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ABORDAGENS COMPORTAMENTAL E JURÍDICA NAS RELAÇÕES FAMILIARES ABORDAGENS COMPORTAMENTAL E JURÍDICA NAS RELAÇÕES FAMILIARES ISBN 978-65-5081-055-9 Essa obra coletiva traz variados temas da seara do Direito das Famílias que estão em profícuo debate entre conceituados juristas, bem como nos tribunais pátrios. No primeiro capítulo, foram trazidas discussões que envolveram a novidade jurídica do divórcio impositivo ou unilateral. No segundo, abordou-se a adoção internacional pela ótica constitucional, enfrentando a questão problemática do tráfico de menores, na qual se fez uma correlação da afronta da dignidade humana com a obra “Tráfico de Anjos”, de Luiz Puntel. No terceiro, os temas abarcados foram o abandono afetivo, o dever de indenizar e a consequente aplicação da responsabilidade civil no Direito das Famílias. Já no quarto, analisou-se a guarda compartilhada como um meio eficaz de prevenção contra a alienação parental. No quinto, realizou-se um estudo sistemático envolvendo os direitos sucessórios do companheiro, após o reconhecimento da inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, que buscou equiparar os direitos do companheiro aos do cônjuge. No sexto, abordou-se a aplicação do dano moral à infidelidade, especificamente, em sua modalidade virtual. Por fim, no último capítulo, encerrou-se com uma contribuição ao estudo menorista, verificando cientificamente como o Karatê pode influenciar diretamente na vida de crianças e adolescentes. Dentre os temas trabalhados, encontram-se tendências para 2020 relacionadas ao estudo do Direito das Famílias e das Sucessões, constituindo grande atualidade à presente obra. A B O R D A G E N S C O M P O R TA M E N TA L E JU R ÍD IC A N A S R E L A Ç Õ E S FA M IL IA R E S ORGANIZADORES Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo Adriano Cielo Dotto AUTORES Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo Adriano Cielo Dotto Amanda Cristina Lima Ana Caroline Pereira Sampaio Anna Caroline da Silva Resende Karla Tereza de Castro Laís Fernanda Almeida Larissa Stoduto da Rocha Tatyane Gondim Silva O R G A N IZ A D O R E S Patrícia Fortes Lopes D onzele C ielo A driano C ielo D otto Prof. Me. Gil Barreto Ribeiro (PUC Goiás) Diretor Editorial Presidente do Conselho Editorial Dr. Cristiano S. Araujo Assessor Larissa Rodrigues Ribeiro Pereira Diretora Administrativa Presidente da Editora CONSELHO EDITORIAL Profa. Dra. Solange Martins Oliveira Magalhães (UFG) Profa. Dra. Rosane Castilho (UEG) Profa. Dra. Helenides Mendonça (PUC Goiás) Prof. Dr. Henryk Siewierski (UnB) Prof. Dr. João Batista Cardoso (UFG Catalão) Prof. Dr. Luiz Carlos Santana (UNESP) Profa. Me. Margareth Leber Macedo (UFT) Profa. Dra. Marilza Vanessa Rosa Suanno (UFG) Prof. Dr. Nivaldo dos Santos (PUC Goiás) Profa. Dra. Leila Bijos (UnB) Prof. Dr. Ricardo Antunes de Sá (UFPR) Profa. Dra. Telma do Nascimento Durães (UFG) Profa. Dra. Terezinha Camargo Magalhães (UNEB) Profa. Dra. Christiane de Holanda Camilo (UNITINS/UFG) Profa. Dra. Elisangela Aparecida Pereira de Melo (UFT) ABORDAGENS COMPORTAMENTAL E JURÍDICA NAS RELAÇÕES FAMILIARES PATRÍCIA FORTES LOPES DONZELE CIELO ADRIANO CIELO DOTTO ORGANIZADORES Goiânia-GO EDITORA ESPAÇO ACADÊMICO 2019 CIP - Brasil - Catalogação na Fonte Copyright © 2019 by Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo, Adriano Cielo Dotto (orgs.). Editora Espaço Acadêmico Endereço: Rua do Saveiro, Quadra 15, Lote 22, Casa 2 Jardim Atlântico - CEP: 74.343-510 - Goiânia/Goiás CNPJ: 24.730.953/0001-73 Site: http://editoraespacoacademico.com.br/ Contatos: Prof. Gil Barreto - (62) 98345-2156 / (62) 3946-1080 Larissa Pereira - (62) 98230-1212 Revisão: Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo Adriano Cielo Dotto Diagramação: Marcos Digues www.diguesdiagramacao.com.br Capa: Projetado por senivpetro.com – freepik.com Projetado por freepik.com O conteúdo da obra e sua revisão são de total responsabilidade do autor. DIREITOS RESERVADOS É proibida a reprodução total ou parcial da obra, de qualquer forma ou por qualquer meio, sem a autorização prévia e por escrito do autor. A violação dos Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal. Impresso no Brasil | Printed in Brazil 2019 A154 Abordagens comportamental e jurídica nas relações familiares / Organizadores Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo e Adriano Cielo Dotto. – Goiânia : Editora Espaço Acadêmico, 2019. 172 p. Inclui referências bibliográficas. ISBN:978-65-5081-066-5 1. Direito de Família. I. Cielo, Patrícia Fortes Lopes Donzele (org.). II. Dotto, Adriano Cielo (org.). CDU 347.61/.64 Índice para catálogo sistemático 1. Direito de família ............................................................................................................347.61/.64 5 PREFÁCIO Fiquei extremamente honrado com o convite que me foi formulado pela querida amiga Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo para prefaciar seu livro sobre Direito de Família. Trata-se de obra coletiva originária de trabalhos científicos escritos por juristas de grande envergadura intelectual. O livro que ora apresento à comunidade jurídica trata de profunda análise de um tema de destacada relevância: o Direito de Família. São abordas questões atualíssimas que, embora ainda apresentem divergência na doutrina e jurisprudência, ganharam, aqui, nesta reluzente obra, interpretações subsistentes que emanam significativas luzes. O primeiro Capítulo analisa, com acurada primazia, uma interessante discussão sobre o divórcio impositivo, também conhecido como divórcio unilateral. Analisa o referido direito potestativo com profundidade à luz de boa doutrina e jurisprudência. Traz argumentos que envolvem aspectos formais e materiais dessa nova modalidade de dissolução da sociedade conjugal. Ressalta que essa modalidade já é amplamente praticada no Chile. Foram comentadas, com exímia maestria, as decisões do Conselho Nacional de Justiça que declararam ilegalidades e inconstitucionalidade em provimentos das Corregedorias dos Estados do Maranhão e de Pernambuco. O artigo cita ensinamentos de diversos juristas contemporâneos, abordando pontos de vista favoráveis e contrários ao novo instituto jurídico. 6 Tece crítica bastante contundente “de lege ferenda” para modernizar o ordenamento jurídico pátrio; e apresenta uma conclusão embasada nas liberdades individuais, na celeridade da dissolução conjugal e na desjudicialização. O segundo artigo trata da adoção internacional. Tema preocupante e bastante polêmico, mas que foi analisado pelas autoras com muita clareza e lucidez. Foi dada ênfase ao Princípio do melhor interesse do menor. As autoras fazem um contraponto bem fundamentado aos argumentos que impedem a adoção internacional. Foram analisados os tratados internacionais (Convenção de Haia e Convenção Interamericana Contra o Tráfico de Menores) e a legislação infraconstitucional (Estatuto da Criança e do Adolescente), que previnem adoções fraudulentas e impõem maior rigorosidade e cautela no processo. Com exímia maestria, as autoras fazem, ainda, uma interessante inter-relação entre Direito e Literatura, mais precisamente fazem um paralelo com a obra “Tráfico de Anjos”, publicada em 1995, pelo autor Luiz Puntel, que relata o desaparecimento de bebês na região de Ribeirão Preto, no Estado de São Paulo. Ao final do artigo, as autoras apresentam soluções criativas, respaldadas juridicamente, para um problema social deveras impactante: o abandono de crianças brasileiras. Arrematam que as adoções fraudulentas não podem inibir as adoções legalizadas, pois o objetivo é amparar o menor deixado nas ruas. Concluem, em síntese, que, independentemente da nacionalidade dos adotantes, é melhor prover o sustento de uma criança, dando-lhe um lar digno, do que deixá-la ao léu, jogada à própria sorte. O terceiro artigo aborda umtema muito importante e ainda polêmico na jurisprudência: analisa os motivos plausíveis do dever de indenizar por abandono afetivo. As autoras abordam quando seria cabível, bem como os pressupostos essenciais de configuração do dano. Discorrem as autoras se a condenação do réu ensejaria mero enriquecimento ilícito ou se seria uma forma de reprovar de quem 7 deixou de arcar com suas obrigações no âmbito do poder familiar. É realizada uma exposição de lições extraídas da doutrina e de entendimentos jurisprudenciais relativos ao tema abordado, bem como artigos científicos. O texto conceitua o abandono afetivo como uma das mais graves violências contra a criança. Explica que tanto na