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Autoras: Profa. Ana Elisa Thomazella Gazzola Profa. Helena Salim de Castro Profa. Kimberly Alves Digolin Colaboradores: Prof. Enzo Fiorelli Vasques Prof. Jefferson Lécio Leal Teorias das Relações Internacionais Professoras conteudistas: Ana Elisa Thomazella Gazzola / Helena Salim de Castro / Kimberly Alves Digolin Ana Elisa Thomazella Gazzola Doutoranda e mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Univerisade Estadual Paulista – Unesp), com foco em processos de integração regional na América do Sul. Pesquisadora do Observatório de Regionalismo (ODR) e da Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo (Repri). Tem pós-graduação em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e graduação em Relações Internacionais pela Unesp. É professora titular no curso presencial e de apoio à distância (EaD) de Relações Internacionais da Universidade Paulista (UNIP). Helena Salim de Castro Doutoranda e mestra em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp/Unicamp/PUC-SP) na área de paz, defesa e segurança internacional. Tem graduação em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). É pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Gedes) e do Núcleo de Estudos Transnacionais de Segurança (Nets). É professora do curso de Relações Internacionais da UNIP. Kimberly Alves Digolin Mestra em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp/Unicamp/PUC-SP) na área de paz, defesa e segurança internacional. Tem graduação em Relações Internacionais pela Unesp e é pesquisadora do Gedes e da Rede de Pesquisa em Paz, Conflitos e Estudos Críticos de Segurança (PCECS). É professora do curso de Relações Internacionais da UNIP. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) G291t Gazzola, Ana Elisa Thomazella. Teorias das Relações Internacionais / Ana Elisa Thomazella Gazzola, Helena Salim de Castro, Kimberly Alves Digolin. – São Paulo: Editora Sol, 2020. 140 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230. 1. Neorrealismo. 2. Neoliberalismo. 3. Marxismo. I. Gazzola, Ana Elisa Thomazella. II. Castro, Helena Salim de. III. Digolin, Kimberly Alves. IV. Título. CDU 341.12 U510.34 – 21 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcello Vannini Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Deise Alcantara Carreiro – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Juliana Muscovick Lucas Ricardi Sumário Teorias das Relações Internacionais APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................8 Unidade I 1 O QUE É UMA TEORIA? ....................................................................................................................................9 1.1 Debate teórico nas relações internacionais ............................................................................... 11 2 REALISMO ........................................................................................................................................................... 15 2.1 Realismo nas relações internacionais .......................................................................................... 20 2.2 Críticas e reformulações na Teoria Realista .............................................................................. 27 3 LIBERALISMO .................................................................................................................................................... 31 3.1 Liberalismo nas relações internacionais ...................................................................................... 34 3.2 Primeiras reformulações na Teoria Liberal ................................................................................ 41 4 ESCOLA INGLESA ............................................................................................................................................. 45 4.1 Três tradições da política internacional ...................................................................................... 47 4.2 Principais conceitos ............................................................................................................................. 49 4.2.1 Ordem internacional ............................................................................................................................ 49 4.2.2 Sistema internacional .......................................................................................................................... 50 4.2.3 Sociedade internacional....................................................................................................................... 50 Unidade II 5 NEORREALISMO ............................................................................................................................................... 59 5.1 Retomada ................................................................................................................................................ 65 5.2 Vertentes ................................................................................................................................................. 70 5.2.1 Realismo defensivo ................................................................................................................................ 70 5.2.2 Realismo ofensivo................................................................................................................................... 71 5.2.3 Realismo periférico ................................................................................................................................ 76 5.3 Críticas à Teoria Neorrealista ........................................................................................................... 78 6 NEOLIBERALISMO............................................................................................................................................ 80 6.1 Interdependência complexa ............................................................................................................. 82 6.2 Institucionalismo .................................................................................................................................. 87 6.2.1 Funcionalismo .......................................................................................................................................... 87 6.2.2 Neofuncionalismo .................................................................................................................................. 88 6.2.3 Liberal institucionalismo ......................................................................................................................89 6.3 Debate neo-neo sobre as instituições internacionais ........................................................... 95 Unidade III 7 MARXISMO E SISTEMA-MUNDO ............................................................................................................105 7.1 Materialismo histórico .....................................................................................................................105 7.2 Imperialismo nas relações internacionais ................................................................................111 7.3 Estruturalismo marxista...................................................................................................................113 8 TEORIA DA DEPENDÊNCIA .........................................................................................................................115 8.1 Contexto histórico ............................................................................................................................118 8.2 Vertentes ...............................................................................................................................................121 8.2.1 Estruturalista cepalina ........................................................................................................................121 8.2.2 Desenvolvimento associado ............................................................................................................ 122 8.2.3 Neomarxista ........................................................................................................................................... 124 7 APRESENTAÇÃO Este livro-texto tem como objetivo analisar e compreender as teorias clássicas e suas derivações mais contemporâneas nas relações internacionais, inserindo-as em seus respectivos contextos históricos. O campo das relações internacionais é por natureza multidisciplinar. Um profissional bem capacitado da área é capaz de fazer interconexões entre diferentes questões a partir de diversos campos, como economia, direito, ciência política e história. Partimos da visão de que é necessário estimular a capacidade de fazer interconexões, para que, assim, o profissional esteja preparado para analisar os fenômenos internacionais em suas múltiplas dimensões. Ao final do livro-texto, espera-se que os alunos tenham condições de: • Compreender o papel da teoria para a pesquisa e a análise no curso de Relações Internacionais. • Compreender as relações entre a teoria e as diferentes situações históricas. • Identificar e distinguir as vertentes teóricas em relações internacionais e o seu significado. • Interpretar e descrever as relações internacionais com base nas abordagens teóricas clássicas e em seus desdobramentos contemporâneos. • Desenvolver leituras críticas sobre temas de relações internacionais e outros campos do saber. • Desenvolver aprofundamento e sofisticação nas análises orais e escritas sobre temas das relações internacionais, com a utilização de vocabulário próprio da área. • Investigar as origens e discutir os elementos das mudanças no atual sistema internacional a partir das teorias das relações internacionais. Nesse sentido, este livro-texto estimula a realização de interconexões não só dentro do curso, mas com relação a fatos e notícias que fazem parte do cotidiano. Para isso, os capítulos também trazem diversos materiais de apoio, como filmes e animações, de modo a facilitar a compreensão do conteúdo por meio de uma linguagem mais lúdica, assim como exercícios de aplicação das teorias em situações contemporâneas. Uma excelente e proveitosa jornada a todos! 