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0 FACULDADE MERIDIONAL – IMED ESCOLA DE DIREITO ANA CLAUDIA DE LIMA SELETIVIDADE DO SISTEMA PENAL BRASILEIRO: UMA ANÁLISE DA SUA ESTRUTURAÇÃO SOCIAL E POLÍTICA PASSO FUNDO 2016 1 Ana Claudia de Lima Seletividade do sistema penal brasileiro: uma análise da sua estruturação social e política Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Escola de Direito, da Faculdade Meridional – IMED, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito, sob a orientação da Professora Doutora Leilane Serratine Grubba. Passo Fundo 2016 2 Ana Claudia de Lima Seletividade do sistema penal brasileiro: uma análise da sua estruturação social e política Banca Examinadora: Profª. Drª. Leilane Serratine Grubba - Orientadora Profª. Drª. Marília De Nardin Budó - Integrante Caroline Bresolin Maia - Convidada 3 RESUMO A seletividade é um traço visível do sistema penal brasileiro, sendo a população carcerária composta basicamente pelos estratos inferiores da estrutura social. Diante do questionamento de qual é o nível de influência da formação social e política e da estruturação do sistema penal na formação e aplicação de um direito penal seletivo no Brasil, formula-se a hipótese de que tais fatores exercem uma influência maciça na arbitrariedade das seleções realizadas pelo sistema penal, não sendo apenas fatores subsidiários na manifestação deste grave problema jurídico e social do país. Com o objetivo de verificar a atuação de fatores como a formação social e política e a estruturação do próprio sistema penal sobre a seleção criminalizante de uma pequena parcela da sociedade, na pesquisa, analisa-se essa estruturação social e política, bem como a sua relação com os meios de controle social, incluindo aí o sistema penal. Na sequência, procura-se compreender o desempenho do sistema, seus discursos legitimantes e como ocorrem as seleções realizadas por esse. O intuito do estudo é fornecer, não só ao meio acadêmico, mas à sociedade em geral, uma reconsideração quanto ao fenômeno da criminalidade, possibilitando a reforma do atual paradigma que perpetua uma criação e aplicação arbitrariamente seletiva do direito penal. A pesquisa se dá através do método hipotético-dedutivo, tendo por base a criminologia crítica e dados oficiais, o que possibilita verificar o nível de influência que a formação social e política e a estrutura do sistema penal exercem na seletividade da criminalização no Brasil. Palavras-Chave: Direito Penal. Criminologia Crítica. Seletividade Social. Seletividade Criminal. 4 ABSTRACT Selectivity is a visible trace of Brazilian penal justice system, being the prison population composed mainly by the lower stratum of social structure. Before the question of what is the level of influence of social and political formation and organization of the penal system in the formation and implementation of a selective criminal law in Brazil, the hypothesis formulated are that these factors exert a massive influence on the arbitrariness of the selections carried out by the penal justice system, not being only ancillary factors in the manifestation of this serious legal and social problems of the country. Aiming to check the performance factors such as social and political formation and structuring of the own penal system on criminalizing selection of a small portion of society, the research analyzed that social structure and policy and its relation with the social control means, including the penal justice system. In the sequence we tried to understand the system performance, their legitimating discourses and by what means occur the selections realized. The study's purpose to provide, not only to the academic world but also the society in general, a rethinking about the crime phenomenon, enabling the reform of the current paradigm that perpetuates a creation and arbitrarily selective application of criminal law. The search is performed using the hypothetical-deductive method, based on the critical criminology and official data, which made it possible to check the level of influence that social and political formation and the penal justice system structure exercise the criminalization selectivity in Brazil. Key words: Criminal Law. Critical Criminology. Social Selectivity. Criminal Selectivity. 5 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 6 2 ORGANIZAÇÃO SOCIAL, POLÍTICA E SISTEMA PENAL BRASILEIROS 10 2.1 Organização social e política no Brasil 10 2.2. Direito e outros meios de controle social 19 2.3 Estruturação do sistema penal brasileiro 26 3 SELETIVIDADE DO SISTEMA CRIMINAL 38 3.1 Criminalização primária, secundária e terciária 38 3.2 Discrepância entre o discurso e a realidade do sistema penal 44 3.3 Seletividade na elaboração e aplicação do direito penal brasileiro 56 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 67 REFERÊNCIAS 70 6 1 INTRODUÇÃO O sistema penal brasileiro, através de suas agências, atua de forma seletiva, punindo apenas parte daqueles que praticam ações consideradas desviantes. As punições do sistema penal são restritas a uma parte ínfima dos crimes, o que não representa, necessariamente, algo negativo, já que uma aplicação em massa do sistema penal, nos moldes em que é definido pela lei, causaria um forte impacto social. Entretanto, essa seletividade acaba quase sempre atingindo uma mesma camada da sociedade, enquanto outras, que também praticam ações consideradas desviantes, não sofrem as mesmas sanções. Dessa forma, se faz importante compreender como se estrutura a sociedade e o sistema penal do país. A sociedade, apesar de ter sua segmentação por meio de classes, possui uma particularidade quanto a sua formação política. O patronato político do Brasil forma praticamente um estamento. Esse poder político possivelmente ajuda que o estamento exerça influência nos meios de controle social, dentre os quais, se encontra o sistema penal. O sistema possui, em sua estrutura, um conjunto de agências que, por sua vez, tem suas próprias convicções, seus discursos legitimadores e práticas corriqueiras. A atuação arbitrária do sistema penal pode ser verificada através dos dados relacionados à população carcerária. Na realidade prisional brasileira podemos constatar que a grande maioria dos detentos que cumprem pena são homens, com idade entre 18 e 29 anos, negros, com baixo nível de escolaridade, sendo que a grande maioria não concluiu o ensino fundamental. Ademais, a maior parcela dos presos foi processada e julgada por crimes contra o patrimônio, como por exemplo, o roubo e o furto e, ainda, crime de tráfico (BRASIL; MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2014).1 Tal realidade possivelmente parece se relacionar com o fato de que se vive em uma sociedade excludente e com a estruturação do sistema penal vigente. Diante disso, cabe o questionamento de qual é o nível de influência da segmentação da sociedade e da estruturação do sistema penal na seletividade exercida por esse. Aparentemente, estes fatores exercem uma influência maciça na formação e aplicação de um Direito Penal arbitrariamente seletivo no Brasil, não sendo apenas fatores subsidiários na manifestação desse grave problema jurídico e social do país. Já que a seletividade do sistema 1 Disponível em: <http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/infopen_dez14.pdf>. Acesso em: 02 ago. 2016. 7 atinge, principalmente, as classes mais baixas da sociedade, aquelas que já possuem algum estigma sobre si, seja ele de ordem, política, racial, econômica etc., como se pode perceber pelos dados penitenciários, que serão trabalhados nesta monografia. O objetivo geral da pesquisa é identificaro nível de influência que a organização social e a estruturação do sistema, têm na seletividade do sistema penal brasileiro. Porém, mais especificamente, os objetivos são descrever a organização social e a estrutura do sistema penal do país, abordando ainda a formação política desse. Após, relacionar tais fatores com o desenvolvimento e aplicação díspar do direito penal, que atinge apenas uma parcela muito pequena das ações que são consideradas desviantes, que ocorrem diariamente, e em geral, as cometidas pelas classes mais baixas da sociedade. Para alcançar tais objetivos serão desenvolvidos dois capítulos. O primeiro deles aborda a organização social e a estruturação do sistema penal. Inicialmente, procura-se observar como se dá a formação social do país, qual a espécie de estratificação que vigora na sociedade brasileira. Após, aborda-se a diferença que há entre a típica estrutura social, que se dá na forma de classes e o estamento que controla a política. Estamento esse, que mantém uma estrutura de caráter patrimonialista no Brasil. Na sequência o estudo procura elucidar a relação entre a formação social e política com os meios de controle social, além de explicitar pontos relevantes relacionados a estes meios. Por fim, o primeiro capítulo ainda levanta a questão da estruturação do sistema penal brasileiro, tratando das funções que são atribuídas a cada uma de suas agências, contrapondo-as com a falta de coerência que há entre essas ações. Aparece, também, uma carência de legitimidade que sofre o sistema por descumprir com tais funções. O segundo capítulo versará especificamente da seletividade do sistema penal brasileiro. Primeiramente, será abordado o desenvolvimento dos estudos criminológicos, dando-se ênfase na ideia de criminalização trazida pelo Labelling Approach e, posteriormente, explorado pela denominada criminologia crítica. Após o estudo partirá para uma análise das três espécies de criminalização, relacionando-as com os dados penitenciários. Posteriormente, serão estudados os discursos do sistema penal e a teoria que os fundamenta. Abordando para isso seus principais postulados e as respectivas críticas relacionadas a esses. Por fim, o estudo tratará da seletividade do sistema penal, através da ação de cada uma de suas agências, além das consequências da aplicação desigual da lei penal nos diferentes estratos sociais. 