omissão de cuidado, quanto na criação, assistência moral, psíquica e social, a vítima e o genitor que detém a guarda são acometidos de sentimento de angústia e impotência, de forma silenciosa e contínua, por não poder fazer nada. Por mais que seja impossível obrigar uma pessoa a amar outra, o afeto há de ser edificado pela convivência. Enquanto um gesto de interesse pode construir afeto, a falta deste interesse pode causar efeitos devastadores e irreparáveis. Também é verificado o prazo prescricional, anotando que, com fulcro na jurisprudência, a pretensão indenizatória encerra-se quando o filho completa 21 (vinte e um) anos de idade, pois a contagem inicia-se a partir da maioridade. Ao final, o artigo faz uma reflexão deveras apropriada e profunda: a condenação em danos morais, proveniente do abandono afetivo, tem natureza de medida pedagógica e educativa, para que a sociedade entenda o abandono afetivo como uma conduta reprovável pelo ordenamento jurídico. O quarto artigo faz uma abordagem sobre o instituto da guarda e suas modalidades. E dentro desse tema tão relevante os autores propõem um conceito da Alienação Parental. Além disso, os autores elucidam, com bastante acuidade técnica, como a guarda compartilhada pode ser um meio eficaz para evitar uma possível alienação parental. O artigo também analisa diversos entendimentos jurisprudenciais e ainda traz a visão de importantes doutrinadores com posicionamentos de vanguarda. A abordagem é interdisciplinar, já que envolve alguns aspectos psicológicos da guarda compartilhada. O trabalho sustenta que visitas ocasionais podem ser menos eficazes na prevenção da alienação quando há convívio mais intenso. Na sequência, mais precisamente no capítulo quinto, as autoras fazem uma profunda e instigante reflexão sobre o julgamento dos 8 Recursos Extraordinários n° 878.694/MG e nº 646.721/RS, ocorrido em maio de 2017, quando o Supremo Tribunal Federal entendeu pela inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, equiparando os direitos sucessórios do companheiro aos direitos reconhecidos ao cônjuge, previsto no artigo 1.829 do CC/02. As autoras discorrem sobre o postulado da isonomia e verificam se haveria motivos para distinguir cônjuges e companheiros no atual contexto histórico. O texto verifica as principais consequências da decisão da Suprema Corte, principalmente no que diz respeito à inclusão ou não do companheiro no rol dos herdeiros necessários, previsto no art. 1.845 do CC/2002, bem como o direito real de habitação, previsto no artigo 1.831 do CC/2002. Ao final do primoroso trabalho, as autoras parecem se inclinar pela proteção da entidade familiar, independentemente da forma de vínculo adotado. Por mais que se trate de institutos diferentes quanto às suas formalidades, as autoras afirmam com muita lucidez e honestidade intelectual que, na essência, referidos institutos possuem o mesmo significado, que é constituir família. Assim, o trabalho científico conclui que não existe hierarquia entre os institutos familiares. Em outras palavras, a família constituída pelo casamento não é mais importante do que a família que se formou por meio de uma união estável. Por essa razão precípua, esclarecem-nos as autoras que não pode haver divergências quanto à sucessão do cônjuge e do companheiro. No sexto capítulo, a obra trata de um tema bastante atual e ainda pouco explorado pela doutrina e jurisprudência, a saber: a infidelidade virtual e sua repercussão jurídica. As autoras fazem profunda alusão ao dever de lealdade e fidelidade decorrentes da relação conjugal. Discorrem, com muita perspicácia, sobre a possibilidade de responsabilização civil diante da prova da infidelidade virtual. Analisam os princípios constitucionais e sua aplicação em relacionamentos virtuais e relacionamentos reais. Como cerne do estudo, enfrentam a questão do dano moral na 9 infidelidade virtual que atualmente parece ser uma das principais causas de rupturas dos relacionamentos. O exímio trabalho alcança um importante objetivo ao esclarecer que as pessoas, na maioria das vezes, não estão sabendo lidar com os meios de comunicação disponíveis, e devem estar atentas para as consequências patrimoniais e afetivas decorrentes de abusos. O sétimo e último Capítulo encerra a obra com chave de ouro. Também com uma visão interdisciplinar, os autores ressaltam que as artes marciais, mais especificamente o Karatê, podem ser um excelente suporte na formação biopsicossocial dos indivíduos. Os autores analisam, com profundo olhar na psicopedagogia e sociologia, essa singular atividade física e sua ligação com a filosofia e com o desenvolvimento da pessoa humana. Explicam que o Karatê pode propiciar o fortalecimento do corpo e da mente. Os autores concluem que o Karatê propõe meios para a educação que podem transformar comportamentos humanos e, ainda, fazer com que seus praticantes, notadamente crianças e adolescentes, desenvolvam suas potencialidades, tendo em vista que, de um modo geral, esportes que envolvem competições trabalham a tolerância, a perda e o lidar com frustrações. Todo esse conjunto auxilia no desenvolvimento emocional, psicológico e social do indivíduo. Em suma, o livro é belíssimo convite ao aprofundamento de estudos sobre direito de família em sua versão mais moderna e atualizada com os novos contornos da cultura brasileira. Os estudos são claros, sérios e profundos. A linguagem é apropriada e bastante didática, com exemplos ricos e condizentes com as práticas observadas nos Tribunais brasileiros. A bibliografia citada também enriquece o escopo dos trabalhos apresentados. Sem dúvida alguma, o leitor está diante de uma obra de consulta necessária aos estudiosos do Direito de Família. É livro cuja presença é obrigatória na biblioteca e na mesa de trabalho dos operadores e estudiosos do recente sistema processual. 10 Cumprimento aos leitores, pelo muito que deste livro poderão extrair, com ótimo proveito. Cumprimento a Editora, que vem na vanguarda. E cumprimento os autores pela expressiva contribuição que dão, com esta publicação, ao Direito e à sociedade brasileira. Curitiba (PR), dezembro de 2019. Arthur Mendes Lobo Doutor em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2014). Professor Adjunto das disciplinas Direito Empresarial e Direito do Trabalho no Departamento de Ciências Contábeis da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor da disciplina de Direito Tributário no MBA de Gestão Contábil e Tributária da UFPR. Professor da disciplina Direito Processual Coletivo na Pós- Graduação em Direito Civil e Processual Civil do Instituto Catarinense de Ensino. Professor Convidado da Escola Superior da Magistratura do Estado de Goiás. Professor Convidado da Pós-Graduação LLM em Direito Empresarial Aplicada da Escola de Gestão das Faculdades da Indústria - IEL/PR (FIEP). Professor Convidado da Pós-Graduação em Direito Processual Civil da Escola Superior de Direito de Ribeirão Preto/ SP. Professor Convidado da Escola Superior de Advocacia da OAB/PR. Membro do Instituto Internacional de Gestão Legal. Parecerista da Revista Pensamento Jurídico da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo. Membro do Conselho Editorial da Revistado Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Membro do Conselho Editorial da Coleção Processo e Constituição - Editora Prismas. Membro da Comissão de Direito Empresarial da OAB/PR. Membro da Comissão de Estudos em Recuperação Judicial e Falências da OAB/PR. Membro da Comissão de Advogados Corporativos da OAB/PR. Membro da Associação dos Advogados de São Paulo. Sócio do Escritório Wambier, Yamasaki, Bevervanço e Lobo Advocacia e Consultoria Jurídica. 