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MON IQUE BORIE • MARTINE DE ROUGEMONT • JA CQ U ES SCHERER
ESTÉTICA TEATRAL
TEXTOS DE PLATÃO A BR ECHT
Trad ução de
HELENA BARBAS
SER V I<; O DE ED UCAÇ',';'O
FUN DAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN I LI SBOA
T rad ução do or iginal francês inti tu lado :
Esth étique Théâtrale
Te xtos de Platon à Brcch t
© 1982 C.D.U. et SEDES
Paris
Reservados lodo s os dire itos de acordo co m a lei
Edição da
FUNDAÇÃO CALOU STE GULBENKIAN
Av. de Berna - Lisboa
1996
7
NOTA À EDIÇÃO PORTUG UESA
Esta antolog ia f oi organizada essencialmente em fu nção dos
interess es dos a lunos e leitores fran ceses . Este asp ecto é mais evi-
dente no caso de alguns textos (principalmente do século XI'!!) que
s áo reproduzidos com grafia e sintax e de época. Dado que em p or-
tu guês n ão f aria sen tido esse tipo d e anacronismo . e va lo riza ndo a
leg ibilidade , a redacção fo i actua lizada tentando não ofe nder de -
masiado o es tilo. Procurou-se tamb ém, sem p re que necessário . / 10
caso dos textos de orig em inglesa e alemã . faze r a co mpara ção CO /l1
o original ou re corre r a outras tradu ções já existe ntes em portugu ês
- que aparecem ref eridas após as indicações bibliogr áficas do ori-
gi naI francês.
No que respeita às notas. adoptaram -se as seguintes siglas :
NA .. quando pertence a o autor do exc erto : N. F.. quando é introdu-
zida pelos antologiado rcs franceses , e N .T. . para as notas da tradu-
ção p ortuguesa.
Depósito Legal n.o 92 :\h 1l9S
9
NOTA PRÉVIA
Esta obra não é um tratado. Apresenta-se antes sob a forma
mai s modesta de uma colect ân ea. Os textos, recolhido s em todas as
civ ilizações e em todas as épocas que nos legaram propostas úte is
so bre as questões do teatro , foram reunidos aquando de um curso
qu e decorreu por vá rios an os no In stituto de Es tudos Teatrais da an-
tiga Sorbonne , e depois, mai s tarde , na Uni vers idad e de Paris-Hl .
Pareceu-nos que a form a ção h istórica, técnica e práti ca dos nossos
a lunos deveria se r comple tada com uma reflexão sobre os grandes
problemas do teatro, tal como foram vividos e exp ost os por criado -
res, filósofos o u escritores. Por outro lad o, não exi sti a , em francês,
uma recolha de es critos fund amentais qu e permiti sse es te tipo de re-
flexão, e sentimos necessidad e de preench er essa lacuna .
Na verdad e , os no ssos textos levantam mais problemas do qu e
oferecem soluções. Se, para quem qu er qu e se interesse pelo teat ro ,
cons t itue m uma es pécie de manual do estuda nte, a Sebe nta do Pro -
fesso r, como se di zia antigamente , que dá re spo st as às questões
co locadas , ainda es tá por escrever. Caso qui sesse ser com pleto, at in-
g iria dimensões gigantescas, e pro vavelmente nunca o teríamos es -
c rito . Pensamos que é mais fecundo dei xar o leitor responder por si
próprio aos desafios que lhe apresentam, dado a sua riqueza e densi-
dad e, os textos qu e reunimos.
\0
Também não é fácil definir com rigor o próprio domínio a qu e
os textos co nt inuamente fazem alusão . Pode mesmo, inclusiv e , se r
contes tada a id éia de uma es tética teatral. As suas antigas pret en-
sõe s normativas estão hoje largamente desacreditadas, e até a sua
própria unidade pode se r posta em ca usa . A nossa é poca já não
ac red ita mais numa forma única de bel eza tal como proclamada ,
co m conte údos ad emais d iferentes, pel os impe rial ismos c ultura is
so frive lme nte ing énuos. Mas tamb ém não ac re d ita qu e seja possível
recu sar um sentido a um co njunto, em qu e cad a um dos elemento s
parece arbitrário mas c uja co mpos ição , não o bstan te , adq uire neces-
sa riame nte uma estrutura estética. Co nta nto que não seja separada,
nem da s di versas técni cas , nem da hi st ória, n em da moral, ne m
mesmo da metafísica, a es tética pode o fe re ce r-se corno o lugar co-
mum em que é possível si tua r as declara ções válidas so bre a essên-
c ia do fenómen o teatral. É pelo menos assi m que a e ntendemos.
A nossa apresentação dos textos segue e m ge ra l a ordem c ro -
nológica da sua difusão pública. Reduzimos as informações hi st óri-
cas e as notas ao mínimo indi spen sável. A nossa escolha foi feita
e m fun ção do alca nce dos probl emas gera is que cada auto r coloca,
ma s também da influên ci a exe rcida pel as ideias ve icu ladas sobre o
desenvolvimento do teat ro . No caso de a lg uns textos que não tiv e-
ram uma reedição moderna, optamos por não actual izar a grafia e a
pontuação para co nse rvar o se u sabor antigo . Trata -se apenas de ex -
ce rtos, mas qu isemos qu e fosse m, tanto quanto possí vel , de tama-
nh o substanc ial, por moti vos igualmente pedagógi cos e práti cos; na
altura, tam bém tivemos em cons ideração a dificuldade de e ncon tra r
algumas das obras nas livrari as. Demos a cada passagem um títul o
que procura sig n ifi ca r o se u esse ncia l. C ada text o é acom panha do
por uma referência preci sa , e indicações que permitem recolocá -Io
rapidamente no seu contexto; em tal c irc un stânc ia, mencionamos
uma edição mod erna de fác il consulta .
11
I - PLATÃO: A R EPÚBLICA (e ntre 389 e 370 a.c.)
Nest e lon go diálogo, que a tra dição divide em dez livros , Pla-
tão (429-34 7 a .Ci) apresenta o seu m estre, Sócrates , e 11m grupo d e
a tenienses a tentar definir a noção de j ustiça . Para aí chegarem , é-
-lh es necessário recorrer ao paradigma de uma cidáde ideal, onde a
justiça poderia desenvolver as suas características e efe itos . A forma
did áctica do d iá logo p erm ite 11m encadeamento rigoroso e su bt il
dos argumentos.
As passagen s que citamos apresentam A di manto, o irmão se-
cundog énito de PIarão , co mo interlo cutor de Sócrates . Esta beleceu-
-se que a Cidade preci sará de guardiã e s. quer di zer, de uma eli te
gue rreira e administrativa. Qual deve ser a forma ção desses gu ar-
diôes? A s artes imitativas terão aí lu gar? E primeiro que tudo , qual
é a natureza dessas artes ?
I . N arra tiva e teatro
- O ra d iz-me: sa bes o começo da Il iada , qu ando o poeta d iz
que Crises implorou a Agam émnon que lhe libertasse a filha, m as
es te lhe foi hostil, e aquele, uma ve z que não alcançou o seu fim,
fe z uma invoca ção à div indade contra os Aq ue us?
- Se i, s im .
- Sabes , portanto, qu e até es te ponto da e po peia
E di rigiu súp licas a todos os A q uc us,
especialmente aos do is A tri das, com andantes dos po vos ,'
é o próprio poeta que fa la e não tent a vo lta r o nosso pensamento
para outro lado, como se fosse outra pessoa que di sse sse , e não e le.
, N .T .: I/iodo , I. 15-16
12
E depois disto, fala como se Crises fosse ele mesmo e tenta o mais
possível fazer-nos supor que não é Homero que fala, mas o sacer-
dote, que é um ancião. E quase todo o resto da narrativa está feito
deste modo, sobre os acontecimentos em Ílion, em Ítaca e as prova-
ções em toda a Odisseia.
- Absolutamente, declarou.
- Portanto, há narrativa, quer quando refere os discursos de
ambas as partes, quer quando se trata do intervalo entre eles?
- Como não seria assim?
- Mas, quando ele profere um discurso como se fosse outra
pessoa, acaso não diremos que ele assemelha o mais possível o seu
estilo ao da pessoa cuja fala anunciou?
- Diremos, pois não!
- Ora, tomar-se semelhante a alguém na voz e na aparência é
imitar aquele com quem queremos parecer-nos?
- Sem dúvida.
- Num caso assim, parece-me, este e os outros poetas fazem a
sua narrativa por meio da imitação.
- Absolutamente.
- Se, porém, o poeta não se ocultasse em ocasião alguma, toda
a sua poesia e narrativa seria criada sem a imitação. Mas, não vás tu
dizer outra vez que não entendes, vou explicar-te como é que isso
aconteceria. Se Homero, depois de ter dito que Crises veio trazer o
resgate da filha, na qualidade de suplicante dos Aqueus, sobretudo
dos reis, em seguida falasse, não como se se tivesse transformado
em Crises, mas ainda como Homero, sabes que não se tratava de
imitação, mas de simples narração.Seria mais ou menos assim (ex-
primo-me sem metro porque não sou poeta): «O sacerdote chegou e
fez votos por que os deuses lhe concedessem conquistar Tróia e sal-
var-se, mas que lhe libertassem a filha mediante resgate, por temor aos
deuses. A estas palavras os outros respeitaram-no, e concordaram;
13
porém, Agamérnnon, enfurecido, ordenou-lhe que se retirasse ime-
diatamente e não voltasse, sob pena de nada lhe valerem o ceptro e
as bandas do deus. Antes de libertar a filha, havia de envelhecer em
Argos junto dele. E mandou-lhe que se retirasse, e não o excitasse,
a fim de que pudesse regressar a casa a salvo. O ancião, ao ouvir es-
tas palavras, teve receio e partiu em silêncio, e, afastando-se do
acampamento, dirigiu muitas preces a Apolo, invocando os atribu-
tos do deus, recordando e pedindo retribuição, se jamais, ou cons-
truindo templos, ou sacrificando vítimas, lhe tinha feito oferendas
do seu agrado. Como retribuição, pedia que os Aqueus pagassem as
suas lágrimas com os dardos do deus»". É assim, ó companheiro,
que se faz uma narrativa simples sem imitação - concluí eu.
- Compreendo.
- Compreende, portanto - prossegui - que há, por sua vez, o
contrário disto, que é quando se tiram as palavras do poeta no meio
das falas, e fica só o diálogo.
- E compreendo, também, que é o que sucede nas tragédias.
- Percebeste muito bem, e creio que já se tomou bem evidente
para ti o que antes não pude demonstrar-te; que em poesia e em
prosa há uma espécie que é toda de imitação, como tu dizes que é a
tragédia e a comédia; outra, de narração pelo próprio poeta - é nos
ditirambos que pode encontrar-se de referência; e outra ainda cons-
truída por ambas, que se usa na composição da epopeia e de muitos
outros géneros, se estás a compreender-me.
2. Sociologia da imitação
- Adivinho já - disse ele - que queres examinar se havemos de
receber na cidade a tragédia e a comédia, ou não.