8 No Brasil, há uma inclinação histórica de criminalizar parcelas da sociedade, em geral, as classes mais baixas e marginalizadas. Porém, esse revés não costuma ser amplamente discutido, pois se direciona contra os interesses das classes mais elevadas a modificação do atual paradigma excludente, que criminaliza a pobreza e reserva as penas alternativas e brandas aos grupos que detém o poder econômico e político do país. Além desta inclinação histórica de criminalização da pobreza, no Brasil, tem-se um sistema penal que, aparentemente, possui profundas deficiências estruturais que dificultam que o mesmo atinja seu intento de justiça e proteção de bens jurídicos de efetiva relevância. Surgindo assim uma enorme discrepância entre o discurso justificador do sistema penal e a real criação e aplicação do direito penal. Portanto, é pertinente que se busque compreender a genuína influência que a organização social segmentada, que exclui determinados indivíduos e supervaloriza outros, e a vigência de um sistema penal que não consegue cumprir sua proposta basilar de proteção dos bens jurídicos relevantes da sociedade, na aplicação arbitrariamente seletiva do direito penal brasileiro. Assim, é preciso difundir no meio acadêmico a importância do tema e a profunda necessidade de se compreender os fatores que fundam e estimulam a manutenção deste paradigma de forte exclusão social. Em função disso, o presente estudo busca trazer uma compreensão sobre elementos que aparentemente colaboram para a arbitrariedade nas seleções do sistema penal. O tema é importante, pois apesar de já ter sido discutido por autores de renome, necessita ser compreendido por todos, especialmente pelos acadêmicos de direito, porque é através desses que se dará a aplicação do direito e, consequentemente, é a eles que cabe realizar uma reforma no atual paradigma onde o direito penal é reservado a uma clientela determinada. O tema se mostra relevante, sendo necessária uma melhor compreensão do mesmo. Apenas essa assimilação possibilitará que, além dos operadores do direito, a sociedade em geral visualize de uma nova maneira, mais fidedigna e desprovida de pré-conceitos amplamente difundidos, o tema da seletividade na aplicação do direto penal. Assim, percebe-se que, ao analisar a influência da organização estamental da sociedade e da estrutura inadequada do sistema penal na formação desta adversidade, que é a arbitrariedade nas seleções levadas a cabo pelo sistema penal, conquista-se uma melhor inteligência de algumas de suas causas, surgindo assim, a possibilidade de combatê-la através de uma intervenção nos fatores que a fomentam. Diante do exposto, serão abordadas, além da estruturação social e do sistema penal, a influência deles na formação de um sistema penal seletivo no país, com base na criminologia 9 crítica. Para tanto, a pesquisa utilizará pensadores dessa fase do estudo criminológico, dando- se ênfase à doutrina de Alessandro Baratta e Vera Regina Pereira de Andrade e dados empíricos carcerários brasileiros do ano de 2014. Quanto à organização política, a base de pesquisa serão os estudos de Raymundo Faoro. O método adotado para realização do estudo será o hipotético-dedutivo, de modo a se alcançar, através de determinadas premissas, onde se incluem dados empíricos do sistema carcerário brasileiro, uma conclusão. O estudo se dá através de pesquisa bibliográfica de doutrina, além de artigos e revistas jurídicas que versem sobre a problemática proposta. A pesquisa bibliográfica será complementada pela pesquisa em documentos oficiais que fornecerão dados relacionados ao sistema criminal brasileiro. 10 2 ORGANIZAÇÃO SOCIAL, POLÍTICA E SISTEMA PENAL BRASILEIROS Este capítulo abordará inicialmente a forma como se dá a organização social e política do Brasil e como essas se legitimam, pois tais organizações parecem exercer forte influência na formação do sistema penal brasileiro. Após, serão analisados os meios de controle social, com ênfase na relação que possuem com o sistema penal. Por fim, realizar-se-á um estudo sobre as instâncias do sistema penal, bem como a relação entre elas e as ações que são programadas para cada uma dessas instâncias e a crise de legitimidade que esse sistema vem sofrendo. 2.1 Organização social e política no Brasil Esta seção tratará da organização social e política do país, abordando inicialmente sua organização social, para compreender se essa se dá através de classes ou de estamentos, e, após, desenvolverá o tema da estruturação política, abrangendo os tipos de dominação, sua legitimação, e como todos estes processos ocorrem no Brasil. Para a compreensão da aplicação seletiva do direito penal, onde esse parece recair apenas sobre alguns estratos específicos da sociedade, é necessário primeiramente um bom entendimento quanto à formação social e política do país, pois de certa forma, ambas tem uma influência direta ou, pelo menos, indireta na formação e aplicação do direito penal. Estratificação social é a criação de camadas sociais distintas, uma forma de segmentação da sociedade que se dá com base em diferenças existentes entre indivíduos e grupos, designando-lhes posições e status (FERREIRA, 2006). Trata-se de um processo de hierarquização dos grupos sociais em uma escala onde há graus superiores e inferiores, sendo os direitos e as obrigações distribuídos de modo desigual dentro destes graus (STAVENHAGEN, 1994). Os sistemas de estratificação dasociedade são uma forma de exteriorização da dinâmica da estrutura dessa (BARCELLOS, 1980), e no Brasil essa exteriorização vem na forma de classes sociais. Tal tipo de organização social é difícil de ser conceituado, porque até mesmo entre os pensadores da Sociologia, não há um consenso quanto à ideia de classe social. A divergência está na escolha dos critérios objetivos que são utilizados em sua conceituação, num primeiro ponto, e após, consequentemente, se encontra na delimitação de cada classe, porque essa, por óbvio, se fez com base na conceituação formulada anteriormente (AVILA, 1970). Ademais a estruturação das classes sociais ocorre de forma diferente em cada 11 sociedade, de acordo com o restante da estrutura social, possuindo diferentes constituições e atuando de modos diversos (TOMAZI [et al.], 2000). Essa dificuldade em conceituar, definir critérios objetivos e delimitar as classes sociais, acaba dando origem a um grande número de doutrinas que podem ser consideradas deficientes quanto a esse tema (STEVENHAGEN, 1994). Pois acabam por decair em erros como classificações vagas e indefinidas, classificações que reduzem as classes a simples categorias sociais, as que as identificam erroneamente como um grupo univinculado, ou ainda, quando as classificam como grupo multivinculado, mas trazem defeitos em determinados aspectos da estrutura do conceito (SOROKIN,1968). Diante dos defeitos que visualizou em outras conceituações, Sorokin (1968, p. 424-425) desenvolveu o seguinte conceito de classe social: Trata-se de um grupo (1)legalmente aberto, mas na realidade semifechado; (2) “normal”; (3) solidário; (4) antagônico em relação a alguns outros grupos (classes sociais) da mesma natureza geral X; (5) em parte organizado, mas principalmente semi-organizado; (6) em parte consciente da sua unidade e existência, e em parte não; (7) característico da sociedade ocidental dos séculos XVIII, XIX E XX; (8) um grupo multivinculado, unido por dois ligames univinculados, o ocupacional e o econômico (ambos tomado no sentido mais lato), e por um vínculo de estratificação social no sentido da totalidade dos seus direitos e deveres essenciais, em contraste com os direitos e deveres basicamente diferentes dos outros grupos (classes sociais) da mesma natureza geral X. Diante do exposto, pode-se perceber que dificilmente um conceito de classe social seja perfeitamente adequado à realidade de tal grupo, em razão das diferenças de identidade que são próprias das pessoas que pertencem à classe ou grupo social. Compreendido o conceito de classe social, cumpre entender a partir de agora a realidade do Brasil com relação a esse tipo de grupo social. A estratificação social por meio de classes sociais expandiu-se após o século XVIII, sendo esse modo de estratificação, portanto, um sucessor cronológico das castas e dos estamentos (SOROKIN, 1968). No Brasil, a formação das classes sociais ocorreu ainda no período colonial e foi fortemente influenciada pelo fator econômico, sendo possível associar a evolução das classes no Brasil com a evolução econômica do país, já que ambos se deram de forma paralela (AVILA, 1970). No período colonial existia no país a classe dos proprietários de terra e a dos trabalhadores servis, além dos escravos. Diante de uma evolução na economia, dada pela descoberta de minas de metais preciosos no Brasil, esse panorama se alterou, surgindo aí mais uma classe, a burguesia. Na sequência, a economia do país passou pelo ciclo do café, que 12 colocou na classe superior os latifundiários plantadores de café e os donos das indústrias, que começavam a surgir na época. Após, em decorrência da industrialização do país a força da classe média muito se ampliou e compondo a classe baixa restaram os escravos emancipados, os trabalhadores das indústrias e os imigrantes (FERREIRA, 2006). Atualmente, as classes no Brasil tem uma formação peculiar, segundo Ribeiro (1995, p. 213): As classes sociais brasileiras não podem ser representadas por um triângulo, com um nível superior, um núcleo e