11 SUMÁRIO 5 PREFÁCIO 13 DIVÓRCIO IMPOSITIVO: EXERCÍCIO DA AUTONOMIA DA VONTADE OU AMEAÇA À PACIFICAÇÃO? Anna Caroline da Silva Resende Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo 35 ADOÇÃO INTERNACIONAL E TRÁFICO DE MENORES À LUZ DA OBRA “TRÁFICO DE ANJOS” DE LUIZ PUNTEL Tatyane Gondim Silva Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo 61 ABANDONO AFETIVO E O DEVER DE INDENIZAR Larissa Stoduto da Rocha Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo 79 GUARDA COMPARTILHADA: UMA PREVENÇÃO JURÍDICA PARA A ALIENAÇÃO PARENTAL Laís Fernanda Almeida Adriano Cielo Dotto 12 101 OS REFLEXOS DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL QUE DECLAROU A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL, EQUIPARANDO OS DIREITOS SUCESSÓRIOS DO COMPANHEIRO AOS DO CÔNJUGE Ana Caroline Pereira Sampaio Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo 121 A POSSIBILIDADE DE INDENIZAR EM FACE DA INFIDELIDADE VIRTUAL Amanda Cristina Lima Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo 147 CONTRIBUIÇÕES DO KARATÊ PARA O DESENVOLVIMENTO PSICOSSOCIAL DO INDIVÍDUO Karla Tereza de Castro Adriano Cielo Dotto 169 SOBRE OS AUTORES 13 DIVÓRCIO IMPOSITIVO: EXERCÍCIO DA AUTONOMIA DA VONTADE OU AMEAÇA À PACIFICAÇÃO? Anna Caroline da Silva Resende Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo Resumo: O presente artigo teve como escopo a análise do instituto do divórcio impositivo, assunto polêmico e controverso, fazendo-se verificação acerca da sua viabilidade e levantamento dos pontos positivos e dos negativos de sua aplicação no âmbito do Direito de Família. Assim, foram abordadas as duas espécies de divórcio, judicial e extrajudicial e suas especificidades, bem como a definição de divórcio impositivo e suas particularidades nos Estados de Pernambuco e Maranhão e, por meio levantamento de questionamentos. A metodologia utilizada foi a pesquisa em artigos científicos, matérias jornalísticas, textos informativos e também doutrina na área de Direito das Famílias. A conclusão a que se chegou foi a de que se trata o divórcio impositivo um exercício da autonomia da vontade, e não uma ameaça à pacificação e à resolução dos conflitos inerentes à dissolução da sociedade e vínculo conjugais. Palavras-chave: Direito de Família. Divórcio impositivo. Dissolução da sociedade e vínculo conjugais. 14 Anna Caroline da Silva Resende | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo 1 Introdução É sabido que o casamento era indissolúvel antes do advento do Código Civil de 1916, sendo o desquite a única possibilidade legal de romper com o matrimônio. Posteriormente, com o advento da Lei do Divórcio (Lei n. 6.515/77), o desquite deu lugar ao instituto da separação, cujo objetivo também era dissolver a sociedade conjugal, mas não dissolver o vínculo matrimonial. O divórcio como causa de dissolução do vínculo matrimonial apareceu, primeiro, no artigo 226, parágrafo 6º da Constituição Federal de 1988 (CFR/88) e, depois, no Código Civil de 2002 (CC/02), no seu artigo 1.571, inciso IV. No ano de 2010 foi editada a Emenda Constitucional 66/2010, que alterou a redação do citado §6º do artigo 226 da Constituição Federal e trouxe modificações aos requisitos relacionados ao tempo para obtenção do divórcio. Em 14 de maio de 2019, foi editado pela Corregedoria Estadual de Pernambuco o Provimento n. 06/2019, que trata do divórcio impositivo como ato de autonomia da vontade de um dos cônjuges em pleno exercício de seu direito potestativo, gerando muita polêmica e acalorando as discussões doutrinárias entre a comunidade de profissionais da área do Direito, sobretudo de Família. Dias depois, em 20 de maio de 2019, a Corregedoria do Estado do Maranhão editou o Provimento 25/2019, no qual é definido também o procedimento de formalização do divórcio unilateral. Isso posto, a edição dos aludidos Provimentos e a discussão acerca do tema servem de embasamento para o presente trabalho, o qual objetiva, de modo geral, a análise do instituto do divórcio impositivo e os pontos positivos e negativos de sua aplicação no âmbito do Direito das Famílias. No tocante aos objetivos específicos, serão abordadas as duas espécies de divórcio, judicial e extrajudicial e suas especificidades, bem como a definição de divórcio impositivo e suas especificidades 15DIVÓRCIO IMPOSITIVO: EXERCÍCIO DA AUTONOMIA DA VONTADE OU AMEAÇA À PACIFICAÇÃO? nos Estados de Pernambuco e Maranhão. Verificar-se-á os aspectos constitucionais dos provimentos exarados pelos Estados de Pernambuco e Maranhão e por qual motivo foram revogados pelo Conselho Nacional de Justiça. Assim, busca-se com o presente estudo levantar questionamentos e ponderar a aplicabilidade ou não do divórcio impositivo como uma solução para desburocratização e consequente desjudicialização das dissoluções de vínculos conjugais. Levantam-se os seguintes questionamentos: Quais os aspectos positivos e negativos do divórcio impositivo no Direito brasileiro? Quais aspectos constitucionais relacionados ao tema? O que poderá ser aperfeiçoado, caso venha a ser autorizado por lei federal a sua realização? Será o divórcio impositivo um pleno exercício da autonomia da vontade ou uma ameaça à pacificação? No intuito de atingir os objetivos propostos, serão utilizados como fontes, para elaboração deste trabalho de curso, artigos científicos que tratam do tema, matérias jornalísticas, textos informativos, bem como material doutrinário no ramo de Direito das Famílias. Por dizer respeito a tema novo, ainda não há jurisprudência sobre o assunto. Por essa razão, a pesquisa é de teor bibliográfico e levantamento documental, não sendo realizadas pesquisas de jurisprudência, de campo ou entrevistas físicas. 2 Conceito de família e breve histórico acerca da dissolução do vínculo e sociedade conjugais no Brasil Sabe-se que a família foi historicamente o primeiro agente socializador da pessoa humana e, por ser considerada base da sociedade, recebe especial proteção do Estado, conforme dispõe o artigo 226 da Carta Magna. E como a sociedade e as relações evoluem com o tempo, também o Direito, sobretudo o Direito das Famílias, é aperfeiçoado para atender às novas demandas da sociedade. Conforme bem pontuam Gagliano e Pamplona Filho (2019, p. 62): “(...) família é o núcleo existencial integrado por pessoas unidas 16 Anna Caroline da Silva Resende | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo por vínculo socioafetivo, teleologicamente vocacionada a permitir a realização plena dos seus integrantes”, estrutura alicerçada no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Na mesma esteira, os mesmos autores lecionam que o conceito de família se reveste de alta significação psicológica, jurídica e social, não tendo um conceito absoluto, e acompanha as mudanças da sociedade continuamente. Nesse diapasão, assim como o conceito de família, que não é estático nem imutável, também aspectos ligados à estrutura familiar foram modificados ao longo do tempo, dentre eles o da dissolução da sociedade e do vínculo conjugal. No século XX, sob forte influência da Igreja Católica, a família se baseava numa estrutura de sociedade patriarcal e muito conservadora. Assim, o casamento era o único legítimo vínculo conjugal aceito, sendo que o que diferisse disso era considerado concubinato, totalmente discriminado pela sociedade e desprovido de devida proteção jurídica. É sabido nessa época que, à luz do Código Civil de 1916, o casamento era indissolúvel, sendo o desquite a única possibilidade legal de romper com o matrimônio. Os extintos artigos 316 e 317 do referido Código apregoavamque a sociedade conjugal tinha término em três circunstâncias, sendo morte de um dos cônjuges, nulidade ou anulação do casamento ou pelo desquite, amigável ou judicial. Para o desquite, era aceitável por motivo de adultério, tentativa de morte, sevícia ou injúria grave e abandono do lar por dois anos contínuos. No desquite, dissolvia- se apenas o vínculo conjugal, sendo mantida a sociedade conjugal. Posteriormente, com o advento da Lei do Divórcio (Lei n. 6.515/77), regulamentou-se o instituto do divórcio no Brasil. Houve alteração no texto do artigo 175 da Constituição vigente à época e passou-se a admitir a dissolução do casamento, desde que houvesse prévia separação judicial por mais de três anos. Assim, desquite deu lugar ao instituto da separação judicial, cujo objetivo também era dissolver a sociedade conjugal, mas não dissolver o 17DIVÓRCIO IMPOSITIVO: EXERCÍCIO DA AUTONOMIA DA VONTADE OU AMEAÇA À PACIFICAÇÃO? vínculo matrimonial. Tal instituto visava restabelecimento da sociedade conjugal, que se dava por homologação judicial ou pela lavratura de uma escritura pública de reconciliação, dispensada a via judicial. Posteriormente, com a Constituição Federal de 1988, o divórcio, em seu artigo 226, parágrafo 6º, “O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos”. Assim, a Carta Magna consolidou o divórcio direto, em seguimento ao disposto na Lei do Divórcio, sem, no entanto, extinguir o divórcio indireto, decorrente da separação judicial. Vale destacar a edição da Lei 11.441, de 04 de janeiro de 2007, a qual atribuiu nova competência aos tabeliães de notas para elaborarem escrituras públicas de divórcio e separação, desburocratizando os procedimentos relativos às questões familiares por meio extrajudicial, além de representar desjudicialização e economia para os cofres públicos. Assim, a referida Lei trouxe nova possibilidade de livre exercício do direito