita, ou seja, a escrita faz parte das situações do cotidiano da maioria das pessoas. 15 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura Conceitos cotidianos e conceitos científicos – essas expressões são conceitos da teoria de Lev Vygotsky (1896-1934). Vygotsky concebe o desenvolvimento humano a partir das relações sociais que se estabelece no decorrer da vida. Ele atribui papel preponderante às relações sociais. A corrente pedagógica que se originou de seu pensamento é chamada de sócio-histórica ou sociocultural. Segundo sua teoria, o processo de ensino e de aprendizagem constitui-se por meio de interações que vão se dando nos diversos contextos sociais, razão pela qual a sala de aula é lugar privilegiado para a sistematização do conhecimento e o professor passa a ocupar o papel de mediador na construção do saber. São conceitos-chave na teoria de Vygotsky: zona de desenvolvimento proximal e mediação. A zona de desenvolvimento proximal “é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes” (VYGOTSKY, 1989). Infere-se deste conceito que há ensino quando a criança, através da mediação do professor, atinge um nível de compreensão e habilidade que não dominava completamente, apreendendo um novo conhecimento, ampliando suas estruturas cognitivas. Por conseguinte, a intervenção pedagógica provoca avanços que não ocorreriam espontaneamente. O outro conceito-chave, de mediação, diz respeito a toda relação do indivíduo com o mundo que é feita por meio de instrumentos técnicos – por exemplo, as ferramentas agrícolas, que transformam a natureza – e instrumentos simbólicos, como a linguagem – que traz consigo conceitos consolidados da cultura à qual pertence o sujeito. Nesse processo de mediação e, portanto, de aprendizagem, tem-se a formação de conceitos científicos. Os conceitos cotidianos, ou espontâneos, são aqueles formados a partir de vivências, da observação do mundo; já os conceitos científicos estão relacionados à instrução intencional. Conceitos cotidianos e científicos influenciam-se reciprocamente. Com relação ao aprendizado da escrita, por exemplo, ao adquirir esse conhecimento, o aluno adquire também capacidades de reflexão e controle do próprio funcionamento psicológico. Diferentes turmas de alunos terão diferentes modos de reagir a cada uma das formas de interação, o que aumenta a importância de se compreender na formação 16 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura docente não apenas aspectos do domínio de conteúdos e habilidades específicas, mas também a constituição das interlocuções na sala de aula, da organização socioespacialdo ambiente educativo. Linhas do pensamento pedagógico no contexto do desenvolvimento das políticas educacionais vigentes A década de 1960 foi marcada por uma educação de perspectiva tecnicista, como já mencionamos. Posteriormente, foi influenciada por correntes teóricas de cunho comportamentalista e comunicacional, época em que prevaleceu a concepção de linguagem como instrumento de comunicação no ensino da Língua Portuguesa. A partir da década de 1970, as discussões e análises da educação brasileira, realizadas por intelectuais de campos do conhecimento como a Filosofia, a Sociologia, a História e a Educação, passaram a incorporar aspectos políticos, econômicos, sociais e pedagógicos, com orientação da teoria sociológica dialéticomarxista. No bojo dessas discussões, as ideias de Paulo Freire foram também de grande importância para as mudanças ocorridas na educação brasileira e de outros países. Além disso, reafirmando o que dissemos no capítulo anterior, outras perspectivas teóricas têm sido consideradas no ensino. São elas: o construtivismo piagetiano e a psicogênese da linguagem escrita, desenvolvida por Emília Ferreiro e Ana Teberosky (1986); a teoria sócio-histórica de Vygotsky e o desenvolvimento da escrita na criança, segundo estudos de Vygotsky, Luria e Leontiev (2001), dentre outros autores; as metodologias de ensino da língua segundo a pedagogia de Celestin Freinet (1997); e outros modos de ensinar, motivados também pelo conjunto de iniciativas estaduais e municipais, tais como a Constituição Brasileira de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei no 9394/96), os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental e, em seguida, para o Ensino Médio, documentos relacionados com estudos e pesquisas acadêmicas sobre educação, alfabetização e ensino da Língua Portuguesa. Tecidas essas considerações, e tendo em vista a importância dos pensadores anteriormente mencionados, apresentamos uma pequena síntese, no quadro a seguir, com informações relevantes acerca de cada um desses estudiosos citados até aqui. 17 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura Pensadores relacionados a outras perspectivas teóricas Emilia Ferreiro, psicolinguista argentina, com base na teoria genética de Piaget, desenvolveu pesquisas sobre como as crianças constroem o conhecimento no processo de aquisição da escrita, estabelecendo um marco no desenvolvimento de estudos sobre o processo de alfabetização, no Brasil. São obras importantes desta autora: Alfabetização em processo (Cortez Editora e Editora Autores Associados, 2. ed., 1986) e Psicogênese da língua escrita, em coautoria com Ana Teberosky, publicado pela Artes Médicas, 1986. Alexander Luria (1902-1977) realizou estudos especialmente sobre as relações entre linguagem e desenvolvimento intelectual. Em suas pesquisas, juntamente com Vygotsky e Leontiev, desenvolve a tese de que os processos mentais são histórico-culturais em sua origem e demonstra haver alterações fundamentais no modo de funcionamento psicológico dos sujeitos em decorrência de processos de alfabetização e escolarização e de mudanças nas formas de trabalho. Conheça algumas obras de Luria: LURIA, A. R. Desenvolvimento cognitivo: seus fundamentos culturais e sociais. São Paulo: Ícone, 1990; LURIA, A. R. Curso de psicologia geral, 4 v., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. Ana Teberosky, também argentina, doutora em psicologia e docente do Departamento de Psicologia Evolutiva e de Educação da Universidade de Barcelona, é reconhecida por suas pesquisas sobre alfabetização. Além de Psicogênese da língua escrita, trabalho realizado em conjunto com Emília Ferreiro, tem publicadas, dentre outras obras, Psicopedagogia da linguagem escrita (Trajetória/1989), Aprendendo a escrever (Ática, 1994) e Além da alfabetização, em coautoria com Tolchinsky, L. (Ática, 1995). Lev Vygotsky (1896-1934), como já mencionamos, explicou pela perspectiva do campo da psicologia a constituição histórico-social do desenvolvimento humano no processo de apropriação da cultura mediante a comunicação com outras pessoas, em que na mediação da linguagem os signos adquirem significado e sentido (VYGOTSKY, 1984, p. 59-65). Conheça algumas obras de Vygotsky: VYGOTSKY, L. V. Pensamento e linguagem. