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17/04/13 Envio | Revista dos Tribunais www.revistadostribunais.com.br/maf/app/delivery/document 1/7 A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS E O DIREITO BRASILEIRO A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS E O DIREITO BRASILEIRO Revista de Direito Constitucional e Internacional | vol. 9 | p. 26 | Out / 1994 Doutrinas Essenciais de Direitos Humanos | vol. 6 | p. 199 | Ago / 2011DTR\1994\409 Flávia Piovesan Procuradora do Estado. Mestre em Direito Constitucional e Professora de Direito da Faculdade de Direito da PUC/SP Área do Direito: Constitucional ; Internacional; Fundamentos do Direito Sumário: 1.Introdução - O Processo de Internacionalização dos Direitos Humanos - 2.Delineamentos do Sistema de Proteção Internacional de Direitos Humanos - 3.A Constituição Federal de 1988 e a Proteção Internacional dos Direitos Humanos - 4.O Estado brasileiro e a Proteção Internacional dos Direitos Humanos: diagnóstico e perspectivas 1. Introdução - O Processo de Internacionalização dos Direitos Humanos A proposta deste estudo é investigar a sistemática de proteção internacional dos direitos humanos e avaliar de que modo foi incorporada pela ordem jurídica brasileira, notadamente pela Constituição Federal de 1988. A compreensão do processo de internacionalização dos direitos humanos, contudo, impõe uma breve digressão sobre o próprio desenvolvimento histórico destes direitos. Sempre foi intensa a polêmica sobre o fundamento e a natureza dos direitos humanos - se são direitos naturais e inatos, ou direitos positivos e históricos ou, ainda, direitos que derivam de determinado sistema moral. Este questionamento ainda permanece intenso no pensamento contemporâneo. No entanto, como pondera Norberto Bobbio, o maior problema dos direitos humanos hoje "não é mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los". 1 Se o tema da proteção dos direitos humanos surge como questão central, na ótica estritamente jurídica, quais os primeiros delineamentos da moderna sistemática de proteção destes direitos? Pode-se afirmar que a primeira fase do moderno aparato de proteção destes direitos remonta as Declarações de Direitos do séc. XVIII, momento no qual os direitos humanos encontravam-se em fase de pré-positivação. Neste momento histórico, os direitos humanos surgem como reação e resposta aos excessos do regime absolutista, na tentativa de impor controle e limites à abusiva atuação do Estado. Marcos simbólicos deste período foram a Declaração de Virgínia (1776) e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). Ambas as declarações, americana e francesa, inspiradas em concepção jusnaturalista, consagravam a ótica contratualista liberal, na qual os direitos humanos se esgotavam, fundamentalmente, no direito à liberdade, à segurança e à propriedade, bem como na resistência à opressão. Daí o primado do valor da liberdade. A constitucionalização dos direitos humanos, no séc. XIX, inaugura uma segunda fase no desenvolvimento do sistema de proteção. Nesta fase, os direitos constantes das declarações passam a ser inseridos nas Constituições dos Estados. A partir do séc. XIX, os Estados passam a acolher as declarações em suas Constituições e, deste modo, as Declarações de Direitos se incorporam à história do constitucionalismo. Contudo, especialmente após a 1.ª Guerra Mundial ao lado do discurso liberal da cidadania, fortalece-se o discurso social da cidadania, e, sob as influências da concepção marxistaleninista, é elaborada a Declaração dos Direitos do Povo trabalhador e explorado (então URSS, 1918). Do primado da liberdade transita-se ao primado do valor da igualdade. O Estado passa a ser visto como agente de processos transformadores e o direito à abstenção do Estado, neste sentido, converte-se em direito à atuação estatal, com a emergência dos direitos a prestações sociais. É então, em meados do séc. XX, após a 2.ª Guerra Mundial, que é deflagrado o processo de internacionalização dos direitos humanos, o que marca a terceira fase do sistema de proteção destes direitos. 