potestativo ao divórcio, sem intervenção do Poder Judiciário e diretamente perante o tabelião de notas, desde que com a concordância do outro cônjuge e observados os demais requisitos necessários à prática do ato notarial. Em 2010, foi editada a Emenda Constitucional n. 66 por meio da chamada “PEC do amor”, a qual deu nova redação ao parágrafo 6º do art. 226 da CF/88, sendo que passou a ser o divórcio a nova forma de dissolução do casamento, tendo, para maior parte da doutrina, desaparecido o instituto da separação judicial (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2019). Com isso, acabou também a teoria na culpa, não sendo mais necessário provar nada na via judicial. Nesse momento, já não mais precisaria do requisito temporal para o divórcio. Sobre o divórcio, elenca o Código Civil, em seu artigo 1.571, algumas modalidades de dissolução da sociedade e do vínculo conjugal, a saber: falecimento de um dos cônjuges; nulidade ou anulação do 18 Anna Caroline da Silva Resende | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo casamento; separação judicial e divórcio. Entretanto, o §1º do mesmo artigo aduz que o casamento válido é dissolvido somente pela morte de um dos consortes ou pelo divórcio, aplicando-se a presunção estabelecida quanto ao ausente, sendo que tal presunção acarreta presunção também da extinção do casamento, fazendo cessar o impedimento matrimonial para o cônjuge sobrevivente (artigos 37 e 38 do Código Civil). Dessa feita, nota-se que houve muitas mudanças no Direito Brasileiro no que diz respeito ao instituto do divórcio, sendo que é cada vez menor a participação do Estado nesse tema, prevalecendo a autonomia dos cônjuges para extinguir o vínculo conjugal, respeitando- se o Princípio da Autonomia da Vontade. 3 Divórcio impositivo – inovações no instituto do divórcio Com a evolução da sociedade, também evolui o Direito, visando à adequação à sociedade. No âmbito do Direito de Família, várias foram as mudanças no próprio conceito e na estrutura da família, tendo o Direito alavancado conquistas significativas, tais como a equiparação da união estável para fins sucessórios e o reconhecimento da união homoafetiva. Não obstante, a questão do divórcio impositivo começou a ser discutida no Brasil recentemente. Até então, no Brasil não havia na lei e sequer na doutrina menção e discussão sobre esse instituto, também denominado divórcio unilateral. Conforme consta em reportagem publicada em sítio eletrônico chileno (DIVORCIO FÁCIL, 2017), no referido país esse tipo de divórcio já é realizado há algum tempo e como requisito é exigido que o casal já esteja separado há mais de três anos e que não haja contrato de divórcio. Assim, é realizado o procedimento de mediação entre o casal, a prova de divórcio há mais de três anos e, posteriormente, a realização de audiência para finalização do processo. No Brasil, as discussões começaram a ser levantadas quando da edição, em 14 de maio de 2019, pela Corregedoria Estadual de 19DIVÓRCIO IMPOSITIVO: EXERCÍCIO DA AUTONOMIA DA VONTADE OU AMEAÇA À PACIFICAÇÃO? Pernambuco, do Provimento n. 06/2019, o qual trata do divórcio impositivo como “ato de autonomia da vontade de um dos cônjuges, em pleno exercício de seu direito potestativo no âmbito do Estado de Pernambuco”. Este provimento, segundo informado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), foi proposto pelo desembargador Jones Figueiredo Alves. (IBDFAM, 2019b). Dias depois, em 20.05.2019, foi editado pela Corregedoria Geral do Estado do Maranhão o Provimento 25/2019, no qual é definido também o procedimento de formalização do divórcio unilateral. Muito diferente do que é realizado no Chile, o divórcio impositivo brasileiro tem suas características próprias. Paier e Bagatini (2019) explicam que o divórcio impositivo pode ser entendido como o ato emanado da manifestação de vontade de apenas um dos cônjuges, dispensada a apresentação de justificativa e sem necessidade de acionamento do Judiciário. A pessoa poderá dirigir-se sozinha, sem a necessidade de consentimento do outro, ao cartório e requerer o desfazimento do vínculo conjugal. Pois bem. Passa-se à análise dos provimentos em questão. 3.1 Provimento n. 06/2019, editado pela Corregedoria do Estado de Pernambuco Quanto ao provimento editado pela Corregedoria do Estado de Pernambuco, fundamentado constava que o divórcio impositivo poderia ser realizado no cartório em que foi realizado o casamento, por uma das partes, acompanhada de advogado. Como requisito essencial, os cônjuges não podem ter filhos menores, incapazes nem nascituros e, por ser unilateral, entende-se que o requerente optou em partilhar os bens, se houver, posteriormente. Após, há a lavratura da escritura em que a parte manifesta sua vontade na dissolução da sociedade conjugal. Posteriormente, o cônjuge é notificado e o divórcio averbado, pondo fim ao vínculo conjugal. 20 Anna Caroline da Silva Resende | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo Quando do pedido de averbação do divórcio impositivo, a cláusula relativa à alteração do nome do cônjuge requerente, em retomada do uso do seu nome de solteiro, será anotada no assento de casamento e também de nascimento pelo Oficial de Registro. No Estado de Pernambuco, vigeu até sua revogação, em 31.05.2019, pela Corregedoria Nacional de Justiça e foi o marco das discussões doutrinárias acerca do tema. 3.2 Provimento n. 25/2019, editado pela Corregedoria do Estado do Maranhão Em 20.05.2019, foi editado o Provimento supracitado, publicado no sítio eletrônico do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão (2019), fundamentado no artigo 226, § 6º, da Constituição Federal e na Emenda Constitucional 66/2010, assinado pelo desembargador Marcelo Carvalho Silva. Assim, foi o segundo Estado a regulamentar o divórcio unilateral em cartório e a medida veio dias após o Tribunal de Justiça de Pernambuco regulamentar matéria no mesmo sentido. Tal provimentose fundamentou nos direitos humanos, principalmente naquele sacramentado no art. 16, item I, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, e nos princípios constitucionais da Individualidade, da Liberdade, do Bem-Estar, da Justiça e da Fraternidade, bem como no direito individual à celeridade na resolução das lides e na autonomia da vontade nas relações entre as pessoas. Os procedimentos para realização do divórcio impositivo no Maranhão foram exatamente iguais aos do Estado de Pernambuco, como a necessidade de assistência por advogado, a lavra de escritura pública e os requisitos necessários e que devem ser preenchidos para sua realização. 21DIVÓRCIO IMPOSITIVO: EXERCÍCIO DA AUTONOMIA DA VONTADE OU AMEAÇA À PACIFICAÇÃO? 3.3 Decisão do Conselho Nacional de Justiça acerca da matéria Foi instaurado de ofício pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pedido de providências em desfavor da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de Pernambuco, em virtude de ter esta publicado o Provimento CGJ/PE n. 6/2019, no qual se regulamenta o procedimento de averbação, nos serviços de registro de casamento, do divórcio impositivo. A questão a ser dirimida diz respeito à legalidade do referido Provimento. Segundo consta do pedido de providências do CNJ (2019), o Colégio Notarial do Brasil e o Instituto de Registro de Títulos e Documentos e de Pessoas Jurídicas do Brasil – IRTDPJ – BRASIL requereram o ingresso no feito como terceiros interessados. Conforme publicado pela revista Consultor Jurídico (2019) em 31 de maio de 2019, o Corregedor Nacional de Justiça, ministro Humberto Martins, declarou a ilegalidade do Provimento n. 06/2019 editado pelo Estado de Pernambuco sob alegação de que tal Provimento viola as regras do Código de Processo Civil sobre a “ação de família”, pois divórcios unilaterais e, por consequência, litigiosos, só podem ser resolvidos no âmbito judicial, segundo apregoa o Código de Processo Civil. Além disso, o Provimento supracitado acabou por “criar” um regime de dissolução de casamentos que existiu apenas em Pernambuco, violando, assim, o Princípio da Isonomia e federativo e a competência exclusiva da União para legislar sobre processo civil. Consequentemente, ofende-se a higidez do direito federal, uma vez que uniformidade é um pressuposto da Federação e da igualdade entre os brasileiros. Ainda, o CNJ (2019) manifestou-se desfavorável ao divórcio impositivo por entender que se trata de uma nova forma de divórcio litigioso, já que um dos cônjuges requer a decretação do divórcio sem a anuência do outro e não há, no ordenamento jurídico brasileiro vigente, contudo, em caso de litígio, amparo legal para que o divórcio seja realizado extrajudicialmente. 