N. T.: Todo este trecho parafraseia os versos 14-42 do Canto I da lIíada.
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- Talvez - decl are i - , tal vez até ainda mais do qu e isso. A inda
não se i ao ce rto; ma s por onde a razão, como uma brisa, nos levar, é
por aí que devem os ir.
- Dizes bem .
- Considera, poi s , ó Adimanto, o seguinte: se os gua rd iões de-
ve m ser imitadores ou não . Ou resulta do que dis~émos ante rio r-
mente qu e cada um só exerce bem uma profissão, e não mu itas ,
mas, se tentasse exercer mu itas, falharia e m a lcanç ar qu alquer repu -
tação?
- Como deixari a de se r assim?
- E não é válido o mesmo raciocínio para a imitação, de q ue a
mesm a pessoa não é capaz de imita r muitas coisas tão bem como
um a só?
- C laro que não.
- Logo, dific ilmente exercerá ao mesmo tempo um a das profis-
sões de importâ nc ia e imi ta rá muit as co isas e se rá imitador, um a
vez q ue nem se q uer as mesmas pessoas imitam bem ao mesm o
tempo duas artes miméti cas que parecem próxim as um a da outra , a
comédia e a tragédi a. Ou não chamaste há pou co im itações a am bas?
- Ch amei , sim. E di zes a verdad e: as mesmas pessoa s não são
ca pazes d isso.
- Tão-pouco se pod e ser ao mesmo tempo rap sod o e ac tor.
- É verdade .
- Nem sequer os actores são os mesmos nas comédias e nas
tragéd ias. Ora, tudo isso são imitações, ou não?
- São imi tações.
- Parece -me, Adimanto, que a natureza human a es tá fragmen -
tada em parte s ainda mais pequenas, de modo que é incap az de im i-
tar bem muitas coisas ou de executa r bem aquelas mesmas de qu e
as imi tações são cópia.
- Abso lutamente - respondeu.
15
- Por co nsegui n te, se conse rvar mos o pri meiro argumento, de
q ue os nossos gua rdi õcs , isentos de lod os os outros ofícios, devem
se r os artífices mu ito esc ru pu los os d a libe rd ade do Est ado , e d e
nada mai s se devem ocupar qu e não di ga respeito a isso, não hão-de
faze r ou imitar qu alquer outra co isa. Se imitarem, qu e imitem o qu e
lhes convé m desd e a in fância - coragem , se nsatez, pureza , lib e r-
dad e , e todas as qu ali dad es dessa es péc ie . M as a ba ixeza, não de-
ve m prat icá-Ia nem se r capazes de a im itar, nem nenhum dos outros
víc ios, a fim de q ue , partindo da im itação , passem ao gozo da reali -
dade. Ou não te ap ercebeste de que as imi tações, se se perseverar
nelas desde a infân c ia , se tran sformam em hábito e natureza para o
corpo , a voz e a int el igênc ia?
- Transformam e muito.
- Logo, não ordenare mos a um daquel e s de qu em queremos
ocupar-nos e qu e é preci so que se tornem homens superio res que .
se ndo homen s. im item uma mulher, nova ou ve lha, a injuriar o ma rid o,
ou a criticar os deu ses , o u a gabar-se , po r se supor fe liz, ou domi nada
pel a desgraça , pel o desgosto e pelos ge midos; muito men os qu ando
es tá doent e, ou apaixonada, ou co m as dores da m atern idad e .
- Absolutamente .
- Ne m qu e imitem escravas e escravos. proced endo como tai s .
- Nem isso.
- Nem homen s perversos e cobardes, me parece , que fazem o
contrár io do qu e há po uco d issemos, qu e falam mal e troçam un s
dos o utros e d izem coisas ve rgonhosas . tanto qu an do es tão e m bria -
gados como só brios . e toda a espéc ie de erros qu e ta is pessoas
comete m, em pa lavras e em acções contr a s i mesmos e contra os
outros; entendo ai nda que não devem habituar-se a asseme lhar-se
ao s loucos em palavras nem em actos . Poi s dev em conhecer-se o s
loucos e os maus, homens ou mulheres , m as não fazer nem imitar
nada que seja del es.
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- É assim mesmo.
- Pois bem - prossegui. - Deverão eles imitar os ferreiros ou
quaisquer outros artífices, os remadores das trirremes ou os seus ca-
pitães, ou qualquer outra coisa referente a estas profissões?
- E como poderia ser isso se nem sequer lhes é lícito aplica-
rem-se a'qualquer destes ofícios?
- E o relinchar dos cavalos, o mugir dos touros, o murmúrio
dos rios, o bramir do mar, os trovões, e todos os ruídos dessa espé-
cie - acaso deverão imitá-los?
- Mas é que lhes foi proibido estarem loucos ou imitar a lou-
cura.
- Ora pois, se eu percebo o que dizes, há uma maneira de falar
e de narrar pela qual se exprime o verdadeiro homem de bem,
quando é oportunidade de o fazer; e outra maneira distinta desta, à
qual está ligado e na qual se exprime o homem nado e criado ao in-
vés daquele.
- Quais são essas maneiras?
- O homem que julgo moderado, quando, na sua narrativa,
chegar à ocasião de contar um dito ou um feito de uma pessoa de
bem, quererá exprimir-se como se fosse o próprio, e não se envergo-
nhará dessa imitação, sobretudo ao reproduzir actos de firmeza e
bom senso do homem de bem; querê-lo-á em menos coisas e em
menor grau, quando essa pessoa tiver tergiversado, devido à doença,
ou à paixão, ou mesmo à embriaguez ou qualquer outro acidente.
Quando, porém, se tratar de algum exemplo indigno dele, não que-
rerá copiá-lo afanosamente quem lhe é inferior, a não ser ao de leve,
quando ele tiver praticado algum acto honesto; e, mesmo assim,
sentir-se-á envergonhado, ao mesmo tempo por não ter prática de
imitar seres dessa espécie e por se aborrecer de se modelar e de se
formar sobre um tipo de gente que lhe é inferior, desprezando-o no
seu espírito, a não ser como entretenimento.
17
- É natural - respondeu ele.
- Portanto, servir-se-á de uma forma de exposição no género
da que nós abordámos há pouco a propósito das epopeias de Ho-
mero, e o seu estilo participará de ambos os processos, a imitação e
as outras formas de narração; mas, num discurso extenso, pouco lu-
gar haverá para a imitação. Não está certo o que eu digo?
- Está, e muito, pelo que respeita à necessidade desse tipo de
orador.
- Logo - prossegui eu -, o orador que não for dessa espécie,
quanto maior for a sua mediocridade mais imitará tudo e não consi-
derará coisa alguma indigna de si, a ponto de tentar imitar tudo com
grande aplicação e perante numeroso auditório, mesmo até o que di-
zíamos há momentos: trovões, o ruído do vento, da saraiva, dos ei-
xos eroldanas, trombetas, flautas e siringes, e os sons de todos os
instrumentos, e ainda o ruído dos cães, das ovelhas e das aves. Todo
o discurso deste homem será feito por meio de imitação, com vozes
e gestos, e conterá pouca narração.
- Também isso é forçoso que seja assim - replicou.
~ São estas as duas espécies de narração que eu dizia.
- São, efectivamente.
- Por conseguinte, destas duas, uma experimenta pequenas
alterações, e, desde que se dê à narração a harmonia e o ritmo con-
venientes, é fácil ao orador manter essa correcção e harmonia única
- pOIS pequenas são as mudanças - e também o ritmo igualmente
aproximado.
- E exactamente assim.
- E agora quanto à outra espécie? Não precisa do oposto, de
todas as harmonias, de todos os ritmos, se quer exprimir-se conve-
nientemente, devido ao facto de comportar todas as formas e varia-
ções?
- Forçosamente que sim.
IR
- Mas tod os os poet as e aque les que q uerem contar alg uma
coisa não vão dar a um a ou outra dessas formas de ex pressão, o u a
um a m istura das du as?
- É forço so - disse.
- Então que havem os de fazer? Havemos de receb er na cida de
tod as estas formas ou um a e outra das formas puras ou a mistu ra?
- Se prevale ce r a minha opinião, receberemos a for ma se m
mistura que imit a o hom em de bem.
- Mas na verdade, ó Ad imanto, tam bé m a forma mista tem o
se u encanto, e é muito mai s apraz ível pa ra as crianças e preceptores
e para a multidão em geral a inversa da que tu preferes.
- De facto, é a mais ap razível.
- No entanto, talvez me digas qu e ela não se adapta ao nosso
go verno, porquanto não exi ste entre nós homem duplo nem múlti -
plo , um a vez que cada um executa uma só tarefa.
- Efec tivamente, não se ada pta.
- Não é por esse moti vo que só numa c idade assi m encontra re -
mos um sapate iro que é sa pa teiro , e não pilot o , além da arte de ta-
lhar ca lça do, e um lavrador, lavrador e não j uiz, além da agricultura .
e um guerreiro , guerre iro, e não come rc iante, a lém da arte mil itar , e
assi m por diant e?
- De fac to - respondeu ele.
- Se chegasse à nossa c idade um homem ap arentem ent e capa z.
devid o à sua arte , de tomar todas as forma s e imitar toda s as CO iS;lS,
ansioso por se ex ibir j untamente com os se us poemas, proste rn á-
vamo -nos diant e del e , co mo se de um ser sagrado, maravilhoso, en -
cantador, mas dir-Ihe- íam os que na no ssa cidade não há homens
dessa es péc ie , nem sequer é lícito que existam , e mand á-lo-Iamos
em bora para outra cidade, depois de lhe termos derramad o mirra
sobre a ca beça e de o termos coroado de grinaldas. Mas, para nós,
ficar íam os com um poeta e um narrad or de histórias mais austero e
19
menos aprazível , tendo e m conta a sua utilidade , a fim de que e le imite
para nós a fala do homem de bem e se exprima segundo aqueles mo-
delos que de início regul ámos, qu ando tentávamos educar os militares.
- Era ass im mesmo que faríamos, se es tivesse no nosso poder.
(Pla to n, Cl'/IITCS Co mple tes, Tomo VI. La Répu bliquc, trad . de Ém ilc Chambry, livres I·III :
I : 392d -394<:. pp. 102 -104 ; 2: 394d-39 Xb. 1'1" 104 -11 0 . co\. G uill aum e Rudé , Paris, 1932,
co m au torização das «Be lles Lcures».
Na ve rsão portuguesa for am reprod uz idos ex ce rtos da tradução de Maria Helena da Roc ha
Pe reira: Pla tão , A República , Li shoa . Fundação Ca louste Gulbcnk ian . 1990 (6' . ed .): Livro
111 , I : 39 2d- 394c , 1'1" 116- 1 IX: 2 : 394d ·3 98b, 1'1" 119 - 126 . Nu que respeita às notas , fora m
mantidas ape nas as 'l ue di ziam resp eito à compreensão imed iat a d o te xto .)
2 - ARISTÓTELES : PO ÉTICA (cerca de 330 a.c.)
A ristóteles, nascido em Estagira, na M ace d ánia , em 384 antes
da nossa era, foi a luno de Platão , e dep ois, após a lgumas viagen s,
p recep to r de A lexandre «o Grande ». Entre 334 e 323 manteve uma
escola em Atenas, di ta peripatética , o Liceu . Morreu em 322 a.c.