17/04/13 Envio | Revista dos Tribunais www.revistadostribunais.com.br/maf/app/delivery/document 2/7 A barbárie do totalitarismo representou a ruptura do paradigma dos direitos humanos, através da negação do valor da pessoa humana como valor fonte do Direito. Diante desta ruptura, emerge a necessidade de reconstrução dos direitos humanos, como referencial e paradigma ético que aproxime o direito da moral. Neste cenário, no dizer de Hannah Arendt, o primeiro dos direitos é o direito a ter direitos, ou seja, o primeiro dos direitos é o direito a ser sujeito de direitos. 2 Nasce ainda a certeza de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao âmbito reservado de um Estado, porque revela tema de legítimo interesse internacional. Neste prisma, a violação a direitos humanos não pode ser aceita como questão doméstica do Estado, mas deve ser enfrentada como problema de relevância internacional. A necessidade de uma ação internacional mais eficaz na proteção dos direitos humanos impulsionou o processo de internacionalização destes direitos, que culminou na criação da sistemática de proteção internacional, em que se faz possível a responsabilização do Estado no domínio internacional. O marco deste processo de internacionalização dos direitos humanos é a Declaração Universal de 1948, que, após a 2.ª guerra, vem a consagrar um consenso sobre valores de cunho universal. A Declaração Universal de 1948 combina o discurso liberal da cidadania com o discurso social, elencando tanto direitos civis e políticos, como direitos sociais, econômicos e culturais. A Declaração demarca a concepção contemporânea dos direitos humanos, que remete à unidade conceitual e indivisível destes direitos, em que o valor da liberdade deve ser conjugado ao valor da igualdade. Assim, partindo-se do critério metodológico que classifica os direitos humanos em gerações, 3 compartilha-se do entendimento de que uma geração de direitos não substitui a outra, mas com ela se interage. Logo, apresentando os direitos humanos uma unidade indivisível, revela-se esvaziado o direito à liberdade quando não assegurado o direito à igualdade e, por sua vez, esvaziado revela-se o direito à igualdade quando não assegurada a liberdade. 4 Como afirmou a Res. 32/130 da Assembléia Geral das Nações Unidas: "todos os direitos humanos, qualquer que seja o tipo a que pertencem, se interrelacionam necessariamente entre si, e são indivisíveis e interdependentes". Muitos preceitos da Declaração Universal foram, posteriormente, incorporados a Tratados Internacionais, que possuem, por sua própria natureza, força jurídica vinculante. Neste sentido, merecem destaque o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, ambos de 1966. Estes dois Pactos das Nações Unidas e a Declaração Universal compõem a denominada "Carta Internacional dos Direitos Humanos". Note-se, por fim, que os tratados internacionais de direitos humanos, menos que estabelecer o equilíbrio de interesses entre os Estados (como ocorre com os tratados internacionais tradicionais), buscam garantir o exercício de direitos e liberdades fundamentais. A partir desta perspectiva, não apenas o Estado, mas também o indivíduo passa a ser sujeito de direito internacional. Consolida-se, assim, a capacidade processual internacional dos indivíduos. 5 2. Delineamentos do Sistema de Proteção Internacional de Direitos Humanos Após a Declaração de 1948 inúmeras outras Declarações e Convenções Internacionais foram elaboradas, no intuito de responder ao processo de "multiplicação de direitos". 6Este processo envolveu: a) o aumento dos bens merecedores de tutela, com a ampliação dos direitos à prestação, como os direitos sociais, econômicos e culturais; b) a extensão da titularidade de direitos, com o alargamento do próprio conceito de sujeito de direito, que passa a abranger as entidades de classe, as organizações sindicais, os grupos vulneráveis, a própriahumanidade...; c) a especificação do sujeito de direito, tendo em vista que, ao lado do sujeito genérico e abstrato, advém o sujeito de direito concreto, visto em sua especificidade e na concreticidade de suas diversas relações. O processo da internacionalização dos direitos humanos conjugado com o processo de multiplicação destes direitos, resultou em um complexo sistema internacional