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1 DISCIPLINA: ESTUDOS DE SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO PROFESSOR DR. ALEXANDRE VIRGINIO ALUNO: PIETRO BARRETO MENIN RESENHA – OUTUBRO DE 2016: FREITAS, Lorena. A Instituição do Fracasso: a educação da ralé. In: SOUZA, Jessé (org.). A Ralé Brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, p. 281-304. Lorena Freitas propõe uma reflexão: porque as escolas públicas brasileiras, no geral, falham em oferecer oportunidades de, através do conhecimento, os jovens das classes populares ascenderem socialmente? A partir da análise das histórias de vida de dois jovens brasileiros, Juninho e Anderson, a autora aponta que a desorganização familiar combinada com a má-fé institucional acaba por determinar as trajetórias de vida destes jovens que fracassam na escola e tem seu futuro profissional comprometido. Freitas define vida familiar organizada enquanto uma configuração familiar que ofereça à criança uma vida estável e equilibrada emocionalmente. A família estruturada seria aquela em que as funções sociais de mãe e pai estão preenchidas, independente do vínculo biológico. O fundamental é a capacidade dos responsáveis poderem garantir um ambiente que satisfaça as demandas afetivas e construa a autoconfiança da criança. Já a família desestruturada, ou desorganizada, seria a família que não consegue garantir o desenvolvimento da segurança afetiva entre seus membros, sendo marcada pela desorganização econômica e moral da vida familiar. Freitas aponta que o envolvimento afetivo dos pais com a vida escolar dos filhos é um ponto fundamental para a aprendizagem bem-sucedida. Na medida em que os pais reconhecem e valorizam a importância desempenho escolar, a criança quando consegue bom desempenho sente que é recompensada com a aprovação dos pais, e na medida que a criança sente que isso é algo importante, passa a agir para receber essa aprovação cada vez mais. Desta forma, a autoestima da criança passa a estar diretamente vinculada com o desempenho nos estudos. A carga afetiva transmitida para os filhos combinada com os incentivos faz com que os estudos tornem-se desejos destas crianças. O estudo, desta forma, se torna uma responsabilidade moral. A crença no valor do estudo motiva a criança a estudar mais e mais, por acreditar que está realizando uma ação boa em si. Neste momento a autora enfatiza que isto demonstra que o humano não é só guiado pelo proveito pessoal, mas também pela necessidade de cumprir deveres morais. Neste sentido, a 2 obra de Durkheim ajuda a pensarmos a relação entre a educação e a moral indicada por Freitas: para Durkheim, o ser social não nasce com o humano, mas agrega ao ser individual uma natureza de vida moral e social através da educação. Um ser novo, moral, é criado no processo de socialização, adquirindo uma linguagem e aderindo a um sistema de ideias que foi elaborado antes do seu nascimento (DURKHEIM, 1955). No caso de Anderson, filho de pai mecânico, Seu Evaldo, que estudou até a oitava série e mãe dona de casa, Dona Mara, que concluiu o ensino médio, suas atividades escolares eram vigiadas pelos pais e seus horários eram regulados, além dos pais deixarem transparecer a alegria ou tristeza de acordo com o desempenho de Anderson na escola, demonstrando aquele comprometimento afetivo anteriormente comentado. Dona Mara e Seu Evaldo apostaram na educação que deram à Anderson e apostaram no seu sucesso escolar, mas não contaram com um obstáculo maior: a escola. Anderson desde os 17 anos trabalhou informalmente, sem carteira assinada, sem direitos trabalhistas, sem almoço. De uma fábrica de sapatos foi para uma marcenaria. Concluiu o ensino médio e conseguiu um emprego, agora formal, em um galpão. Para Freitas, o fato de Anderson ter uma vida familiar estruturada garantiu sua chegada um pouco mais longe que seu amigo Juninho, que é o segundo caso analisado. Juninho, como a maior parte da ralé brasileira, não teve um ambiente familiar estruturado e seguro. Seu pai, Seu Jonas, era um transportador de frutas e legumes para uma empresa e sua mãe, Dona Luzia, era faxineira. Seu Jonas era alcoólatra e perdia boa parte do dinheiro com bebidas, além de ter explosões de violência contra sua esposa Luzia e contra Juninho. Pais e mães da ralé, como Dona Luzia, também sonham com o sucesso escolar dos filhos, sabem que o estudo é importante, assim se esforçam para fornecer todas as condições possíveis aos filhos. Mas no dia a dia as experiências compartilhadas com os filhos acabam por não