A sua obra é im ensa. A borda a filosofia em ge ral , as ciências
[isicas c naturais . a lóg ica , a gramá tica. a m oral . a p ol ítica, a retó-
ri ca c a poét ica. O se u breve tratado intitulado Poéti ca é . se m d ú-
vida, uma recolha de notas , sem orna menta ções literárias , tomadas
na ocasião de um curso , p el o próprio Aristóte les ou por um dos
seus a lunos. Trata sobre tudo da tragéd ia , repetidamente compa -
rada á epopc ia : os desenvolv imentos anunciados so bre a coméd ia
não foram encontrados.
Embora traduzida p ara o árabe. a Po ética j r» p ou co co nhecida
durante a Idade M éd ia . A primeira tradução latina fo i impressa em
finais do século XII. M as a partir do Renascimento a sua influência
tornou-se decisiva e domina a reflexão sobre o teatro no Ocidente .
Por tal reproduzimos aqui excertos mais longos .
20
l. A imitação I
A epo peia , a poesia trágica , e também a comédia , o ditirambo,
e mesmo, no qu e respeita ao essen ci al , a poesia aulética c a c itarís-
tica são tod as, no seu conj unto , imitações. Mas diferem umas das
outras de três maneiras: ou imitam por meios diferentes, ou imitam
de modos d iverso s e vari áveis.
De facto , da mesma maneira que a lg uns , sej a pel a sua arte , seja
pelo hábito , criam imagen s imitando mu ito s obj ect os através das
cores e das fo rmas, assim outros, nas artes de qu e falei , imitam atra-
vés da voz . Todas es tas artes real izam a im itação por inte rméd io do
ritmo, do discurso e da harm oni a, seja se paradame nte, sej a em con-
junto. Por exe mplo, o tocador da flau ta , ou da cít ar a e outro s an ál o-
gos pela sua e ficácia, como o da siríng ica , imitam servindo -se ap e-
nas da harmonia e do ritmo. A da nça im ita igualmente pelo ritmo,
mas não pel a harmon ia; atrav és de r itmos figurativos, os bailarinos
imitam, de fac to , os ca racteres , os afectos e as acções.
Quant o à arte qu e apenas se serve do di scurso , sej a e m prosa,
seja em verso, qu er sejam de diver sas es péc ies mi sturad o s, ou tod os
do mesm o gé nero, essa ainda não recebeu nome até agora 2 ( ••• ) .
Há art es que utili zam todos os me ios de que fa lei , ou sejam, o
ritmo, o can to , o metro , como o fazem a poesi a d itirâmbica , o
norno, a tragédia e a comédi a; diferem na medida em que algumas
usam tod os e sses meios ao mesmo tempo. e as o utras se pa rad a-
mente (...).
Quand o se imita imitam -se homen s em acção. Estes. necessar ia-
mente. ou são respeitáveis, ou são med íocres. De facto, os caracte-
res redu zem-se quase todos a es tas duas categorias: é pela maldad e
e pela virtud e qu e se d iferenciam todos os carac teres. Assi m , as
I .o term o g reg o . muitas veles retom ado hoj e . é mi mc sc. (N.F.)
?
- A ris t óte le s l.un cn ta a ausência do nom e literatura. (N.F .)
2 1
suas imagens o u são melhores do que nós, ou piores, o u semelhan-
tes. O s pintores não fazem de o utro modo: Pai ignoto embelezava os
seu s modelos, Pauson exa gera va os seus defeitos, Di on ísio repre-
sentava-os tal qual eles são.
(.. . De igual modo), as pe rsonagens de Homero são superiores
(à média), as de Cleofonte são-lhe semelhant es , as de Hé gemon de
Tasso, que foi o primeiro autor de paródias , ou as de N ic ócares , qu e
escreveu uma Poltroniada, são piores ( .. .) .
A mesma d iferença se pa ra a tragédia da coméd ia. A primeira
pretende imitar homens superiores aos de hoj e, a segunda homen s
infe riores (... ) .
Por su a vez, Sófocles pod e ser considerado como um imitador
do mesmo tipo que Homero, j á que ambos imitam homens respeitá-
vei s, bem como um imitador do mesmo tipo que Aristó fanes, poi s
que am bos imitam hom en s em acção, fazendo qu alquer coisa ...
Duas causas, e duas ca usas naturai s , parecem es ta r na origem
de tod a a poesi a . Primeiro , a im itação faz pa rte da natureza dos ho-
men s desde a sua infância. É preci samente nisto qu e reside a dife-
rença e ntre o homem e os outros animai s : ele é o maior dos imita-
dores, e a imitação é o mei o peloqual adquire os se us primeiros
co nhe cimentos. Em segundo lugar, para todos os homens, a imita-
ção é uma fon te de prazer.
É isto que demonstra o que acontece nas obras de a rte: se os
espec tác ulos e m si são repu gn antes , as suas ima gen s perfe itamente
exactas dão, contudo, prazer à nossa v is ta ; tal acontece com as for-
ma s dos animai s mais repugn ante s, ou dos cadáveres.
Ex iste uma outra razão: não é apenas para os fil óso fos qu e o
aprender é um gra nde prazer, tal é igu almente verdade iro para os
outros homens, embora a sua participação no saber sej a reduzida.
Ora, e les gostam de ver as imagens porque , o lhando-as, têm oportu-
nid ad e de aprender e de raci oc inar sobre ca da um dos e le mentos,
22
por exemplo. de identificar um indi v íduo. Se acontece que o obje ct o
não foi visto anteriormente , o prazer não na scerá da imitação m as
da execu ção, da cor, o u de uma outra cau sa deste gé ne ro .
2 . A tragédia
A ep op eia tem e m com um com a tragédia o ser uma imitação
de homen s respei táv ei s , fei ta por int ermédio da ve rs ific ação, m as
difere na medid a em q ue usa se mpre o mesmo metro , e porqu e é
uma narrati va. Diferem , a lém disso , na ex tens ão : a tragédia es fo rça-
-se na ma ioria das ve zes e m caber dentro de uma única revolução
do Sol, ou em não a ultrap assar muito , enquanto a epope ia não tem
limite de tempo; isso é, poi s, uma out ra diferença. Todavia, na o ri-
ge m , a práti ca dos trág icos era a me sm a qu e a dos poet as épicos.
(...)
A tragédia é a im itação de um a acção seria e co mple ta; tem
uma gra ndeza equi librada ; a sua lin gu agem é ag radável e os e le-
mentos diferem entre si nas diversa s part es; os acontecime ntos são
aí representados por personagen s e não co ntado s numa narrati va :
e nfim, e la suscita a piedade e o terro r e, a trav és del es , efec tua um a
verdadeira purgação I desses dois tip os de sentimentos. Chamo «lin-
guagem agradável» àquel a que tem ritmo, melodi a e canto ; a dife-
rença e ntre es tes elementos seg undo as partes consiste em qu e tão
depressa o verso é empregue a sós , quanto se lhe j unta o canto .
Dado que a im itação é feita por homens em acção, um a part e
da tra gédi a co nsistirá necessariamente na encenação. depois seg ue m-
-se o canto e o texto ; é exac tamcnte co m estes el ementos qu e é fei ta
a imita ção . Chamo texto ao co nteú do dos ve rsos; qu ant o ao ca nto ,
I N .F .: O termo greg o , qu e de u or igem a inúmeros co rn e nrár ios . é katliorsis . Ap arece
numa outra ohra de Arist ótc lc», ;\ l 'ot ttico. nurna passagem, no livro V III . c ru q ue se ev oca ti
23
e le também tem. ev iden te mente, a sua efic áci a co m pleta. Por outro
lado , se a tra gédia imita uma acção e se e la é praticada por homens
que agem, é ne cessário que estes homens sejam particularizados
pel o se u carácter e pelo seu pensamento: tai s são com efe ito os fac -
ro re s aos quais nos referimos quando fal amos das acções; o pensa-
mento e o caracter são as du as causas das acções , e el es faze m tudo
te r êx ito, ou soçobrar. Enfim, a última im itação da acção é a fábula.
C ha mo fábula ao conj unto das acções. C hamo ca rácte r, ou psicolo-
g ia , àq u ilo qu e nos faz emi tir um julgam ento so bre as personagen s .
C ha mo pensamento , o u papel, a tudo o qu e e las di zem para provar
ou para exprim ir uma o pi n ião.
É portanto nece ssário q ue toda a tra gédi a com porte seis partes ;
e é apenas em função delas qu e a tragéd ia ex iste . Sã o : a fábula , a
psicologia, o text o , os papé is , a encenação e o canto. Duas dessas
parte s são os meios de imitar, um a outra é o modo de imitar e , po r
fim , as três o utras são os objectos da im itação: nada mais pod er ia
ex is tir. Prat icam ente todos os autores usaram essas part es , porque
e ncontra-se igualmente por todo o lad o a ence nação , a psicologi a. a
fábula, o texto , a músi ca e as personagens.
rcac ção d os aud itores Ü m ús ica . (J pa sso é ass im tradu zid o po r 1\1. Som vi llc no seu Ev,va i su r
la Po étiq u« d ' A rislu /c ( Pa ris , V rin , 19 75 ), p .77 : Esta 111l111(' ; ,. (/ c/c ser alcl'tu clo ,lüo viva c I' rn -
fi o u /a nnlgumas pes soas , ex is te C111 nos, c' niu» dif er e scnâo /"/1"(/ mais 011 pa ra IHC' H OS : tal
acont ece ('O / H a p ieda de . (J te rro r (' () entus ia smo. D e furto , fiei individuo» qu e selo pa rti cul a r.
li/elite scnsivci s li est a espécie d e 1I10\ 'ilJl l'J1(o : silo l lt/ lIC!t',Ç {III(' \ 'enlO .\' tornarem -se calmos
pelo efei to das melodias sagra da s . assim que começam li 0 11\ ' ; 1" os cantos aprop riados [1(/ ,.a
acalm ar as paixôcs violen tas ; f iram ('OIlJO se Ji \' CS.H '11l cncont nulo a í remédio C ka tharsis . Os
homens com di sp osição para lJ piedade . " terror c. CI II gera l. para o s a fcctos vivos, dc vern
necessariamente experimenta r () m esm o ef ei to ; os outros tombem, se gundo o gra u em q U l'
cada 11111 deles seja su sccptivc l a estes d iv er sos afcctos: l ' todos devem experi men ta r lima es -
p écie d i' a livio acompanhado por um sen tim ento de praze r. É assim quc os ca ntos destinados
a produzir es te efeito propo rcionam aos homens lima a lcgr!« inocente (' pu ra .
N.T.: A pa lav ra portuguesa é catursc.
24
3 . Afábula
A parte mais importante da tragédia é a reunião das acções;
com efeito, ,I tragédia é uma imitação, não de homens, m as da ac-
ção, da vida, da felicidade e da infelicidade; ora a felicidad e e a in-
felicid ade residem na acç ão , o objecti.vo é agir, não é se r, e os ho-
mens sã o o que são por cau sa do seu caracter, mas são fel izes ou
não por ca usa das suas acções. Ass im, as personagen s não agem a
fim de imitar uma determinada psi cologia: é através das suas acções
que adquirem um certo ca rácter. As acções e a fábula são, ass im, o
objectiv o da tragédia; e o objec tivo é sempre essenci al.