8 INTRODUÇÃO O conteúdo a seguir foi estruturado em torno de teorias e de grandes debates. Primeiramente, nos dedicaremos a uma introdução ao debate teórico, resgatando a origem da disciplina e definindo o que é uma teoria científica para, em seguida, traçar um panorama geral das teorias da área. Veremos quais são essas teorias, quais os contextos históricos em que foram formuladas, quais os seus objetivos, quais os principais atores e temas analisados, entre outros. Em seguida são abordadas as Teorias Realista e Liberal das relações internacionais, duas correntes teóricas mais tradicionais que estão associadas às próprias origens do campo. Para tanto, resgatamos a base filosófica clássica que inspirou essas teorias – as análises de autores como Hobbes, Maquiavel e Kant – para, em seguida, discorrer sobre a sistematização dessas análises teóricas em relação ao objeto específico da política internacional, destacando seu contexto histórico e os principais autores. Abordaremos também a escola inglesa, teoria que destaca a noção de sociedade internacional e se propõe a figurar como uma via intermediária entre o realismo e o liberalismo. Estudaremos o neorrealismo e o neoliberalismo das relações internacionais – teorias que mantiveram parte de suas bases clássicas, mas atualizaram o debate a partir das críticas e das novas dinâmicas observadas. Elas podem ser compreendidas como reinterpretações do realismo e do liberalismo, respectivamente, porém, com uma proposta de maior rigor científico-metodológico, tendo em vista o debate acadêmico do período (1960-1980). Serão apresentadas as abordagens marxistas nas relações internacionais, partindo da base filosófica clássica que foi incorporada ao debate da área. Trata-se de uma discussão importante, pois, se antes as análises estavam centradas nos atores estatais, as abordagens marxistas resgatam a importância de se observar a forma como os grupos de indivíduos – ou classes sociais – influenciam na política internacional. Por fim, estudaremos a Teoria da Dependência, a qual possui inspirações marxistas, mas com foco específico nas razões sociais, econômicas e históricas que envolvem a dicotômica relação entre os países do centro (Norte) e da periferia mundial (Sul). Trata-se de uma teoria de origem latino-americana e, portanto, fundamental para o aluno. 9 TEORIAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Unidade I 1 O QUE É UMA TEORIA? A disciplina em questão é estruturada em torno de teorias e grandes debates. Por ser relativamente recente se comparada a outras áreas de estudo, os fundamentos das teorias de relações internacionais podem ser encontrados em autores clássicos de outras áreas do conhecimento, sendo relevante lembrar de seu caráter interdisciplinar. Mas, afinal, o que é uma teoria e por que elas são importantes para se analisar determinados fenômenos? A palavra teoria vem do grego theoros, que significa espectador ou testemunho. Já o verbo teorizar, também derivado do grego, tem origem na palavra theorein e significa “observar com maravilhamento o que acontece para descrevê-lo, identificá-lo e compreendê-lo” (BATTISTELLA, 2014, p. 27). A teoria fornece o instrumental para se compreender o conjunto de questões às quais a disciplina se propõe abarcar, fornecendo uma espécie de mapa do caminho (PECEQUILO, 2016). Nesse sentido, uma teoria pode ser entendida como “um conjunto de propostas e conceitos tendentes a explicar fenômenos ao fazer relações explícitas entre os conceitos trabalhados” (MINGST, 2006, p. 111). Pela natureza ampla e complexa da realidade, é improvável que uma análise considere todas as variáveis que compõem um determinado problema. Dessa forma, a teoria fornece um marco para o estudo dos fenômenos, baseado em um conjunto de conceitos e pressupostos. Uma teoria não é capaz de explicar a totalidade de uma questão, mas fornece os instrumentos para identificar quais são os pontos centrais a serem analisados e o modo pelo qual o estudo pode ser feito. Em síntese, as teorias podem ser compreendidas como lentes que permitem uma análise mais clara do objeto estudado. Assim, diferentes interpretações sobre um problema podem ser realizadas a partir da aplicação de lentes diversas, uma vez que cada teoria valoriza um conjunto de questões em detrimento de outros. Trata-se de um modo de organizar o conhecimentoe facilitar a aproximação do estudioso com a realidade. No entanto, é importante destacar que as teorias evoluem com o tempo e sofrem reedições de acordo com as novas temáticas e olhares empregados, ao mesmo tempo em que outras correntes teóricas despontam e ganham espaço. Segundo Raymond Aron (1967), as teorias são como caixas de ferramentas que estão à disposição do analista para que ele possa propor uma compreensão das relações internacionais a partir do ponto de vista de um ator ou fenômeno específico. Uma teoria é como se fosse um quadro. Não é possível retratar toda a realidade nele, por mais detalhado que busque ser, pois as bordas impõem um limite para o que cabe na tela e a parte de trás dos objetos desenhados não poderá ser retratada. Ou seja, assim 10 Unidade I como o pintor escolhe o ângulo observado e o que ficará de fora desse limite das bordas, a teoria “isola um campo a fim de tratá-lo intelectualmente” (BATTISTELLA, 2014, p. 122). Uma teoria diz respeito à abstração de fatos em busca de padrões, agrupando eventos em conjuntos e classes. Em outras palavras, significa simplificar a realidade a partir das regularidades que os eventos possuem, sem desconsiderar os aspectos particulares de cada um. Nesse sentido, existe uma diferença entre história e teoria social. Enquanto a primeira busca explicar cada conjunto de eventos em seus próprios termos, a teoria social busca explicações e compreensões mais gerais e aplicáveis a diversos casos em diferentes períodos e locais. Desse modo, as teorias das relações internacionais são as lentes que buscam formular métodos e conceitos que permitam compreender a natureza e o funcionamento do sistema internacional, bem como explicar os fenômenos mais importantes que moldam a política internacional (NOGUEIRA; MESSARI, 2005, p. 2). A figura a seguir ilustra a analogia de teorias como lentes diversas, as quais permitem melhor compreender a realidade a partir do foco em determinados atores ou dinâmicas. Figura 1 Exemplo de aplicação Assista ao filme A lenda do tesouro perdido, com especial atenção à cena em que Ben Gates utiliza um protótipo de óculos desenvolvido por Benjamin Franklin para ler um mapa. Relacione esse protótipo com a existência de diversas teorias e, em seguida, discorra sobre a possibilidade de se analisar um mesmo objeto ou fenômeno, por exemplo, a questão da cooperação internacional, a partir de perspectivas distintas. 11 TEORIAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Saiba mais Para fazer o exercício de aplicação anterior, assista ao filme a seguir: A LENDA do tesouro perdido. Direção: Jon Turteltaub. Estados Unidos: Walt Disney Pictures, 2004. 131 min. 1.1 Debate teórico nas relações internacionais Em um mundo tão globalizado é difícil passar um dia inteiro sem ter contato com uma notícia internacional que tenha, de algum modo, impacto em nossas vidas. Lemos e ouvimos sobre acordos ou crises políticas, econômicas, sociais e ambientais que ocorrem em um país ou região e que, prontamente, afetarão alguma área ou setor do Brasil. No entanto, durante muitos anos, essa não era a realidade observada. Antigamente, os assuntos que extrapolavam as fronteiras nacionais – em especial a guerra e a paz – eram abordados por dois setores específicos da sociedade, distantes do resto da população. Assuntos de política exterior eram usualmente restritos aos diplomatas e às forças militares de cada Estado. Observação Os diplomatas são responsáveis por representar o interesse de seus países em negociações internacionais. Embora as temáticas da guerra e da paz no âmbito internacional sejam bem antigas, podendo ser remontadas à Grécia Antiga – como analisado por Tucídides em 400 a. C. na obra História da guerra do Peloponeso –, o assunto só foi sistematizado em uma disciplina em 1919, quando foi criado o primeiro Departamento de Relações Internacionais, na Universidade de Gales, no Reino Unido. Isso ocorreu porque após a humanidade vivenciar os horrores em larga escala da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) surgiu uma preocupação maior em sistematizar a compreensão da realidade, buscando entender por que os conflitos ocorrem e se seria possível evitá-los. Foi a partir desse momento que a temática de relações internacionais ganhou um objeto de estudos próprio, com a preocupação de se desenvolver análises com embasamento mais metodológico e teórico. Antes disso, os assuntos de relações internacionais eram abordados de modo secundário por outras áreas do conhecimento, como ciência política, economia e sociologia. 