de proteção, marcado pela coexistência do sistema geral com o sistema particular de proteção, bem como do sistema global com o sistema regional de proteção. Os sistemas geral e particular são sistemas de proteção complementares, na medida em que o sistema particular de proteção é voltado, fundamentalmente, à prevenção da discriminação ou à proteção de pessoas ou grupos de pessoas particularmente vulneráveis, que merecem proteção especial. Daí falar-se em direitos das mulheres, da criança, do idoso, do adolescente, do deficiente físico, dos refugiados, dentre outros. O sistema particular de proteção realça o processo da especificação do sujeito de direito, já mencionado, em que o sujeito de direito é visto em sua especificidade e concreticidade. 17/04/13 Envio | Revista dos Tribunais www.revistadostribunais.com.br/maf/app/delivery/document 3/7 No âmbito do sistema particular de proteção, destacam-se a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial (1965), a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (1979), a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), dentre outros instrumentos internacionais. Já no âmbito do sistema geral de proteção destaca-se, também dentre outros instrumentos internacionais, a "Carta Internacional dos Direitos Humanos", que tem por endereçado toda e qualquer pessoa. No âmbito do sistema geral, o sujeito de direito é visto em sua abstração e generalidade. Relativamente à convivência do sistema global e regional, tem-se a coexistência do sistema global, integrado pelos instrumentos das Nações Unidas (ex.: Declaração Universal de Direitos Humanos; Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos; Pacto Internacional dos Direitos Sociais, Econômicos e Culturais...) com instrumentos do sistema regional de proteção, por sua vez, integrado pelo sistema americano, europeu e africano de proteção aos direitos humanos. Cada qual dos sistemas regionais de proteção apresenta um aparato jurídico próprio. O sistema americano tem como principal instrumento a Convenção Americana de Direitos Humanos (também chamada Pacto de San José da Costa Rica, de 1969), que estabelece a Comissão Americana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana. 7 Já o sistema europeu, conta com a Convenção européia de Direitos Humanos (1950), que estabelece a Comissão e o Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Por fim, o sistema africano apresenta como principal instrumento a Carta Africana de Direitos Humanos (1981). Percebe-se, assim, que os instrumentos internacionais voltados à proteção dos direitos humanos formam um complexo conjunto de regras, que apresentam diferentes âmbitos de aplicação e, por vezes, distintos destinatários. Ante este aparato internacional, cabe ao indivíduo que sofreu violação de seu direito a escolha do aparato mais favorável, tendo em vista que, eventualmente, direitos idênticos são tutelados por dois ou mais instrumentos de alcance global ou regional, ou ainda, de alcance geral ou específico. A título de exemplo, o direito a não ser submetido à tortura é, concomitantemente, protegido pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 7.º), Convenção Americana (art. 5.º), Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes e ainda Convenção Interamericana para prevenir e punir a tortura. O sistema internacional de proteção de direitos humanos apresenta um peculiar mecanismo de controle e implementação destes direitos. Dentre estes mecanismos destacam-se: a) o sistema de petições individuais; b) as comunicações interestatais; e c) os relatórios periódicos elaborados pelo Estado-parte. Através do direito de petição, qualquer pessoa que sofreu violação a direito, enunciado em tratado internacional de que o Estado é parte, pode apresentar petição contendo a denúncia da violação das disposições do tratado, por parte do aludido Estado. A petição deve ser encaminhada ao organismo internacional competente - como, por exemplo, ao Comitê de Direitos Humanos (arts. 1.º e 2.