estimular o estudo, pois os incentivos ao estudo não são acompanhados por exemplos concretos que os legitimem, já que é incentivo a um mundo oposto a “vida real“ em que estas crianças estão inseridas, um mundo de valores e regras que eles não compartilham. O desinteresse pela escola acaba então sendo naturalizado pelos pais, que passar a acreditar que “criança gosta é de brincar“ e que a disciplina dos estudos aparenta ser algo contrário à “natureza“ das crianças. Segundo Freitas, isto é na verdade produto de uma vida que exige minimamente o controle dos impulsos e não prepara as pessoas com a disciplina necessária para o sucesso escolar. Os sujeitos que tiveram uma socialização que desenvolve a 3 disciplina, o autocontrole e a “capacidade de pautar suas ações no presente a partir de um planejamento racional do futuro são capazes de incorporar conhecimento para se inserir no mundo do trabalho qualificado e ser úteis e produtivos à sociedade“ (FREITAS, pg. 288). Os indivíduos que não se enquadram são desvalorizados perante a sociedade e marginalizados. Uma criança desde cedo sabe qual comportamento a escola recompensa, porém, somente os alunos que já incorporaram a “disposição para o conhecimento“ como parte de sua autoestima conseguem almejar sucesso nas metas impostas pela instituição escolar, e essa “adesão afetiva ao aprendizado“ (pg. 289) é produto de uma organização familiar que a transmita como uma herança. A desorganização familiar na vida de Juninho é fortemente marcada quando aos 15 anos seu pai é assassinado em uma briga de bar. Juninho se lembra que quando novo, se esforçava na escola e não conseguia se concentrar. As dificuldades, somadas a falta de incentivo por parte dos pais, foram o convencendo de que não havia nascido para estudar. Derrotado por problemas incontornáveis e com a necessidade de conseguir um trabalho, Juninho começou a faltar as aulas, justificando seu fracasso, dizendo que não queria estudar pois preferia “aproveitar a vida“. Na quinta série do ensino fundamental decidiu abandonar os estudos. Juninho trabalhou de lavador de carros, ajudante de pedreiro, capinando quintais, e aos 25 anos, Juninho é vendedor ambulante, onde comercializa de balas até DVDs piratas. O fato apontado por Freitas é que a má fé institucional acaba prejudicando os jovens pobres, da ralé brasileira, pois antes de entender as causas das dificuldades dos alunos, os profissionais da escola acabam por enxergar apenas os produtos destas dificuldades, como a desatenção, a indisciplina e o desinteresse. Quando suas origens não são investigadas e problematizadas, estas características acabam sendo vistas como parte da “natureza“ destes alunos. E a prática da escola é o castigo para quem tem este comportamento, que é interpretado como se fosse uma escolha racional de cada aluno. Juninho e Anderson foram punidos constantemente por não se adequarem as regras da escola, independentemente do fato de que este desajuste às normas é produto de uma dificuldade que ultrapassa a ação de cada um, é um problema que ambos não podiam superar. As avaliações escolares comuns nas escolas públicas medem as capacidades dos alunos e os classificam, entre os que estão ajustados e tem um bom desempenho, e os que não se ajustam à instituição e fracassam: “os que podem ser úteis futuramente à sociedade e aqueles que estão fadadosao fracasso e às posições desqualificadas e pouco úteis“ (pg. 292). 4 Anderson, com muito custo, concluiu o ensino médio, mas passou por tantas humilhações quando aluno, sendo constrangido e tratado como incapaz por professores, que hoje não pretende seguir estudando. Anderson acaba revelando que tem ”medo”, que não consegue diferenciar a dificuldade de aprender e o medo, e como não consegue enxergar que a má-fé institucional da escola é a maior responsável pelo seu fracasso escolar, acaba naturalizando a derrota e afirmando que o papel da escola é de fato o de ”selecionar os melhores”. Freitas se aprofunda na explicação da má-fé da instituição escolar, a descrevendo como um ”padrão de ação institucional que se articula tanto no nível do Estado (…) quanto no nível do micropoder, quer dizer, no nível das relações de poder cotidianas entre os indivíduos que, dependendo do lugar que ocupam na hierarquia social, podem mobilizar de forma diferente os recursos materiais e simbólicos que as instituições oferecem.” (pg. 294). Para isto a autora recupera brevemente a história da educação brasileira, lembrando que a educação da Colônia até a revolução modernizadora de 1930 tinha