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991; VIGOTSKI, L. V. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001; VYGOTSKY, L. V. A formação social da mente. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 18 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura 1991; VYGOTSKY, L. V.; LÚRIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 9. ed. São Paulo: Ícone, 2001. Pensadores relacionados a outras perspectivas teóricas Alexei Leontiev (1903-1979) desenvolveu o conceito de atividade, pesquisou os vínculos entre os processos da mente e a atividade humana concreta. Explicou que na relação ativa do sujeito com o objeto, a atividade se concretiza por meio de ações, operações e tarefas, suscitadas por necessidades e motivos. Para ele, uma atividade distingue-se de outra pelo seu objeto e se realiza nas ações dirigidas a este objeto. Desse modo, a atividade humana não pode existir a não ser em forma de ações ou grupos de ações que lhes são correspondentes. A atividade laboral se manifesta em ações laborais, a atividade didática em ações de aprendizagem, a atividade de comunicação em ações de comunicação e assim por diante. (LEONTIEV, 1983). Conheça alguns trabalhos de Leontiev: LEONTIEV, A. N. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizontes, 1978; LEONTIEV, A. N. Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique infantil. In: VYGOTSKY, L.V.; LÚRIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 9. ed. São Paulo: Ícone, 2001. Esta última é uma obra clássica dos três autores, Vygotsky, Luria e Leontiev. Celestin Freinet (1896 -1966) desenvolveu uma pedagogia que tem como base a aprendizagem através da experiência real do aluno. As práticas de elaboração de jornal escolar, troca de correspondências, trabalhos em grupo, aula-passeio já eram defendidas por ele nos anos de 1920 (século passado). São obras deste autor os três volumes: Método Natural I: a aprendizagem da língua; Método Natural II: A aprendizagem do desenho; Método Natural III: A aprendizagem da escrita, todos publicados pela Editorial Estampa, Lisboa, 1997. Havemos de considerar, ainda, na história do desenvolvimento do processo educacional brasileiro, que a crescente urbanização da população brasileira tem trazido à escola número crescente de crianças de classes sociais desprivilegiadas e com cultura e variedades linguísticas distintas daquelas praticadas até então no ambiente escolar. Ademais, a ampliação da obrigatoriedade do ensino para nove anos tem reforçado essa situação. Esses fatores, aliados à divulgação pela mídia dos 19 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura resultados das avaliações nacionais de alunos e cursos, sem uma análise das variáveis que interferem nesses dados, continuam perpetuando o fracasso da escola. Assim como diferentes teorias filosófico-educacionais, as mudanças na sociedade têm repercussão na esfera educativa. Isso, evidentemente, requer dos professores posicionamentos e reflexões diante do que se está atualizando ou mudando. Há sempre uma cobrança de trabalho de qualidade, por parte da sociedade, e as políticas públicas, como já dissemos, ainda não chegaram em nível de resgatar a valorização do profissional da educação. Os salários continuam aquém do piso salarial de outras profissões e não tem havido estímulos à construção de ambientes de trabalho que favoreçam o desenvolvimento de projetos pedagógicos com continuidade, capazes de promovermudanças significativas na formação dos alunos. Por outro lado, há larga produção de material bibliográfico, tanto para professores como para alunos, e a maioria das escolas dispõe de internet, o que possibilita acessar a vasta produção de bibliografia digital. O ambiente virtual oferece ainda sites educativos, destinados exclusivamente a professores, portais institucionais, os quais possibilitam a atualização constante. Pensar no ensino de Língua Portuguesa e Literatura implica, portanto, considerar todas as questões mencionadas, levando em conta, sobremaneira, o avanço tecnológico que vem propiciando novos modos de sentir, de ver e de pensar as realidades vivenciadas. A internet chegou às escolas e temos outro desafio: incorporá-la como ferramenta imprescindível de acesso à informação e à produção de conhecimento. Afinal, nesse meio encontram-se instrumentos básicos de trabalho, de desenvolvimento social, de participação política, além de possibilitar o domínio de competências capazes de proporcionar práticas de letramento contínuo, entendidas como atividades estruturantes do “pensamento-linguagem” e da cultura (SILVA, 2003, p. 13). O contexto cultural, econômico, científico e educacional impõe, por conseguinte, que a prática pedagógica incorpore, principalmente no que diz respeito ao ensino de Língua Portuguesa e Literatura, outros conceitos, tais como os de letramento e de gêneros do discurso. Como explicitado anteriormente, entendemos por letramento “[...] o estado ou condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva e exerce as práticas sociais que usam a escrita” (SOARES, 1998, p. 47); 20 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura e por gêneros do discurso, os tipos relativamente estáveis de enunciados (BAKHTIN, 2003, p. 262), ou seja, os enunciados orais e escritos, concretos e únicos