(...)
Mai s ainda, se as tiradas psicológicas forem colocadas umas a
seguir às outras, por mais bem feitas que sejam pelo texto e pelo pensa-
mento, não se realizará de modo algum o trabalho da tragédi a; es te será
muito melhor conseguido numa obra em que estas qualidades sejam in-
feriores, mas onde se encontrem a fá bula e a trama das acções. Além
disso, os mais potentes motores da acç ão da tragédia sobre as almas são
as partes da fábula, a saber, as peripécias e os reconheciment os.
Um outro índice é que os principiantes em poesi a a lcançam a
exactidão do texto e da psicolog ia , antes de sabe re m com b inar as
acções: é igu almente o caso de qu ase todos os poetas antigos.
A fábula é, então, o princípio e , de alguma man ei ra , a alma da
tragédi a. A psicologia ocup a ape nas o segundo lugar. .. Imitação de
uma acção, a tragédia é esse ncia lmente, por esse mot ivo , imi tação
de homen s qu e agem.
(...)
E en cenação, decerto sedutora, não é de modo a lg um uma obra
de arte c não pertence nunca à poética. De facto, a força da trag édia
é indep endente da represent ação dos actores. Além di sso , a arte do
cenóg rafo é mais importante para a disposição do esp ect áculo que a
dos poetas.
25
(...)
A tra gédia é , port anto , im itação de uma acção com ple ta, inteira
e tendo uma certa ex tensão; porque uma coisa pode se r intei ra e não
ter praticamente exte nsão.
Que quer di ze r «inteiro» ? É o que tem princípio , meio e fim.
O que é o princípio? É aquilo que, por si mesm o, não se segue ne-
cessariamente a outra co isa, e a segu ir ao qu al outra coisa existe ou
se desenvol ve . Inve rsam ente , o que é o fim ? É aquilo qu e, pela sua
natureza própria, se sucede a qualquer coisa, seja po r necessidade,
seja a maior pa rte das vezes, e a seguir ao qu al não há mais nada.
O que é o meio? Aquilo que sucede a qualquer coisa e que é se -
guido de qualque r coisa.
É então preci so que as fábulas bem compostas não comecem
nem acabem por acaso, mas utilizem as idei as ac ima referidas.
Há mais ainda: um beloanimal e no gera l todo o ob jecto belo
são compostos de part es; não deve existir entre essas partes apenas
um a orga nização defi nida ; é preci so também um a ex te nsão que não
seja arbi trá ria; a beleza cons iste tanto na ex tensão quanto na o rga ni-
zação; é por isso qu e um ani ma l belo não pode ria ser nem extrema-
mente pequeno, porque um olhar limitad o a um tempo ins tan tâneo é
co nfus o, nem extre ma me nte grande, po rque a visão de conj unto não
pode na scer e o objecto não aparece ao olhar dos espectadores, nem
co mo uno, nem como intei ro; tal se ria um ani ma l com o compri-
ment o de v ários qu il órnetros ! Ass im , os co rpos e os animais devem
ter uma ce rta g ra ndeza adaptada ao nosso olhar; pa ssa-se exacra-
mente () mesmo com as fábulas, c uj a dimen são deve se r adaptada às
nossas faculdades .
C..)
Qual é o limite co nfo rme à própria natureza ela ucção? A fábula
deve sempre ter a mai or ex tensão possível, compa tíve l com a sua
inteligibilidaele; a sua beleza crescerá com a sua am p litude . Em re-
gra geral, uma ex tensão em que os aconteciment os, sucede ndo-se
26
seg undo a veros imilha nç a ou a necessid ade, fazem pa ssar da feli ci-
dade à in feli c idade ou inversamente, é um limite de grandeza sufi-
ciente. A unidade da fábula não nasce, co mo alguns o pensam, do
facto de se re ferir a um indivíduo: as acç ões de um homem podem
ser numerosa s, e mesmo infinitas, se m constituir uma unidade ...
É por isso que, segundo me parece, tod os os poetas qu e escreveram
uma Heracleida ou um a Teseida ou outras obras semelhantes se en-
gana ram: pensam qu e, dado que Hércul es é um só , segue-se qu e a
fábula também é só um a!
( ...)
Nas outras art es im itati vas , a imi tação de um objecto un o é
uma. Acontece exac tame nte o mesmo co m a fábula, qu e é imi tação
de uma acção. Esta deve ser una e inteira; as suas partes devem se r
reunidas de tal maneira qu e , se forem deslocadas ou su primidas al-
gum as, o co njunto seja transformado e transtornado ; porque o qu e
se pod e juntar, ou não juntar, sem consequênc ia vis íve l, não é ver-
dadeiramente um a part e do co njunto co nsiderado.
4 . Estruturas dafábula
Por entre as fábulas e as acções simples, as episó d icas são as
menos bo as. Chamo fábul a episódica àque la em qu e a sucessão dos
episódios não é nem vero símil, nem necessária.
(...)
A im itação não se circunscreve ape nas a uma acç ão completa.
Ela de ve também provocar o terror e a pied ad e . O ra estes sentirne n-
tos na scem sobretudo diant e dos fact os qu e se encadeiam contra ria-
mente à nossa expec ta tiva. O maravilhoso assim criado é superior
aos automat ismos do acaso . O c úm ulo do maravilhoso saído do
acaso produz-se quando es te parece revelar uma int en ção. Tal como
a estátua de Mítis em Argos que matou o homem resp onsável pel a
morte do próprio M ítis : aque le olhava a es tá tua , e e la ca iu-lhe em
27
c ima. N ão é verosímil que tai s acontec imentos ocorram por acaso.
O que é ne cessár io é que as fábulas de ste tipo sej am de uma beleza
super io r.
Por entre as fábulas, al gumas são s im ples e outras com plexas;
a s acções qu e e las imitam pertencem evidentemente às mesmas
cat egorias. Ch am o de simples a acção coerente e un a tal como a
defini , e onde o desenlace intervém sem peripécia nem reconhe-
ci mento. Ch am o de com plexa a acção cujo desenlace resulta de um
reconhecimento o u de uma peripéci a, ou deste s doi s proced im entos.
Es tes devem nascer d a própria constitu ição da fábula, de modo
a resultar de factos ante riores segundo a necessidad e o u a veros im i-
lhan ça ; há um a grande diferença entre a si mp les sucessão e a causa-
lidade.
A peripé ci a é o inverter das acçõ e s e m sentido co n trá r io
( ..., e isso ... ) segundo a verosi m ilh ança ou a necessidad e. Ass im , em
Édipo [Rei ], o mensageiro pensa qu e va i dar prazer a Édi po e li -
bertá-lo do seu temor pel a sua m ãe fazendo- o saber quem e le é; é o
contrár io qu e acontece. Em Linceu , o herói é co nd uz ido à morte e
D ánao segue -o para o m at ar ; mas o curso dos acontecim entos faz
com que sej a este último quem morre e o outro seja salvo .
O reconhec imento, como o seu nome o ind ica, é uma passagem
da ignorância ao conhecimento, e por consequência para a afeição
o u o ód io entre aq ue les que se o rientam em d irecção à felicidade ou
à infe lic idade . O mai s bel o reconhecime nto é o que nasce da peripé-
cia: é o caso em Éd ipo [Rei] .
Há ainda outros reconhecimentos qu e podem produzir-se diante
de objectos inanimados e ncontrados por acaso, ou d iante do fact o
de qu e a lguém fez, ou não fez, qu alquer coisa.
M as o reconhecimento q ue melhor convém à fábula e à ac ção
é , com o já di sse , o que sc acom panha de uma peripéci a; e la susci-
tará piedade ou terror pelas ac çõe s de qu e a tragédia é imitação, e
qu e provocarão, segundo os casos, infelic id ad e e feli cidade.
28
Quando o reconhecimento se refere a pessoas, umas vezes só
um reconhece o outro, quando a id entidade do sujeito é clara, m as
logo de seguida as duas personagens devem reconhecer-se uma à
outra. Assim Ifi g énia é reconhecida por Orestes graças ao envio da
carta, ma s para que Ifig énia reconheça Orestes é pre ci so outra coisa.
A peripécia e o reconhecimento são, portanto, duas partes da
fábula. O patético é um a terceira. Expliquei as duas primeiras.
O patético é uma acção de morte ou de sofrimento, como as agonias
que aparecem em cena, as grandes dores, os ferimentos, etc.
5. O terror e a piedade
A tragédia mais bela não deve ter uma composição simples,
mas complexa; ela é a imitação de acções assustadoras e lamentá-
veis , poi s qu e aí reside o aspecto particular deste tip o de imitação.
Daí resulta:
1) Qu e ela não deve, ev identemente, mostrar homens bons le-
vados da fe lic idade à infeli cidade: tal não se ria assustad or nem la-
mentável, ape nas revoltante.
2) Qu e ela também não deve m ostrar homen s mau s passando
da infelicid ad e à felicidade : seria a so luç ão menos trág ica de todas;
não tem nad a do que é necessário: nem humanidade , nem piedade ,
nem terror.
3) Qu e e la não deve igualmen te mo strar o homem a bsoluta-
mente mau precipitado da felicidade na infe lic idade : esta com bina-
ção satis fa ria a humanidade, mas não a pied ade nem o terror; se a
piedade se associa ao hom em que não me rece a sua infelicidade , e o
terror ao homem seme lhante a nós , es te acontecimento não se ria
nem digno de piedade nem aterrorizado r.
Não resta mais do que o interm édio . Podemos de fini-lo assim:
um homem qu e não brilh a nem pela sua virtude, nem pela justiça,
29
cai na desgraça , não por causa da sua maior ou menor maldad e , mas
por caus a de um determinado erro ; é também preciso qu e estej a em
muita glória e prosperidade, como Édipo, Tiestes e os homens ilu s-
tres pertencendo a famílias assim .
Portanto, é necessário qu e uma fábula seja simples em vez de
dupla, como o dizem alguns, qu e a inversão tenha lugar, não da in -
feli cidade para a felicidade, mas, ao contrário , da felicidade para a
infeli cidade, e que a sua ca usa sej a, não a maldade , m as um erro
grave atribuível a urna personagem co mo ac ima disse , ou bem me-
lhor do que pior.
A evolução o fe rec e um indício: no princípio, os poetas utiliza-
vam uma fábula qualquer; agor a, as tragédias mais belas cen tram -se
so bre um pequeno número de famílias: Alcméon, Édipo, Orestes,
M eleagro, Tiest es , Télefo e outros que tais , a quem coube sofrerem ,
ou ca us arem, infelicidades terr ívei s.
( ...)
O terror e a piedade pod em nascer do es pec t áculo , ou então da
própria organização do s factos , o que é pre ferível e m ostra um me-
lhor po eta. C om efe ito , é preci so que a fábula seja com posta de tal
maneira que, mesmo sem ver, o auditor das acções trema e tenha pie-
dade; é o que experimentaria aq ue le que o uvisse a fábul a deÉdipo.