22 Anna Caroline da Silva Resende | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo Vale destacar que o referido Conselho considerou que o Provimento n. 06/2019 também pode ser confrontado com o Código de Processo Civil, por seus artigos 693 a 699, nos quais se localizam as “ações de família”, sendo que, no artigo 694, recomenda-se o uso de todos os meios consensuais para resolver os litígios familiares e, somente se frustrada a tentativa de conciliação, haverá o acionamento do judiciário para realização do divórcio, por meio da petição inicial de dissolução do casamento. Ademais, a matéria tratada no Provimento n. 06/2019 pertence ao ramo do Direito Civil, ao Direito Processual Civil e aos Registros Públicos, e a competência privativa para legislar a matéria é da União, conforme apregoa o artigo 22, incisos I e XXV da Constituição Federal, de modo que somente poderia ser disposta em lei federal. Assim, ao se permitir que um tribunal local “legisle”, ignora- se a função do Superior Tribunal de Justiça e também do Congresso Nacional, a quem compete legislar privativamente sobre a matéria em questão. Considerou também a supracitada decisão que, no “divórcio impositivo”, o simples requerimento unilateral não é título com força suficiente para autorizar que o ato averbatório desfaça a sociedade conjugal e o vínculo do matrimônio. Por fim, diante de todos os argumentos apresentados, foi determinado pelo Conselho Nacional de Justiça à Corregedoria-Geral do Estado de Pernambuco que revogasse, em caráter imediato, o Provimento em questão e determinou a todos os Tribunais de Justiça e Corregedorias estaduais, por meio de Recomendação, que não mais editem atos normativos que regulamentem a averbação de divórcio por declaração unilateral de um dos cônjuges ou, na hipótese de já terem editado atos normativos de mesmo teor, tais atos deverão ser revogados. Desse modo, o Tribunal de Justiça do Maranhão também se absteve de editar Provimentos nesse sentido. 23DIVÓRCIO IMPOSITIVO: EXERCÍCIO DA AUTONOMIA DA VONTADE OU AMEAÇA À PACIFICAÇÃO? 4 Posicionamentos favoráveis ao tema O Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM, 2019b), na matéria divulgada pela assessoria de comunicação do referido órgão, destaca-se que o presidente da Comissão de Advogados de Família do referido Instituto, Marcelo Truzzi, é favorável ao divórcio impositivo. Inclusive há dez anos, quando ainda não havia sido editada a Emenda Constitucional 66/2010, escreveu a respeito do tema e sugeriu soluções para o divórcio indireto. No entanto, Truzzi destaca dois pontos negativos, como a necessidade de advogado, o que, para ele, é desnecessário e onera a parte, já que é só uma formulação do pedido do divórcio que é feito em cartório e as questões secundárias. (IBDFAM, 2019b) Ademais, como segundo ponto negativo, levanta questionamento acerca da constitucionalidade do provimento, considerando que, como não está disposto em lei, deveria ser criada para disciplinar o tema. (IBDFAM, 2019b) Ainda sobre o assunto, em nota publicada pelo Colégio Notarial do Brasil - Conselho Federal (2019), tal órgão se posicionou favorável, mas com ressalvas, entendendo que os referidos atos normativos não encontram respaldo no ordenamento jurídico vigente. O referido Colégio, que é uma entidade de classe que representa os notários de todo país, publicou uma nota de esclarecimento expondo seu posicionamento, inferindo que tal medida interferiu na competência do Poder Judiciário e nas atribuições notariais e registrais definidas nas Leis 8.935/94 e 6.015/73, com o que não se pode concordar. Pontua também o Colégio Notarial que é dever da União legislar sobre casamento e divórcio, conforme texto constitucional, e destaca que, se forem permitidas as edições de normas estaduais, será divergente de um Estado para outro, gerando desigualdade. Lucena Torres (2019) acredita que a regulamentação desse tipo de divórcio contribuirá para a desburocratização e “desafogamento” do 24 Anna Caroline da Silva Resende | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo Judiciário, considerando grande volume de processos que tramitam no Poder Judiciário. Ainda, que o vínculo conjugal é rompido de forma mais simples e, também, célere. Ainda, Torres (2019) destaca que foi extremamente relevante a atuação do Egrégio Tribunal de Justiça de Pernambuco, sendo uma resposta ao “clamor” da comunidade jurídica, que conhece a realidade de vários processos pendentes nesta matéria familiar. Há que se falar sobre a opinião da defensora pública Elisa Cruz (2019) sobre o tema: [...] é preciso considerar que mulheres poderiam ser prejudicadas por falhas na indicação de seus endereços ou na entrega das notificações, o que poderia vir a refletir em outros direitos que são articulados junto com o divórcio, tais como o uso do nome, a divisão dos bens, alimentos e, quando há filhos ou filhas, os direitos dessas crianças e adolescentes. Para Maria Berenice Dias apud Fernandes (2019), diante da omissão do Poder Legislativo, mais uma vez os Tribunais teriam saído na frente: O que permite este provimento de Pernambuco, mais um de tantos provimentos pioneiros daquele Estado, é que não havendo possibilidade de um divórcio consensual, extrajudicial,abre-se esta possibilidade [do divórcio unilateral]. Cada vez mais se caminha para desjudicializar as questões que não têm controvérsia; a Justiça deve ser “poupada” para o que dependa de uma tomada de decisão. Um pedido de divórcio, que não pode ser contestado, não tem mesmo que precisar de um carimbo judicial. Segundo o mesmo autor, a Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional de Goiás – foi favorável à realização do divórcio impositivo, 25DIVÓRCIO IMPOSITIVO: EXERCÍCIO DA AUTONOMIA DA VONTADE OU AMEAÇA À PACIFICAÇÃO? tendo requerido a regulamentação do denominado divórcio impositivo no referido Estado. (FERNANDES, 2019) Há que se destacar, por fim, a opinião do doutrinador Flávio Tartuce (2019), o qual considera que essa modalidade de divórcio tem “vantagens práticas”, mencionando que, muitas vezes, o cônjuge que não aceita o rompimento acaba por obstar a realização do divórcio, por implicância pessoal ou mesmo não é localizado para a realização de audiência de divórcio, impedindo o cônjuge que deseja o fim da união de casar novamente enquanto não é resolvido o litígio. Tartuce (2019) salientou, também, a vantagem do divórcio impositivo em situações que envolvem violência doméstica, em que o litígio entre as partes é tão grande, que o diálogo se torna impossível, arriscado e deve ser resolvida a questão em caráter urgente. É importante dizer que há um projeto de lei do senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) – o PLS 3457/19 – cuja Ementa é “Acrescenta o art. 733-A à Lei nº 13.105 de 16 de março de 2015 – Código de Processo Civil – e dá outras providências.”, tendo como explicação da Ementa: “Permite que um dos cônjuges requeira a averbação de divórcio no cartório de registro civil, mesmo que o outro cônjuge não concorde com a separação.”. Com a alteração, o texto seria o seguinte: Art. 733-A. Na falta de anuência de um dos cônjuges, poderá o outro requerer a averbação do divórcio no Cartório do Registro Civil em que lançado o assento de casamento, quando não houver nascituro ou filhos incapazes e observados os demais requisitos legais. § 1º. O pedido de averbação será subscrito pelo interessado e por advogado ou defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial. § 2º. O cônjuge não anuente será notificado pessoalmente, para fins de prévio conhecimento da averbação pretendida. Na hipótese de não encontrado o cônjuge notificando, proceder- se-á com a sua notificação editalícia, após insuficientes as 26 Anna Caroline da Silva Resende | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo buscas de endereço nas bases de dados disponibilizadas ao sistema judiciário. § 3º. Após efetivada a notificação pessoal ou por edital, o Oficial do Registro Civil procederá, em cinco dias, à averbação do divórcio. § 4º. Em havendo no pedido de averbação do divórcio, cláusula relativa à alteração do nome do cônjuge requerente, em retomada do uso do seu nome de solteiro, o Oficial de Registro que averbar o ato, também anotará a alteração no respectivo assento de nascimento, se de sua unidade; ou, se de outra, comunicará ao Oficial competente para a necessária anotação. § 5º. Com exceção do disposto no parágrafo anterior, nenhuma outra pretensão poderá ser cumulada ao pedido de divórcio, especialmente alimentos, arrolamento e partilha de bens ou medidas protetivas, as quais serão tratadas no juízo competente, sem prejuízo da averbação do divórcio. (NR) (PACHECO, 2019) Mostra-se relevante trazer os embasamentos dos juristas José Fernando Simão e Mário Luiz Delgado, citados na parte de Justificação do referido Projeto de Lei, eis que dotados de consistência jurídica. Levantam citados juristas que o casamento ocorre sem intervenção judicial e, portanto, seria consentâneo que, para a sua dissolução, também fosse dispensada tal intervenção. Isso porque, explicam, citados por Pacheco (2019), que “Tanto a constituição do vínculo como o seu desfazimento são atos de autonomia privada e como tal devem ser respeitados, reservando- se a tutela estatal apenas para hipóteses excepcionais”. Outra questão se refere à abrangência do pedido de divórcio unilateral, pois que se restringe à dissolução do vínculo. Quaisquer outras questões deverão ser avaliadas no Judiciário. Citados por Pacheco (2019), José Fernando Simão e Mário Luiz Delgado ressaltam que “(...) a averbação do divórcio não repercute em nenhum outro direito patrimonial ou existencial.”