proferidos pelos falantes de acordo com as condições específicas e as finalidades de cada atividade humana. Esses conceitos reafirmam, então, a palavra em uso, em sua condição concreta de existência. DIRETRIZES OFICIAIS PARA O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA Neste capítulo vamos tratar dos documentos que têm sido referência para o ensino de Língua Portuguesa e Literatura em nossas escolas. Eles visam a orientar gestores escolares e professores no planejamento das ações educacionais e atividades de sala de aula. O ensino público no Brasil, como já vimos, é regido por leis específicas. A lei mais importante, atualmente, é a Lei No 9.394, de 20 de dezembro de 1996, denominada de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que estabelece da educação em todos os níveis. Ela institui os dois níveis de educação que temos hoje: a educação básica, formada pela educação infantil e pelo Ensino Fundamental e Médio; e a educação superior. Para atender aos princípios e objetivos estabelecidos nesta lei, o artigo 9o da LDB estabelece que a União, os Estados e os Municípios devem elaborar, em cooperação, o Plano Nacional de Educação (PNE), para um período de 10 anos, estabelecendo metas para a década em questão. O PNE em vigor foi elaborado em 2001, com prazo até 2010. Destacamos que duas metas do PNE foram alcançadas nesse período: a implantação do Ensino Fundamental de 9 anos e o aprimoramento dos sistemas de informação e avaliação. Para poder avaliar a qualidade do ensino no Brasil, foram criados a Prova Brasil e o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), que são exames complementares. Essas avaliações são diagnósticas e visam a orientar o ensino para que se tenha educação de mais qualidade, por meio de possíveis mudanças das políticas públicas e de paradigmas utilizados nas escolas de Ensino Fundamental e Médio. 21 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura A Prova Brasil é aplicada a cada dois anos, para quase todas as crianças e jovens matriculados na quarta e na oitava séries (quinto e nono ano). A primeira aplicação ocorreu em 2005, depois em 2007, e a última foi em 2009. Ela visa a medir as competências relacionadas à leitura e aos conhecimentos de matemática. Por serem instrumentos de avaliação de amplitude nacional, tanto a Prova Brasil quanto o Saeb exigem a construção de uma matriz de referência, para a elaboração e avaliação dos testes que lhes confiram transparência e legitimidade, informando aos envolvidos, professores e alunos, o que e como o ensino e a aprendizagem serão avaliados. Essas matrizes têm por referência os Parâmetros Curriculares Nacionais e, segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), também foram consultados professores regentes de classe de diferentes redes de ensino municipal, estadual e privado. Hoje, portanto, são documentos de referência para o ensino da Língua Portuguesa o Sistema de Avaliação do Ensino Básico (Saeb), a Prova Brasil, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e os documentos dos estados e municípios, que são as Propostas Curriculares Estaduais e Municipais. Dentre as Propostas Curriculares de interesse para esta disciplina de Metodologia do Ensino de Português e Literatura, destacamos aquelas cujos estados e municípios estão envolvidos no curso de EaD, Letras/ Português: Proposta Curricular de Santa Catarina, Diretrizes Curriculares da Educação Básica do Paraná e Proposta Curricular – CBC (Conteúdo Básico Comum) de Minas Gerais. Além das propostas estaduais, alguns municípios e a federação elaboraram seu Plano Municipal de Educação, e Pato Branco, no Paraná, é um deles. No caso dos documentos que orientam o ensino de Língua Portuguesa e Literatura no Ensino Fundamental e Médio, vamos destacar, de modo genérico, o que estabelecem os documentos com relação a objetivos, conteúdos, metodologias e formas de avaliação. Com relação aos objetivos de ensino, os Parâmetros Curriculares Nacionais para os anos finais do Ensino Fundamental estabelecem o seguinte: No trabalho com os conteúdos previstos nas diferentes práticas, a escola dever organizar um conjunto de atividades que possibilitem ao aluno desenvolver o domínio da expressão oral e escrita em situações de uso público da linguagem, 22 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura levando em conta a situação de produção social e material do texto (lugar social do locutor em relação ao(s) destinatário(s); destinatário(s) e seu lugar social; finalidade ou intenção do autor; tempo e lugar material da produção e do suporte) e selecionar, a partir disso, os gêneros adequados para a produção do texto, operando sobre as dimensões pragmática, semântica e gramatical. (BRASIL, 1998, p. 49). Esse objetivo mais amplo orienta, então, o estabelecimento dos objetivos específicos quanto às diferentes modalidades da língua: oralidade, escuta e leitura, produção oral e escrita de textos e análise linguística, todas considerando a linguagem em uso, ou seja, os diferentes gêneros discursivos que circulam nos diferentes campos da atividade humana. Esses objetivos sustentam-se na concepção de linguagem como forma de interação humana e a de aprendizagem na perspectiva vygotskyana. Assim, Ao organizar o ensino, é fundamental que o professor tenha instrumentos para descrever a competência discursiva de seus alunos, no que diz respeito a: escuta, leitura e produção de textos, de tal forma que não planeje o trabalho em função de um aluno ideal para o ciclo, muitas vezes padronizado pelos manuais didáticos, sob pena de ensinar o que os alunos já sabem ou apresentar situações muito aquém de suas possibilidades e, dessa forma, não contribuir para o avanço necessário. Nessa perspectiva, pode-se dizer que a boa situação de aprendizagem é aquela que apresenta conteúdos novos ou possibilidades de aprofundamento de conteúdos já tematizados, estandoancorada em conteúdos já constituídos. Organizá-la requer que o professor tenha clareza das finalidades colocadas para o ensino e dos conhecimentos que precisam ser construídos para alcançá-las. (BRASIL, 1998, p. 48). Vejamos o que diz a Proposta Curricular de Santa Catarina. A orientação teórica da Proposta Curricular de Santa Catarina tem por fundamento a psicologia histórico-cultural de Vygotsky e a concepção de linguagem de Bakhtin. A linguagem – sob o ponto de vista de suas múltiplas funções – é considerada uma prática social, ou seja, é acontecimento social, uma forma de interação. (BAKHTIN, 1990). Da mesma forma que os PCNs, essa proposta orienta-se com base na concepção interacionista da linguagem, portanto, pela teoria do dialogismo – Bakhtin (1990). 