caráter profundamente seletivo. A partir de 1930, com a intensificação do capitalismo industrial no Brasil, a educação passou a ser cada vez mais necessária para recrutar trabalhadores minimamente qualificados. Em 1920 a taxa de escolarização de pessoas de 5 a 19 anos era de 9%, em 1940 era 21,43% e em 1970 era 53,72%. Entretanto, os métodos de avaliação acabaram por manter o sistema escolar fechado em si mesmo, acolhendo apenas parte da população. O sistema de ensino acabava por beneficiar as classes que possuíam as disposições necessários para a educação livresca: autocontrole, disciplina, cálculo prospectivo e sentimento de responsabilidade moral com os estudos. O sistema era dividido em um ensino médio público destinado às classes médias e altas, que viam neste uma porta para o ensino superior, em um ensino fundamental e um ensino profissional, este último o mais procurado pela ralé brasileira, que tinha urgência de entrar no mercado de trabalho. Os dados referentes aos anos 1960 demostram ainda a seletividade do sistema: dos alunos que entraram na primeira série do fundamental, 57% não foram para a segunda série, e apenas 14,41% conseguiram chegar à quinta série, demonstrando a seletividade concentrada principalmente no ensino fundamental. As reformas acentuaram a dualidade do ensino, pois as iniciativas do Estado tiveram como público-alvo as classes médias, que tinham interesse na ampliação do ensino para a sua ascensão social. 5 Em 2005, 97,4% das crianças de 7 a 14 anos frequentavam a escola no Brasil. Porém, permanecem os níveis de baixo rendimento das escolas públicas. A exclusão passou a ser somente qualitativa: todos estão na escola, mas não aprendem o que é esperado. Em 2000, 54,3% dos alunos de quinta série do fundamental estavam com a idade acima do ideal para a série. Freitas afirma que aqueles que não possuem as características para conseguir sua integração na escola, acabam por ser desclassificados, e o público que de fato foi o maior beneficiado neste processo foram as classes médias, que já possuíam os requisitos necessários para o sucesso escolar. Neste ponto o trabalho de Pierre Bourdieu me parece fecundo para entendermos o sucesso das camadas médias e a desclassificação sistemática da maior parte das classes populares na instituição escolar: a violência simbólica, resultado da imposição de uma cultura dominante, considerada a legítima, dissimula as relações de poder existentes e acaba boicotando os alunos de origem social proletária e os culpabilizando pelo seu fracasso escolar. As classes médias, por possuírem familiaridade maior com a cultura legítima, como disposições corporais e linguísticas e conhecimentos prévios à escola incorporados – capital cultural incorporado – e por possuir maior condição econômica, possuem maior acesso a bens culturais – o capital cultural em seu aspecto objetivado – livros, obras de artes, instrumentos que tem valor cultural (BOURDIEU, 1998), possuem uma vantagem anterior a sua entrada no sistema de ensino, vantagem que se reproduz intergeracionalmente. Os alunos da ralé brasileira, por não possuírem a mesma condição de acesso a estes bens culturais e por não terem interiorizado desde sua socialização primária as disposições que são consideradas legítimas, acabam por serem boicotados na escola, e como afirma Freitas, a consequência de não percebermos a ralé como uma classe que é prejudicada é a culpabilização individual dos membros da classe. O tratamento traumatizante que Anderson sofreu de seus professores durante sua trajetória escolar é um exemplo disso. O professor, na maioria das vezes de origem social pequeno-burguesa, utiliza da ideologia meritocrática para justificar um ressentimento de classe – uma necessidade inconsciente da pequena-burguesia de se distanciar de uma condição de existência próxima da sua – pode explicar o desprezo de muitos professores pelos alunos da ralé. Agora este pode se indignar pois a ralé ”não se esforça o suficiente”, como eles próprios já ”se esforçaram e conseguiram”. O pertencimento à pequena-burguesia também pode explicar quando o ressentimento é substituído pelo envolvimento ou engajamento político manifestado por 6 diversos professores, cujo a estabilidade econômica não provoca o ressentimento inconsciente de ser confundido com a ralé. A existência da ralé é o que estrutura a sociedade brasileira e a nossa escola de massas. A escola pública brasileira é nivelada por baixo. A dificuldade para aprender é presente aos alunos da ralé, que não possuem as predisposições para o