º do Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, ao Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial (art. 14 da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial), ao Comitê contra a tortura (art. 22 da Convenção contra a tortura), à Comissão Interamericana (art. 44 da Convenção Americana), em se tratando de violação a direito constante das Convenções internacionais respectivas. Tais organismos internacionais (os Comitês e as Comissões citados), no âmbito de sua competência, buscarão resguardar o aludido direito por meio de solução amistosa. Se esta solução fracassar, a questão poderá ser, eventualmente, encaminhada a um órgão de jurisdição internacional, como ocorre no sistema americano, em que a Comissão Interamericana poderá submeter à apreciação da Corte determinado caso. 8 O sistema de petições, "mediante o qual veio a cristalizar-se a capacidade processual internacional dos indivíduos (direito de petição individual), constitui um mecanismo de proteção de marcante significação, além de conquista de transcendência histórica", como afirma A. A. Cançado Trindade. 9 Na maior parte dos instrumentos internacionais, no entanto, o direito de petição é previsto sob a forma de cláusula facultativa, pela qual o Estado-parte poderá declarar, a qualquer momento, que reconhece a competência do Comitê/Comissão para receber e examinar petição apresentada por indivíduo ou grupo de indivíduos que estejam sob sua jurisdição. Além disso, a petição individual deve observar determinados requisitos de admissibilidade, dentre eles a exigência do prévio esgotamento dos recursos internos disponíveis - requisito que não se 17/04/13 Envio | Revista dos Tribunais www.revistadostribunais.com.br/maf/app/delivery/document 4/7 aplicará se a tramitação do recurso exceder prazo razoável, ou se inexistir no direito interno o devido processo legal, ou ainda se não se assegurar à vítima o acesso aos recursos de jurisdição interna. Outro requisito de admissibilidade da petição individual é não estar a matéria pendente de outros processos de solução internacional. Importa ressaltar que, no sistema internacional de proteção dos direitos humanos, o Estado tem a responsabilidade primária pela proteção destes direitos, ao passo que a comunidade internacional tem a responsabilidade subsidiária. Os procedimentos internacionais têm, assim, natureza subsidiária, constituindo garantia adicional de proteção dos direitos humanos, quando falham as instituições nacionais. Além do sistema de petição individual, há o sistema de comunicação interestatal, pelo qual um Estado-parte alega haver o outro Estado-parte incorrido em violação aos direitos humanos estabelecidos em determinado tratado internacional. Este sistema encontra-se previsto, por exemplo, na Convenção Americana (art. 45), no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 41), na Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial (art. 11), na Convenção contra a tortura (art. 21), dentre outros. Via de regra e assim como o direito de petição individual, o sistema de comunicação interestatal também vem previsto sob a forma de cláusula facultativa. Por fim, há o sistema de relatórios, pelo qual o Estado-parte se compromete a encaminhar aos organismos internacionais competentes (ex.: aos Comitês e Comissões acima citados) relatórios sobre as medidas administrativas, legislativas e judiciárias por ele adotadas, no sentido de conferir cumprimento às obrigações internacionais assumidas em virtude das Convenções internacionais.Este sistema encontra-se disposto, por exemplo, na Convenção Americana (art. 42), no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 40), no Pacto Internacional dos Direitos Sociais, Econômicos e Culturais (art. 16), na Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial (art. 9), na Convenção contra a tortura (art. 19), dentre outros. 3. A Constituição Federal de 1988 e a Proteção Internacional dos Direitos Humanos Neste momento, importa avaliar de que modo a Constituição Federal de 1988 se relaciona com o sistema internacional de proteção dos direitos humanos. Preliminarmente, cabe considerar que a Carta de 1988 situa-se como marco jurídico da transição ao regime democrático. Como marco jurídico, o texto de 1988 alargou significativamente o campo dos direitos e garantias fundamentais, estando dentre as Constituições mais avançadas do mundo no que diz respeito à matéria. Desde seu preâmbulo, a Carta de 1988 projeta a construção de um Estado Democrático "destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...)". Prossegue a Constituição afirmando, ineditamente, em seus primeiros artigos, princípios fundamentais que demarcam os fundamentos e os objetivos da República Federativa do Brasil (arts. 1.