23 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura As Diretrizes da Educação Básica do Paraná seguem a mesma orientação teórica da Proposta Curricular de Santa Catarina; vejamos: “O ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa visa aprimorar os conhecimentos linguísticos e discursivos dos alunos, para que eles possam compreender os discursos que os cercam e terem condições de interagir com esses discursos” (PARANÁ, 2009, p. 50). Os documentos, de modo geral, consideram a escola um espaço de promoção do letramento do aluno. Nela, as práticas de uso da língua se dão por meio de diferentes gêneros discursivos, com diferentes funções sociais. A Proposta Curricular de Minas Gerais, nas suas diretrizes pedagógicas para o Ensino Fundamental do 6o ao 9o ano, estrutura-se com base nos mesmos fundamentos teóricos das propostas curriculares de Santa Catarina e do Paraná. Desse conjunto de diretrizes, destacamos as razões para ensinarmos Língua Portuguesa na escola expostas na Proposta Curricular de Minas Gerais: [...] ensinamos linguagem, não para “descobrir” o verdadeiro significado das palavras ou dos textos, nem para conhecer estruturas abstratas e regras de gramática, mas para construir sentidos, sempre negociados e compartilhados, em nossas interações. Nosso conceito de natureza e de sociedade, de realidade e de verdade, nossas teorias científicas e valores, enfim, a memória coletiva de nossa humanidade está depositada nos discursos que circulam na sociedade e nos textos que os materializam. Textos feitos de gestos, de formas, de cores, de sons e, sobretudo, de palavras de uma língua ou idioma particular. Assim, a primeira razão e sentido para aprender e ensinar a disciplina está no fato de considerarmos a linguagem como constitutiva de nossa identidade como seres humanos, e a língua portuguesa como constitutiva de nossa identidade sociocultural. (MINAS GERAIS, 2006, p. 12). A linguagem é compreendida, nas propostas curriculares desses Estados, como prática social, como atividade discursiva por meio da qual os usuários se constituem sujeitos do discurso, desenvolvendo habilidades sociocognitivas e apropriando-se de conhecimentos e de culturas necessárias à sua inserção no meio em que vivem. Consta na proposta de Minas Gerais: Ao se constituir e se realizar no espaço eu-tu-nós, sempre concreto e contextualizado, a linguagem nos constitui como sujeitos de discurso e nos posiciona, 24 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura do ponto de vista político, social, cultural, ético e estético, frente aos discursos que circulam na sociedade. A língua não é um todo homogêneo, mas um conjunto heterogêneo, múltiplo e mutável de variedades, com marcas de classes e posições sociais, de gêneros e etnias, de ideologias, éticas e estéticas determinadas. Nesse sentido, ensinar e aprender linguagem significa defrontar-se com as marcas discursivas das diferentes identidades presentes nas variedades linguísticas. Significa tornar essas variedades objeto de compreensão e apreciação, numa visão despida de preconceitos e atenta ao jogo de poder que se manifesta na linguagem e pela linguagem. Não podemos deixar de lembrar aqui as razões que devem nortear nosso papel como mediadores das experiências dos alunos com a interlocução literária. O sentido do ensino e da aprendizagem impõe a ampliação de horizontes, de forma a reconhecer as dimensões estéticas e éticas da atividade humana de linguagem, só ela é capaz de tornar desejada a leitura de poemas e narrativas ficcionais. É essencial propiciar aos alunos a interlocução com o discurso literário que, confessando-se como ficção, nos dá o poder de experimentar o inusitado, de ver o cotidiano com os olhos da imaginação, proporcionando-nos compreensões mais profundas de nós mesmos, dos outros e da vida. (MINAS GERAIS, 2006, p. 12). Os objetivos de ensino expressos nos diferentes documentos de referência definem como objeto do ensino da Língua Portuguesa aquele por nós já mencionado: a linguagem em uso, ou seja, os textos orais e escritos que nós mesmos produzimos, que são produzidos por outros na sociedade de modo geral, os que circulam em nosso meio, aqueles dos quais fazemos uso para nos informar, para formar e partilhar opiniões, para nos orientar, para lazer, para informar alguém, para emitir opinião, para registrar nossas memórias, para expressar ideias e sentimentos, para produzir cultura, enfim todas as formas de linguagem verbal que constituem nossa humanidade. Elegendo os diferentes textos, os quais materializam gêneros que são produzidos nos diferentes campos da atividade humana, o conteúdo do ensino é a própria linguagem verbal, os recursos que ela oferece para que se produzam esses gêneros, a sua gramática, como ela se estrutura para tornar possível a interação entre os falantes. Na língua têm-se, então, os estudos no eixo sintagmático, que 25 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura tratam da combinação das palavras para formar sentenças; os estudos no eixo paradigmático, que tratam das palavras enquanto “unidades da língua que apresentam certa autonomia formal” (MARGOTTI, 2008); os estudos gramaticais de modo geral, conhecimentos e conceitos que possibilitam a descrição e a análise da língua sob diferentes abordagens (formal, funcional); os estudos sobre texto, textualidade e padrões de textualidade; os conhecimentos de sociolinguística, que possibilitam compreender as relações entre as formas da língua e os diferentes grupos sociais que as utilizam; e