uma base. Elas configuram um losango, com um ápice finíssimo, de pouquíssimas pessoas, e um pescoço, que se vai alargando daqueles que se integram no sistema econômico como trabalhadores regulares e como consumidores. Tudo isso como um funil invertido, em que está a maior parte da população, marginalizada da economia e da sociedade, que não consegue empregos regulares nem ganhar o salário mínimo. Ademais, a organização social brasileira sofreu influência do período escravagista, pelo fato de o país ter tido um longo período de exploração da mão de obra escrava, em geral, composta de índios ou de negros provenientes do continente Africano. No país a escravidão chegava ao extremo de até mesmo os escravos, quando libertos, adquirirem escravos (CARVALHO, 2008). Diferentemente dos índios, que recebiam a proteção dos jesuítas, os escravos negros não possuíam defensores e eram vistos realmente como objetos, uma simples força bruta desprovida de intelecto que era tratada da mesma forma que os animais. A escravidão, relativamente tardia, no Brasil parecia mais justa se os escravizados fossem negros, já que se demonstrava certa desaprovação quanto à escravização de pessoas brancas (PRADO JUNIOR, 1885). A escravidão no Brasil “se difundiu social e espacialmente, com a disseminação da posse de escravos pelo tecido social e a criação de hierarquias étnicas e culturais bastante complexas” (MARQUESE, 2006, p. 109). Essa hierarquização, além de determinados estigmas atribuídos ainda naquela época, permaneceram enraizados na sociedade. A abolição não gerou grandes mudanças na condição social do escravo negro, que era visto como um ser inferior. A visão da sociedade permaneceu a mesma após a abolição, o que fez com que os ex-escravos permanecessem em uma situação de marginalização (PRADO JUNIOR, 1885). Essa visão do escravo negro como inferior evoluiu para uma visão do negro marginalizado e criminoso, tanto que os dados penitenciários trazem uma quantidade muito superior de aprisionamentos de negros do que de brancos2. Tal fato demonstra que a escravidão no Brasil teve profunda influência na formação das classes sociais, delegando aos ex-escravos 2 Disponível em: <http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/infopen_dez14.pdf>. Acesso em: 03 dez. 2016. 13 os estratos sociais inferiores. Mantendo, desse modo, uma organização social semelhante a do período escravagista, mesmo após a abolição como demonstra Ribeiro (1995, p. 212): A estratificação social gerada historicamente tem também como característica a racionalidade resultante de sua montagem como negócio que a uns privilegia e enobrece, fazendo‐os donos da vida, e aos demais subjuga e degrada, como objeto de enriquecimento alheio [...]. Essas duas características [...] condicionaram a camada senhorial para encarar o povo como mera força de trabalho destinada a desgastar‐se no esforço produtivo e sem outros direitos que o de comer enquanto trabalha, para refazer suas energias produtivas, e o de reproduzir‐se para repor a mão‐de‐obra gasta. Nem podia ser de outro modo no caso de um patronato que se formou lidando com escravos, tidos como coisas e manipulados com objetivos puramente pecuniários, procurando tirar de cada peça o maior proveito possível. Quando ao escravo sucede o parceiro, depois o assalariado agrícola, as relações continuam impregnadas dos mesmos valores, que se exprimem na desumanização das relações de trabalho. Diante do exposto, é possível verificar que valores e estigmas vigentes durante a exploração da mão-de-obra escrava não caíram em desuso, apenas se adequaram a evolução do país e continuaram a basear a organização social atual, porém de modo velado. Apesar de a organizaçãosocial brasileira se dar na forma de classes sociais, a organização política do país ocorre de forma completamente diversa, atendo-se ainda ao antecessor cronológico das classes sociais: o estamento (STRECK, 2012). O Brasil, apesar de toda evolução histórica e econômica, continua em alguns aspectos pré-moderno, pois permanece preso ao binômio estamento-patrimonialismo em sua organização política (FAORO, 2001). Independentemente da organização social em classes, o grupo que controla o poder político pode ser considerado um estamento. Porém, para que se possa compreender adequadamente este revés, se faz necessária, primeiramente, a compreensão do que é exatamente um estamento e quais são as bases do patrimonialismo. Deve-se partir da ideia de que o patrimonialismo é uma das possíveis formas de se exercer o poder político. Em uma análise sobre o patrimonialismo, Campante (2003, p. 155) conceitua como um tipo de dominação: Patrimonialismo é a substantivação de um termo de origem adjetiva: patrimonial, que qualifica e define um tipo específico de dominação. Sendo a dominação um tipo específico de poder, representado por uma vontade do dominador que faz com que os dominados ajam, em grau socialmente relevante, como se eles próprios fossem portadores de tal vontade, o que importa, para Weber, mais que a obediência real, é o sentido e o grau de sua aceitação como norma válida - tanto pelos dominadores, que afirmam e acreditam ter autoridade para o mando, quanto pelos dominados, que creem nessa autoridade e interiorizam seu dever de obediência. 14 Essa dominação citada, necessita da aceitação da coletividade, e para que tal aceitação exista é preciso que se faça presente a legitimidade. A legitimidade da dominação ocorre através de uma destas três formas: a tradicional, a carismática e a racional-legal. E cada uma delas baseia-se em determinados valores explicitados por Weber (2000. p. 141) da seguinte forma: 1. De caráter racional: baseada na crença na legitimidade das ordens estatuídas e do direito de mando daqueles que, em virtude dessas ordens, estão nomeados para exercer a dominação (dominação legal), ou 2. De caráter tradicional: baseada na crença cotidiana na santidade das tradições vigentes desde sempre e na legitimidade daqueles que, em virtude dessas tradições. Representam a autoridade (dominação tradicional), ou, por fim 3. De caráter carismático: baseado na veneração extracotidiana da santidade, do poder heroico ou do caráter exemplar de uma pessoa e das ordens por esta reveladas ou criadas (dominação carismática) (grifos do autor). Com base em tal explicação, pode-se verificar que o patrimonialismo é, portanto, uma forma de exercício do poder político, na qual a dominação patrimonial se legitima através de valores tradicionais. Preciso se faz complementar a ideia de dominação, pois neste caso ela está intimamente ligada à ideia de Poder. Para Weber dominação é “a probabilidade de encontrar obediência a alguma norma de determinado conteúdo, entre determinadas pessoas indicáveis” (WEBER, 1982, p. 33). Já o poder pode ser conceituado como “a probabilidade de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento dessas legitimidades” (WEBER, 1982, p. 33), pois é através dessa diferenciação que pode-se perceber que para se caracterizar a dominação é essencial à concordância da coletividade, ou pelo menos a simples aceitação por parte dessas das imposições do dominador. Apesar das conceituações pode torna-se dificultoso reconhecer o patrimonialismo quando colocado num plano real, onde se afasta dos tipos-ideais contidos na literatura. Portanto, cabível diferenciar o patrimonialismo de outras formas de dominação com as quais ele pode se confundir. Primeiramente deve-se diferenciá-lo da gerontocracia (dominação exercida pelos mais velhos) e do patriarcalismo (dominação baseada em regras fixas de sucessão), o que pode ser feito através da verificação da existência/inexistência de um quadro administrativo. No caso da gerontocracia e do patriarcalismo, onde inexiste um quadro administrativo, a obediência se detém basicamente a vontade de obedecer dos próprios dominados, que ocorre por respeito, devoção ao senhor, com o qual se tem uma ligação tradicional, além da percepção positiva da dominação, essa é percebida como algo exercido em favor dos dominados (PORTELA JUNIOR, 2012). 15 No patrimonialismo, a existência de um quadro administrativo se deu para possibilitar que o senhor mantivesse sua dominação sobre um grupo maior e descentralizado de pessoas. O patrimonialismo tem por base o patriarcalismo, na organização familiar ocorre uma descentralização “onde alguns de seus membros não livres se desvinculam da relação direta existente dentro da família, mas mesmo com a desvinculação à relação de dependência estabelecida inicialmente com o patriarca permanece, porém com outra roupagem” (SILVA, 2009, p. 4). Com isso formou-se o patrimonialismo, uma dominação exercida por meio do patrimônio, com legitimidade tradicional. É em virtude desta descentralização, que expandiu a dominação exercida pelo senhor, que se faz preciso um quadro administrativo. Esse quadro será formado pelo senhor de forma patrimonial, convocando os que estão tradicionalmente ligados a ele, ou, de forma extrapatrimonial, onde os recrutados pertencem ao seu círculo de confiança (SILVA, 2009). Este modelo patrimonial de administração da res publica acaba contaminando o quadro administrativo. O que traz como consequência, a falta de divisão entre os bens público e privados por parte desse funcionalismo, que, por ser escolhido de forma arbitrária, tem necessariamente de obedecer aos comandos do senhor (PORTELA JUNIOR, 2012). As esferas pública e privada são administradas da mesma forma pelo senhor, de acordo com seus valores e interesses individuais, não distanciando sua íntima convicção da gestão que exerce na coisa pública. É com base nesse arbítrio do senhor que se pode diferenciar o patrimonialismo do sultanismo, apesar de em ambos a legitimidade decorrer da tradição e a esfera entre público e privado se confundir, no sultanismo o arbítrio do senhor é mais amplo, quase ilimitado (PORTELA JUNIOR, 2012). Através deste arbítrio que possui o senhor no patrimonialismo, que dá causa a um quadro administrativo escolhido de forma arbitrária, por meio do recrutamento patrimonial ou extrapatrimonial do funcionalismo, se demonstra a total ausência de normas e regulamentos democráticos. A obediência emanada pelo funcionalismo provém da relação de dominação que possui com o senhor e não pelo fato de dever obediência à ordens objetivas e ao cargo que exerce (FAORO, 2001). Com base nisso, pode-se diferenciar o patrimonialismo do feudalismo, porque no feudalismo há um acordo entre as partes, no qual ficam definidos os deveres de cada um, não estando, portanto, os vassalos totalmente a mercê dos senhores feudais, como ocorre com o quadro administrativo submetido a uma ordem patrimonialista (PORTELA JUNIOR, 2012). 