. Essa parece ser o tratamento que se espera seja conferido à questão de foro íntimo que é a opção pelo divórcio. 27DIVÓRCIO IMPOSITIVO: EXERCÍCIO DA AUTONOMIA DA VONTADE OU AMEAÇA À PACIFICAÇÃO? 5 Posicionamentos desfavoráveis ao tema A Presidente da Comissão Notarial e Registral do IBDFAM, Priscila Agapito, considera o instituto do divórcio inviável, devido à falta de fundamento jurídico. Segundo ela, apesar de ser um direito potestativo, o divórcio só pode ser legalmente realizado consensualmente mediante escritura pública ou, em caso de litígio, por via judicial. (IBDFAM, 2019b) Ainda, a presidente pontua que, segundo conta dos artigos 7º da Lei 8.935/94 e 6º da Constituição Federal, compete aos tabeliães, exclusivamente, lavrar escrituras e procurações públicas, formalizando a vontade das partes. Sendo assim, o provimento acaba por confundir a função de notário com a de registrador civil das pessoas naturais, sendo que este é incumbido de dar publicidade dos atos ou fatos jurídicos preexistentes, tais como nascimentos, casamentos, óbitos, competindo àquele conferir, arquivar e dar publicidade aos atos realizados. Assim, no final da matéria, afirma-se que o provimento banaliza a formalidade de dissolução do casamento, já que altera regra legal, quando supre a figura do juiz ou notário para tal formalidade. Dessa forma, entende-se que tal banalização fragiliza a atuação dos cartórios, além de causar insegurança jurídica e que a norma vigente para realização do divórcio extrajudicial consensual já é suficiente para a realização dos divórcios, visto que existe há cerca de onze anos e tem contribuído significativamente para a desjudicialização das demandas de divórcio. (IBDFAM, 2019b) Vale destacar também a opinião do presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família do Maranhão (IBDFAM- seção MA), Carlos Augusto Macedo Couto, o qual destaca um ponto negativo do divórcio impositivo, no que diz respeito ao aumento dos emolumentos, seguindo a lei de custas do Estado do Maranhão, sendo, em tese, superior a 100%, bem como pontua que o divórcio impositivo pode ser 28 Anna Caroline da Silva Resende | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo interpretado como uma banalização da dissolução do vínculo conjugal, quando comparado com as formalidades do matrimônio. (IBDFAM, 2019a) Nesse mesmo sentido é a opinião de Cláudia Mara Viegas (2019), apesar do ato normativo expedido pela Corregedoria Geral de Pernambuco apresentar a intenção elogiável de valorizar a autonomia privada dos envolvidos, pela menor intervenção do Estado nas relações privadas, bem como pela simplificação e desjudicialização, ficando a dúvida sobre a sua efetividade. Segundo ela, o provimento da Corregedoria do TJPE não tem o condão de alterar uma lei geral, como é o caso do Código Civil Brasileiro. Ainda, Venceslau Tavares Costa Filho e Roberto Paulino de Albuquerque Jr. (2019) consideram o divórcio impositivo grave risco no que diz respeito à resolução de conflitos no âmbito do Direito de Família. Não concordam que seja viável pela questão de partilha de bens, alimentos, quando há filhos incapazes. Segundo eles: [...] viola diretamente o regramento previsto no Código de Processo Civil, ao permitir que o cônjuge requerente postergue unilateralmente a partilha de bens para momento posterior ao divórcio extrajudicial. Mais grave é a possibilidade de postergar a definição da pensão alimentícia devida ao outro cônjuge, que não encontrava previsão no âmbito extrajudicial. Segundo Thais Guimarães(2018), apesar de o provimento atender ao necessário desafogamento do Poder Judiciário e a desburocratização da realização de procedimentos simples, a sua constitucionalidade é questionável. Isso porque na legislação civil estão previstas apenas duas modalidades de divórcio: o que for decretado judicialmente e o formalizado por meio de escritura pública. É importante destacar ainda que, conforme divulgado pela ADFAS - Associação de Direito de Família e das Sucessões (2019), esta 29DIVÓRCIO IMPOSITIVO: EXERCÍCIO DA AUTONOMIA DA VONTADE OU AMEAÇA À PACIFICAÇÃO? apresentou junto ao Conselho Nacional de Justiça, no dia 22 de maio de 2019, um pedido de providências cumulado com pedido de liminar em face dos provimentos 06/2019, editado pela Corregedoria-Geral de Justiça de Pernambuco e do Provimento 25/2019, da Corregedoria- Geral do Maranhão, justificando que afrontam dispositivos de lei federal e atos normativos do Conselho Nacional de Justiça. Alegou a assessoria de comunicação da ADFAS (2019) que os Provimentos estaduais extrapolam os limites de regulação e fiscalização, invadindo matéria de competência do Poder Legislativo, já que pretendem inovar o ordenamento jurídico. Considerou que os supracitados Provimentos ferem o princípio da reserva legal e ocorrem em vício de inconstitucionalidade ao usurpar atividade legislativa. 6 Considerações finais O TJ/PE e o TJ/MA regulamentaram o divórcio unilateral em cartório, definindo os procedimentos para a formalização do divórcio impositivo, alavancando as discussões sobre o tema. Segundo os provimentos, qualquer um dos cônjuges poderia, no exercício de sua autonomia de vontade, requerer, ao Registro Civil da serventia extrajudicial perante a qual se acha lançado o assento de seu casamento, a averbação do divórcio, à margem do respectivo registro, tendo como condição de não ter filho nascituro, menores ou incapazes, sendo questões de alimentos e patrimoniais discutidas posteriormente, em juízo. Além disso, o outro cônjuge receberia uma notificação apenas para ter ciência prévia do pedido e, caso não encontrado, citado por edital. Os Provimentos citados tiveram existência curta, sendo proibidos pelo Conselho Nacional de Justiça, por meio de recomendação e, consequentemente, revogados. No entanto, as discussões acerca do polêmico tema continuaram e estão latentes nos debates de Direito de Família, 30 Anna Caroline da Silva Resende | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo entre doutrinadores, escritores e operadores do Direito. Há pontos positivos e negativos quanto à sua aplicação, como foi levantado ao longo do trabalho. Conclui-se que há mais aspectos positivos que negativos, considerando-se que há uma desjudicialização, ponto bem relevante quando se considera que o Judiciário não tem estrutura suficiente para atender à intensa demanda de litígios pendentes. Assim, a realização do divórcio impositivo, sem intervenção do Judiciário, acaba por garantir mais celeridade na resolução dos conflitos, bem como possibilita ao cônjuge que deseja divorciar uma maior liberdade para exercer sua autonomia de vontade e por fim à sociedade conjugal. É importante destacar também que, em casos de violência doméstica em que uma das partes está suscetível, vulnerável e também clama providências urgentes, já que o diálogo e a conciliação se tornam impossíveis, a realização do divórcio unilateral é uma oportunidade de resolução do conflito de maneira segura e célere. Para tanto, é, então, necessária a criação de uma lei federal que disponha sobre a referida modalidade de divórcio, segundo os trâmites legais e para que possa ser aplicada em todo território nacional. Neste ponto, foi mencionado que existe um Projeto de Lei do Senado de autoria do senador Rodrigo Pacheco, o Projeto de Lei nº 3457/19, que sanaria o principal motivo alegado pelo CNJ em desfavor do divórcio impositivo. Dito isso, conclui-se que o divórcio impositivo, longe de ser uma ameaça à pacificação, é, certamente, um exercício da autonomia da vontade, extremamente relevante na resolução dos conflitos e dissolução da sociedade conjugal, sendo sua realização um avanço para o Direito de Família brasileiro e, também, para o Judiciário. 