conhecimentos sobre a linguagem literária. Certamente todos esses estudos científicos são importantes para o professor, que, ao deles se apropriar, será capaz de fazer a mediação entre os conhecimentos que os alunos já possuem e aqueles de que ainda necessitam ter o domínio para tornarem-se sempre mais capazes de ler e escrever de modo competente e adequado nas mais variadas situações em que a língua é requerida socialmente. Tais conhecimentos propiciarão ao professor avaliar o nível de conhecimento dos alunos no que diz respeito às diferentes modalidades da língua (a escuta, a leitura e a produção de textos orais e escritos), de tal forma que o processo de ensino ancorese em conteúdos já apreendidos e aprofunde-os ou avance na aprendizagem de novos conteúdos, segundo os objetivos de ensino e aprendizagem para dada situação. Em se tratando do ensino da linguagem em uso, os conteúdos serão trabalhados não em séries ordenadas por assuntos, mas sim, usando termos dos PCNs, de forma espiralada e progressiva. Podemos, portanto, sintetizar os objetivos do ensino de Língua Portuguesa e Literatura nos anos finais do Ensino Fundamental com o que dizem os PCNs (BRASIL, 1998, p.22): O objeto de ensino e, portanto, de aprendizagem é o conhecimento linguístico e discursivo com o qual o sujeito opera ao participar das práticas sociais mediadas pela linguagem. Organizar situações de aprendizado, nessa perspectiva, supõe: planejar situações de interação nas quais esses conhecimentossejam construídos e/ou tematizados; organizar atividades que procurem recriar na sala de aula situações enunciativas de outros espaços que não o escolar, considerando-se sua especificidade e a inevitável transposição didática que o conteúdo sofrerá; saber que a escola é um espaço de interação social onde práticas sociais de linguagem 26 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura acontecem e se circunstanciam, assumindo características bastante específicas em função de sua finalidade: o ensino. Nessa perspectiva de ensino, na qual o professor é o interlocutor privilegiado nas situações de uso da linguagem, os PCNs enfatizam que o aluno dos anos finais do Ensino Fundamental é o jovem adolescente cujo processo de desenvolvimento caracteriza-se, dentre outros fatores, pela ampliação das formas de raciocínio, organização e representação, de expressão de observações e opiniões. Do mesmo modo, é característico o desenvolvimento da capacidade de investigação, levantamento de hipóteses, abstração, análise e síntese na direção de raciocínio cada vez mais formal, o que traz a possibilidade de constituição de conceitos mais próximos dos científicos. É característico ainda dessa fase de desenvolvimento um tipo de comportamento tomado de valores específicos dessa faixa de idade, os quais atuam como forma de identidade em relação ao lugar que esses jovens adolescentes ocupam na sociedade e nas relações que estabelecem com os adultos e seus pares. Tais valores se evidenciam, principalmente, no tipo de linguagem em que há a incorporação e criação de modismos, uso de vocabulário específico, formas de expressão adotadas em função da atividade exercida – é o caso dos surfistas, esqueitistas, funkeiros, etc. –, caracterizadas como falas típicas de determinados grupos. Por essa razão, o trabalho com a linguagem, esta entendida como constitutiva e constituidora do sujeito, impõe que a reflexão seja uma constante, a fim de permitir o reconhecimento, pelo adolescente, da própria linguagem e de seu lugar no mundo, bem como a percepção das outras formas de organização do discurso, principalmente daquelas dos textos escritos. A prática de reflexão sobre a língua – análise linguística –, atividade constante em todo o processo de ensino e aprendizagem, visa, então, ao desenvolvimento da capacidade de o aluno produzir e interpretar textos, na participação em práticas sociais que se utilizam da leitura e da escrita, de modo ético, crítico, criativo e democrático. Em se tratando de prática de análise linguística, no ensino dos anos iniciais, por exemplo, priorizamos atividades epilinguísticas em que a reflexão se volta para o uso, para o interior da própria atividade, como tomada de consciência da própria produção e interpretação. Já nos anos finais, em que se espera que os alunos tenham se apropriado de conhecimentos que lhes possibilitem produzir discursos 27 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura orais e escritos, para responder às demandas das esferas de comunicação mais próximas de seu cotidiano, atividades metalinguísticas fazem-se necessárias para que o domínio de conhecimentos sobre a linguagem possibilite a expansão dos níveis de letramento escolar dos alunos. As atividades metalinguísticas são aquelas voltadas à descrição, sistematização e categorização dos elementos de que se compõe a língua. Em relação ao Ensino Médio, a LDB/5692/71 indicava que a língua portuguesa fosse ministrada em duas disciplinas assim nominadas: Língua Portuguesa e Literatura, com ênfase na literatura brasileira. Os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio PCNEM, apoiados na LDB/9394/2006, em vigor, concebem a organização curricular deste nível de ensino dispostas em três grandes áreas: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias; Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias e Ciências Humanas e suas Tecnologias. O ensino da Língua Portuguesa e de Literatura insere-se, por conseguinte, na área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias (BRASIL, 2000, p. 17). A natureza social e interativa da linguagem é enfatizada nos PCNEMs e não mais se compreende a literatura separada da língua, pois ela é da mesma forma compreendida como representação simbólica das experiências humanas manifestas nas diferentes formas de sentir, pensar e agir na vida social. A LDB 9394/1996, no artigo 35, estabelece as seguintes finalidades para o Ensino Médio: Art. 35. O ensino médio, etapa final da educação básica, com duração de três anos, terá como finalidades: I - a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos; II - a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores; III - o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico; IV - a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina. (BRASIL, 1996, não paginado). 