16 Por meio dessas três diferenciações, é possível definir de forma mais precisa o patrimonialismo, reduzindo a possibilidade de o confundir com outros tipos de dominação. Sendo cabível, neste momento conhecer um conceito mais complexo de patrimonialismo dado por Reinhard Bendix (1986 apud SILVEIRA, 2006, p. 5-6), que aborda todas essas particularidades vistas anteriormente, segundo o autor: No patrimonialismo, o governante trata toda a administração política como seu assunto pessoal, ao mesmo modo como explora a posse do poder político como um predicado útil de sua propriedade privada. Ele confere poderes a seus funcionários, caso a caso, selecionando-os e atribuindo-lhes tarefas específicas com base na confiança pessoal que neles deposita e sem estabelecer nenhuma divisãode trabalho entre eles. [...] Os funcionários, por sua vez tratam o trabalho administrativo, que executam para o governante como um serviço pessoal, baseado em seu dever de obediência e respeito. [...] Em suas relações com a população, eles podem agir de maneira tão arbitrária quanto aquela adotada pelo governante em relação a eles, contanto que não violem a tradição e o interesse do mesmo na manutenção da obediência e da capacidade produtiva de seus súditos. Em outras palavras, a administração patrimonial consiste em administrar e proferir sentenças caso por caso, combinado o exercício discricionário da autoridade pessoal com a consideração devida pela tradição sagrada ou por certos direitos individuais estabelecidos. Devidamente explicitada a ideia geral de patrimonialismo, deve-se buscar compreender de maneira mais aprofundada os estamentos que, como visto anteriormente, é um antecessor cronológico das classes sociais. O estamento é uma forma de ordem social semifechada onde as atividades sociais de cada estamento são consideradas essenciais à manutenção dessa mesma ordem (TOMAZI [et al.], 2000). Esse tipo de ordem social permite a formação de um sistema onde as atividades sociais geram para um determinado grupo de indivíduos privilégios, que decorrem de ordens do estamento dominante e se justifica por meio de uma ideologia, imposta, igualmente, pelo estamento que detém maior poder (BARCELLOS, 1980). Cabe também saber que os estamentos diferem-se das classes sociais, que se definem basicamente de acordo com um fator econômico, no estamento a ideia de status e honrarias sociais se sobrepõe ao simples poder econômico (WEBER, 2005). Diferem-se também das castas, por serem menos fechados que essas, possibilitando assim a mobilidade entre um estamento e outro, não restando uma definição fixa quanto aos planos econômico e político determinada pelo nascimento como ocorre nas castas (TOMAZI [et al.], 2000). Além disso, nos estamentos existem estratos abertos e tem-se também a possibilidade de se fazer cessar um status, o que nas castas não ocorre de maneira alguma. Contudo, a principal diferença entre castas e estamentos, se encontra no fato de nas castas o status ser 17 definido com fundamento num fator religioso ou consuetudinário, o que nos estamentos ocorre através das leis estatais (SOROKIN, 1968). Nos estamentos a estratificação se dá em “termos de “honras” e estilos de vida peculiares aos grupos estamentais como tais” (WEBER, 1982, p. 224), reforça-se aí a ideia de que a mera condição econômica elevada não permite o acesso ao estrato superior da ordem social. E neste ponto surge um dos grandes problemas que acompanha a ordem estamental, o controle excessivo exercido pelo grupo dominante. Este grupo monopoliza a posse de bens, impede o livre desenvolvimento do mercado, atingindo assim, diretamente toda a ordem econômica da sociedade na qual se desenvolve, e freando a evolução da ordem social (WEBER, 2000), mantendo, dessa forma, o estamento dominante no poder. Segundo Campante (2003, p. 162): Uma sociedade estamental é uma "ordem de status" baseada em "prestígio social" para qualificar positiva ou negativamente os grupos sociais. Os grupos positivamente qualificados costumam manter um estilo de vida que desvalora o trabalho físico, o esforço premeditado e contínuo, o interesse lucrativo, e buscam, através de monopólios sociais e econômicos, a manutenção de um modus vivendi exclusivo, diferenciado, traduzido em privilégios de consumo. A razão de ser dos estamentos, portanto, é a desigualdade calcada na diferenciação da honra pessoal, no exclusivismo social e na ostentação do consumo (grifo do autor). Porém, esta ideia geral de estamentos, foi adaptada aos dias atuais e relacionada ao patrimonialismo. Assim, é possível definir a situação política do Brasil, que pode ainda ser considerado pré-moderno em determinados aspectos, já que não sofreu profundas alterações desde o período colonial como uma organização política estamental-patrimonialista (STRECK, 2012). Esta forma estamental-patrimonialista de organização política surgiu ainda no período colonial e foi reforçada pela vinda da Coroa ao país (FAORO, 2001). Obviamente que essa organização sofreu adaptações com o passar dos anos, contudo, em sua essência, permaneceram os mesmos valores excludentes. Na definição da organização política brasileira, Faoro trata os estamentos como algo uno, “o estamento”, um grupo de indivíduos, que possuem honrarias e, portanto, um status elevado na sociedade. E utilizando-se deste poder concedido pelo status positivo consegue alcançar meios de controlar o poder político, fundando, assim, uma ordem social estratificada e excludente. Além de dar origem a uma ordem política baseada na dominação patrimonial, que permite a este grupo conduzir a seu livre arbítrio os bens públicos, como se privados fossem, buscando apenas satisfação pessoal e a manutenção da ordem por eles instituída e que apenas a eles favorece (CAMPANTE, 2003). 18 No Brasil, as alterações sociais e políticas se deram de maneira adaptada, numa forma que permitisse ao estamento conservar, ou até mesmo expandir seu poder sobre as demais camadas da sociedade. Assim ocorreu com o capitalismo, sendo adotado apenas o capitalismo politicamente orientado, e não o capitalismo moderno que pressupõe racionalidade e liberdade, inclusive quanto às propriedades, o que obviamente não seria interessante para o estamento. Porque esse não vê os bens dos indivíduos como particulares, mas como bens públicos, simplesmente entregues a tutela do povo, que a qualquer momento podem ser tomados de volta de acordo com seu livre arbítrio (FAORO, 2001). O mesmo sistema de adaptações foi utilizado em relação ao liberalismo. Em decorrência da evolução histórica o liberalismo passou a ser o novo modelo ideal, no qual haveria plena liberdade para negociar, vender, enfim, para dispor da propriedade. No momento em que o liberalismo tornou-se sinônimo de progresso, o estamento vendo-se impelido a recepcioná-lo no país, o fez somente de forma superficial, absorvendo apenas a ideologia, que utilizou como justificativa para o sistema de poder e para maneira como orienta a sociedade numa determinada direção. E não no sentido de real alteração na estrutura política e econômica do país, pois a economia continuou sendo controlada pelo estamento que controla o poder estatal, e o conduz a situação que mais o beneficiar e mantiver sua dominação (FAORO, 1993). Diante disso, é possível verificar que cada “evolução” política, social ou econômica, que ocorreu no Brasil, foi alterada e adaptada pelo estamento que detém o poder, para que se adequasse a estrutura que o mantém. Dessa forma, se manteve por séculos uma estrutura antiquada, que explora e segmenta a sociedade de acordo com seus interesses, buscando apenas o progresso pessoal, e não o da nação como um todo. Nesse sentido, Faoro (2001, p. 824) caracteriza o estamento como um grupo de indivíduos que está acima das classes, que se renova, no entanto, sem alterar seus objetivos: Sobre a sociedade acima das classes, o aparelhamento político- uma camada social, comunitária embora nem sempre articulada, amorfa muitas vezes- impera, rege e governa, em nome próprio, num círculo impermeável de comando. Esta camada muda e se renova, mas não representa a nação, senão que, forçada pela lei do tempo, substitui moços por velhos, aptos por inaptos, num processo que cunha e nobilita os recém-vindos imprimindo-lhes os seus valores. Este estamento que controla o poder tem cunho centralizador, reduzindo drasticamente a participação social na gestão pública, pois encarrega-se da tomada das decisões que dizem respeito ao Estado. Em virtude disso, torna-se impossível a existência de um verdadeiro Estado de Direito, onde impera a democracia e as liberdadespolíticas, sociais e econômicas, pois o estamento dominante se mantém através do poder que provém da desigualdade e da 19 estratificação social que alcança por meio da dominação patrimonial (SILVEIRA, 2006). Não sendo, portanto, viável a adoção da democracia e do liberalismo político, sem que se desconstrua a ordem política e social vigente, e consequentemente, o estamento dominante. Diante do exposto, pode-se perceber que o Brasil possui uma organização social e política ambígua, que profere um discurso oposto ao que realmente ocorre na sociedade e no governo. Tais formas de organização, contudo, são essenciais ao estamento para que este se mantenha no poder, pois é exatamente a estratificação social, aliada a estrutura fechada do estamento governamental que possibilita o alto nível de controle social exercido sobre os cidadãos para que se mantenha a ordem vigente. Em função disso, torna-se imprescindível a compreensão deste fenômeno complexo que é o controle social. 