M as obter este re sultado com o espectáculo exige menos arte (lite-
rária) e exige m e ios teatrais .
Aque les que pelo es pectác ulo provocam. não o terro r, mas ape -
nas o sentimento do monstruoso, não sabe m nada de tragédia; esta
não deve oferecer um prazer qualq uer, m as ape nas o qu e lhe é pró-
pri o . Dado que o poeta, através da imitação, deve proporcionar um
prazer fundado no terror e na piedade, é ev idente qu e é so bre as ac-
ções que deve trabalhar.
Tomemos e ntão , de entre os acontecimentos que so brevêm ,
aque les qu e parecem poder se r ate rradores ou suscitar piedade.
30
Nece ssariamente, põem em confronto personagens amiga s ou
inimigas , ou nem um a coisa nem outra. Se um ini m igo ataca um
inimigo , em act o ou em pensamento, não dá lugar a piedade al -
guma, a não ser no patéti co. Acon tece o mesmo e ntre indiferentes.
Mas qu ando os acontecimentos patéticos surgem entre amigos, eis o
que é preci so buscar; as sim , um irmão mata o se u irmão, ou es tá à
beira de o matar, ou fa z qualquer co isa do gé ne ro; igualmente de
um filh o para com seu pai, uma mãe para com o seu filho ou um fi-
lho pa ra com a sua mãe.
Não se podem mod ifica r as fábulas tradici on ais : é preciso que
Clitemnestra seja assassinada por O restes, Erifila por Alcméon. Ma s
o poeta deve inventar, e se rv ir-se estet icamente dos dados da tradição.
O que entendo por esteticamente, vou dizê-lo mais cl aramente.
A acção pode desenvolver-se , como nos antigos , entre per sona-
ge ns que se vêem e se co nhecem; ass im Eurípides mostrou Med eia
a matar os seus filhos. Também é possível comete r um crime, mas
cometê- lo ign orando o horror e não reconhecendo senão dep oi s a
relação afe ctiva; tal como o Édipo de Sófocles. Aq ui isso produz-se
fora de cena, mas também pode fazer part e da própria tragédia, como
no caso do Alcméon de Astídamas ou o Telégono e m Ulisses Ferido.
Há ainda uma terce ira possibil idade: es tar à bei ra de , por igno-
rân ci a , cometer um ac to irreparáve l, e chegar ao reconhe c imento
antes de agir. Além destes casos, não podem existir outros : necessa-
riamente, age-se ou não se age , e sabe-se ou não se sabe .
O caso pior é aquel e em que a personagem sa be , prepara-se
par a ag ir, e não age . Este caso é revoltante; não é trági co porque
não é patét ico. Por isso nenhum poeta o faz ass im; pel o men os é
raro , Como Hém on di ante de Creonte em A migona . Em se gundo
lugar , age-se. É prefer ível que a personagem aja se m sa ber e nã o
reconheça sen ão depoi s de ter agido; evita- se o rev oltante, e o re -
conhec ime nto surpreende .
31
O caso melhor é o último: em Cresfonte , Mé rope es tá à bei ra
de mat ar o seu filho; ela não o mata, ma s reconhece-o ; em Ifigénia ,
há a mesma situ ação entre a irmã e o irm ão; em H elle, o filho está
quase a entreg ar a mãe quando a reconhece .
É por isso que , como já di sse , as tragédias se centra m sobre um
pequeno número de famílias.. Procuraram aprese ntar nas suas fábu -
las s ituações deste tip o , mas encontraram-nas por acaso, e não por
arte. E ram forçadas a restringir-se às fam ílias em que tinham ocor-
rido ta is acontecime ntos pat éticos.
(A risto te , Po étique , trad . de Jacques Scherer. I: cap. 1,2,3 e 4; 2 : ca p .5 e 6. 1450a; 3: capo 6 .
1450a-b, e cap.7 e 8; 4: cap.9 . 14 5 1b, e cap . IO e l i ; 5: capo 13 e 14 .
Veja-se também Aristote, Po étique , lrad . de J . Hard y, Paris , «Les Be lles Le ttres», 1932. c
Aristo te , La Po étique, trad . de Roselyne D upon t-Roc e Jean La llot, Paris , Se uil, 1980 .)
Edição e m portug uês usada em apo io à tradução: Aristóteles, Poética , t rad ., pref. , int rod .. co-
me ntá rio e apêndices de Eudoro de Sousa . Li sb oa. Imprensa Na cio nal-C asa da Moed a. 1990
(2'.ed .) . (N.T.)
3 - BHARATA: TRATADO DO TEATRO (Cerca da época de Jesu s
C risto)
Esta obra é o mais an tigo tratado qu e se conhece sobre o tea-
tro da Índia e sobre o se u vínculo com a religião hindu . Só fo i es-
crito , em sânscrito, numa data bastante recente, mas seguramente
foi transmitido antes , dura ntes lon gos séculos , a tra vés da tradição
oral. As estima tivas dos esp ecialis tas para fixar a sua origem variam
consideravelmente : do século IV a .C . ao século 1'1/ da nossa era .
Idêntica incerteza envo lve o se u a utor, Bli a rata , Seria inútil
procurar por detrás desse nome , que sugere relações simbólicas com
al gu mas divindades, uma ind ividualidade so bre a qual pudéssemos
ter um conhecimento histórico. Bharata não é mais que o sábio mítico
a quem os deuses ordenaram que criasse o teatro .
32
o título do tratado em sânscrito é Natya-Shastra. Natya sign i-
fi ca dan ça . e por consequêlJcia rep resentação . mími ca acompa-
nhada de música e de palavras cantadas; a palavra reenvia, assim.
para essa f orma sincr ética de espect áculo que era . sem dúvida . o
teatro indiano desde a époc a mais antiga. Shastra significa tratado.
conjunto de doutrinas. regras ou narrativas míticas.
Em cerca de uma trintena de cap ítulos, a obra dá indicações
técnicas. por vezes extremamente p recisas . sobre a organ ização
teatral. a dramaturgia e a repres entação. Nó s só rep roduzimos o
primeiro cap ítulo qu e propõe. sob f orma de uma narrativa f abu-
losa. a versão poética e religiosa da origem do teatro.
A criação do teatro
Inclinando-me diante de Brama e Xiva, de screverei as regras
do teatro tal qual foram promulgadas por Brama.
No tempo antigo , os sábios de grande alma que tinham domi-
nado os seus sentidos aprox imaram-se do piedoso Bharata, mestre
da arte dram áti ca, durant e um intervalo nos seus trabalhos. Ele tinha
acabado de terminar a recitação das s uas orações, e es tava rodead o
dos seu s filh os. Os sábios de grande alma que tinh am dominado os
seus sent idos disseram-lhe respeitosamente: Oh Bramane, como
nasceu o trat ado do teat ro, semelhante aos livros sagrados, que tu
co mpuses te? A quem se dirige ele , quai s são as suas parte s , o ta rua-
nho , e co mo deve ser apli cado? Rogamos-te que nos d igas tudo isto
detalhadam ente .
Ou vindo es tas palavras dos sábios, Bharata respondeu-lhes as -
sim sobre a qu estão do tratado do teatro :
Purificai-vos, ficai atentos e escuta i as ori gen s do tratado do
teatro composto por Brama. Oh brâmanes, no tempo antigo, no
tempo em qu e a idade de ouro foi substituída pela idade de prata, em
que os homen s se de ram aos prazeres dos sentidos , submetendo-se
33
assim ao jugo do desejo, quando eles conheceram o ciúme, a cólera,
qu ando a sua feli cidade se mi sturou de tri steza, nesse tempo os deu-
ses , com o grande Indra à sua ca beça, aproximaram-se de Brama e
falaram-lhe as sim:
Nós queremos um objecto de representação, que deve se r tanto
audível quanto vi sível. Como os quatro liv ro s sag rados não podem
ser ouv idos por aq ue les que nasceram intocáveis, rogamos-te que
cries um outro livro sag rado qu e pertença igualmente a todas as
castas.
Assim sej a, resp ondeu e le, e tendo despedido os de uses , medita
e cha ma à sua memória os quatro livros sagrados.
Depois pen sa: vo u fazer um quinto livro sa grado sobre o teatro,
servindo-me dos livros históricos. Ele mostrará o caminho e m di-
recção à virtude, à riqueza, à glória , conterá bon s conselhos morais ,
guiará os homens do futuro em todas as suas acções, se rá enri que-
c ido pelo ens ina mento de todos os tratados, c passará em revista to-
da s as artes e tod os os ofícios.
Com a sua recordação dos qu atro livros sagrados, Brama fez
então o seu tratad o sobre o teatro . Deles reti ra o texto , a música, a
encenação e os sentimentos .
Depois de o sa n to e omnisciente Bram a ter assim criado o seu
tratado do teatro , e le disse a lndra: Os livros hi stóricos foram com-
po stos por mim. Tu va is transformá-los em peças de teatro , e faz ê-
-las representar pelos deu ses. Tran smite es te tratado do teatro àque-
les de entre os deu ses qu e sãodestros , in stru ídos, hábei s no falar e
es tão habituados a trabalhar duram ente.
A es tas pal avras de Brama, lndra incl ina-se diante dele , j unta
as mãos e responde : Oh melhor e mais san to , os deu ses não sã o ca-
pazes nem de receber e defender o teu tratad o do teatro, nem de o
compreender e uti lizar. Eles são co m pletamente ineptos par a o tea-
tro. Mas os sábios qu e conhecem os mi st é rios dos livros sagrados, e
34
que cumpriram os seus vot os, são capazes de defender este tratado
do teatro e de o pôr em prática .
A estas palavras de Indra, Brama di sse-me: Homem sem pe-
cado, é s tu , com os teu s cem filhos, quem deverá se rv ir-se deste tra-
tado do teatro .
Para obedecer a esta ordem, estudei o tratado do teat ro de
Brama, e ped i aos meus filhos qu e também o estudassem e que o
pu sessem em práti ca. Para benefício dos homens , d istribuí pelos
meus filhos os pap éis que m ais lhes convinham.
Oh brâmanes , preparei-me as sim para dar uma representação
na qu al entravam diferentes estilos dramáti cos , o poéti co , o gran-
dioso e o patét ico .
A seguir, fui de novo ter com Brama e , depois de me ter in-
cl inado, informei-o sobre o meu trabalho. Brama di sse-me para
também fazer entrar na m inh a representação o estilo g rac ioso, e pe-
de-me para lhe dizer quai s eram os obj ectos qu e permitiriam a in-
trodução desse es tilo .
Respondi ao mestre: Dá-me os objectos necessários para pôr
esse estilo gracioso em prática. No tempo da dança de X iva, co m -
preendi qu e o seu es tilo g racioso é ap ropriado ao se ntime nto eró-
tico. Exige belos ves tidos, doces figuras de dança, sentime ntos , es-
tados em otivos , e a sua alma é a acção . Este esti lo não pode ser
co nvenienteme nte posto em prática por homens, se não com a ajuda
de mulheres . Então Brama criou a part ir do se u esp írito as ninfas
háb ei s para embelezar o teatro , e confiou-m as para a representação .