12 Unidade I Observação Com o fim das Guerras Napoleônicas (1803-1815), os Estados europeus se reuniram no Congresso de Viena com o objetivo de redesenhar o ordenamento político após a derrota da França. Surge ali o Concerto Europeu, quando França, Grã-Bretanha, Prússia, Rússia e Império Austro-Húngaro passaram a dividir o poder hegemônico em uma espécie de sistema multipolar. Esses países atuariam com o objetivo comum de promover a manutenção da balança de poder, de modo que nenhum país se tornasse tão poderoso a ponto de dominar os outros. No entanto, essa constante insegurança e o fato de o Congresso de Viena ter excluído alguns Estados, que com o tempo passaram a demandar maior participação nas decisões, tornou a Europa uma espécie de barril de pólvora. Assim, a morte do arquiduque austríaco Francisco Ferdinando, em Sarajevo, em 1914, acabou desencadeando os conflitos que levaram à Primeira Guerra Mundial. O fim da Primeira Guerra Mundial marcou uma transição no ordenamento internacional – passando do antigo Concerto Europeu estabelecido em Viena, para um novo momento, em que as antigas hegemonias europeias se encontravam fragilizadas –, deixando à mostra a necessidade de se analisar esse processo de modo mais profundo e específico, buscando melhores meios para promover a paz entre as nações. O debate inicial das relações internacionais tinha, portanto, dois lados opostos: o liberalismo, que defendia a possibilidade de transformar o mundo a partir de uma visão normativa do que deveria ser a realidade, baseada especialmente na possibilidade de cooperação; e o realismo, que buscava analisar o mundo tal como ele era, buscando compreender as causas da guerra e garantir a estabilidade internacional em termos de equilíbrio de poder. Entretanto, com o passar dos anos, os atores e as dinâmicas internacionais foram se alterando, fato que tornou necessárias novas formas de se analisar o objeto da política internacional, a fim de preencher certas lacunas ou ajustar arestas. Entre elas destacam-se as próprias revisões do realismo e do liberalismo – o neorrealismo e neoliberalismo –, as quais marcaram um forte debate entre si. Assim se sucedeu também com a escola inglesa das relações internacionais, o materialismo histórico e a teoria do sistema-mundo, bem como a Teoria da Dependência. Todas essas teorias serão abordadas adiante, destacando suas bases clássicas, contextos históricos, principais conceitos e objetivos. Ademais, a disciplina Relações Internacionais também se estrutura em torno de grandes debates entre essas teorias ou acerca das metodologias por elas utilizadas. A compreensão desses debates auxilia o estudante a situar os momentos históricos em que determinadas abordagens ou métodos estiveram mais presentes e os motivos para que isso ocorresse. 13 TEORIAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS O primeiro grande debate da disciplina configurou-se em torno do liberalismo e do realismo, uma vez que divergiam sobre o padrão de comportamento existente no sistema internacional, entre cooperação ou conflito. Já o segundo debate das relações internacionais – usualmente conhecido como tradicionalismo versus behaviorismo – esteve menos centrado nas temáticas analisadas e mais preocupado com os métodos científicos das pesquisas. Ele teve espaço entre os anos 1950 e 1960, sendo caracterizado pelas discordâncias entre os tradicionalistas, que insistiamna importância da história para as análises, e os behavioristas, que apostavam em uma metodologia semelhante à da ciências exatas para as relações internacionais. O terceiro debate é comumente intitulado de neo-neo, uma vez que engloba o neorrealismo e o neoliberalismo. Tem sua origem nos anos 1970, a partir das novas dinâmicas observadas, e a necessidade de atualizar as bases clássicas, mas perdura e ganha novos contornos com o fim da Guerra Fria. Observação Alguns autores compreendem que o debate neo-neo representa apenas uma retomada do primeiro grande debate entre realismo e liberalismo e que o terceiro debate das relações internacionais, na verdade, corresponderia ao contraponto entre as abordagens mais clássicas centradas nos atores estatais e as radicais – ou neomarxistas –, que destacam a importância das classes sociais na política internacional. O quarto e último grande debate das relações internacionais teve espaço a partir dos anos 1980, entre racionalistas e reflexivistas – ou relativistas. Trata-se de um debate epistemológico, ou seja, acerca da forma de se estudar um determinado tema. Enquanto o primeiro grupo buscava julgar de modo objetivo os comportamentos dos atores, os reflexivistas “desconfiavam dos modelos científicos e criticavam a formulação de verdades objetivas sobre o mundo social” (PEREIRA; ROCHA, 2014, p. 316), defendendo a interpretação histórica e textual, uma vez que as relações internacionais seriam socialmente construídas. Alguns intitulam-no como positivismo versus pós-positivismo. Vale ressaltar o caráter parcial do conhecimento e das teorias, especialmente aquelas que não buscam oferecer apenas um modo de análise, mas também uma visão de como o mundo é – realismo e escola inglesa – ou deveria ser – liberalismo e marxismo. Ainda que se apresentem enquanto teorias universais, elas possuem um discurso originado no Ocidente e buscam a manutenção do poder e da influência a partir desse ponto de vista (ACHARYA; BUZAN, 2010; COX, 1986). A seguir, elaboramos uma espécie de linha do tempo apresentando o debate teórico das relações internacionais, tendo início na criação do primeiro departamento da disciplina e seguindo com os anos de publicação das principais obras teóricas da área, associado a um breve resumo de cada contexto. Vale ressaltar que não se trata de uma linha cronológica no sentido de que as teorias mais recentes são mais completas que as anteriores. 14 Unidade I Ao contrário, conforme citado anteriormente, as teorias são como lentes, cada uma auxilia a compreender objetos ou fenômenos ao focar em determinados aspectos ou ao oferecer como ferramental determinados conceitos. No entanto, não existe uma teoria melhor que a outra de modo absoluto. Existem apenas teorias que auxiliam mais ou menos, a depender da perspectiva que o observador pretende analisar. • 1910: Norman Angell publica a obra A grande ilusão, a qual, apesar de não se propor a desenvolver uma teoria das relações internacionais, contribui para a formulação dos pressupostos do liberalismo. • 1919: após o fim da Primeira Guerra Mundial, é criado o primeiro Departamento de Relações Internacionais na Universidade de Gales, no Reino Unido. • 1939: Edward Carr publica a obra Vinte anos de crise (1919-1939): uma introdução aos estudos das relações internacionais. Em 1945, termina a Segunda Guerra Mundial e se inicia a Guerra Fria entre Estados Unidos e a antiga União Soviética. • 1946: Robert Martin Wight publica a obra A política do poder, centrando esforços no debate acerca do comportamento internacional dos Estados e do relacionamento entre eles. • 1948: Hans Morgenthau sistematiza a teoria realista das relações internacionais com a obra A política entre as nações: a luta pelo poder e pela paz, apresentando os seis princípios do realismo. • 1959: Kenneth Waltz publica a obra O homem, o Estado e a guerra: uma análise teórica, na qual afirma que para se compreender as causas da guerra seria necessária uma análise multinível, do micro para o macro. • 1962: Raymond Aron publica a obra Paz e guerra entre as nações, retratando a política internacional nas figuras do diplomata e do soldado. • 1977: Hedley Bull publica a obra A sociedade anárquica: um estudo da ordem na política mundial, apresentando o conceito de sociedade internacional presente na escola inglesa. • 1979: Kenneth Waltz publica a obra Teoria da política internacional, aprofundando e amadurecendo seu argumento neorrealista sobre os constrangimentos estruturais. • 1981: Robert Gilpin publica a obra Guerra e mudança na política internacional, incluindo a dimensão econômica às abordagens realistas. • 1987: Stephen Walt publica a obra As origens das alianças, expoente do realismo defensivo, que aborda o conceito de equilíbrio de ameaça. • 1988: Robert Keohane e Joseph Nye publicam a obra Poder e interdependência: a política mundial em transição. 15 TEORIAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS • 1992: Carlos Escudé publica a obra Realismo periférico: bases teóricas para uma nova política externa argentina. • 1993: Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto publicam a obra Dependência e desenvolvimento na América Latina. • 1994: Fred Halliday publica a obra Repensando as relações internacionais, a qual discute o sistema pós-Guerra Fria e propõe uma abordagem marxista para as relações internacionais. • 1997: Andrew Moravcsik publica a obra Teoria liberal da política internacional, buscando reafirmar a importância dos pressupostos liberais na área de relações internacionais. • 2000: Theotonio dos Santos publica a obra Teoria da dependência: balanço e perspectivas, analisando a situação socioeconômica da América Latina desde a década de 1960 até os dias atuais, com foco nas relações de dependência em relação ao centro. • 2001: John Mearsheimer publica a obra A tragédia da política das grandes potências, expoente do realismo ofensivo. Saiba mais Para mais informações sobre os debates teóricos nas relações internacionais, sugere-se as seguintes leituras. BATTISTELLA, D. Teoria das relações internacionais. São Paulo: Senac, 2014. NOGUEIRA, J. P.; MESSARI, N. Para que uma teoria das relações Internacionais? In: NOGUEIRA, J. P.; MESSARI, N. Teoria das relações internacionais: correntes e debates. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. PECEQUILO, C. S. Teoria das relações internacionais: o mapa do caminho. Rio de Janeiro: Alta Books, 2016. 