2.2. Direito e outros meios de controle social A estratificação social, no Brasil, funciona como forma de controle social. Porém, para que se possa compreender melhor o significado disso, deve-se ter o entendimento do conceito de tal fenômeno. Controle social, segundo Trujillo Ferrari (1983, p. 448), é o "complexo processo para evitar o desvio social, no sentido de assegurar a continuidade de uma determinada sociedade”. Segundo Azevedo (2000, p. 91), trata-se do “conjunto de mecanismos tendentes a naturalizar e normalizar uma determinada ordem social, construída pelas forças sociais dominantes”. Assim, resta claro o motivo de a estratificação social reforçar o paradigma de desigualdade e exclusão da ordem social brasileira. O principal meio de controle social é a socialização do indivíduo, pois é desta que decorre a incorporação pelo mesmo das normas gerais de conduta que deverão ser seguidas para que se mantenha um bom convívio com os demais indivíduos e grupos sociais (VILA NOVA, 2004). Contudo, na vida em sociedade sempre haverá conflito, que, caso não resolvidos, poderão enfraquecer, ou até mesmo suprimir, a ordem social vigente. Por isso, cada sociedade desenvolve, de acordo com sua estrutura, formas de controle social, das quais aufere o efetivo controle dos demais indivíduos, mantendo assim, a ordem institucionalizada estável (MANNHEIM, 1971). Esse sistema envolve diversos tipos de controle, desde complexas estruturas, como é o sistema penal, até o simples controle exercido entre os próprios cidadãos. Ademais, a expressão controle social, pode ser utilizada para designar as normas e valores que regulam a conduta dos 20 indivíduos e grupos, ou ainda, para designar as formas pelas quais esses valores e normas são transmitidos a sociedade. Nesse sentido, Bottomore (1987, p. 199) esclarece que: A regulação do comportamento na sociedade quer por indivíduos ou por grupos, é empreendida de duas formas: pelo uso da força e pelo estabelecimento de valores e normas que podem ser aceitos mais ou menos integralmente pelos membros da sociedade como “normas de conduta” obrigatórias. A expressão “controle social” é geralmente usada pelos sociólogos para denominar esse segundo tipo de controle, onde o recurso a valores e normas resolve ou minora as tensões e conflitos entre os indivíduos e grupos, a fim de manter a solidariedade de algum grupo mais inclusivo. A expressão é também utilizada para se referir às disposições pelas quais os valores e normas são comunicados e instilados. Podemos, portanto, distinguir entre os tipos de controle social e as agências e meios que são os veículos do controle social (grifos do autor). Para que o controle social seja efetivo se faz necessária a existência de autoridade (MANNHEIM, 1971), seja ela baseada em valores tradicionais, carismáticos ou racionais- legais. Essa precisa se fazer presente, pois ordem social alguma consegue se impor somente por meio da força. Em virtude disso, os diversos meios de controle social alternam-se de modo a propiciar a permanência do grupo dominante no poder, assim, sempre que uma forma de controle não demonstra a eficácia desejada, logo é substituída por outra que atinja o objetivo almejado. A presença de grupos dominantes e dominados é indiscutível, pois em toda sociedade existem grupos mais próximos e grupos afastados do centro de poder (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2011). No Brasil, onde, segundo Faoro, o poder é controlado por um estamento, necessariamente o direcionamento do controle social que será exercido sobre os indivíduos se dará por meio de decisões desse grupo. Tal controle atingirá toda sociedade, porém, em níveis diferentes, a princípio contendo as grandes massas, para que a ordem institucionalizada se mantenha e, por fim, regulando a conduta do próprio estamento dominante. Esse controle não se dá apenas pelos meios institucionalizados e explícitos de controle social, e sim através de diversos meios informais (COHEN, 1980), que muitas vezes passam despercebidos pela sociedade, sendo vistos como simples métodos pedagógicos ou recreações. Com isso, percebe-se que o controle social é realizado pela sociedade como um todo, desde a família, a comunidade, o grupo de amigos, até as escolas e a mídia, não se detendo apenas aos meios institucionalizados. Como qualquer outra imposição feita pelo Estado de forma arbitrária, o controle social destituído de legitimação seria amplamente contestado pelos grupos sociais, em geral, os grupos mais afastados do centro de poder. Por essa razão o controle frequentemente vem acompanhado de uma ideologia que o legitima. Para Abbagnano (2007, p. 533), ideologia é: 21 Toda crença usada para o controle dos comportamentos coletivos, entendendo-se o termo crença (v.), em seu significado mais amplo, como noção de compromisso da conduta, que pode ter ou não validade objetiva. Entendido nesse sentido, o conceito de I. é puramente formal, uma vez que pode ser vista como I. tanto uma crença fundada em elementos objetivos quanto uma crença totalmente infundada, tanto uma crença realizável quanto uma crença irrealizável. O que transforma uma crença em I. não é sua validade ou falta de validade, mas unicamente sua capacidade de controlar os comportamentos em determinada situação (grifo do autor).3 Diante disso, resta claro que uma ideologia legitimadora é essencial à execução do controle social, e para que essa cumpra sua função, não necessariamente deve ser racional e inteligente, desde que obtenha um controle efetivo do comportamento dos indivíduos, ela pode ser totalmente anômala. Assim, é comum visualizar grupos dominantes que adotam ideologias, deturpando-as e retirando dessas apenas as partes que lhes é conveniente e aplicando isso na sociedade de forma absurda. Como ocorreu com o liberalismo, que segundo Faoro (1993), foi recepcionado apenas em partes pelo Estado, em sua essência permanecendo estamental-patrimonialista. Como já referido anteriormente, existem muitas formas de controle social, e essas se dividem em controle social difuso e controle social institucionalizado. O controle difuso é aquele que se dá pela própria sociedade, pelas escolas, a mídia, etc. Já o controle institucionalizado subdivide-se em não punitivo e punitivo, podendo este último, ser formalmente punitivo, ou formalmente não punitivo, o que diferencia um do outro é o discurso que profere (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2011). Esses meios de controle se utilizam de sanções, sejam elas positivas ou negativas, como uma forma de moldar o comportamento dos indivíduos (COHEN,1980). Contudo, como pontua Vila Nova (2004, p. 113): Punições e recompensas atuam sobre o comportamento do individuo na medida em que são dotados de um significado subjetivo para ele. Punições e recompensas somente possuem um sentido para os indivíduos quando partem de gruposcom os quais eles se identifiquem e dos quais dependam para satisfazer a necessidade de aceitação social. Diante disso, resta claro que as sanções aplicadas pelo grupo social no qual o indivíduo está inserido são as únicas capazes de fazê-lo interiorizar os valores e normas que deve seguir, pois possuem para esse um significado. E já que a simples ameaça de sanção não tem o condão de impedir totalmente a violação às normas sociais cada grupo social terá suas respectivas 3 O autor utiliza a abreviatura I. para designar ideologia. 22 sanções, que serão aplicadas aos transgressores (CHINOY, 2006). Tais sanções podem ser apenas a aprovação ou desaprovação de determinada atitude, como ocorre, por exemplo, na família ou grupo de amigos, até as penas de multa e prisão, como ocorre nos casos de transgressão à lei penal. As sanções positivas, como por exemplo, elogios, encorajamento, recompensas simbólicas ou concretas, têm a função de promover no indivíduo uma maior socialização, elas possibilitam, muita vezes, de maneira mais eficaz, que as sanções negativas, a interiorização dos valores e normas sociais, fazendo com que o indivíduo haja de acordo com a ordem institucionalizada de forma espontânea (LAKATOS, 2011). Já as sanções negativas, que em geral são mais perceptíveis que as positivas, cabem aos que desafiam as normas sociais. Pois, além de punirem o transgressor, reforçam a submissão dos demais indivíduos, desestimulando-os à pratica de ato semelhante (CHINOY, 2006). Diante de todo o exposto, percebe-se que o controle social se dá por diversos meios, sejam eles institucionalizados ou difusos, que aplicam sanções positivas ou negativas, com o intuito de modular o comportamento dos indivíduos. Mantendo, assim, a ordem social vigente, mesmo quando essa beneficia de maneira tão díspar os grupos sociais, como ocorre no Brasil. Com base nisso, cabe agora compreender de modo mais aprofundado o papel do direito nesse sistema de controles. O direito pode ser conceituado como o "conjunto de normas e regras impostas coercitivamente pelo Estado como forma de pautar o viver em sociedade" (MAIA, 2010, p. 4). Trata-se de umas das formas institucionalizadas do controle social, que possui uma parte não punitiva, como é o caso do direito privado, e uma parte punitiva, no caso do direito penal (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2011). O Direito como forma de controle social, via de regra, aplica mais sanções negativas do que positivas e, basicamente, isso se deve ao fato de caber ao direito o controle de fatos que ferem os interesses do grupo dominante, atingindo assim, a ordem social estabelecida. Outro ponto relevante é o fato de o Direito se aplicar, em geral, quando as demais instâncias falharem, o que não significa, necessariamente, que esse é a forma de controle mais importante. Sendo, no máximo, a mais visível. Com relação ao tema dispõe Machado Neto (1980, p. 147) que “como instrumento de socialização em última instância, o direito cumpre um papel conservador do status quo, também servindo a legitimar o poder político e a favorecer o seu domínio sobre a opinião pública”. 