sucesso escolar, e também é presente para os alunos que possuem as predisposições adequadas, pois as salas de aulas bagunçadas, com alunos que não possuem disciplina e conversam o tempo todo, dificultam o aprendizado, e além disso, os professores são mal pagos, muitas vezes têm de trabalhar em várias escolas e são desmotivados com sua profissão. Freitas conclui que, a crueldade da má-fé institucional está no exercício de garantir a presença da ralé na escola, sem incluir esta classe efetivamente no mundo escolarizado, pois a condição de classe a própria lógica institucional impede a construção de uma relação afetiva com o aprendizado. No caso de Anderson, sua vida familiar proporcionou disciplina e responsabilidade moral com os estudos. Graças a isso Anderson sofre tanto com seu fracasso, com o sentimento de culpa, de quem sabe o que perdeu. Freitas afirma que ”a violência simbólica engendrada pela má-fé institucional tornou inviáveis as chances de sucesso que ele trouxe de casa.” (pg. 302). Já no caso de Juninho, a situação é diferente qualitativamente. Como ele nunca teve identificação com o mundo do conhecimento, já que sua vida familiar não proporcionou o sentimento de responsabilidade moral para com os estudos, Juninho não possui as disposições para entender e sentir o que perdeu. Juninho sente um sofrimento por sair perdedor de um jogo que, não conhece as regras, mas sente que é importante, pela imagem desvalorizada que tem de si. Juninho e Anderson sabem racionalmente o valor do conhecimento, porém apenas Anderson dá forma ao seu sofrimento e se culpa por isso. Em ambos casos a má-fé institucional atinge a ralé estrutural e outras frações das classes populares que, apesar da situação de pobreza, são contempladas por uma vida familiar mais estruturada. No caso das últimas, teriam alguma chance de ascensão social, se as escolas públicas não se encarregassem de fechar as portas para elas sistematicamente. Concluo que Lorena Freitas, a partir do estudo da trajetória de dois jovens da ralé brasileira, realizou um trabalho eficaz de desmistificação da ideia presenteno senso comum de que o sucesso escolar só depende do indivíduo. A instituição escolar, como identificou Freitas, 7 realiza um trabalho de ”peneira”, que vai eliminando do ensino progressivamente os alunos de origem social das classes populares, e faz isto muito bem, de forma dissimulada, culpabilizando os próprios alunos pelo fracasso. Poderíamos acrescentar o trabalho de François Dubet a esta crítica sobre o mérito individual e a dissimulação realizada pela instituição escolar: o autor demonstra que o modelo meritocrático de ensino pode ser questionado se não funciona apenas como um mecanismo de legitimação da desigualdade social. Segundo Dubet, na sociedade capitalista, fundamentada sobre a ideia de mérito, é preciso produzir desigualdades aceitáveis, ”justas”, que são vistas como legítimas, pois não seriam desigualdades herdadas, como eram as do sistema feudal. Trata-se de uma ”ficção necessária” produzida pela instituição escolar, que ajuda a sustentar o sistema e a desigualdade como um todo, ignorando as origens sociais dos indivíduos. (DUBET, 2004) A escola justa proposta por Dubet deve levar em conta as desigualdades sociais e compensá-las, introduzindo mecanismos compensatórios centrados nos alunos, garantindo um mínimo escolar comum a todos, afirmando o papel educativo da escola e tratando os vencidos pelo sistema escolar de uma outra maneira: como seres humanos em evolução, não meros competidores. Para construirmos a escola justa o conflito é inevitável, pois os grupos que possuem vantagens com o modelo meritocrático não cederão facilmente, portanto, o que não se deve perder de vista é que o que está em jogo é uma disputa entre a manutenção de privilégios e a redução da desigualdade social. Bibliografia FREITAS, Lorena. A Instituição do Fracasso: a educação da ralé. In: SOUZA, Jessé (org.). A Ralé Brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, p. 281- 304. DURKHEIM, Émile. Educação e sociologia, trad. Lourenço Filho, EdiçõesMelhoramentos, São Paulo, 4ª ed., 1955. BOURDIEU, Pierre. Os três estados do capital cultural. In.: NOGUEIRA, Maria Alice & CATANI, Afrânio (orgs.). Pierre Bourdieu – Escritos de educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. 8 DUBET, François. O que é uma escola justa? Cadernos de Pesquisa, Vol. 34, n° 123, São Paulo, Set/Dez, 2004. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742004000300002
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