º e 3.º, da CF/1988 (LGL\1988\3)). Dentre os fundamentos que alicerçam o Estado brasileiro destacam-se a cidadania e dignidade da pessoa humana (art. 1.º, II e III, da CF/1988 (LGL\1988\3)). Por sua vez, construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, constituem os objetivos fundamentais do Estado brasileiro, consagrados no art. 3.º da Carta de 1988. É a primeira vez, na história constitucional brasileira, que uma Carta constitucional, num reconhecimento implícito dos sérios problemas que afligem a sociedade brasileira - pobreza, marginalização, desigualdades sociais e regionais, discriminação... - traça metas a serem perseguidas e objetivos fundamentais a serem alcançados. Infere-se destes dispositivos quão acentuada é a preocupação da Constituição em assegurar a dignidade e o bem-estar da pessoa humana, como um imperativo de justiça social. A busca do texto em resguardar o direito à dignidade humana é redimensionada, na medida em que, enfaticamente, privilegia a temática dos direitos fundamentais. Constata-se uma nova topografia constitucional, na medida em que o texto de 1988, em seus primeiros capítulos, apresenta avançada Carta de direitos e garantias, elevando-os, inclusive, a cláusula pétrea (art. 60, § 4.º, IV, da CF/1988 (LGL\1988\3)), o que, mais uma vez, revela a vontade constitucional de priorizar os direitos e garantias fundamentais. Todavia, a Carta de 1988 não se limita a alterar a topografia constitucional tradicional e a elevar a cláusula pétrea, os direitos e garantias individuais. O texto de 1988 ainda inova ao alargar a 17/04/13 Envio | Revista dos Tribunais www.revistadostribunais.com.br/maf/app/delivery/document 5/7 dimensão dos direitos e garantias, estendendo o alcance dos direitos a prestação e prevendo, além dos direitos individuais, os direitos coletivos e difusos - aqueles pertinentes a determinada classe ou categoria social e estes pertinentes a todos e a cada um. Atente-se, ainda, que a Constituição de 1988, no intuito de reforçar a imperatividade das normas que traduzem direitos e garantias fundamentais, institui o princípio da aplicabilidade imediata destas normas, nos termos do art. 5.º, § 1.º, da CF/1988 (LGL\1988\3). Inadmissível, por conseqüência, torna-se a inércia do Estado quanto à concretização de direito fundamental, posto que a omissão estatal viola a ordem constitucional, tendo em vista a exigência de ação, o dever de agir no sentido de garantir direito fundamental. É neste contexto que há de ser feita a leitura dos dispositivos constitucionais pertinentes à proteção internacional dos direitos humanos - e neste tema o texto constitucional também registra inéditos avanços. A Carta de 1988 é a primeira Constituição brasileira a elencar o princípio da prevalência dos direitos humanos (art. 4.º, II, da CF/1988 (LGL\1988\3)), como princípio fundamental a reger o Estado brasileiro nas relações internacionais. Com isto, a soberania do Estado sofre limites e condicionamentos. Isto é, a soberania estatal está submetida a regras jurídicas, tendo como parâmetro obrigatório a prevalência dos direitos humanos, 10 o que vem a romper com a concepção tradicional de soberania absoluta, reforçando o processo de sua flexibilização e relativização. O princípio da prevalência dos direitos humanos contribuiu substantivamente para o sucesso da ratificação pelo Estado brasileiro de instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos. Como pondera Celso Lafer: "O princípio da prevalência dos direitos humanos foi um argumento constitucional politicamente importante para obter no Congresso a tramitação da Convenção Americana dos Direitos Humanos - o Pacto de San José. Foi em função desta tramitação que logrei depositar na sede da OEA nos últimos dias de minha gestão (25.9.92) o instrumento correspondente de adesão do Brasil a este significativo Pacto". 