2 REALISMO O realismo é a primeira abordagem a se estruturar enquanto uma teoria das relações internacionais propriamente dita, ainda que tenha surgido como reação aos ideais liberais que passaram a ganhar força após o fim da Primeira Guerra Mundial. Para o realismo, o poder seria a variável fundamental para analisar e compreender a política internacional, sendo os Estados os atores centrais no cenário internacional. Nesse sentido, ao compreender que os Estados são egoístas e existe uma tendência ao conflito no sistema internacional, a Teoria Realista tem como cerne o estudo das causas da guerra e as formas de se promover a estabilidade da ordem internacional. As noções de segurança e autoajuda ganham, portanto, destaque nessa perspectiva. 16 Unidade I Lembrete Autoajuda significa que um ator só poderia contar consigo mesmo para garantir sua sobrevivência. Porém, antes de nos debruçarmos sobre a Teoria Realista, é importante resgatar suas bases clássicas. A primeira delas está presente no pensamento de Tucídides, especialmente na obra História da guerra do Peloponeso. Ao tratar do conflito entre as cidades-Estado gregas de Atenas e Esparta, que ocorreu entre 431 e 404 a. C., o autor fornece bases para conceitos que seriam utilizados pelo realismo muito tempo depois (DUNNE; SCHMIDT, 2001; NYE JR., 2009; PECEQUILO, 2016). Apesar de terem se aliado contra o Império Persa, Esparta passa a compreender que o poder que Atenas vinha acumulando seria prejudicial aos seus interesses, na mesma medida em que Atenas se preocupavacom a oposição espartana ao seu próprio fortalecimento. Desse modo, é possível observar já em Tucídides a compreensão de que o poder pauta as relações sociais. A figura a seguir ilustra a Guerra do Peloponeso, inclusive retratando as forças aliadas de cada lado. No caso de Atenas, é possível observar a Liga de Delos, uma aliança de proteção mútua entre as cidades-Estado do Mar Egeu que havia sido criada contra os persas. E, no caso de Esparta, a Liga do Peloponeso, uma aliança defensiva composta por outras cidades-Estado na península. Figura 2 – Guerra do Peloponeso 17 TEORIAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS O conflito seria parte normal da política nesse caso, pois, diante da instabilidade causada pela assimetria de poder em favor de Atenas, caberia a Esparta resistir para continuar assegurando seus próprios interesses. Essa situação ilustra o conceito de equilíbrio de poder – ou balança de poder – que se tornará central para o realismo, referindo-se a uma forma de contenção mútua entre as unidades políticas soberanas, ou “um cenário onde a distribuição de poder restringe a preponderância absoluta de um Estado em relação a outros” (OTAVIO, 2018, p. 79). Em síntese, equilíbrio de poder é uma situação em que a competição entre Estados soberanos em um sistema internacional anárquico gera uma contenção mútua entre os envolvidos, produzindo um equilíbrio e uma forma de estabilidade no cenário internacional. Trata-se de uma situação sensível que pode ser afetada caso as capacidades e recursos dos atores se alterem, da mesma forma que o equilíbrio em uma gangorra seria algo frágil de ser mantido. Saiba mais Para saber mais sobre a Guerra do Peloponeso, leia os textos a seguir: NYE, J. Existe uma lógica duradoura de conflito na política mundial? In: NYE, J. Compreender os conflitos internacionais. São Paulo: Gente, 2009. TUCÍDIDES. História da guerra do Peloponeso. Brasília: UnB, 2001. O realismo também encontra base nos escritos de Nicolau Maquiavel, pensador florentino famoso pela autoria de O príncipe, obra na qual se distancia da noção comum de que a política teria um fim em si mesma ou que deveria seguir uma série de normas que corresponderiam com padrões de virtude. Maquiavel nasceu no ano de 1469, período em que a Itália tal qual conhecemos hoje não existia, estando fortemente dividida em distintas cidades-Estado. Para o autor, que fora historiador e diplomata, era justamente essa falta de unidade que poderia levar à sua dizimação. Por isso, argumenta sobre a necessidade de a Itália se unificar a partir da dominação das cidades-Estado vizinhas, destacando a importância da concentração do poder. Ao romper com a tradição da política relacionada ao governo bom, justo e virtuoso, Maquiavel passa a entendê-la como a arte de conquistar e manter o poder. Nesse sentido, o conflito é parte natural da política e a guerra seria ordinária, uma vez que é um instrumento do poder. Assim, Maquiavel coloca a questão do poder como central e aproxima a política de uma técnica, defendendo que as ações políticas não deveriam ser julgadas pela moral individual, mas sim por critérios próprios. Maquiavel disserta a respeito da necessidade de romper com o poder da Igreja – que antes nomeava os reis –, a fim de promover maior estabilidade. Poderia haver uma instrumentalização da Igreja em determinados casos, mas nunca ao ponto de associar a política à moralidade individual, pois o uso da violência em nome da manutenção e estabilidade do Estado sempre seria legítimo. 18 Unidade I Dessa forma, é possível afirmar que a separação entre moral e política, o uso do cálculo racional e, especialmente, o poder como aspecto central são pontos que o realismo nas relações internacionais recupera do pensamento de Maquiavel para construir suas bases. Por fim, outro autor clássico importante para o pensamento realista é Thomas Hobbes. Nascido na Inglaterra em 1588, o matemático e filósofo viveu no contexto da guerra civil inglesa, o que o motivou a escrever a obra Leviatã. Ao abordar a importância de um Estado forte para garantir a unidade social e a paz, a obra é assim intitulada em referência ao monstro bíblico citado no Livro de Jó, que seria muito poderoso e destemido. Publicado em 1651, Leviatã aborda a estrutura da sociedade e do governo legítimo, sendo considerado um dos exemplos mais antigos e influentes da teoria do contrato social. Para Hobbes, tendo em vista que o estado de natureza do indivíduo era hostil e egoísta, para haver estabilidade seria necessário um contrato social, em que os indivíduos cederiam parte de sua liberdade a esse Leviatã, figura que representaria o governo central, em troca de segurança. Observação O estado de natureza não é um momento histórico real. Trata-se de um modelo hipotético, um exercício mental reflexivo para se entender uma situação anterior ao Estado, quando não há uma autoridade central para reger as relações sociais. É importante ressaltar que Hobbes escreve após a assinatura do Tratado de Vestfália (1648), portanto, o debate proposto não é mais sobre a necessidade de unificação de diversas cidades-Estado, como era discutido por Maquiavel, mas sim a de concentrar o poder em uma figura de autoridade. Em outras palavras, Hobbes defendia uma espécie de absolutismo político, quando o poder deve estar concentrado em uma única entidade, isto é, independente de outro órgão. Segundo Hobbes (s.d., p. 2), a primeira lei natural do indivíduo é a autopreservação, o que poderia levar a uma espécie de guerra de todos contra todos. Por isso, para que haja estabilidade na vida em sociedade, seria necessário um pacto de submissão, no qual os indivíduos cedem parte de suas liberdades à figura do Leviatã em troca de vantagens sociais, em especial a garantia de segurança. Por exemplo, se em estado de natureza um grupo de dez pessoas possui uma faca cada um, pode ser que todos se sintam inseguros, receosos de serem atacados, e acabem entrando em um conflito para garantir sua própria sobrevivência. Isso ilustra a alegoria que Hobbes faz de que o homem é o lobo do próprio homem. Esse contrato social seria marcado pela entrega de todas as facas ao soberano. Dessa forma, apesar de os indivíduos terem perdido a liberdade de possuir uma faca, todos estariam mais seguros porque o monopólio das facas estaria agora nas mãos do soberano, que deveria em troca lhes proteger. 19 TEORIAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS O contexto em que Hobbes escreve nos ajuda a compreender seu pensamento. Existe uma relação entre o modelo de estado de natureza proposto e o período de guerra civil em que ele viveu. Para o autor, esse caos só poderia ser evitado por um governo central forte, inclusive como uma forma de criticar o Parlamento e a divisão de poderes que existia na Inglaterra, os quais Hobbes julgava contribuírem para a instabilidade interna do Estado. Exemplo de aplicação Assista ao filme O senhor das moscas e discorra sobre a relação entre o estado de natureza humana proposto por Hobbes e a ocorrência de conflitos na sociedade. Utilize exemplos do filme para traçar paralelos com situações das relações internacionais. Saiba mais Para fazer o exercício de aplicação anterior, assista ao filme a seguir: O SENHOR das moscas. Direção: Harry Hook. Estados Unidos: Castle Rock Entertainment, 1990. 90 min. Desse modo, entre as ideias de Hobbes que foram resgatadas pelos teóricos realistas das relações internacionais, podemos destacar a busca pela autopreservação levando a um estado de guerra latente. Isso não significa que os atos de violência sejam ininterruptos, mas sim que a ameaça do conflito é constante. Assim, a guerra “não consiste somente em batalhar, no ato de lutar, mas se dá no lapso de tempo em que a vontade de lutar se manifesta de modo suficiente” (HOBBES, s.d., p. 52). A perspectiva realista, portanto, estabelece um paralelo entre esse estado de natureza hobbesiano e as relações internacionais. Em outras palavras, avisão negativa da natureza humana é passada para os Estados, entendidos como atores egoístas que procuram maximizar seus próprios ganhos e defender seus interesses, sendo a sobrevivência o interesse primordial, em um ambiente onde não existe um Leviatã acima dos Estados. Os Estados desconfiariam uns dos outros – assim como os indivíduos com facas desconfiavam dos seus pares – e buscariam aumentar seu poder a partir de um sistema de autoajuda, considerando as relações internacionais como um jogo de soma zero. Ou seja, o ganho de um ator representa a perda de outro. Tal situação representaria a dinâmica do conflito no cenário internacional e a necessidade de se encontrar mecanismos de estabilidade, embora a possibilidade da guerra sempre deva ser considerada. 