Seguindo a su gestão de Brama, um mú sico e se us di scípulos
foram chama dos para toc ar instru mentos de música, e mú sicos ce-
lestes co ntratados para cantar canções. Assim , depo is de ter abra -
ça do a arte dram ática proveni ente dos livros sagrados. com os meu s
filhos e os meus mú sicos apro ximei-me de Brama e d isse-lh e, jun-
tando as mãos, que a arte dramáti ca estava agora pronta, e pergun-
tei-lhe o qu e ordenava.
35
A estas palavras, Brama disse : Um tempo muito favorável para
a representação de um a peça c hegou: o Festiva l de Indra acabou de
começar; serve -te do tratado so bre o teatro para essa ocas ião. Fu i
portanto a té esse Fest ival e m honra da vitória de Indra no co mbate
em que foram mortos os inimigos dos deuses . Nesse Festival, em
qu e os deuses cheios de a legria estavam reunidos e m gra nde nú -
mero, pronunc iei primeiro a santa bênção relativa às pal avras de to-
das as part es do discu rso , depoi s imaginei uma im itação da ce na em
que os de uses tinham vencido os seus inimi gos. A representação figu-
rava alt ercaçõe s, tumultos , membros co rtados e corpos tra spassados.
Brama e os outros g randes deuses ficaram satis fe itos com a re-
presentação , e deram-nos toda a espécie de prendas e m testemunho
da alegria qu e enchia o seu espírito . (... ) Os outros deuses presentes
nessa asse rn bleia, diferentes pel o nascimento e pel o mérito , deram
aos m eu s filh os di scursos adap tados aos seus di fe rente s papéi s, qu er
se trat asse de estados e motivos, de se ntime ntos , de forma física , de
movimentos harmon iosos e robustez do s membros, ou de ornamen-
tos magn íficos.
M as qu ando co meçou a representação qu e m ostrava a derrota e
a m orte dos inimigos dos deuses , esses in imi gos , que , apesar de não
terem s ido convidados, tinham vindo ao teatro, inc itados por espíri-
tos m alé volos, di sseram : Nós nã o querer ve r essa coisa dramática,
não qu erer representação continua r. E os mau s espír itos . se rvi ndo-
-se do se u pod e r mágico , parali sa ram a palavra, o m o vim ento , a me-
mória dos actores.
Vendo es te insult o, Indra pô s- se a medita r para descobrir a
caus a da par agem da representação . Aperce be u-se de qu e , ce rca do s
de m aus espíri tos po r todos os lad os, o di rec tor e os seus associa-
do s, os acto res, tinham sido tornado s insen sívei s e inertes.
Então , com os o lhos bri lha ntes de cólera. ( .. .) e le bateu nos
mau s es píritos que se encontravam no teatro. Quando e les partiram,
36
os deuses, alegres, di sseram: Oh Bharata, tu tens aí uma arma divin a
pela qual todos aqueles qu e queiram destruir um a peça são venci dos.
Mas em seguida, quando a peça ficou pronta e o Fes tival de In-
dra voltou de novo, os mau s espíritos, c iumentos, recom eçaram a
aterro rizar os ac tores .
(...) Aproximei -me de Brama e disse-lh e : Oh mais santo e me-
lhor dos deu ses, os maus espíritos es tão decididos a impedir es ta re-
pre sentação dr am ática; ensina-me tam bém os meios de a prot eger.
Então Bram a di sse ao seu arquitecto para construir cuida dosa-
mente um teatro do melhor tipo. Brama visi ta-o e diz aos outros
deu ses: Vós devei s cooperar na protecção das diversas partes deste
teatro, e dos obj ectos necessários à rep resentação dramática. O deu s
da lua prot egerá o edifíc io principal , os gua rdiões dos mundos os
edifícios adjacentes. (...) O grande Indra, e le mesmo, estabelecer-se-á
do lado da ce na . (...) Na secção do al to foi co locado Brama, na
seg unda Xiva, na terceira Vixnu, na qu arta Kartikeia e na quinta ou-
tros deuses poderosos. (...) O próprio Brama oc upa o meio da ce na.
É por es ta razão qu e esse local é orna do com flores no iníc io das re-
pre sentações. (...)
Durant e es te tempo, os deuses em corpo disseram a Bram a: Tu
devias aca lmar os mau s espíritos por meio da co nci liação. Primei ro
é preciso aplica r esse métod o, dep ois da r prendas, dep ois, se não
serv irem de nad a, criar a dissensão entre os inimi gos, e por fim , se
preciso, recorre r a ex pedie ntes punitivos.
Ouvindo estas palavras dos de uses , Brama chama os mau s es-
píritos e diz-lhes: Porque quereis imped ir a representação tea tral?
(...) Eles responderam : O conhec ime nto da ar te dramática que tu in-
trodu ziste pela primei ra vez segundo o desejo dos deuses co locou-
-nos sob uma luz desfavorável, e fizeste-o no interesse dos de uses .
Não o deverias ter fe ito, tu que és o pa i do mun do intei ro , tanto de
nós quanto dos deuses.
37
Bram a respondeu: Cessai a vossa cólera, aba ndo nai a vossa
tr isteza. Preparei es te tratado do teatro que determinará o bom e o
mau destino dos deuses, e o vosso, e que terá em conta os ac tos e as
ideias dos deuses , e vossas.
Neste teatro , não há rep resentação exclus iva dos deu se s, ou
vossa. O teatro é a re presentação do mundo inteiro. Fala-se aí de de-
ver, de jogos, de dinhei ro , da paz, do riso, de co mbate, de amor e de
morte. Ele ens ina o dever àqueles qu e o ignoram, o amor àque les
que a ele aspira m. Ele pu ne os mau s, aumenta o dom ínio dos qu e
são discipl inados, dá coragem aos co bardes, energia aos herói s, in-
teli gência aos fracos de es pír ito, e sa bedoria aos sábios. (...) O tea-
tro que eu inventei é um a imit ação das acções e das co ndutas dos
homens. É rico em emoções variadas, e descreve diferentes situa-
ções. As acções dos homen s qu e e le rel at a são boas, más o u in-
di ferentes. Ele dá coragem, divertimento , feli cidade e co nselhos a
todos. (...)
Não há m áxima de sabedo ria, c iê nci a, arte, ofíci o, pro cedi-
ment o, acção, qu e nã o se enco ntre no teatro.
É por isso qu e imaginei um teat ro em qu e se reún em todas as
pro víncias do sabe r, as artes e as acções mais variadas . Assim, oh
maus espíritos, vós não devereis ter cólera alguma co ntra os deuses,
porque a imitação do mundo é um a regra do teatro .
(Bharata-Natya -S hastra , cnp . I. trad. de Ja cqu es Sehercr, da trad. inglesa de Manornohan
Ghosh, The Noryasastra, A treotisc of an cient lndian Dramaturgy and histrionics, ascribcd to
Bharata Muni, Ca lcut á, 1967 (2 .') . Veja-se também René Daurna l, Bharata, Pari s, Ga llimard,
1970 .)
4 - HORÁCIO: ARTE POÉTICA (entre 23 e 13 a.c.)
Horácio (65-8 a.c.) é o único autor latino de quem conservá-
mos uma obra completa sob re a arte literária (sobretudo dramática) :
38
A Carta ao s Pisões , dita Arte Poética. que é o último poema da co -
lect ânea das Epístolas. A abundância de fórmulas convincentes e a
permanên cia da cultura latina através dos séculos contribuíram
para a grande reputação deste texto.
Horácio preconiza uma acção simples e homog énea , e multi-
plica as regras de estrutura e de f orma. Um dos seus critéri os prin-
cipais é a conveniênc ia. qu er di zer. a adequação per feita entre a
imitação e o seu modelo de uma natureza conhecida e imut ável .
Temát ica das idades 1
Para vós, escutai o qu e recl amo e que comigo recl ama o pú-
blico, se desejais que os aclamadores esperem pelo levantar do pano
colados aos seus assentos , até qu e o músico diga: « Vós, aplaudi ».
É-vos necessário notar os costumes de cada idade e dar aos
carac te re s, mudando com os a nos , os traços que lh es convêm .
A cri ança que já sabe repetir as palavras e imprime no so lo um pé
seguro, pro cura os seu s iguais para com eles brincar; a sua cólera
rompe e acalma-se se m motivo; muda de uma hora para a outra.
O jovem ainda imberbe, enfi m livre do seu preceptor, di verte-se com
os cavalos , os cães, e os rel vados do Campo de Marte en solarado; é
como a ce ra para receber a impressão do vício, rebelde a quem o re-
preende, tem pouca pressa em providenciar o útil, pródigo com o
dinheiro, altivo, cheio de de sejo e pronto a abandonar o que am .iu,
Os gos tos tran sformam-se: a idade e o espí rito do homem feit o bus-
ca m a influência , as relações, são escravos das honras c gu ard am-se
I Pode-se co mparar este texto à , I n l' Poético de I3uileau no volume da colecção lO/! X
(n.º 324 -5) qu e as reúne. e inte gra na tradu ção de Horácio por Yv e s I lu ch e r os verso s de
Bo ilcau qu e o demarcam. (NE.)
No qu e respeita à relação com a Ar t" Poético de Boilcau, existe uma tradu ção portu-
guesa d a mes ma. em verso. feita pelo conde da Ericcira, que adiante se referir á - cal' . 2 1).
(N .T.)
39
de fazer o que em breve se rá preciso remediar. Mil incomodidades
assaltam o velho, sej a que amealha, priva-se mi seravelmente dos
bens adquiridos e receia usá-los, sej a que se mostra, na execução de
todas as coisas, tímido e frio , contemporizador, am igo das longas
es pe ranças, sem activid ade , ávido de futuro , teimoso , rabujento, pa-
negiri sta do tempo pa ssad o, de quando era criança, censor pronto a
repreender os mais novos. Os anos, em vindo, tr az em mil vanta-
gens, e levam mil ao ret irar-se . Não ireis pois dar a um jovem o pa-
pel de um velho, e a um a criança o de um homem feito: cada um
deverá sempre aferrar-se aos traços que acompanham a sua idade e
lhe são inerentes.
(Horácio, Epitre aux Pison s, vv . 153 -178. apud, Épitres, trad . d e Françoi s Villeneuve,
Pari s, Les Belles Lcttres, 1941 , pp. 2 10-2 12 .)
Edições usadas em apo io à tradução portuguesa: Joaquim Jo sé da Costa e Sá. Arte
Poéti ca 011 Epístola de Q. Horá cio Flacco aos Pisôes. vertida " ornada no idioma vulgar
CO /1/ ilustraçôcs e Nota s para Uso e In strução da Mocidade Po rt ugu esa, na Officina de
Simão Thaddeo Ferrei ra , Li sb oa , 1794 ; c Horácio, Arte Poético , in trod .. trad . e comentário
de R. M. Rosad o Fernand es. Lishoa. Inqu é rito , 1984 (I 'l , 1'1'. 80 -HI. (N .T .)
5 - TERTULIANO: SOBRE OS ESPECTÁCULOS (séc .II, d.e.)