23 O direito, como controle da sociedade, em determinados momentos não se mostra completamente dissociado das demais formas de controle. Portanto, cabível se faz relacionar esse e outras formas de controle como a religião, a moral, os costumes etc. Iniciando pela religião, importante forma de controle social nos séculos passados e que ainda mantém parte de seu poder na atualidade ou até mesmo se funde ao direito em casos extremos, a exemplo do que ocorre com parte da comunidade islâmica (BOTTOMORE, 1987). Existem certos pontos convergentes entre a religião e o direito, como por exemplo, a necessidade de se respeitar determinados ritos, a presença de regras estabelecidas, ambos possuem uma ligação com a moral, a religião, contudo, de uma forma muito mais profunda. Porém, o direito possui características avessas à religião, como ocorre com a alteridade e a segurança, pois na religião a relação primordial se dá com a divindade e não com o outro e pelo fato de no direito a segurança advir da organização e do estabelecimento de regras, objetivo considerado inatingível pela religião (LEGAZ Y LACAMBRA, 1961). Ademais, o direito, logicamente, atinge um número muito maior de pessoas do que a religião, porque essa exerce poder apenas sobre seus seguidores, diferentemente da lei que, como mencionado anteriormente, é genérica e age sobre todos os grupos sociais. Quanto a moral, pode-se dizer que é uma forma de controle social de alta abrangência, pois cada grupo social possui suas regras morais estabelecidas. A maior dificuldade em sua compreensão se deve, exatamente, ao fato de existir grande número de regras morais, muitas vezes divergentes, que podem ser encontradas em uma única sociedade (BOTTOMORE, 1987). A moral tem uma ligação direta com o direito, pois muitas vezes, as leis tem sua base em regras morais, obviamente que nem todas as regras morais tornar-se-ão leis (FERRAZ JUNIOR, 2007), ou que as que servirem de base para leis representarão a moral dominante na sociedade. Até porque, dificilmente é possível definir as crenças morais dominantes numa sociedade onde coexistem um sem número de regras distintas. Ademais, cabível aqui a ideia de manipulação de ideologias, citada anteriormente, que apoiada na dificuldade de se definir a ideia moral dominante, o estamento que detém o poder busca a crença que mais lhe favorece, utilizando-a durante a criação das leis e também os diversos campos do Poder Judiciário. Entretanto, não podemos considerar o direito como simples extensão da moral, como já verificado, nem todas as leis são baseadas na moral, e muitas regras morais, não poderiam tornar-se leis porque perderiam seu caráter moral em razão da imposição. Além disso, o direito possui maior precisão em suas regras e sanções, gerando uma estabilidade social que jamais poderia ser alcançada pelas regras morais (BOTTOMORE, 1987). 24 Com relação aos costumes, que são um tipo menos formal de controle social, em razão de serem imprecisos quanto às regras que devem ser seguidas e as sanções que podem ser aplicadas (BOTTOMORE, 1987), deve-se compreender que, em geral, a conformidade com esses se dá em função da reciprocidade. Conformidade, segundo Lakatos (2011, p. 226), é "a ação orientada para uma norma (ou normas) especial, compreendida dentro dos limites de comportamento por ela permitido ou delimitado". Já reciprocidade é basicamente a dívida social que um indivíduo tem com os demais, é o cumprimento das obrigações que as pessoas têm umas com as outras, ou ainda, uma troca recíproca de benefícios (CHINOY, 2006). Portanto, os costumes se perpetuam por meio da socialização do indivíduo e da reciprocidade que há em suas relações, decorrente da possibilidade de aplicação de sanções, que poderão ser positivas ou negativas, de acordo com a presença, ou não, dessa reciprocidade, pelos demais grupos sociais dos quais se faz parte. Entretanto, apesar da interferência que os costumes exercem nas relações sociais comuns, seu poder se reduz drasticamente quando se trata de comportamentos que necessitam ser controlados de forma mais rigorosa, já que existem diversos costumes antagônicos na sociedade (BOTTOMORE, 1987). Nesses casos cabe, na maior parte das vezes, ao direito exercer seu controle, em razão de possuir uma organização sistemática e precisa, diferenciando- se assim, dos costumes. A escola, não a educação de uma forma geral, e sim a instituição escola, apesar de não ser um dos meios institucionalizados de controle da sociedade, exerce um poder de controle imenso. Além de socializar os indivíduos, influindo em seus aspectos éticos, morais e culturais, pode muitas vezes definir o grupo socialdo qual esses indivíduos irão fazer parte, já que em razão do nível de instrução se dá frequentemente a exclusão social (CHINOY, 2006). Relevante também frisar que esta exclusão social pode iniciar-se dentro do estabelecimento de ensino, por outras razões, que não o nível de instrução, mas que, entretanto acabarão exercendo influência nesse quesito, devido à própria estrutura educacional (CHINOY, 2006). Em geral, a estrutura educacional é definida de acordo com os interesses dos grupos dominantes. Portanto, a exclusão social pode, muitas vezes, ser definida ou reforçada pela escola que, em alguns países, concede o saber somente aos selecionados pelo poder (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2011). Quanto à educação, da mesma forma que o direito, é possível considerá-la altamente organizada e executora de forte controle sobre a sociedade. Entretanto, a grande diferença entre 25 eles é que a educação é um meio difuso de controle, que em geral nem mesmo é vista desta forma por grande parte da sociedade. Já o direito é um meio institucionalizado de controle, que pode possuir um discurso punitivo ou não punitivo. Contudo, ambos irão agir na sociedade de forma extremamente semelhante, possuindo o poder de destinar, através do controle que exercem, determinados indivíduos a marginalização e exclusão social enquanto outros serão selecionados a fazer parte do grupo dominante (BARATTA, 2002). Porém, esse “dever-ser” dos meios de controle social explicitado até o momento, não se efetiva totalmente, pois além dessas funções os meios de controle social utilizam sua influência para manutenção dos status quo. É através da ação dos meios de controle, inclusive o direito, que se mantém uma determinada ordem social (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2011). Pode-se perceber que o direito é um meio institucionalizado de controle social, que possui como características a segurança e a alteridade. Além de atingir um grande número de indivíduos, de todos os grupos sociais, em razão de sua organização sistemática e precisa, o direito é capaz de exercer um controle mais forte e rigoroso, gerando uma estabilidade social muitas vezes inalcançável por meio das demais espécies de controle. Pode-se perceber também, que o direito é apenas uma parte ínfima do sistema de controle social que interfere na sociedade, sistema que se inicia dentro da própria família e escola, indo até sua instância mais perceptível, contudo, não a mais importante, o direito penal. No controle exercido especificamente por esta área do direito, o penal, se vê reforçada a ideia de ultima ratio. Ao direito penal, teoricamente, só deveriam chegar os casos extremos de desvio, os quais as demais instâncias, mais complacentes com as falhas na socialização, não puderam controlar e conformar (MACHADO NETO, 1980). Quanto a isso dispõe Queiroz (2014, p. 61) que: O ordenamento penal não é, pois, o começo da socialização, mas a sua culminação; não é todo controle social, nem sequer é sua parte mais importante; é, mais exatamente, a parte visível de um iceberg, em que o que não se vê seja talvez o que mais importa, mesmo porque a norma penal não cria valores, nem constitui um sistema autônomo de motivação de comportamento humano. Apesar de o grupo dominante utilizar-se do direito como um todo para reforçar sua dominação, é por meio do direito penal que isso se dá na forma de seletividade e marginalização dos grupos dominados. Em razão da legitimidade conferida pela legalidade, o estamento dominante tem a possibilidade de fazer uso de todo o sistema penal a seu favor, e ainda assim, 26 transparecer que busca favorecer a todos igualmente e que os interesses defendidos são da sociedade em geral (SCURO NETO, 2010). Essa aparente legitimidade torna possível ao estamento agir em todo sistema penal, intervindo desde a criação da lei, até a aplicação da norma de forma a manter seus benefícios, controlar os dominados e preservar a ordem social excludente vigente. 