20 Unidade I Saiba mais Para saber mais sobre as teorias de Maquiavel e Hobbes, bem como suas contribuições para as relações internacionais, leia os textos a seguir: BARNABÉ, I. R. Hobbes e a teoria clássica das relações internacionais. Revista Prometeus, v. 7, n. 16, p. 141-157, jul./dez. 2014. ROCHA, A. J. R. O debate sobre cooperação e conflito das relações internacionais: lições de Maquiavel, Hobbes, Kant, Rousseau e Marx. In: ROCHA, A. J. R. Relações internacionais: temas e agendas. Brasília: IBRI, 2002. p. 232-259. WEFFORT, F. (org.). Os clássicos da política: Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau, “O Federalista”. São Paulo: Ática, 2001. v. 1. Ainda que sejam obras de ficção, as literaturas a seguir auxiliam na compreensão do contexto em que personagens históricos viveram, resguardados os momentos de narrativa inventada: BOWDEN, O. Assassin’s creed: renascença. Rio de Janeiro: Galera Record, 2011. BOWDEN, O. Assassin’s creed: irmandade. Rio de Janeiro: Galera Record, 2012. 2.1 Realismo nas relações internacionais Recuperada em meados do século XX para a formulação de uma teoria das relações internacionais, essa base clássica citada anteriormente fundamentou a corrente que ficou conhecida como realismo. Em contraponto aos ideais liberais difundidos com o fim da Primeira Guerra Mundial – os quais argumentavam sobre as possibilidades de se construir uma ordem internacional diferente e que pudesse evitar o surgimento de novos conflitos –, o realismo é a primeira corrente teórica que se estrutura no campo. Um dos primeiros autores de destaque é o historiador e diplomata inglês Edward Carr, que, apesar de não se propor a sistematizar uma teoria sobre a política internacional, apresenta pontos centrais do realismo em sua obra Vinte anos de crise (1919-1939): uma introdução aos estudos das relações internacionais. Carr retoma a centralidade dos Estados para analisar as relações políticas e critica a visão utópica de que o estabelecimento da Liga das Nações resultaria na eliminação da violência nas relações 21 TEORIAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS internacionais, tendo em vista as divergências de interesses. Em outras palavras, o autor defendia que a intitulada harmonização de interesses entre os Estados, na qual se baseava a busca global pela paz, seria uma espécie de véu, algo que buscava tornar mais palatável os interesses das grandes potências vencedoras em promover a manutenção da ordem internacional tal qual estava. Ou seja, o discurso que embasava a Liga das Nações em prol da paz global seria na verdade uma forma de legitimar a intenção dessas grandes potências em continuarem ocupando os lugares em que se encontravam, já que, segundo o autor, uma mudança na ordem obrigatoriamente envolveria algum tipo de violência. Observação A Liga das Nações – também conhecida como Sociedade das Nações – foi a primeira organização internacional de escopo global composta por Estados soberanos. Com sede na Suíça, a Liga das Nações foi criada após o final da Primeira Guerra Mundial, em 1918, e tinha como objetivo principal instituir um sistema de segurança coletiva para promover a cooperação e garantir a paz internacional. Nesse sentido, a Liga das Nações tinha como base a noção de que os Estados se uniriam para evitar um conflito de proporções tão grandes como havia sido a Primeira Guerra Mundial. No entanto, essa visão liberal parecia desconsiderar a desigualdade inerente ao ordenamento internacional, o que levou os Estados que almejavam alcançar posições de maior destaque a romper com esse equilíbrio. Segundo o autor: o motivo para esta crença ter persistido por mais de dez anos foi o fato de que as grandes potências, cujo principal interesse era a preservação do status quo, detinham, durante todo o período, um virtual monopólio do poder (CARR, 2001, p. 136). Além disso, Carr (2001) destaca que o poder é entendido não apenas como um meio, mas também como um fim para a ação política. Ou seja, os atores buscam poder como um meio para atingirem seus objetivos e promoverem seus interesses, ao mesmo tempo em que conquistar e manter poder seria a finalidade de toda ação envolvendo o Estado. Assim, o poder é um elemento essencial da política e, embora afirme que são complementares e intrínsecos, Carr (2001) divide o poder político em três categorias para fins analíticos: poder militar; poder econômico; e poder sobre a opinião pública. Tendo em vista que todo ato de um Estado está dirigido para a guerra, menos como um recurso desejável e mais como uma arma que pode ser necessária, o poder militar é central, já que qualquer sintoma de despreparo militar em uma grande potência reflete-se imediatamente em seu status político. Dessa forma, a ação externa de um Estado “se limita não somente por seus objetivos, mas ainda por sua força militar, ou, mais precisamente, pela razão entre sua força militar e a dos outros países” (CARR, 2001, p. 145). 22 Unidade I Sobretudo pela forte vinculação existente entre o progresso de uma civilização e seu desenvolvimento econômico, Carr (2001) estabelece uma relação entre poder econômico e poder militar, inclusive criticando a visão liberal por separar essas dimensões. Para o autor, o poder econômico tem como propósito garantir a autossuficiência do Estado e o fortalecimento da influência nacional sobre outros países. Por fim, entende que o crescimento da importância do poder sobre a opinião pública representa um alargamento das bases da política, uma vez que aumenta o número de pessoas cuja opinião é politicamente relevante. Desse modo, a propaganda passa a adquirir mais relevância. Outro autor de grande relevância na sistematização da teoria realista das relações internacionais foi Hans Morgenthau. Na obra A política entre as nações: a luta pelo poder e pela paz, publicada pela primeira vez em 1948, o autor argumenta que uma teoria sobre política internacional deve ser pragmática e possuir bases empíricas, considerando um erro tentar reduzir a política internacional a valores morais, marginalizando a questão do poder (PECEQUILO, 2016). Morgenthau nasceu na Alemanha em 1904, tendo lecionado direito em universidades na Suíça e na Espanha. Entretanto, por ser judeu, acabou vivenciando de modo intenso a ascensão dos regimes totalitários na Europa e migrou para os Estados Unidos, onde passou a ser consultor do Departamento de Estado dos Estados Unidos. Esse contexto teria marcado de modo profundo a percepção de Morgenthau acerca da concepção liberal na política internacional, corroborando com o argumento de Carr sobre a harmonia de interesses não garantir a paz, uma vez que os Estados insatisfeitos com o status quo eventualmente buscariam formas de alterar esse ordenamento. Considerado o pai fundador do realismo clássico nas relações internacionais, Morgenthau (2003) buscou estabelecer uma teoria realista da política internacional igualmente suscetível de explicar as relações entre Estados, iluminar os dilemas éticos da ação diplomática, além de avaliar e prever as políticas externas das diferentes nações. Para isso, formulou seis princípios do realismo: • A política, assim como a sociedade em geral, égovernada por leis objetivas que têm suas origens na natureza humana. • O interesse é definido em termos de poder. • O interesse definido como poder é uma categoria universalmente válida, mas não tem significado fixo e permanente. • Princípios morais universais não podem ser aplicados de modo abstrato às ações dos Estados. • Não se deve identificar aspirações morais de um Estado com leis morais que governam o universo. • A autonomia da política diante de outras esferas. 23 TEORIAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS O primeiro princípio explicita a inspiração no debate clássico de Maquiavel e Hobbes, estabelecendo que uma teoria racional sobre a política deve refletir sobre as leis objetivas que regem a sociedade em geral – leis estas que possuem origem na própria natureza humana. Ou seja, para compreender a política é necessário compreender que a natureza humana opera em meio a uma lógica que tende ao conflito. Portanto, para analisar as relações internacionais, seria fundamental identificar as forças inerentes à natureza humana e trabalhar com elas, já que as relações entre os Estados seriam análogas às interações que ocorrem entre indivíduos no estado de natureza, marcadas pela autopreservação. O segundo princípio estabelece o poder como o conceito central para o realismo, o que permite organizar o pensamento para compreender os fatos; isto é, o elo entre a razão e os fatos. Em suma, esse princípio associa a definição dos interesses à capacidade de alcançá-los. De acordo com o autor, o poder abarca tudo que permita o domínio do homem sobre o homem. Além disso, o interesse definido em termos de poder como categoria central também implica consolidar a política como uma esfera autônoma de ação e entendimento. Sendo assim, a política é diferente de outros campos – como a economia –, justamente por ter na variável do poder seu foco de análise. Por sua vez, o terceiro princípio indica que, apesar de o interesse sempre ser definido em termos de poder, ele pode ser alterado a partir do contexto histórico-social. Dessa forma, ao se definir um interesse, o Estado deve sempre levar em consideração suas capacidades e o objetivo final de acumular, manter ou demonstrar poder. No entanto, o significado específico desse interesse pode variar de acordo com o contexto político e cultural de sua formulação, bem como por possíveis alterações de capacidades ou mesmo de alianças. Segundo Morgenthau (2003), o primeiro interesse de um Estado é garantir a sua própria