11 Também de extrema relevância é o alcance da previsão do art. 5.º, § 2.º, da CF/1988 (LGL\1988\3), que tece a interação entre a ordem jurídica interna e a ordem jurídica internacional dos direitos humanos. Ao estabelecer que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte, este dispositivo constitucional incorpora os preceitos dos tratados internacionais de direitos humanos, atribuindo-lhes natureza de norma constitucional. Assim, os direitos garantidos nos tratados de direitos humanos de que o Brasil é parte integram o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados. 4. O Estado brasileiro e a Proteção Internacional dos Direitos Humanos: diagnóstico e perspectivas A partir da Constituição de 1988, importantes instrumentos de proteção internacional dos direitos humanos foram ratificados pelo Brasil, como, por exemplo, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, o Pacto Internacional dos Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e a Convenção contra a Tortura. Contudo, ainda restam relevantes instrumentos internacionais a serem ratificados, como o Protocolo Facultativo relativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (que habilita o Comitê de Direitos Humanos a receber e examinar petições individuais), o Protocolo Adicional à Convenção americana sobre Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o Protocolo à Convenção americana sobre Direitos Humanos relativos à pena de morte, dentre outros. Necessário, assim, que se avance na ratificação destes instrumentos internacionais, a fim de que se aprimore a sistemática de proteção dos direitos humanos no direito brasileiro. O aperfeiçoamento deste aparato também impõe a imediata retirada das reservas feitas pelo Estado brasileiro quando da ratificação dos tratados internacionais de direitos humanos, já que reservas por vezes até incompatíveis com a Constituição de 1988. Para ilustrar, vale a menção às reservas feitas à Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (art. 16), especialmente no que se refere à igualdade entre os gêneros no casamento e no direito de família, igualdade esta que já está consagrada no texto constitucional (art. 226, § 5.º, da CF/1988 (LGL\1988\3)). Além da retirada de reservas, acrescente-se também a necessidade do Estado brasileiro reconhecer a competência obrigatória da Corte Interamericanade Direitos Humanos, bem como aceitar todos os procedimentos facultativos de recurso existentes, já que estas medidas são essenciais para a institucionalização da proteção internacional dos direitos humanos no âmbito interno. 17/04/13 Envio | Revista dos Tribunais www.revistadostribunais.com.br/maf/app/delivery/document 6/7 Outra medida relevante é a adoção, pelo Estado brasileiro, de disposições de direito interno que sejam necessárias para tornar efetivos os direitos e liberdades enunciados nos Tratados de que o Brasil é parte. Na medida em que estes direitos e liberdades foram incorporados ao texto constitucional, a omissão do Estado brasileiro resulta em inconstitucionalidade. Torna-se admissível, portanto, o controle jurisdicional da omissão do Estado, já que omissão viola a Constituição. Este controle pode ser efetuado através dos mecanismos do mandado de injunção e da ação direta de inconstitucionalidade por omissão. 12 A estas medidas se conjuga, como ação imprescindível, a divulgação e promoção do Direito Internacional dos Direitos Humanos, fator que contribuiria para maior consciência dos instrumentos internacionais, como garantias adicionais de proteção. Em suma, o aperfeiçoamento efetivo da proteção dos direitos humanos exige, como ação imediata, o maior comprometimento do Brasil no reforço do sistema de proteção internacional. 1. Norberto Bobbio, A Era dos Direitos, trad. Carlos Nelson Coutinho, Rio, Ed. Campus, 1992, p. 25. Sobre a natureza e fundamento dos direitos humanos, C. S. Nino, Etica y Derechos Humanos, B. Aires, Astrea, 1989. A respeito do desenvolvimento histórico destes direitos, L. Henkin, The Rights of Man Today, New York, Columbia University Press, 1988. 2. A este respeito, v. obra de Celso Lafer, AReconstrução dos Direitos Humanos - Um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, S. Paulo, Cia. das Letras, 1988. 