31DIVÓRCIO IMPOSITIVO: EXERCÍCIO DA AUTONOMIA DA VONTADE OU AMEAÇA À PACIFICAÇÃO? 7 Referências ADFAS. Associação de Direito de Família e Sucessões. Corregedoria mantém decisão que proibiu divórcio impositivo em todo país. Publicado em jun. 25, 2019. 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Com esse artigo, propôs-se: alcançar a análise da adoção internacional pela ótica constitucional, sobressaindo-se o enfoque pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana; versar acerca da condição do menor abandonado no Brasil; tratar da inserção desse menor em família substituta e enfrentar a questão problemática do tráfico de menores, fazendo uma correlação da afronta da dignidade humana à obra “Tráfico de Anjos”, de Luiz Puntel. A metodologia utilizada foi a abordagem dedutiva, na qual as conclusões decorrem de um processo simplesmente racional, tendo sido utilizadas as pesquisas bibliográfica e literária como instrumentos de abordagem. O artigo revelou que, no Brasil, o principal estatuto legal acerca da adoção e adoção internacional é o ECA, que sofreu mudanças legislativas para adequar à finalidade da lei em preservar a criança e o adolescente de serem retirados ilegalmente do país. Embora exista princípio que prevê a preferência para brasileiros serem adotantes, 36 Tatyane Gondim Silva | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo conclui-se que não se deve dificultar a adoção por estrangeiros, mesmo diante da existência de ações ilegais como do tráfico de menores, bem relatado com casos reais na obra “Tráfico de Anjos”, tendo em vista que o maior beneficiário será o menor que encontrará um lar. Palavras-chave: Constituição. Adoção Internacional. Dignidade da Pessoa Humana. 1 Introdução Esse artigo teve como objetivos: abordar uma visão constitucional do instituto da adoção internacional à luz do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, núcleo axiológico da Carta Magna, como direito à família e proteção do menor entre países; tratar da condição do menor abandonado no Brasil, bem como de sua inserção na família substituta; perpassar, ao final, pela problemática do tráfico de menores, correlacionando tal afronta à dignidade humana à obra “Tráfico de Anjos” de Luiz Puntel. Para tanto, foram analisados o conceito e o histórico da adoção “interpaíses”, os aspectos e requisitos da adoção por estrangeiros e a adoção internacional fraudulenta, bem como os tratados internacionais (Convenção de Haia e a Convenção Interamericana Contra o Tráfico de Menores) e a legislação infraconstitucional (Estatuto da Criança e do Adolescente), que previnem tais práticas fraudulentas e impõem maior rigorosidade e cautela no processo de adoção internacional. Dentre as circunstâncias que motivaram a eleição do presente tema, nota-se que tal estudo apresenta-se de extrema importância para as Ciências Jurídicas, especificamente, para o Direito de Família, haja vista que o instituto da adoção propicia para inúmeras crianças e adolescentes abandonados em terrea brasilis a possibilidade de integrar uma unidade familiar, indo ao encontro do disposto no texto constitucional de 1988, segundo o qual prevê amparo à infância, bem como o dever conjunto da sociedade e do Estado de 37ADOÇÃO INTERNACIONAL E TRÁFICO DE MENORES À LUZ DA OBRA “TRÁFICO DE ANJOS” DE LUIZ PUNTEL assegurar à criança e ao adolescente o direito à vida, à saúde, à alimentação, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar. Além do mais, verifica-se que a Lei n.º 8.069/1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) –, com relação à adoção feita à margem da lei, prevê como condutas criminosas a prática da subtração da criança do poder dos pais para destiná-la à adoção, bem como a promessa ou entrega do filho para outra pessoa em razão de recompensa, financeira ou não. Dessa maneira, visa-se impedir a coisificação da vida humana, resguardando a dignidade da pessoa e do núcleo familiar. A esse propósito, o tema em epígrafe permite a criação de laços familiares entre adotante e adotado residentes, inicialmente, em países diferentes, independentemente da existência de relação de parentesco, atingindo o instituto da adoção sua finalidade, que é propiciar à criança e ao adolescente abandonado a oportunidade de crescer sob o manto de uma família substituta, bem como, secundariamente, dar filhos àqueles que anseiam assumir a paternidade. Nesse viés, outro motivo que culminou na escolha do supradito tema foi a inter-relação entre Direito e Literatura, haja vista que a Ciência Jurídica é um produto social em constante transformação, adquirindo, a partir da Literatura, uma nova visão, leitura e compreensão do fato que lhe dá origem. Dessa maneira, verifica-se que a obra “Tráfico de Anjos”, publicada em 1995, pelo autor Luiz Puntel, relata que o desaparecimento de bebês na região de Ribeirão Preto, no Estado de São Paulo, é recente, lugar no qual, aliás, uma criança fora sequestrada na maternidade, sendo, posteriormente, levada para o orfanato a fim de ser traficada no exterior. Nesse cenário, o jornalista “Aquiles” e “Flávia”, irmã de uma criança desaparecida, tornam-se personagens essenciais para desmantelar a quadrilha envolvida com o tráfico de menores. Para obter as finalidades propostas, escolheu-se o método de abordagem dedutivo, por meio do qual as conclusões são feitas por um processo simplesmente racional e foram utilizadas as pesquisas bibliográfica e literária como instrumentos de abordagem. 38 Tatyane Gondim Silva | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo 2 Conceito de adoção A vida humana é um fenômeno de impulso biológico que se desenrola a fim de dar origem a um ser que, ao ser concebido, será titular de personalidade jurídica, iniciando-se para ele e seus pais biológicos uma variedade de direitos e deveres. Contudo, há situações nas quais a relação de parentesco entre pais e filhos não se dá por laços de consanguinidade, laços biológicos. Nessas hipóteses, institui-se o denominado parentesco civil, “quando o vínculo é estabelecido não já por laços de sangue, mas por ato jurídico voluntário, denominado adoção”, que tem sua caracterização arrimada na autonomia privada e que, subjetivamente, baseia-se nas “relaçõesde afeto que fazem com que o filho adotivo venha a integrar a família do adotante.” (TEPEDINO, 1999, p. 396). A adoção é processo judicial que importa a substituição da filiação de uma pessoa (adotado), tornando-a filha de outro homem, mulher ou casal (adotantes). Ela está regida no direito positivo brasileiro pelo ECA, quando o adotado tem até 18 anos de idade incompletos (CC, art. 1.618). Sendo maior de 18 anos o adotado, a adoção dependerá da assistência efetiva do Poder Público e de sentença judicial, aplicando-se subsidiariamente o ECA (CC, art. 1.619). Ainda, deve-se mencionar que o Código Civil, quando entrou em vigor, em 2003, abrigava disposições sobre a adoção não inteiramente compatíveis com as do ECA, dando, dessa maneira, ensejo a indagações sobre a vigência desse Estatuto. Assim, a doutrina concluiu, na oportunidade, que o Código Civil, por conter normas de caráter geral, não havia revogado o ECA, lei especial para a infância e adolescência (FACHIN, 2003, p. 239; GRISARD FILHO, 2003). Em 2009 foi editada a Lei n. 12.010, revogando as disposições específicas do Código Civil acerca da adoção, mantendo nesse diploma apenas remissões genéricas e supletivas ao ECA. Colaborando sobre a adoção, Maria Helena Diniz (2014, p. 572) preleciona que: 39ADOÇÃO INTERNACIONAL E TRÁFICO DE MENORES À LUZ DA OBRA “TRÁFICO DE ANJOS” DE LUIZ PUNTEL [...] a adoção é, portanto, um vínculo de parentesco civil, em linha reta, estabelecendo entre adotante, ou adotantes, e o adotado um liame legal de paternidade e filiação civil. Tal posição de filho será definitiva ou irrevogável, para todos os efeitos legais, uma vez que desliga o adotado de qualquer vínculo com os pais de sangue, salvo os impedimentos para o casamento (art. 227, §§5º e 6º), criando verdadeiros laços de parentesco entre o adotado e a família do adotante. Diante disso, faz-se mister mencionar que a adoção internacional é um tema de inúmeras discussões e preconceitos, não podendo ser compreendida sem a devida menção da ordem globalizada atual, do intercâmbio entre sociedades que extrapola os limites territoriais, raciais, étnicos e costumes variados. 