sobrevivência, porém a forma como outros interesses e a busca por poder são compreendidos depende do contexto em que se está inserido. O quarto e o quinto princípios dedicam-se ao papel da moral na política internacional. Para o realismo, as ações políticas não devem ser julgadas por critérios morais. Não significa negar totalmente a existência da moral, mas postular que os valores morais devem ser considerados de acordo com o contexto existente, e não em termos absolutos e universais. Nesse sentido, a política responde a critérios próprios, não devendo ser balizada de modo totalizante pela moral individual. Além disso, é negada a possibilidade de imposição de uma verdade absoluta em termos morais, pois nenhum Estado é superior aos demais em termos morais, nem deve tentar impor seus valores a outros. Como lembra o autor, todos os Estados são entidades políticas que buscam seus próprios interesses, e estes são entendidos a partir do conceito-chave do poder, e não de um padrão moral absoluto. O último princípio estabelece que o raciocínio do interesse definido em termos de poder possibilita conceber a política como uma esfera autônoma, conferindo uma lógica própria ao pensamento que o torna distinto de outras áreas. Em outras palavras, Morgenthau (2003) aponta que a esfera política não estaria subjugada a nenhuma outra, fosse econômica, cultural ou ambiental, possuindo conceitos e princípios distintos. Por fim, outro autor expoente no debate teórico sobre realismo nas relações internacionais é Raymond Aron, filósofo e sociólogo francês que escreveu a obra Paz e guerra entre as nações. O autor resgata a noção da guerra como um ato social e define as relações internacionais como o “estudo das 24 Unidade I relações entre unidades políticas que reivindicam o direito de fazer justiça e de escolher entre a paz e a guerra” (ARON, 2002, p. 55). Ou seja, retoma a centralidade dos Estados e afirma que as relações interestatais sempre se desenvolvem à sombra da guerra. Nessa obra, publicada em 1962, em meio ao contexto de Guerra Fria, Aron (2002) aponta que as relações internacionais podem ser retratadas por duas figuras: o diplomata, que representa a gramática da cooperação; e o soldado, que representa a gramática da competição. Embora opostas, essas gramáticas são complementares e conformam a linguagem da política internacional. A principal contribuição de Aron está contida na sua busca por regularidades para a eclosão de guerras ou para a manutenção da paz, tendo em vista que a política internacional seria marcada pelo choque constante de vontades entre os Estados soberanos. Nesse aspecto, o espaço, os números e os recursos definem as causas ou meios materiais da política, ao passo que os objetivos perseguidos pela política exterior de um Estado seriam o poder, a glória e as ideias (ARON, 2002, p. 128). Para o autor: a continuidade das relações internacionais ocorre através da alternância entre a paz e a guerra [relacionado com a mudança constante de Carr], através da complementaridade da diplomacia e da estratégia, dos meios violentos e não violentos que os Estados utilizam para alcançar seus objetivos ou defender seus interesses (ARON, 2002, p. 49). Ademais, o conceito de “paradoxo da política internacional”, apresentado por Aron (2002), é essencial para se compreender as relações internacionais. Tendo em vista o choque de vontades que constitui o relacionamento entre Estados soberanos, esse paradoxo corresponderia ao fato de que a procura por segurança em prol do equilíbrio das forças cria ou mantém a inquietação geral e as suspeitas recíprocas, gerando um constante estado de insegurança. Observação Paradoxo da política internacional possui o mesmo significado que dilema de segurança. Refere-se a uma situação em que a tentativa de um Estado aumentar sua segurança gera insegurança em outros Estados, fazendo com que estes também busquem incrementar sua própria segurança. Como abordado anteriormente, não é possível compreender a realidade em sua totalidade, por isso utilizamos as teorias enquanto ferramentas conceituais para melhor compreender determinados fenômenos. Dessa forma, a partir da base filosófica clássica que inspirou o debate realizado pelos autores contemporâneos mais focados em discutir as relações internacionais, podemos destacar alguns elementos centrais a fim de sintetizar a teoria realista das relações internacionais. 25 TEORIAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Ao analisar a política internacional, o realismo representa uma lente teórica que auxilia na compreensão das causas da guerra e das formas de se garantir a balança de poder, tendo como ponto central a análise das relações interestatais. Como Halliday aponta, os realistas: tomam como ponto de partida a busca do poder dos Estados, a centralidade da força militar dentro deste poder e a inevitabilidade duradoura do conflito em um mundo de múltipla soberania. Mesmo não negando inteiramente o papel da moralidade, do direito e da diplomacia, os realistas dão maior peso à força militar como instrumento de manutenção da paz. Eles acreditavam que o mecanismo central para regular o conflito era o equilíbrio de poder através do qual a força de um Estado seria compensada pelo aumento da força ou pela expansão das alianças dos outros: esta situação era dada no sistema, mas também poderia ser promovida conscientemente (HALLIDAY, 2007, p. 24). No entanto, vale ressaltar que não se trata de uma análise belicista,que anseia pela ocorrência de guerras o tempo todo. É apenas uma lente teórica que atribui importância à temática da guerra nas relações internacionais, apontando que o Estado deveria sempre levar em consideração o risco da guerra ao qual está sujeito na hora de pensar suas ações no âmbito internacional, sob pena de desparecer permanentemente (ARON, 2002). Nesse sentido, a perspectiva realista analisa a necessidade de o Estado atentar para o interesse nacional, que em última instância deve estar sempre ligado à autopreservação, em um ambiente marcado pela insegurança. Em sua obra Teoria das relações internacionais, Battistella (2014) também realiza um esforço para sistematizar a Teoria Realista a partir de quatro proposições principais e quatro secundárias, listadas nesta ordem a seguir. • O estado de anarquia no qual se encontram as relações internacionais é sinônimo de estado de guerra, pois não há nenhuma autoridade central suscetível de impedir o recurso à violência armada da parte dos atores internacionais. • Os principais atores do sistema internacional são os grupos de conflito. Desde a existência o sistema interestatal westfaliano, esses grupos são essencialmente os Estados-nações organizados territorialmente. • Encarnados no chefe do poder executivo, os Estados-nações são os atores racionais que buscam maximizar seu interesse nacional em termos de poder, considerando as pressões do sistema internacional. • O equilíbrio de poder é o único modo de controle suscetível de assegurar não a paz, mas uma ordem e uma estabilidade internacionais. 26 Unidade I • Quando a política exterior não consegue alcançar o interesse nacional pelos meios pacíficos, o recurso à guerra é um meio legítimo da política exterior, e esta não poderia ser julgada segundo os critérios éticos aplicáveis aos comportamentos individuais. • As organizações interestatais e as entidades não estatais não são atores autônomos, pois não agem a não ser pelo intermédio dos Estados. • A política exterior, sinônimo de high politics, prima sobre a política interna, considerada enquanto low politics; e levar em consideração a opinião pública é um obstáculo à boa conduta diplomática. • A existência e a efetividade do direito internacional e das instituições de cooperação são função de sua conformidade com os interesses dos Estados mais poderosos. Para facilitar a compreensão dessas proposições, alguns autores estabelecem uma analogia entre as relações internacionais e um jogo de bilhar, na qual a mesa de bilhar seria o sistema internacional e os Estados as bolas de bilhar. Nesse cenário, com o objetivo de acumular mais poder e evitar que os demais façam o mesmo, cada Estado seria identificado como uma bola de bilhar maciça e indivisível – como ilustra a figura a seguir –, pois estaria resumido à figura do chefe do poder executivo. Dessa forma, as colisões entre as bolas de bilhar seriam análogas às tensões entre os Estados no sistema internacional em busca de segurança. Figura 3 – Bola de bilhar O quadro a seguir busca sistematizar os pontos abordados até agora no que diz respeito à questão central do realismo, os atores considerados centrais, os principais conceitos trabalhados, entre outros. 27 TEORIAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Quadro 1 – Realismo Realismo Núcleo de interesse Segurança Unidades-chave Estados Conceitos centrais Anarquia, poder, interesse nacional, equilíbrio de poder Motivação dos atores Interesse nacional, segurança, poder (também como fim) Perspectivas Pessimista, crescimento do poder nacional Adaptado de: Kegley e Blanton (2014). Saiba mais Para saber mais sobre o realismo, leia o texto a seguir: NOGUEIRA, J. P.; MESSARI, N. O realismo. In: NOGUEIRA, J. P.; MESSARI, N. Teoria das relações internacionais: correntes e debates. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 20-55. 