28 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura Este nível de ensino requer, então, prática pedagógica diferenciada daquela do Ensino Fundamental ao considerar também as competências que se espera sejam desenvolvidas na área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, tais como: • Confrontar opiniões e pontos de vista sobre as diferentes linguagens e suas manifestações específicas. • Compreender e usar os sistemas simbólicos das diferentes linguagens como meios de organização cognitiva da realidade pela constituição de significados, expressão, comunicação e informação. • Analisar, interpretar e aplicaros recursos expressivos das linguagens, relacionando textos com seus contextos, mediante a natureza, função, organização, estrutura das manifestações, de acordo com as condições de produção e recepção. • Compreender e usar a língua portuguesa como língua materna, geradora de significação e integradora da organização do mundo e da própria identidade. (BRASIL, 2000, p. 8-10). Em síntese, podemos dizer que no Ensino Médio, como indicam os documentos mencionados, objetiva-se o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no Ensino Fundamental. As propostas curriculares estaduais para o Ensino Médio seguem os princípios dos PCNEMs, enfatizando, no entanto, o cuidado em se continuar trabalhando a linguagem como construção de sentidos, negociados e compartilhados em nossas interações verbais. A Proposta Curricular de Minas Gerais representa o que está posto nas de Santa Catarina e do Paraná em outras palavras: Nosso conceito de natureza e de sociedade, de realidade e de verdade, nossas teorias científicas e valores, enfim, a memória coletiva de nossa humanidade está depositada nos discursos que circulam na sociedade e nos textos que os materializam. Textos feitos de gestos, de formas, de cores, de sons e, sobretudo, de palavras de uma língua ou idioma particular. Assim, a primeira razão e sentido para aprender e ensinar a disciplina está no fato de considerarmos a linguagem como constitutiva de nossa identidade como seres humanos, e a língua portuguesa como constitutiva de nossa identidade sociocultural. (MINAS GERAIS, 2006, p. 12). A leitura dos PCNs e das propostas curriculares de cada estado, acompanhada de discussões pelos profissionais da educação, é fundamental para que o exercício da docência se faça em consonância com os objetivos propostos 29 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura nesses documentos. Para organizar o ensino que se pretende desenvolver faz-se necessário conhecer osdocumentos oficiais que são referência para esse ensino e ter clareza dos objetivos pedagógicos a serem atingidos. Os PCNs+, por exemplo, pressupondo que ao longo do Ensino Fundamental tenham sido aprendidos conhecimentos básicos sobre o funcionamento da língua portuguesa, estabelece que [...] cabe ao ensino médio oferecer aos estudantes oportunidades de uma compreensão mais aguçada dos mecanismos que regulam nossa língua, tendo como ponto de apoio alguns dos produtos mais caros às culturas letradas: textos escritos, especialmente os literários. As competências e habilidades propostas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM) permitem inferir que o ensino de Língua Portuguesa, hoje, busca desenvolver no aluno seu potencial crítico, sua percepção das múltiplas possibilidades de expressão linguística, sua capacitação como leitor efetivo dos mais diversos textos representativos de nossa cultura. Para além da memorização mecânica de regras gramaticais ou das características de determinado movimento literário, o aluno deve ter meios para ampliar e articular conhecimentos e competências que possam ser mobilizadas nas inúmeras situações de uso da língua com que se depara, na família, entre amigos, na escola, no mundo do trabalho. (BRASIL, 2002, p. 55). A ação pedagógica em sala de aula pressupõe, por conseguinte, a mediação do professor no sentido de trazer para a sala de aula textos que materializem os diferentes discursos que circulam socialmente, considerando sempre suas condições de produção e circulação, e estimular a produção oral e escrita observando os mesmos critérios. Como salienta Kleiman (2005): Quanto mais a escola se aproxima das práticas sociais em outras instituições, [ou de outras práticas de linguagem utilizadas pelos alunos nos corredores da escola, fora da sala] mais o aluno poderá trazer conhecimentos relevantes das práticas que já conhece, e mais fáceis serão as adequações, adaptações e transferências que ele virá a fazer para outras situações da vida real. (KLEIMAN, 2005, p. 23). Quanto mais significativas forem as atividades de linguagem para os alunos, melhores serão os resultados do processo de ensino e aprendizagem de Língua Portuguesa e Literatura. 30 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura Metodologia do ensino da Língua Portuguesa e Literatura Os documentos de referência para o ensino de Língua Portuguesa e Literatura nos anos inicias do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, ainda que apresentem alguma divergência na fundamentação teórica de suas proposições, apontam para o alcance de objetivo comum à educação oficial: a formação do cidadão capaz de dar conta das demandas de uso da linguagem oral e escrita (leitura e escritura) do meio social em que se insere, de forma crítica e criativa. Da mesma forma, os documentos propõem que os conteúdos não sejam ensinados como um fim em si mesmos, porém como “[...] meio para que os alunos desenvolvam capacidades que lhes propiciem produzir e usufruir os bens culturais, materiais e econômicos” (BRASIL, 1997a, p. 73). Assim, estarão “[...] ampliando o domínio ativo do discurso nas diferentes situações Buscando sintetizar o que dizem os documentos de referência sobre o ensino de Língua Portuguesa e Literatura e no intuito de orientar a ação