2.3 Estruturação do sistema penal brasileiro A ideia de sistema penal como forma de controle social institucionalizado e punitivo, requer agora certas complementações para que se possa compreendê-lo melhor. Tal entendimento é muito amplo, abrangendo não só as agências do sistema penal, as quais serão analisadas a seguir, mas também ações que a princípio não se costuma relacionar ao sistema, mas que, contudo, são uma parte importante desse, como ocorre com as ações controladoras e repressoras. Por controladoras e repressoras, entende-se as ações que buscam sancionar condutas, estejam elas ou não, previstas na lei penal, chegando a sancionar ações típicas de determinadas parcelas sociais em razão da seletividade que permeia a atividade filtradora do sistema penal. Cabível ainda, colocar nesse grupo as ações ilícitas utilizadas pelo sistema para o controle dos setores sociais marginalizados e até mesmo as que se utilizam de discursos terapêuticos e assistenciais para encobrir seu caráter punitivo (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2011). Entretanto, o foco desta parte do estudo é o sistema penal em um sentido mais estrito, que busca compreender cada uma de suas agências políticas e a suposta crise em que se encontram. Inicialmente, cabe entender o que é um sistema, para Boudon [et al.] (1990, p. 225): [...] a noção de sistema serve para designar um objecto complexo formado por elementos distintos ligados entre si quer por relações de interacção quer por relações de interdependência. Tais elementos são considerados como subsistemas, ou seja, pertencem à mesma categoria que o conjunto de que fazem parte. O sistema, sendo aberto, está por outro lado situado num meio com o qual está em interacção (caso contrário, trata-se de um sistema fechado). A ideia essencial é que o sistema constitui um todo de um grau de complexidade superior ao das suas partes, isto é, que tem propriedades próprias. Assim, sistema pode ser visto como um conjunto de unidades que interagem ou dependem umas das outras para poder atingir a finalidade estipulada por um princípio geral comum a todos. Para que se caracterize um sistema é necessário o preenchimento de certos pressupostos, sendo o primeiro deles, que as ações de um dos elementos produzam efeitos nos 27 demais. Outro pressuposto é o de que os comportamentos dos elementos são interdependentes, e por fim, a ausência de autonomia dos efeitos de um dos elementos nos demais elementos do sistema (DOTTI, 2004). Com base nessa ideia genérica de sistema, pode-se entender o sistema penal como a reunião de elementos que, apesar de autônomos, possuem um determinado grau de interdependência entre si. Esses elementos podem ser considerados como subsistemas, nos quais estão compreendidos o legislativo, o policial, o judicial e o executivo, que abrangem praticamente todas as áreas do direito penal no Brasil, desde o momento da criação da lei penal até a execução da pena aplicada pelo judiciário. Nesse sentido tem-se o conceito de sistema penal dado por Batista (2004, p. 103-104), segundo o qual trata-se de um “conjunto coordenado de agências políticas - legislativas, judiciárias, policiais, penitenciárias e [...] de comunicação social - que programam a criminalização primária e promovem a secundária”. O sistema penal, como visto, possui diversos elementos que o compõem. Esses elementos podem atuar de modo simultâneo, não cabendo uma etapa específica a cada um. Claro que, em geral, um elemento irá predominar em uma etapa, contudo, isso não significa que não possa atuar nas demais (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2011). Um exemplo disso são as prisões cautelares, onde o acusado fica sob a custódia do executivo, apesar de se estar ainda na fase policial ou judicial, outro exemplo se encontra na necessidade de autorização judicial para que se adotem certos procedimentos pela polícia, como buscas, interceptações telefônicas,etc. Portanto, é preciso compreender que a criminalização possui sim etapas, mas elas não irão pertencer a uma única agência política. Na verdade, elas serão resultado de uma interação desuniforme entre estas agências, tendo em cada etapa a simples predominância, ao invés da supremacia de uma delas. Para que seja possível entender o sistema é necessário compreender antes, como funciona cada uma de suas agências, como operam e o que cabe a cada um desses elementos do sistema penal. Iniciando pelo legislativo, a parte do sistema onde se originam as leis penais, que posteriormente serão a base para as demais etapas da criminalização (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2011). É concedido ao legislador pela Constituição Federal o poder de definição dos bens jurídicos que serão tutelados pelo direito penal, para Bittencourt (2008, p. 7) bem jurídico é “todo valor da vida humana protegido pelo Direito, [...] são bens vitais da sociedade e do indivíduo, que merecem proteção legal exatamente em razão de sua significação social”. 28 É o legislador quem irá decidir, não apenas qual bem jurídico será protegido pela lei, mas também de que forma se dará essa proteção, qual a espécie de pena será aplicada em caso de transgressão à norma, privativa de liberdade, restritiva de direitos ou apenas pena de multa, qual será o tempo desta pena, estipulando tempo mínimo e máximo que servirá de parâmetro no momento do cálculo dessa e também para definição do regime aplicável, da possibilidade de interceptação telefônica, de transação penal e outros procedimentos que serão levados a cabo pelos outros elementos do sistema. Com relação à norma produzida pelo legislador, essa será dirigida não apenas aos cidadãos, mas também a outro elemento do sistema penal, o judiciário. Nesse sentido prevê Salvador Netto (2008, p. 76): [...] ao mesmo tempo em que se dirigem ao cidadão para transmitir, informar e persuadi-lo socialmente a respeito da conduta proibida, também se voltam ao julgador, determinando que este último imponha a sanção em face do descumprimento da norma anterior. A primeira delas, voltada aos cidadãos em geral e capa de comunicar- lhes o comportamento proscrito, é denominada norma de conduta, comando jurídico principal ou, mais comumente, norma primária e a segunda, norma de sanção, comando jurídico secundário ou norma secundária. Ambas estão enunciadas descritivamente, porém exercem função prescritiva para os seus respectivos interlocutores. Formalmente, o legislativo é o elemento do sistema penal que possui maior parcela de liberdade, já que é nele que se define o que será aplicado pelos demais elementos do sistema (DIAS, 1999). Contudo, é preciso sempre levar em conta que essa liberdade não é ilimitada, o legislador sempre deve se ater aos limites impostos pela Constituição Federal, que lhe concede o poder, mas de forma restrita às suas garantias. Não podendo simplesmente o legislador criar qualquer norma, e caso consiga instituir uma norma contrária a Constituição, ainda haverá para contê-la todos os meios de controle de constitucionalidade (LIMA, 2012). Além das restrições impostas pela Constituição Federal, o legislador ainda sofre influência da sociedade, que pode desempenhar papel fundamental na criação das leis. A pressão exercida pela sociedade, logicamente não possui o caráter protetivo que possui a limitação dada pela Constituição Federal, mas, deve ser considerada, pois atua fortemente sobre a produção legislativa. Um dos motivos dessa influência é o fato de o legislador ser eleito, ficando assim propenso as ingerências da sociedade de uma forma muito mais robusta que nas outras esferas do sistema penal. Em razão disso, pode-se perceber na legislação pátria leis dispensáveis e em alguns casos até mesmo ilegítimas. 29 Portanto, o elemento legislativo do sistema penal, é aquele no qual são produzidas as leis que permearão todos os demais elementos do sistema, e também onde se dá a primeira etapa do processo de criminalização. Com relação ao elemento policial, “o símbolo mais visível do sistema formal de controle” (ANDRADE; DIAS, 1997, p. 443), é a ele que cabe, de um modo geral, a preservação da ordem pública, o que envolve um serie de obrigações, como a investigação das infrações à lei penal, o patrulhamento, o recebimento das delações. Segundo Barbosa (2010, p. 9): [...] à Polícia como instituição do Estado Moderno foi conferida, basicamente, desde seu nascimento e qualquer que seja sua forma de organização e inserção institucional, duas tarefas diametralmente opostas: a função de prevenir delitos perseguíveis de ofício pelo Estado; e a função de investigar os ilícitos penais já cometidos e auxiliar os funcionários encarregados da persecução penal em juízo na formação da culpa. A primeira claramente executiva de prevenção e defesa social. A segunda, de reação ao fato punível, em cumprimento a qual trabalha em auxílio ao sistema de justiça penal. Assim, será de responsabilidade do segmento policial, em razão de ser parte do Poder Executivo, manter a ordem social vigente e em sua máxima efetividade, além de possuir sua óbvia função na criminalização como instrumento do sistema penal. Com o intuito de executar suas funções deve a polícia se balizar na Constituição Federal. Nesse sentido prevê Goldstein (2003, p. 28) que “a policia não está apenas obrigada a exercer sua limitada autoridade em conformidade com a Constituição e, por meios legais, aplicar suas restrições: também está obrigada a observar que outros não infrinjam as liberdades garantidas constitucionalmente”. Portanto, é dever da policia agir de acordo com a Constituição Federal e impedir que os outros ajam em desacordo com essa. Com base no exposto, pode-se compreender o segmento policial, como parte do Poder Executivo que tem a capacidade de dar início aos procedimentos de criminalização, e que também age diretamente em outras fases desse processo, seja essa fase judicial ou executória, em razão de suas múltiplas funções. Antes de partir para o segmento judicial propriamente dito do sistema penal, interessante se faz avaliar o Ministério Público, pois atualmente esse possui total autonomia com relação aos poderes estatais, não podendo ser analisado juntamente com um deles. O Ministério Público não pode ser comparado a nenhum outro órgão do Poder Público, porque possui características que o distinguem de todos os demais, o que torna o Ministério público tão singular é a reunião de “autonomia, instrumentos de ação, discricionariedade e amplo leque de atribuições” (KERCHE, 2007, p. 260). 