2.2 Críticas e reformulações na Teoria Realista A abordagem realista tornou-se predominante na área de relações internacionais após a Segunda Guerra Mundial, mas passou a ser questionada a partir dos anos 1950 e continua sob pressão desde então (HALLIDAY, 2007). Alguns analistas de relações internacionais passaram a defender que essa tentativa de criar uma teoria realista das relações internacionais que fosse universal para explicar todas as dinâmicas e interações interestatais era falha, tendo em vista a variedade de recursos e capacidades de cada Estado, bem como a transformação das dinâmicas internacionais com o passar do tempo. Esse grupo de críticas ganhou força especialmente com a revolução behaviorista, a qual marcou o segundo debate das relações internacionais e passou a criticar a forma de se estudar essa temática. Enquanto os realistas incorporavam debates clássicos da filosofia e da ciência política, os behavioristas destacavam a necessidade da empiria quantitativa, apontando que “os mesmos métodos que permitiram desvelar os mistérios da estrutura atômica podem revelar a dinâmica do comportamento social” (BATTISTELLA, 2014, p. 84). Outro questionamento estava associado à noção de natureza humana abordada pelos realistas não ser uma resposta suficiente para a pergunta que a teoria se propunha a responder: Será que as guerras eram causadas simplesmente porque os indivíduos eram egoístas e hostis, e acabavam transportando esse padrão para as relações internacionais? E ainda que parte da política internacional pudesse ser 28 Unidade I explicada por essa natureza humana hostil e egoísta, como desconsiderar a existência de interesses mútuos e o cumprimento de regras comuns que representam obrigações e direitos iguais? (JACKSON; SORENSEN, 2007). O foco que o realismo atribui às relações estatais, considerado exacerbado, também é alvo de críticas, uma vez que ignora ou subestima outros atores – como as instituições internacionais e organizações não governamentais –, bem como a “influência do direito internacional no gerenciamento das relações entre os Estados e o grau em que a cooperação pode prevalecer em detrimento do conflito na política internacional” (JACKSON; SORENSEN, 2007). Entre os autores que criticaram algumas lacunas da Teoria Realista podemos destacar Joseph Nye, cientista político estadunidense. Vale destacar que, enquanto autores como Carr e Morgenthau escreveram em um momento de formação da disciplina Relações Internacionais, Nye escreve em um momento de maior globalização, sintetizando as diversas críticas que a teoria realista recebera ao longo dos anos. Em sua obra Compreender os conflitos internacionais: uma introdução à teoria e à história, lançada em 1993, Nye (2002) busca analisar as continuidades e mudanças presentes na política internacional. Segundo o autor, seria necessário construir com base no passado, mas sem se prender a ele. Dessa forma, concorda com a visão realista de que existe uma lógica de hostilidade nas dinâmicas internacionais, na qual a busca por equilíbrio de poder culmina em um dilema de segurança. No entanto, ao utilizar como exemplo a Guerra do Peloponeso, afirma que, embora algumas características estruturais influenciem a política internacional, isso não anularia a responsabilidade pelas escolhas morais (NYE, 2002). Ademais, o autor também critica a restrição da análise realista aos Estados, tendo em vista que mudanças conjunturais traziam consigo nova magnitude a outros atores internacionais. Nye (2002) também critica o que julga ser um foco exacerbado no âmbito militar, destacando que existem problemas que não se resolveriam apenas por esse meio. Nesse caso, o contexto de corrida armamentista e desenvolvimento tecnológico na Guerra Fria ajuda a compreender a percepção do autor, já que o uso das bombas nucleares não seria uma resposta adequada, tendo em vista o poder de destruição massivo que esse arsenal detinha. A partir dessas e outras críticas, houve um processo de revisão da teoria realista, mantendo-se muitas das bases, mas alterando alguns dos argumentos apresentados. Oresultado dessa revisão ficou conhecido como neorrealismo, que será abordado adiante. Exemplo de aplicação Com base nas reportagens a seguir e no conteúdo abordado, analise o conflito israelo-palestino tendo como base a Teoria Realista. Analise os atores envolvidos e as motivações para esse conflito a partir dos conceitos trabalhados anteriormente. Em seguida, destaque os aspectos envolvidos nele que não são contemplados pela Teoria Realista. 29 TEORIAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS A questão dos assentamentos em Israel Quatro importantes questões dominam o conflito entre israelenses e palestinos e são considerados os mais difíceis de se chegar a um ponto comum nas complexas negociações: o status de Jerusalém; os refugiados palestinos (e seu direito de retorno), fronteiras e assentamentos. Saiba mais sobre o último ponto, segundo um guia divulgado pela TV americana CNN: O que são os assentamentos? Assentamentos são cidades, municipalidades e vilarejos israelenses construídos na Cisjordânia e nas Colinas do Golan. Eles tendem a ser comunidades fechadas com guardas armados em suas entradas. São considerados assentamentos porque Israel é tido como uma força ocupante nos territórios. Trata-se de terra dos palestinos que, assim como a comunidade internacional, consideram o território parte de seu futuro Estado. Por que Cisjordânia e Jerusalém Oriental são considerados territórios ocupados? Em 1967, Israel deu início à ocupação da Cisjordânia e Jerusalém Oriental durante a Guerra dos Seis Dias. Vendo um acúmulo militar nos países árabes circunvizinhos, Israel lançou um ataque preventivo contra o Egito, que depois foi revidado com um contra-ataque da Jordânia. Israel anexou Jerusalém Oriental pouco depois, unificando a cidade sob autoridade de Israel, sem nunca, no entanto, anexar a Cisjordânia, que continuou sob sua lei militar. Como é administrada a Cisjordânia? Decisões na Cisjordânia são tomadas pelo Exército israelense, não por um governo civil. O Exército israelense decide questões, por exemplo, como o uso da terra, liberdade de movimento dos palestinos, demolições de casas, entre outros. Antes de 1967, Jerusalém Oriental e Cisjordânia estavam sob ocupação da Jordânia. O país anexou o território em 1950, mas alguns países reconheceram a anexação como legal. A Jordânia renunciou ao território em 1988, reconhecendo a Organização Pela Libertação da Palestina (OLP) como represente do povo palestino. O que defendem os israelenses? Israelenses que apoiam o movimento por assentamento, entre outros, contestam o argumento de que a Cisjordânia seja um território ocupado. Eles se referem à Cisjordânia como Judeia e Samaria, seus nomes bíblicos. Há outros que apoiam essa teoria, incluindo os cristãos evangélicos. A opinião se opõe ao consenso internacional de que a Cisjordânia é um território ocupado. 30 Unidade I Onde estão os assentamentos? Há 126 assentamentos na Cisjordânia (excluindo os de Jerusalém Oriental), de acordo com um relatório do Escritório Central Israelense de Estatísticas de setembro de 2016. Geograficamente, esses assentamentos estão por todo o território da Cisjordânia. O território é dividido em Áreas – A, B e C – segundo os Acordos de Oslo, a série de tratados de paz alcançados nos anos 90. Fonte: A questão... (2017). Israel bate recorde na expansão dos assentamentos Israel acelera a expansão dos assentamentos na Cisjordânia. As autoridades que administram este território militarmente ocupado há 50 anos aprovaram, nas últimas 48 horas, a construção de 2.646 casas, segundo afirmou, nesta quarta-feira, a ONG israelense Paz Agora, que supervisiona as colônias. “O avanço dos assentamentos nos distancia, a cada dia, da solução dos dois Estados”, afirmou a organização pacifista fundada pelo escritor Amos Oz, em um comunicado. A União Europeia exigiu esclarecimentos de Israel sobre o crescimento das colônias e pediu que reconsidere uma decisão “que vai em detrimento das iniciativas em andamento por negociações de paz”. O governo de Benjamín Netanyahu, considerado o mais conservador da história de Israel, está batendo recordes nas construções de habitações em território ocupado palestino. Com as 1.292 aprovadas na terça-feira, e as 1.323 nesta quarta, a Paz Agora afirma que a expansão colonial chega a 6.742 casas em 2017, em diferentes fases de desenvolvimento urbanístico. As autoridades têm planos para construir até 12.000 casas este ano, segundo a France Presse, o que seria quatro vezes o registro de 2016 (2.629 habitações), seis vezes o de 2015 (1.982) e quase o dobro de 2014 (6.293). A presença no Governo de coalizão (conservadores, nacionalistas religiosos, ultra ortodoxos e extrema direita) de partidos que representam os interesses dos mais de 600.000 colonos na Cisjordânia e Jerusalém Leste contribuiu para impulsionar a ampliação dos assentamentos. A expansão foi especialmente acelerada desde a chegada de Donald Trump à Casa Branca, cuja administração se declara comprometida com a retomada das negociações entre israelenses e palestinos, suspensas desde 2014. Trump não considera que os assentamentos constituam necessariamente um obstáculo para a paz, nem acredita que a solução dos dois Estados seja a única viável para colocar fim ao conflito. Israel concedeu 31 licenças de edificações na área da cidade de Hebrón, na Cisjordânia, que mantém sob seu controle, as primeiras outorgadas a colonos israelenses em 31 TEORIAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 15 anos, em uma cidade dividida entre mais de 200.000 palestinos e 800 colonos sob proteção militar. “O Governo perdeu as inibições e promove a expansão em ritmo recorde”, afirma a Paz Agora. “Está claro que Netanyahu está dando prioridade a seu eleitorado, contra o Estado de direito e as perspectivas de paz”. Em ato celebrado na Cisjordânia, em setembro, para comemorar o 50º aniversário da Guerra dos Seis Dias, Netanyahu prometeu, diante de milhares de colonos, que nenhum assentamento israelense será desmantelado como consequência de um acordo de paz. “O Grande Israel está se sobrepondo a toda a Palestina histórica”, alerta a veterana dirigente palestina Hanan Ashraui, ao denunciar que o governo do Estado hebreu está trabalhando sistematicamente “para destruir a continuidade territorial e demográfica de um futuro Estado palestino”. A Paz Agora teme, acima de tudo, que o Executivo de Netanyahu esteja derivando para uma via “selvagem” ao aprovar planos de expansão profunda na Cisjordânia. Das cerca de 1.300 casas aprovadas na terça-feira, apenas 560 estão nos chamados blocos de colônias, que Israel busca trocar por outros territórios em um acordo final que dê lugar a um Estado palestino. O resto foi disseminado em zonas distantes do Vale do Jordão ou junto a populações palestinas, como no caso de Nokdim, assentamento onde reside o ministro da Defesa, Avigdor Liberman, responsável formal pela aprovação de novas colônias. Fonte: Sanz (2017). 