docente, propomos encaminhamentos por meio dos quais julgamos ser possível contribuir para que a formação desse sujeito, pela e na interação com o outro, mediada pela linguagem, possa exercer de forma crítica e criativa sua cidadania. Assim, não faremos distinção entre metodologias para os anos finais do Ensino Fundamental e o Ensino Médio, nem proporemos formas de avaliação específicas para um ou outro ensino. Apenas procuraremos traçar certos princípios que orientem a atividade da docência em Língua Portuguesa e Literatura, indicando o que se considera adequado à consecução dos objetivos propostos, frente à produção acadêmico científica, pedagógica e aos documentos oficiais em circulação na nossa contemporaneidade. As mudanças na área da educação a partir da década de 1990, ocasionadas, dentre outros fatores, pelas teorias filosófico-educacionais e linguísticas que passam a sustentar os documentos orientadores do ensino, conforme já referido em capítulo precedente, vêm acompanhadas também de discussão, iniciada na Europa, mais precisamente na França, sobre os conceitos de transposição didática (CHEVALLARD, 1985; 1991) e de elaboração didática (HALTÈ, 1998). 31 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura As mudanças no ensino de língua fazem-se sentir principalmente em virtude dos estudos de Bakhtin, que desenvolve a teoria dos gêneros do discurso, baseada em concepção de língua como interação verbal. No ensino da Língua Portuguesa, em nosso caso, tem-se alteração significativa, tanto no que se refere ao objeto de ensino, como mencionado anteriormente, como às metodologias, passando-se do ensino centrado na gramática para a inserção de atividades de oralidade, escuta e leitura e de produção textual, oral e escrita e análise linguística. Os professores necessitam, portanto, apropriarem-se desses saberes acadêmico-científicos para ensiná-los. Porém, ao convertê-los em objetos de ensino, precisam modificá-los, ou seja, convertê-los em conteúdos curriculares. Essa interface entre a produção acadêmico-científica sobre a língua e os conteúdos a serem “didatizados” é o que se denomina transposição didática – o saber se transforma em objeto de ensino “ensinável”, em condições de ser aprendido pelo aluno (CHEVALLARD, 1985). A esse conceito de transposição didática, Haltè (1998) contrapõe o conceito de elaboração didática. Esse autor, tomando como exemplo o ensino de francês, destaca a complexidade do objeto de ensino da língua, “que coloca em circulação conhecimentos de categorias que se interpenetram, pois envolvem conhecimentos científicos, práticas de referência, conhecimentos especializados e conhecimentos gerais” (RODRIGUES, 2009, p. 135). Para Haltè (1998, p. 191 apud RODRIGUES, 2009, p. 135), “[...] a noção de transposição didática preconiza o aplicacionismo, a partir de um processo descendente do conhecimento científico para o conhecimento a ser ensinado, purificando os objetos de ensino e provocando uma perda de sentido para os aprendizes”. Já a elaboração didática dos conhecimentos a serem ensinados e aprendidos preconiza um ensino que o autor denomina implicacionista, operacional e reflexivo; uma didática praxiológica, fundada na pluralidade de saberes de referência e, por isso, na participação do professor e do aluno, pois é preciso selecionar, interagir, operacionalizar e solidarizar, “[...] mais do que transpor conhecimento científico para conhecimento a ser ensinado” (RODRIGUES, 2009, p. 137). 32 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura Nesse sentido, o ensino de língua e literatura, ancorado em perspectiva histórico-interacionista, como indicam os currículos oficiais, encontra na elaboração didática suporte teórico-metodológico para o seu acontecimento. Segundo Rodrigues (2008, p. 172), “A opção teórico-metodológica é [...] sempre construí-la no decurso da própria elaboração didática (HALTÈ, 1998), por meio das atividades de ensino aprendizagem de leitura-estudo do texto, produção textual, de produção textual e de análise linguística”. A autora apresenta proposta de elaboração didática, em seis passos, que sintetizaremos a seguir: Síntese das etapas de um processo de ELABORAÇÃO DIDÁTICA, segundo RODRIGUES, 2008. “1º. Busca de conhecimento de referência sobre o gênero do discurso: o objetivo é dar sustentação teórica ao professor. [Nesta etapa o professor procurará obter o maior número possível de conhecimentos sobre o gênero ouos gêneros de um determinado campo de atividade]. 2º. Seleção de textos (verbais orais e escritos ou em outro material semiótico): o objetivo é compor um pequeno banco de dados para o trabalho com leitura em sala de aula. [Organizando esse banco de dados, o professor poderá trabalhar com textos diferentes que representem a relativa estabilidade e a heterogeneidade do gênero em estudo]. 3º. Prática de leitura do texto como enunciado: objetivo é colocar o aluno na posição de interlocutor do enunciado do gênero em foco. [A leitura, sempre que possível, será feita observando-se o espaço material de produção e a recepção desejável àquele gênero – para um texto de jornal, lê-se o texto no jornal em que se insere ou online; um capítulo de livro, lê-se no livro em que foi publicado]. 4º. Prática de leitura-estudo do texto e do gênero: essa prática analítica de leitura (prática de análise linguística 1[a autora denomina prática de análise linguística 1 a leitura-estudo do texto e do gênero para o levantamento das características do gênero]) é feita a partir dos textos do banco de dados, ou seja, de textos não redigidos pelo aluno. 5º. Prática de produção textual: nessa etapa, o objetivo é, na medida do possível, colocar o aluno em uma situação de interação o mais próxima possível do gênero em questão, isto é, o aluno é instado a assumir a autoria do gênero e a 33 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura construir o seu projeto discursivo, levando em conta as condições do gênero e o interlocutor do seu enunciado. 