3. A partir deste critério, os direitos de primeira geração correspondem aos direitos civis e políticos, que traduzem o valor da liberdade; os direitos de segunda geração correspondem aos direitos sociais, econômicos e culturais, que traduzem, por sua vez, o valor da igualdade; já os direitos de terceira geração correspondem ao direito ao desenvolvimento, direito à paz, à livre determinação, que traduzem o valor da solidariedade. Sobre a matéria, Hector Gross Espiell, Estudios sobre Derechos Humanos, Madrid, Ed. Civitas, 1988, pp. 328-332. Do mesmo autor, Los Derechos Economicos Sociales y Culturales en el Sistema Interamericano, San José, Libro libre, 1986. Consultar ainda A. E. P. Luño, Los Derechos Fundamentales, Madrid, Ed. Tecnos, 1988 e T. H. Marshall, Cidadania, Classe Social e " Status", Rio, Zahar, 1967. 4. No entanto, difícil é a conjugação destes direitos. Como pondera Norberto Bobbio: "As sociedades são mais livres na medida em que são menos justas e mais justas na medida em que são menos livres" ( Era dos Direitos, p. 43). 5. Note-se que ao longo de muito tempo o Estado foi considerado como único sujeito de direito internacional. Ainda hoje há publicistas que entendem que os indivíduos não têm personalidade jurídica de direito internacional. Neste sentido, José Francisco Rezek: "Não têm personalidade jurídica de direito internacional os indivíduos, e tampouco, as empresas, privadas ou públicas" (in Direito internacional público - curso elementar, pp. 157-158). Em sentido contrário, Celso Duvivier de Albuquerque Mello: "(...) não se pode negar a personalidade internacional do indivíduo. Admiti- la é se enquadrar em uma das mais modernas tendências do Direito Internacional Público, a democratização" (in Curso de Direito Internacional, p. 235). 6. Esta denominação é de Norberto Bobbio ( A Era dos Direitos, pp. 68-69). 7. Sobre o sistema americano, consultar trabalho de Oscar Vilhena Vieira, "A Constituição Brasileira, os Tratados Internacionais e os Mecanismos de Defesa dos Direitos Humanos", no relatório Os Direitos Humanos no Brasil, produzido pela Universidade de São Paulo, Núcleo de Estudos da Violência e Comissão Teotônio Vilela, 1993, pp. 8-16. V. tb. R. N. Navia, Introducción al Sistema Interamericano de Protección a Los Derechos Humanos, San José, IIDH, 1988. E ainda T. Buergenthal & R E. Norris D. Shelton, La Protección de los Derechos Humanos en las Ameritas, Madrid, IIDH, Civitas, 1990. 8. Apenas a Comissão Interamericana e os Estados-Partes podem submeter um caso à Corte Interamericana, não estando prevista a legitimação do indivíduo (art. 61 da Convenção Americana). 9. A. A. Cançado Trindade, A Evolução da Proteção Internacional dos Direitos Humanos e o Papel do Brasil, p. 26. Sobre o sistema internacional de proteção dos direitos humanos, consultar do mesmo autor A Proteção Internacional dos Direitos Humanos - Fundamentos Jurídicos e 17/04/13 Envio | Revista dos Tribunais www.revistadostribunais.com.br/maf/app/delivery/document 7/7 Instrumentos Básicos, S. Paulo, Saraiva, 1991. V. tb. Thomas Buergenthal, International Human Rights, Minnesota, West Publishing Co., 1988. E ainda D. O'Donnell, Protección Internacional de los Derechos Humanos, Lima, 1988 e Paul Sieghart, The International law of Human Rights, Oxford, Claredon Press, 1983. 10. A respeito, Pedro Dallari, Constituição e Relações exteriores, Ed. Saraiva, S. Paulo, 1994, p. 161. Consultar também Enrique Ricardo Lewandowski, Proteção dos Direitos Humanos na ordem interna e internacional, p. 141. 11. Celso Lafer, prefácio ao livro de Pedro Dallari, Constituição e Relações exteriores, S. Paulo, Ed. Saraiva, 1994, p. 19. 12. Desenvolvo aqui idéia de Túlio Kahn, em conversa sobre os meios de controlar a omissão do Estado brasileiro que ainda não adotou as medidas legislativas requeridas pela Convenção contra a Tortura. Sobre os mecanismos de controle, Flávia Piovesan, A Inconstitucionalidade por omissão - Mandado de Injunção e Ação Direta de Inconstitucionalidade, dissertação de mestrado defendida na PUC-SP, em 1994. Página 1
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