Tertuliano, cartagtn es como Santo A gostinho. viveu entre
cerca de 155 e 225 d .e. Um dos fundadores da teologia cristã . via
em torno de si as prát icas pag ãs ainda vivazes e estabele ceu. ener-
gicamente, os princíp ios de uma oposição rad ical entre o cristão e
o mundo. O vigor quase lírico da sua crítica e a multiplicidade dos
p ontos de vista abarcados fizeram com que o seu tratado De Spec-
taculis apresentasse logo imediatamente quase todos os argumentos
que foram sendo sucessivamente usados pelos teólogos cristãos (e
CI1/ particular. em Fran ça. os Jansenistas e Bossuet ) para condenar
a actividade teatral.
40
J. Origem diab ôlica do teatro
Passemos ao teatro, cuja origem e os títulos são os mesmos qu e
os do circo, como j á o dernonstr ámos quando falámos do s jogos em
geral. Assim, o aparelho do teatro não difere quase nada do d o
circo. Vai-se a um e a outro destes dois espectáculos depoi s de sa ir
do templo; onde foi prodigali zado incenso em abundân cia, e regado
o altar com o sang ue de vári as vítimas. Anda-se por entre o barulho
dos pífaros e das trombetas; enquanto duas infames personagens, os
directores dos cortejos fún ebres e dos sacrifícios , quero dizer o d e-
s ignador e o arúspice , conduze m todo o cortejo. Mas vej amos o
qu e o teatro tem de particular, e o que o distingue do circo: vejamos
primeiro como o local é infame.
O teatro é propriamente o templo de Vénus. É assim que, com
o pretexto de honrar a deusa, esse local execrável foi canonizado no
mundo. Antigamente, se se elevava um qualquer nov o teatro, que
não fosse consagrado por uma dedi ca ção so le ne, os censo res fazi am
com que fosse derrubado para evi tar a co rr upç ão dos cos tumes, que
previam dever sucede r-se infali velmente às acç ões lascivas que a í se
representavam. Reparai já aqui co mo os pagãos se conde na m a si
mesmos com os seus própri os em ba rgos, e como decidem a no sso
favor pela sua preocupação em co nservar a civilidade .
O teatro não é apenas consagrado à deu sa do amo r, mas tam-
bém ao deu s do vinho. Porque esta s duas te stemunhas da libertina-
gem e da embriag uez es tão tão estre itamente unidas que parecem ter
co nspirado juntas contra a virtude : deste modo, o palácio de V ênus
é tamb ém o paço de Baco. Com efeit o , ha via antigament e alguns jo-
gos do teatro que eram propriamente chamados de liberiais 1: não
apenas porque eram consagrados a Baco, como o são os di onisíacos
De Liber, clcu x dos v inha tci ros. (N.F.)
41
dos gregos; mas ainda porque Baco era o se u instituido r. Além
disso , estas duas di vindades execráve is não presidem menos às ac-
ções do teatro qu e ao próprio teatro; seja qu e se tenha em conside-
ração a infâmia dos gestos, ou outros movimentos di ssolutos dos
corpos. É o que se nota particularmente nos actores da comédia.
Ne ste ofício miserável , e les vangloriam-se em imolar de qualquer
maneira a sua languidez a Vénus e a Baco; un s deles por liberti-
nagens horríveis, os outros com representações lascivas e brutais.
No que respeita ao s verso s, a mú sica, as flautas , as viol as, tudo é
mostra de Apolos, das Musas, da s Minervas, dos Mercúrios. Discí-
pulo de Jesus Cristo, detestareis os objectos cujos autores vos de-
vem parecer tão detest áv ei s. Acrescentemos uma palavra no que
respeita às acções teatrai s, e à qualidade dos seus instituidores, cujo
nome apenas deve por vós ser tido em abominação. Sab emos que o
nome destes homens mortos não são nada, não mais do que os seus
sim ulac ros . Mas não ignoramos que aqueles qu e tiveram por tarefa
contrafazer a divindade so b nomes de empréstimo, e sob no vo s s i-
mulacros, não são mais do que esp íritos malignos, quer dizer, de-
mónios. Daqui aparece manifestamente que as acções teatrais de
qu e falamos são consagrad as à honra daqueles qu e , por assim dizer,
se cobriram com o nome dos seus inventores: e por consequê ncia
qu e estes exercícios são idólatras: dado que os se us auto res se fa-
zem passar por Deuse s. Estou en ganado; deveria ter dito primeiro
que estes exercícios têm um a ori gem bem mais antiga. São os de-
mónios que, prev endo desde o início que o prazer dos es pectáculos
seria um do s meios mais e ficazes para introduzir a idolatria, inspira-
ram eles própriosaos homens a arte das representações teatrais.
Com efeito, o que deveri a ag ir para sua glória, não pod eria senão
vir da sua inspiração: e para ensinar esta funesta c iênc ia ao mundo,
não deviam utilizar outros homens, senão aqueles em cuja apoteose
viessem a encontrar uma honra e uma vantagem pa rticulares.
42
2. Seduzir para o pecado
Então, se temos escrúpulos em sujar a nossa boca com essas
viandas profanas, não deveríamos, com mais forte razão, a fas tar de
todos os espect áculo s co ns agrados aos deu se s , o u aos m ortos, os
outros ó rgãos dos nossos sentidos que, sem dúvida , no s devç~ ser
mai s preciosos - quero d izer, os o lhos e os ou vid os? Porque o que
entra por esses dois órgão s não se dissolve no estômago, m as dige-
re-se na própria a lma. Ora, está fora de dúvida que a pureza da nossa
alma é muito mais agradável a Deu s qu e a limpeza do nosso co rpo.
Embora até aqui tenha mostrado qu e a idolatria reina em todas
as es péc ies de jogo s (o qu e deveri a ser sufic iente para nos fazer
od iá-l os ), tentemos, no entan to, apo ia r co m no vos argumentos o
tema em questão; quanto mais não seja para responder a alguns que
se ap roveitam do que não parece se r um a lei po sitiva que nos proíba
de ass istir aos es pec tácu los : como se esses espec t áculos não fossem
proibidos a partir do momento em que nos são inte rd itos tod os os
apeti tes do século. Com efeito, da mesma manei ra qu e há um a co -
biça das riquezas, da s honras, da boa mesa, das voluptuosidades
carnais, também há um a cobiça cios prazeres. Ora, por entre as ou-
tras espécies de prazer, podemos contar os es pec tác ulos. Os ape tites
de que ac abámos de falar, tomados no seu conj unto , ence rram em si
os prazeres; da mesma manei ra , os prazeres entend idos num se ntido
geral, estende m -se aos es pectác ulos. Dem ais a mais, di ssemos jé,
quando falám os dos loc ais em qu e se exibem esses espect áculos,
que esses locais não nos co ntaminam por si, mas pel as coisas qu e aí
se passam: porque sendo essas acções infames pel a sua natureza , fa-
zem jorrar a sua infâmia sobre os espectado res . Julgai en tão ainda,
meu s Irmãos, se se rá permitido tomar parte num dive rtime nto em
que as marcas da idol at ria estão em todo o lado.
M as como alguns es píritos só se renderiam com pena a estas
verdades , tentemos co nve ncê -los co m outros a rg umentos. Deus
43
ordena-nos qu e reverenc iemos e cons ervemos o Santo Espírito em
nós, pel a nos sa tranquilidade, no ssa doçura, nossa moderação,
nossa paciência; porque pela su a natureza é um esp ír ito terno e
do ce : pelo co ntrário, Ele proíbe-nos de o inquietarmos com os nos-
sos fu rores, com as no ssas ex c itações, com as nossas có le ras, com
as nossas tris tezas. Ora , com o pô r tudo ist o de aco rdo com os
" ?espect áculos qu e comovem, qu e agitam tão fur ios amente o es ptn to.
Porque por todo o lado onde há prazer, há paixão, se m a qual o pra-
zer seri a in sípido: por tod o o lado e m que há pai xão , há em ulação,
sem a qu al a pai xão se ria desagradável. Ora a emulação leva ao fu-
ror, à excita ção , à có lera, à tri steza , e cem outras pai xões se me lhan-
tes , qu e são incompa tíveis com os deveres da nossa re lig ião. Qu ero
mesmo que uma pessoa ass ista aos espectáculos com a gravidade e
a modéstia que habitualmente in spiram uma dignidade honrosa ou
. uma idad e avançada, ou um a boa natureza; é no en tanto muito difí-
c il qu e a a lma não sinta então uma qualquer ag itaç ão, uma qu alquer
pai xão secre ta. Não se assiste a esses divertimentos sem qu alquer
afec to, e não se ex peri me nta esse afec to sem se se nti r os se us efei-
tos, que de novo excitam a paixão . Por outro lado, se não há qual-
quer afec to , não há prazer, e então tomam o-nos c ulpados de uma
triste inutilidade por es ta rmos al i. o nde nada há a aproveita r I. Ora,
uma acção vã e inútil não co nvém em nad a, parece -me, aos Cris-
tãos. M a is a inda. um homem condena -se a si próprio ao colocar-se
por entre aquel es aos qu ai s não qu er ser seme lhante , e de qu em. por
conseq uê nc ia, se declara inimigo. Pa ra nó s, não é su ficiente qu e não
façamos o m al , é preci so ainda que não tenhamos nenhum co mérc io
co m os que o fazem.
I Fazem os referência à tra d u ção de Pic rr e de l.abriollc: Tcrtu llicn, D« Sprctacu lis,
Paris, C .D.U. , 193 3: «Ninguém acede ao pr aze r se m um a emoção, ni nguém experimenta urna
emoção se m se arri scar e le próprio às quedas . É este mesmo perigo q ue es picaçu a emoção.
Se a emoção se d esvanece , o prazer dcsaparccc .» (p. lO). (N .F .)
44
3. Macaquear o Criador
Dado que a justiça humana conde na então esses de sventura-
do s I , apesar do prazer que proporcionam ao s se us juízes; uma ve z
que ela os excl ui de toda a dign idade, e muitas vezes os confina a
locais horríveis.e de sertos: quão mai s rigorosa não será contra e les a
justi ça divin a? Pensais que Deu s possa aprovar esse coche iro do
c irco, que perturba tantas almas, que excita tantos movimentos fu-
riosos, que atormenta tant os espectadores? Acreditais que é muito
agradável ao cé u qu e, quando co roado de flores como um sacerdote
dos pagão s, ou cobe rto de uma ve stimenta tão col orida com o a
de um me stre da impudicícia, ele apareça lou vado sobre um carro?
Não se diri a que o Diabo quer ter os se us Elias arrebatados para o
céu como Deu s o teve? Acreditais igualmente que Deu s pode acar i-
nhar o actor, qu e tão cuidadosam ente rapa a barba desfigurando, por
essa infidelidade, a face que lhe foi dada? A inda , e não conten te por
tomar assim a sua face semelhante à de Saturno, de Baco e de Ísi s,
ele recebe na sua face tantas bofet adas que parece querer insultar o
pre ceit o dado por Nosso Senhor. Como? É que o Diabo o ins tru iu
para apresenta r a face es querda , quando lh e batem na outra . Da
mesma maneira, porque ninguém pod e ac rescentar um côvado à sua
altura, este rival de Deus ensina aos actores da tragédia a el evarem-
-se sobre os se us coturnos: quererá e le desment ir Jesus Cris to? Pen-
sa is ainda qu e o uso da s máscar as seja a provado por Deu s? Per-
gume-vos. Se ele proíbe toda a espéc ie de simulacros, quanto mais
não proibirá que se desfigure a sua im agem? Não , não: o auto r da
ve rdade não poderia aprova r nada de fa lso . Ele co nside ra como um a
es péc ie de adulté rio tudo o que é reformado na sua obra. Se Ele
condena tod as as es pécies de hip ocrisi a, perdoaria a um act or, qu e
I Toda a espécie de ac tores . (N .F.)