30 Tais características foram atribuídas ao Ministério Público pela Constituição Federal de 1988, no período anterior esse fazia parte do Poder Executivo, o que o submetia as decisões políticas, nesse sentido Sadek (2010, p. 107-108) afirma que: O Ministério Público pode ser considerado, do ponto de vista institucional, a maior novidade trazida pela Constituição de 1988, mesmo quando comparado aos Poderes de Estado ou outras instituições como o Exército Brasileiro ou o Banco Central. Ou seja, mesmo com modificações, as atribuições básicas dessas instituições e Poderes foram mantidas. De fato, o Legislativo continuou bicameral; o Executivo manteve suas atribuições administrativas e preservou grandes poderes para legislar; o Banco Central permaneceu ligado ao Poder Executivo. Quanto ao Ministério Público, entretanto, há um claro ponto de inflexão. Antes de 1988, tratava-se de uma instituição ligada ao Executivo, responsável principalmente pela ação penal pública junto aos tribunais. Após a Constituição de 1988, o Ministério Público passa a ser independente de todos os Poderes do Estado e detentor de atribuições extremamente reforçadas de representante da sociedade. Essa autonomia foi concedida para que o órgão não fosse submetido às ingerênciasdos demais poderes do Estado, possibilitando que ele desempenhe as funções previstas para ele na Constituição Federal de modo efetivo, inclusive as que vão contra os interesses dos poderes estatais (KERCHE, 2007). Logicamente que diante da autonomia desse órgão, ele também possui funções específicas. Ao Ministério Público cabem às funções de promover as denúncias, dando início ao processo judicial, acusar, nos casos de ação penal pública, e também de fiscalizar todo o decorrer dos procedimentos judiciais. . Assim, se é o Ministério público possui a capacidade de fazer as denúncias, certamente que terá alto poder seletivo, já que a ele cabe decidir quais delações ou investigações tornar-se- ão objeto de apreciação pelo judiciário e quais serão arquivadas. Obviamente que não se trata de uma simples faculdade a realização das denúncias, ou que exista um poder discricionário ilimitado por parte do Ministério Público. Como os demais segmentos do sistema penal, esse órgão necessariamente precisa se balizar na Constituição Federal, que prevê além de suas funções, suas limitações. Ademais, a legislação pátria prevê possibilidades de se contornar a inércia do Ministério Público. Um bom exemplo disso é a ação penal privada subsidiária da pública, que concede legitimidade ao próprio ofendido para propor a ação, que a princípio seria de responsabilidade do Ministério Público quando esse permanece inerte. Com relação ao elemento judiciário do sistema penal, é onde ocorre o processo que absolverá o réu ou o levará a fase executória, tudo através de uma série de procedimentos previstos na legislação pátria. Primeiramente deve-se saber que esse elemento possui duas 31 espécies de independência, uma com relação aos demais poderes estatais, e outra com relação as suas próprias instâncias, não havendo uma hierarquia entre essas (COMPARATO, 2004). Portanto, além de ser independente dos demais poderes, no Judiciário não há subordinação entre as diversas instâncias. O Judiciário possui características exclusivas que o diferem dos demais poderes estatais, as principais segundo Lessa (1915, p. 1) são as seguintes: [...] as suas funções são as de um árbitro; para que possa desempenhá-las, importa que surja um pleito, uma contenda; [...] só se pronuncia acerca de casos particulares, e não em abstrato sobre normas, ou preceitos jurídicos, e ainda menos sobre princípios; [...] não tem iniciativa, agindo - quando provocado, o que é mais uma consequência da necessidade de uma contestação para poder funcionar. Quanto às funções do Judiciário, segundo parte da doutrina, são cinco. A primeira delas é aplicar contenciosamente a lei aos casos concretos, assim, cabe ao Judiciário identificar a lei aplicável aos casos que forem levados a seu conhecimento. A próxima trata do controle dos demais poderes, sendo dever do Judiciário controlar os poderes Executivo e Legislativo, refreando os excessos praticados por esses no uso de suas prerrogativas. Cabe ao Judiciário também realizar seu autogoverno, pois em razão de sua independência administrativa, financeira e funcional este não necessita de qualquer autorização para praticar os atos que visam sua organização. As duas últimas funções são concretizar os direitos fundamentais e garantir o Estado Democrático, não possuem unanimidade na doutrina, contudo, são plenamente cabíveis na fase atual do direito, onde se preza pelas garantias fundamentais, o respeito a Constituições e aos Direitos Humanos (FACHIN, 2009). Dessa forma, é possível concluir que a autonomia do Poder Judiciário e suas funções específicas concedem ao elemento judiciário do sistema penal legitimidade para desenvolver um complexo de procedimentos que podem gerar a absolvição ou a condenação do réu, que neste caso, fixará a esse, consequentemente, a passagem pelo último elemento do sistema penal - o executivo. O executivo, último elemento do sistema penal, é alcançado após a atuação de todas as demais agências que fazem parte do complexo do sistema. É nesse elemento do sistema que ocorre o cumprimento da pena aplicada pelo elemento judicial, é no executivo que se ultimam os atos de todo o sistema, pois somente após o regular processo realizado por todos os elementos deste sistema – legislativo, policial e judicial- que se pode chegar a pena, e consequentemente, seu cumprimento. 32 O elemento executivo do sistema penal envolve uma atividade complexa, da qual participam os Poderes Estatais Executivo e Judiciário, nesse sentido Grinover (1987. p.7) dispõe que: [...] a execução penal é atividade complexa, que se desenvolve, entrosadamente, nos planos jurisdicional e administrativo. Nem se desconhece que dessa atividade participam dois Poderes estaduais: o Judiciário e o Executivo, por intermédio, respectivamente, dos órgãos jurisdicionais e dos estabelecimentos penais. Diante disso, se discute se a natureza jurídica da execução é jurisdicional ou administrativa. Para se chegar a tal definição é preciso levar em conta que apesar de envolver ampla atividade administrativa no que diz respeito aos estabelecimentos onde se dá o cumprimento das execuções, a supervisão desses se dá por um juiz (MARCÃO, 2012). Ademais, impossível dissociar a execução do direito penal e processual penal, já que ela só ocorre em razão de condenação proveniente do Poder Judiciário e deve em seu cumprimento obedecer aos princípios e garantias aplicáveis a esses ramos do direito (NUCCI, 2014). Assim, pode-se concluir que a natureza jurídica da execução é jurisdicional, e não administrativa. Apesar de sua natureza jurisdicional, o elemento executivo possui autonomia. Como visto anteriormente, ele se vincula aos princípios e garantias do direito penal e processual penal, contudo, isso não extingue sua autonomia, já que também possui institutos próprios e específicos desse elemento (NUCCI, 2014). Diante do exposto, o elemento executivo pode ser visto como elemento autônomo e de natureza jurídica jurisdicional, que efetiva o cumprimento da punição aplicada pelo Estado por meio do elemento judiciário do sistema penal. Compreendendo assim as funções básicas de cada elemento do sistema, precisa-se destacar que a uniformidade necessária para que todos eles funcionem em sintonia e alcancem seu objetivo, que consiste na “proteção de bens jurídicos fundamentais ao indivíduo e à comunidade” (DOTTI, 2004, p. 3), basicamente não existe. Cada elemento construiu sua própria lógica, dando origem a uma autonomia extrema que os distancia da ideia de um sistema (COPETTI, 2000), no qual há integração entre os elementos e onde se desenvolvem atividades orientadas para um fim comum, de acordo com um principio geral comum. No mesmo sentido, Grubba (2012, p. 87) prevê que cada instância do sistema age de forma a proteger seus próprios interesses: 33 [...] esse sistema punitivo – sistema penal – é o conjunto das agências (políticas, judiciais, policiais, etc) que, em suas relações recíprocas e com o exterior, operam e convergem na produção de criminalização primária e secundária. Essas agências não atuam de maneira coordenada, mas por interesses próprios. Assim, por mais que, ao fim, o resultado do funcionamento possa parecer harmonioso, trata-se apenas de referencia discursiva em virtude das funções manifestas. Assim, o sistema penal, da forma em que se encontra hoje, não caracteriza os pressupostos de um verdadeiro sistema, pois reduziu-se a interdependência entre esses elementos o que os caracteriza como sistema, subsistindo apenas “subsistemas dotados de racionalidade, de métodos, de objetivos e de valores próprios- razão de acentuada dissintonia na actuação de cada um” (ANDRADE; DIAS, 1997, p. 381). Tal desintegração reduz drasticamente a eficiência do sistema penal, já que inexiste coesão entre os subsistemas, a realização de um objetivo
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