6º. Prática de revisão e reescritura de textos: [nesta etapa é feita] a revisão, via prática de análise linguística 2 [a autora denomina prática de análise linguística 2 o momento em que no processo de reescritura dos textos dos alunos são exploradas as características do gênero já vistas nas atividades de leitura e de produção textual], [que] toma como parâmetro a prática de análise linguística 1 e a atividade de produção textual proposta”. (RODRIGUES, 2008, p. 172-173). Os princípios destacados para a opção por uma metodologia de ensino de elaboração didática reforçam o pressuposto de que “é preciso planejamento da atividade docente”. Um planejamento bem elaborado possibilita que o professor antecipe situações capazes de propiciar ao aluno a aprendizagem e o desenvolvimento do domínio de conhecimentos de linguagem e seus usos sociais, evitando principalmente a perda de tempo e de rumo na condução do processo de ensino e aprendizagem. Roxane Rojo também vem se dedicando à formação de professores, notadamente no que diz respeito à transposição da teoria de Bakhtin para as salas de aula. Em seu texto Modos de transposição dos PCNs às práticas de sala de aula: progressão curricular e projetos (2000), chama a atenção para questões importantes, principalmente face aos princípios organizadores dos conteúdos de Língua Portuguesa e dos critérios para a sequenciação desses conteúdos, e face às organizações didáticas especiais, tais como projetos e módulos didáticos, como os apresentados pelos PCNs e “dialogados” com outras propostas de ensino. A autora, com relação aos conteúdos de Língua Portuguesa, apresenta como possibilidade a sua organização sob a forma de dois eixos: o eixo do USO e o da REFLEXÃO sobre a língua, e salienta: [...] os conteúdos indicados para as práticas do eixo do uso da linguagem são eminentemente enunciativos [...] o texto é visto como unidade de ensino e os gêneros textuais como objetos de ensino. [...] os conteúdos [...] do eixo da reflexão sobre a língua e a linguagem abrangem aspectos ligados à variação linguística; à organização estrutural dos enunciados; aos processos de construção da significação; 34 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura ao léxico e às redes semânticas e aos modos de organização dos discursos (ROJO, 2000, p. 20 e 30). Nessa perspectiva, os objetivos de ensino estão relacionados às necessidades de aprendizagem. Segundo a autora, nas últimas décadas em nossas escolas, as práticas de uso e de análise da linguagem têm sido substituídas “[...] pela simples adoção de um livro didático, que passa a ditar os objetivos de ensino e a configurar o projeto de ensino aprendizagem” (ROJO, 2000, p. 33). Rojo se põe a favor da teoria do ensino-aprendizagem de base sócio-histórica vygotskiana e ressalta a importância de o professor ter esse conhecimento para que possa identificar as possibilidades e as necessidades de aprendizagem de seus alunos. Ademais, a autora pontua que, [...] por meio da avaliação do desenvolvimento real de seus alunos, [o professor determinará] quais serão as possibilidades de aprendizagem para cada objeto de ensino; e [...] uma reflexão sobre as necessidades de aprendizagem, de um ponto de vista histórico-cultural [...] o levará a eleger os objetos histórico-culturais que deverão ser propostos para a aprendizagem no desenvolvimento potencial do aluno, na criação de ZPDs – Zonas Potenciais de Desenvolvimento (ROJO, 2000, p. 33). Essa relação entre aprendizado e desenvolvimento na perspectiva de Vygotsky, como base para a concepção de ensino, atende aos objetivos que se deseja alcançar com o ensino de Língua Portuguesa e Literatura na escola; condição que aumenta nossa responsabilidade como educadores, pois temos como objetivo último do ensino o desenvolvimento de capacidades que levem o aluno a usufruir e a produzir bens culturais, sociais e econômicos. Para o ensino da Língua Portuguesa e Literatura nessa perspectiva, os PCNs dessa área propõem “organizações didáticas especiais” (BRASIL, 1998, p. 87), as quais certamente preveem formas de tratar os conteúdos diferenciadas daquelas que se costumava adotar em décadas passadas. Dentre as possibilidades para o trabalho da docência, há em circulação diferentes perspectivas de encaminhamento metodológico, tais como um ensino por meio de projeto, sequências didáticas, elaboração didática, transposição didática, etc. Deparamo-nos, pois, com muitos “modos de ensinar”, e sobre esse tema reservaremos um espaço de discussão particular nas disciplinas de Estágio Supervisionado I e II. 35 www.soeducador.com.br Língua portuguesa e literatura A avaliação [...] é recomendável que se amplie a noção de avaliação escolar, revendo a pertinência de se avaliar exclusivamente um momento específico, como o da prova bimestral, em função da necessidade de se avaliar todo o processo de aprendizagem vivido pelos alunos ao longo de uma proposta de trabalho. (BRASIL, 2002, p. 83-84). As concepções de língua e linguagem e de ensino e aprendizagem, com as quais vimos trabalhando, requerem um novo posicionamento frente às formas de avaliação praticadas em nossas escolas. Se trabalhamos na perspectiva históricocultural, ensinamos com base nos conhecimentos reais dos alunos, ou seja, em suas necessidades e possibilidades de aprendizagem. A avaliação se institui no processo do fazer pedagógico, portanto ensino e avaliação caminham juntos, são processos formativos. Não cabe, no processo de ensino atual, uma avaliação apenas seletiva, ela necessariamente tem de se dar em função do processo de ensino e aprendizagem que se deseja desenvolver. Professor e alunos se avaliam e são avaliados. O professor realiza a avaliação formativa para saber quais são os saberes já apropriados pelos estudantes e que atitudes já têm internalizadas para que possa identificar as possibilidades de ensino e fazer a mediação entre aqueles e os novos conhecimentos (atuar na zona de desenvolvimento proximal). Ele realiza, no dizer de Antunes (2003, p. 158), “[...] uma busca dos indícios, dos sinais da trajetória que o aluno percorreu, o que, por outro lado, serve de sinal [...] de como ele tem de fazer e por onde tem que continuar”.
Compartilhar