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imita a sua voz, a sua idade, o seu sexo? que finge estar apaixonado,
ou estar en colerizado'! que chora lágrimas fal sa s, e emite fal sos sus-
piros? Enfim, se esse divino mestre se exp lica assim na le i: maldito
seja aquele que se veste como uma mulher, que julgamento pensai s
vós que Ele emitiria sobre um mimo que não apenas retoma os ves-
tid os, ma s ainda a vo z, os ges tos e a languidez da s mulheres?
tTroit és de Tcrtullicn sur lOrnem ent des Femmes, lcs Spcctuctes , le Bat ême ct la Paticnrc,
trad . de M. Ca uberc, 51 ., Pa ris. Rolin fils. 1733. I: pp. l RI -I R7: 2: pp. 196· 200 ; 3: pp . 22 1-224.)
6 - SANTO AGOSTINHO - CONFISSÕES (séc. IV )
Sa nto Agostinho (354-430 d .Ci), arcebisp o de Hipona e UJII
dos princip ai s Padres da Igreja , escreveu as suas Confissões COII/
UI71 object ivo duplo, humilhar-se e edificar-se .
No terceiro !i\TO , que conta a su a j u ventude em Cartago , des-
creve a sua poixão p or unta mulhe r. dep ois a sua paixã o p elo tea -
tro; o seu esforço de int rospecção le va -o a um a análise psicológi ca
do pra zer exp erim entado pelos espectadores da tragédia .
o prazer do trágico
Tinha também, ao mesmo tempo, uma pai xa o viol enta pelos
espectáculos do Teatro , que estavam c he ios das imagens das minhas
mi sérias , e das cha mas amorosas que alimentavam o fogo qu e me
devorava. Mas qual é o moti vo qu e faz com que os homen s aí acor-
ramcom tanto ar dor, e que qu eiram expe rimentar a tristeza olhando
coi sas fun estas e trágicas que, ap esar de tudo , não qu ereriam sofrer?
Porqu e os es pectadores querem se ntir a dor, c essa dor é o seu prazer.
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Qual o motivo senão uma loucura miserável , pois so m o s tanto
mai s comovidos por essas aventuras poéticas quanto menos curados
daquelas paixões, ape sar de apelidarem de miséria O mal que so-
frem na sua pessoa, e misericórdia a compaixão que têm das infeli-
cidades dos outros. Mas que com pa ixão se pode ter para com as
coi sas fingidas e representadas num Teatro, um a vez que aí não se
excita o auditor para socorrer os fracos e os oprimidos, mas é este
convidado apenas a afligi r-se com o seu infortúnio? Que e le fica
tanto mais satisfeito com os actores quanto mai s e les o comoveram
com pena e aflição; e que, se estes sujeitos trági cos, com as suas in-
felicidades verdadeiras ou supostas , são repre sentados co m tão
pouca graça e indústria que não o afligem, sai desgostado e irrit ado
com os actores. Qu e se , pelo co ntrá rio , for toc ado co m a dor, fica
atento e chora, experimentando, ao mesmo tempo, o prazer e as lá-
grimas. Mas dado que todos os homen s naturalmente desejam ale-
grar-se, como podem go star dessas lágrimas e dessas do res? Não
será que, ainda que o homem não sinta prazer pela miséria, no en-
tanto ele sinta prazer a se r tocado pela misericórdia? e que, dado
que não pode experimentar esse movimento da alma sem expe ri-
mentar a dor, aconteça qu e, por uma consequên cia necessária, ele
acarinhe e goste des sas dores?
Então, es sas lágr imas pro cedem da fonte do amor natural qu e
temos un s pelos outros. Mas para onde vão as ág uas dessa fonte,
para onde correm ? Elas vão fundir-se numa torrente de pe z em eb u-
lição de onde saem os ardo res vio le ntos dessas negras e sujas vo-
luptuosidad es: E é nessa s acçõcs v ic ios as que esse a m o r se con -
verte, e se muda pelo seu próprio movimento, à m edida que se
afas ta e se distancia da pureza ce leste do verdadeiro amor. ( ...)
Guarda-te , minha alma, da impure za de uma co m pa ixão lou ca .
Porque existe outra, sábia e razoáv el , da qual não de ixo agora de
estar tocado. Mas então tomava parte na alegri a desses amantes do
Teatro, qu ando pelos seus artifíc ios concretiz ava m os seus de sejos
47
impudicos, em bora tudo fos se fin gido nessas representações e ne s-
ses esp ectáculos. E quando esses am antes eram obrigados a se parar-
-se, eu afligia-me com eles como se estivesse tomado de compaix ão;
e apesar de tudo, não tinha m enos prazer num que no outro.
(.. .) E e u, pelo contrário, sen t ia- me então tão m iserável que
gostava de ser tomado por qualquer dor, e buscava os se us suje itos,
não havendo nenhuma das acções dos actores que m e agradasse
tanto, e que me encantasse ainda mais , do que quando me arran-
cavam lágrimas dos olhos, pel a representaçã o de quaisquer infelici -
dades a lheias e fabulosas qu e representavam no Teatro . E não é de
surpree nde r, pois , sendo então uma ovelha infeliz que m e tinha tres-
malhado abandonando o vosso rebanho, porque não podia suporta r
o vo sso com portamento, me e ncontrava como se coberto de sa rna?
Ei s donde procedia este amor que tinha pelas dores, o qual, no
ent anto, não e ra tal qu e eu desej asse qu e fossem mais profundas no
meu coração e na minha alma. Porque se eu não tive sse gos tado de
sofrer as coi sas que me agradava ver: mas es tava descansado qu e a
narrativa e a representação que se fa ziam di ante de mim me arra-
nhavam um pouco a pele, por ass im dizer, embora e m seguida ,
co m o aco ntece aos qu e se coçam com as unhas, essa satisfaç ão pas-
sageira me causasse um inchaço cheio de inflamação de onde saía
sa ng ue co rrom pido e lama. Tal era então a minha vida, mas pode-se
cham ar- lhe vida? Meu Deus!
(Ut ilizamos a uudução de Arnau ld d ' And illy, um dos mestres pensadores ele Port-R oyal : Lcs
Co nfrssio ns de Saint Augustiu , rrad. de Amauld dAnd illy. Paris, Ve uve Camusat e Pierre Le
Pe tit . 1649 (2' .) Livro l ll. ca l' . 2. pp . 7:' -76. Veja-se tam bém Sai nt Aug ust in, Confcssions,
trad . de L. de Mnnd adon, Par is , Éd ilions Picr re lI oray. 1947.)
Edição portuguesa usa da em apo io il tradução: Santo Ago stinho. Confi ssões. trad . de J. Oli-
veira San tos c A. Ambrósio de Pina, 1'0110 . Liv raria Apostolado da Impren sa. 1982 ( 11' .).
1'1'. ó&-70.) (NT.)
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7 - ZEAMI : O ESPELHO DA FLOR e o utras obras (séc . XIV)
Zeami ( /363-1444) é a personalidade mais marcante da história
do Nó jap onês . No seguimento do seu pai. Kanami.foi o verdadeiro
criador do género, pa ra o qual soube conseguir a protecção do novo
regim e aristocrático do Japão. o do Xogun , e que ele tornou ilu stre
como actor. autor (esc reveu cerca de du zentos Nó. dos quais a me-
tade se representa ainda hoje) e como teórico. Durante longo tempo
secretas , e tran smitidas , segundo o uso , por via oral, ap enas aos
seus herdeiros . as suas ideias só f oram reveladas muito mais tarde.
O seu Espelh o da Flor só é publicado em 1665 , e uma vintena de
out ros pequenos tratados só fo ram descobertos 1/0 séc ulo vinte. Os
seus princípios estéticos, por vezes inspirados pelo budismo Zen e
expressos sob a forma de alusões poéticas , estã o longe de ser ade-
quados apenas aos problemas do princip al actor do Nó: e na rea-
lidade, envolvem uma reflexão aprofu ndada sob re o conj unto do fe -
n ômeno teatral.
1. A «fl or» do teatro
Olhando as plantas em flor, perguntamo-nos: porque se sim bo-
liza por um a flor tod as as coisas do mundo? É pela sua existê ncia
efémera que se gosta delas, elas só flo rescem durante um a estação,
são raras,
De igu al modo, o Nô fala ao co ração e susc ita o interesse .
A flor, o interesse e a raridade, eis a maravilha do Nô.
Florir e murchar são inevitávei s; é ° que torna as Ilores maravi -
lhosas . O enca nto do Nô, a sua flor, encontra-se na virtude da mu-
dança . O Nô nunca é estático, transforma-se se m cessar. como a
flor, c é esta mudança que o torna tão raro .
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No entanto, é nec essário respeitar as suas regras e evitar a ex-
travagância, mesmo na demanda da raridade e da novidade. Após
todos os exercícios, no momento de a pre se ntar um N ô, é preciso
escolhe r de acordo co m a situ ação. De entre todas as flore s, só é
verdadeiramente rara aquela qu e eclode no se u quadro temporal.
Do me smo modo, se aprendestes bem as numerosas técnicas da s ar-
tes , escolhe re is ad aptando-vos à época e ao público; será como um a
tlor na sua estação.
As flores de hoje são semelhantes às do ano passad o. As sim, o
N ô, mesmo tendo já s ido visto antes , ou inscrevendo-se num repert ó-
rio importante, retomará, após a passagem do tempo, igualm ente raro.
2. A teoria dos sete décimos
Quando movem os o nosso espírito até aos dez décimos . é pre-
ciso moverm os o nosso corpo aos sete décimos . Há, portanto, mais
sentimento int erior que movimento corpora l. Depois de ter prati-
cado intensamente os exercíc ios , de maneira fiel ao mestre, é pre-
ciso ter um pouco de contensão nos gestos, por exemplo, no modo
de estender as mãos, o u de movimentar os pé s; o jog o exte rior não
deve ultrapassar o jogo interior. Não se ap lica apenas aos ges tos da
dança . Se o ac to r contro la os seus m ovimentos corporais mais do
qu e os do s se us sentimentos, a sua int erpretação será int eressante ,
porque a sua emoção dará encanto à sua expressão, fundada numa
ba se só lida de movimentos corporais contidos.
Quando os movimentos do COl p O sôo f ortes , andai docemente.
Quando caminha is com força , que os movim entos do vosso corpo
sejam doces. Ta l resulta das ex plicações precedentes so bre a maior
força dos movimentos interiores. Se a interpret ação parece brutal
aos es pectadores , é porque o corpo e os pés se movimentam parale-
lamente. Se , ag itando o corpo, se atenuar o jogo de pés, parecerei s
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