3 LIBERALISMO O surgimento e a construção da teoria liberal ou liberalismo estão ligados ao surgimento da disciplina Relações Internacionais e ao contexto dos eventos da Primeira Guerra Mundial. O objetivo das primeiras análises teóricas era compreender o fenômeno da guerra e evitar que ela ocorresse novamente. No entanto, antes de começarmos a estudar a Teoria Liberal nas relações internacionais, é importante retomar algumas das análises de teóricos clássicos que influenciaram essa vertente teórica. Assim como visto na Teoria Realista, a constituição do liberalismo baseia-se em discussões e ideias de autores clássicos de diversas áreas: filosofia, direito, ciência política e economia. A Teoria Liberal nas relações internacionais tem como influência as discussões e propostas do liberalismo clássico. Originado no final do século XVII e ao longo do século XVIII, tais discussões impulsionaram as revoluções liberais: a Revolução Gloriosa, de 1688, a Revolução Americana, de 1775, e a Revolução Francesa,de 1789 a 1799. 32 Unidade I Os ideais filosóficos desse período conformam o que ficou denominado de iluminismo. Os pensadores e movimentos iluministas criticavam o regime monarquista absolutista, que garantia os privilégios e a concentração do poder nas mãos da nobreza e do clero. As revoluções de caráter iluminista visavam, portanto, a consolidação de uma nova classe social – a burguesia – e o seu interesse pela valorização da propriedade privada (PECEQUILO, 2010). De forma geral, os principais aspectos defendidos pelo pensamento iluminista eram: • O uso do método científico na busca da verdade, em oposição aos dogmas religiosos. • O racionalismo. • A livre iniciativa dos indivíduos. • Liberdade econômica e política. • Predomínio dos ideais burgueses. O objetivo com esses aspectos era promover a consolidação de um Estado liberal, no qual o indivíduo seria o centro das decisões. Para o liberalismo, todos os seres humanos seriam racionais, ou seja, com capacidade de “descobrir, compreender e decidir como alcançar a própria felicidade” (NOGUEIRA; MESSARI, 2005, p. 59). O governo deveria, portanto, prover as condições legítimas para o alcance do progresso e liberdade para os indivíduos. De acordo com o Dicionário de política de Norberto Bobbio, entende-se por liberalismo uma determinada concepção de Estado, que tem poderes e funções limitadas. O liberalismo é, portanto, uma doutrina do Estado limitado tanto em relação aos poderes, como em relação às funções. O poder é limitado pela lei/constituição, que garante os direitos fundamentais e a separação dos poderes. As funções do Estado liberal devem ser limitadas à garantia da livre iniciativa econômica e da propriedade privada. É, portanto, um Estado mínimo (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 2000). Há uma variedade de autores e pensadores liberais. Apesar das diferenças entre si, eles compartilham o foco na liberdade dos indivíduos, além de uma preocupação com a relação entre indivíduos, sociedade e governo. John Locke, considerado o pai do liberalismo político, é um dos principais autores iluministas e analisou a relação do indivíduo com o Estado. Assim como Hobbes, Locke é considerado um contratualista, pois discute que a sociedade civil é constituída a partir da formalização de um contrato entre os indivíduos (PECEQUILO, 2010). No entanto, diferentemente da análise hobbesiana, Locke considera que no estado de natureza os homens viviam em perfeita liberdade e igualdade. Assim, enquanto para Hobbes o contrato social foi assinado para a garantia da segurança, Locke considera que ele foi uma maneira que os indivíduos encontraram para melhor administrar as relações humanas (PECEQUILO, 2010). Mesmo no estado de natureza, os indivíduos já teriam direitos inatos 33 TEORIAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS (direitos naturais), os quais eram independentes do contrato social. Assim, o Estado, constituído a partir do pacto social teria como responsabilidade garantir a liberdade e a propriedade privada, direitos que os indivíduos já possuíam, mas que não eram totalmente assegurados. Uma das principais obras de Locke sobre o contrato social é o Segundo tratado sobre o governo civil, de 1689. Outro importante autor contratualista do liberalismo clássico é Jean-Jacques Rousseau. Em sua obra O contrato social, de 1762, o autor afirma que o indivíduo é bom por natureza, mas a sociedade o corrompe. Para Rousseau, o contrato social que forma o Estado é o resultado da vontade autônoma dos indivíduos, como uma forma de garantir a liberdade natural do homem, bem como a segurança e o bem-estar na sociedade. Conhecido como o teórico da soberania popular, o autor afirma que a vontade geral é indivisível e inalienável. A participação de todos os indivíduos no exercício do poder é, portanto, o que garante o limite do poder do Estado (SILVA, 2011). No campo da economia, um dos influenciadores do liberalismo foi Adam Smith, filósofo e economista britânico que nasceu em 1723. Esse economista defendia a livre concorrência entre os mercados e a intervenção mínima do Estado na economia. Ainda podemos citar: David Ricardo, para quem o crescimento depende da acumulação de capital, ou seja, lucro; e Jean-Baptiste Say, que fala da mão invisível do mercado na regulação da economia. Para o liberalismo econômico, há, portanto, uma autorregulação da sociedade, em que os desequilíbrios, ineficiência e crises são corrigidos por instituições e processos inerentes de sua organização. Não há, portanto, a necessidade de um controle estatal sobre a economia. O papel do Estado é apenas o de proteger os indivíduos contra ameaças externas e contra aqueles que não respeitem as leis internas (NOGUEIRA; MESSARI, 2005). Por fim, cabe mencionar um importante filósofo que contribuiu para as discussões da teoria liberal sobre a importância da lei e da universalização de princípios entre os Estados e a comunidade internacional: Immanuel Kant, filósofo prussiano nascido em 1724. Sua obra A paz perpétua, de 1795, tinha como projeto estabelecer uma paz perpétua entre os povos europeus, e depois levá-la ao mundo inteiro (KANT, 2008). Kant discorre sobre o embate entre os indivíduos e os Estados. Para o filósofo, o envolvimento dos reis em guerras internacionais geraria consequências negativas, tanto econômicas quanto sociais, para os indivíduos (NOGUEIRA; MESSARI, 2005). De acordo com Kant, haveria a necessidade do respeito às regras morais para garantir modos justos e corretos de agir – o que ele denomina de imperativo categórico. O estabelecimento de normas e regras para o convívio entre as comunidades e povos teria como objetivo “o encaminhamento de uma sociedade pacífica” (PECEQUILO, 2010, p. 137). Esse conjunto de normas e regras deveria ser responsável pela garantia da paz, em todos os níveis das relações humanas e em todos os âmbitos – nacional e internacional. Assim, Kant afirma necessidade de um direito cosmopolita, o qual atende a todos os indivíduos do mundo, independentemente do seu Estado de origem. Essa análise kantiana contribuiu para a elaboração do conjunto de leis e de tratados que conformam, atualmente, os direitos humanos. 34 Unidade I Observação O Direito internacional dos direitos humanos é composto por um conjunto de declarações, tratados e convenções que estabelecem os compromissos e obrigações dos governos com a garantia dos direitos básicos de proteção à vida e garantia da liberdade de grupos e indivíduos. Além da Declaração universal dos direitos humanos, estabelecida em 1948, outras Convenções e Tratados foram criados para abordar aspectos específicos referentes aos direitos humanos, como os direitos das crianças, das mulheres, dos trabalhadores e dos migrantes. De uma forma geral, esses pensadores convergem com relação ao foco no indivíduo e um certo otimismo sobre as relações em sociedade. Ações e interesses individuais gerariam bens coletivos e, consequentemente, uma convivência pacífica entre eles. ao trabalharem pelo seu bem individual, os homens naturalmente gerarão um ambiente coletivamente próspero e pacífico no qual compartilharão os lucros e benefícios de suas ações, os valores e os princípios universais de liberdade e individualidade, criando uma rede de solidariedade. Nesta rede, a guerra será um empecilho à realização das capacidades econômicas e políticas individuais, optando-se por interações pacíficas e estáveis que permitam a obtenção do lucro e a preservação das identidades e direitos das sociedades (PECEQUILO, 2010, p. 139). Ao compreenderem que de forma coletiva seus interesses individuais têm maior probabilidade de serem alcançados, os indivíduos tendem a preferir relações de cooperação em detrimento da rivalidade. Essa lógica, de acordo com a Teoria Liberal de relações internacionais, é reproduzida nas relações entre os Estados. A seguir, discutiremos como esses ideais iluministas, do liberalismo clássico, influenciaram nos principais conceitos
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