3 Histórico da Adoção Interpaíses Inicialmente, ressalta-se que “a adoção tem suas origens históricas antes mesmo da Roma Antiga, tendo sido regulada pelo Código de Hamurabi, em 2.283 a. C., sendo certo que sua penetração no mundo ocidental decorre principalmente do Direito Romano.” (MONACO, 2002, p. 27). Durante a Idade Média e a época Moderna, a adoção deixou de ser usada nos países do Sul da Europa, ainda que fosse admitida por influência do Direito Romano, sendo, contudo, desprovida de efeitos sucessórios. Diante disso, foi desconhecida dos ordenamentos jurídicos costumeiros da Europa Ocidental em virtude da estrutura da família medieval, calcada nos laços de sangue no “seio da linhagem”, que “opunha-se à introdução de um estranho” na família (GILISSEN apud MONACO, 2002, p. 29). Nesse contexto, as assembleias legislativas do período revolucionário na França “mostraram-se favoráveis à adoção, tal como tinha existido em Roma” (GILISSEN apud MONACO, 2002, p. 29). 40 Tatyane Gondim Silva | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo Todavia, a normatização do instituto supradito só se concretizou com a redação do Código Civil, em 1804, o qual a condicionou à inexistência de prole biológica do adotante, que deveria contar com mais de cinquenta anos de idade e ser ao menos quinze anos mais velho que o adotando, o que foi motivo para sua pouca incidência no mundo fático. (MONACO, 2002, p. 29). Em terrea brasilis, “a adoção surge por influência das Ordenações do Reino de Portugal, tendo sido incluída no Código Civil de 1916” (MONACO, 2002, p. 30), depois é normatizada pelo Código de Menores – Lei n. 6.697/79 – e, consequentemente, após a redemocratização do país, pela Constituição Cidadã e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. A adoção internacional de crianças por estrangeiros surge no cenário mundial logo depois da Segunda Guerra Mundial, porquanto, no fim do mencionado conflito armado, houve o crescimento acentuado de crianças órfãs sem qualquer possibilidade de amparo em suas próprias famílias. Desse modo, encerrada a Segunda Guerra Mundial, inúmeras crianças naturais dos países envolvidos ou atingidos pelo conflito armado foram adotadas por casais estrangeiros. Entretanto, “segundo estatística do Serviço Internacional de Adoção, sediado em Genebra, milhares dessas crianças foram encaminhadas para o exterior sem que, sequer tivessem os documentos indispensáveis à regularização de sua situação” (FERNANDES, 2010, p. 1). Devido ao crescente número de adoções internacionais, em 1956, o Serviço Social Internacional (ISS) estabeleceu os princípios fundamentais do Serviço de Adoção Internacional. Quatro anos depois, foi realizado o Seminário Europeu sobre Adoção, que elaborou o primeiro documento oficial sobre o assunto, bem como se realizou, em 1971, a Conferência Mundial sobre Adoção e Colocação Familiar, a fim de salvaguardar o interesse superior da criança, respeitando os seus direitos fundamentais, prevenindo o seu sequestro, venda e/ou tráfico (ROCHA, 2011, p. 32). 41ADOÇÃO INTERNACIONAL E TRÁFICO DE MENORES À LUZ DA OBRA “TRÁFICO DE ANJOS” DE LUIZ PUNTEL Diante do exposto, nota-se que a evolução normativa da adoção, especificamente internacional, deu-se de maneira gradativa, buscando resguardar a inserção do menor em uma família substituta, mesmo que constituída por estrangeiros. 4 A adoção na Constituição Federal brasileira de 1988 A Constituição Federal brasileira de 1988 (CRFB/88), no seu capítulo VII, referente à ordem social, traz à luz a proteção à família, à criança, ao adolescente, em seu artigo 227, caput, encampando, definitivamente, a política de proteção integral da infância e da adolescência no Brasil. Aproveitando o mote, a Carta Política, à luz do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, prevê o instituto da adoção internacional como direito à família e proteção do menor interpaíses, segundo se depreende do teor do artigo 227, §5º, da CRFB/88: “A adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei, que estabelecerá casos e condições de sua efetivação por parte de estrangeiros.”. Nesse sentido, o disposto na Constituição Federal 1988 merece uma atenção especial ao intérprete, o qual, quando da interpretação constitucional, deve efetivar a aplicabilidade concreta de regras, direitos, obrigações e princípios alinhavados por ela, sobretudo com relação à Dignidade da Pessoa Humana – fundamento da República Federativa do Brasil –, conforme o conteúdo do seu artigo 1º, inciso III, tornando-se ponto de partida para as interpretações levadas a efeito pelas Ciências Jurídicas. Nessa toada, Alexandre de Moraes (2003, p. 128) ensina que a dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida, trazendo a concepção ao respeito pelas pessoas constituintes de uma sociedade. Assim, a dignidade da pessoa humana deve ser tratada, ainda de acordo com Alexandre de Moraes (2003, p. 129), como direito individual 42 Tatyane Gondim Silva | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo protetivo (em relação ao próprio Estado ou à pessoa individualmente considerada) e como dever fundamental de tratamento igualitário. Com o escopo de concretizar o postulado da dignidade da pessoa humana, garantindo aos menores abandonados em terrae brasilis a possibilidade de integrar uma unidade familiar e, consequentemente, uma convivência familiar, nota-se que a filiação adotiva, não apenas por imperativo constitucional (art. 227, §6º, da CRFB/1988), mas, também, por um ditame moral e afetivo, equipara-se, de direito e de fato, à filiação biológica, não havendo o mínimo espaço para o estabelecimento de regras discriminatórias, segundo ensinam Gagliano e Pamplona Filho (2014,p. 667). No que se refere à condição do menor abandonado no Brasil, nota-se que as crianças e os adolescentes que não vivem em companhia de seus genitores, por estarem abrigados em instituições, tornam-se vítimas da situação na qual se encontram, porquanto, na maioria dos abrigos existentes, não se verifica empenho no sentido de salvaguardar os vínculos familiares dos infantes ou tentar a volta desses às famílias de origem, nas situações que haveria possibilidade, além de ser difícil a existência de condições dignas no que concerne à permanência dos internos nos abrigos, consoante prelecionam Leal Júnior e Pires (2008, p. 30-42). Destarte, posto que o infante tenha de ser criado e educado, prioritariamente, no cerne de sua família biológica em razão dos laços familiares decorrentes do nascimento, extraordinariamente, o menor poderá permanecer dentro de uma família substituta, a qual passa a desempenhar as funções da família original, protegendo-o e buscando o seu desenvolvimento a partir de uma convivência harmoniosa, segundo os ditames do artigo 19 do ECA. Dessa maneira, deve-se trazer à baila que há distinção entre a adoção e o tráfico de crianças. A adoção é revestida de amparo legal, sobretudo, pelo ECA, bem como exige a intervenção da autoridade judiciária, à qual cabe apreciar, decidir, controlar e fiscalizar todos os 43ADOÇÃO INTERNACIONAL E TRÁFICO DE MENORES À LUZ DA OBRA “TRÁFICO DE ANJOS” DE LUIZ PUNTEL atos para a sua consecução. De outro vértice, o tráfico de crianças se consubstancia mediante fraude às leis, impedindo a intervenção e o controle pela autoridade judiciária. A corroborar o exposto acima, Welter (2011, p. 1) ensina que: [...] a adoção internacional e tráfico internacional de crianças são, portanto, formas de agir inteiramente distintas e situadas em polos opostos, embora destinados ambos à colocação de crianças em lares substitutos no exterior. Investigações estão sendo realizadas acerca da ação de grupos de tráfico de crianças, especialmente de uma quadrilha que age na Paraíba, com ramificações em Brasília, Paraná e Fortaleza. O relatório da Polícia Federal apresenta estimativas de que perto de três mil crianças deixam clandestinamente o País por ano, contra outras mil e quinhentas que partem com documentação em ordem. Por fim, esse processo legal – adoção – encontra maiores dificuldades na sua esfera internacional, uma vez que não se pode garantir a efetiva proteção e/ou acompanhamento, diante do caso concreto, da criança no país estrangeiro. 5 Aspectos e Requisitos da Adoção Internacional Inicialmente, é importante mencionar que o ECA sofreu alteração mais recente pela Lei n.º 13.509/2017, onde foram alterados artigos relativos à adoção internacional. Encontra-se no artigo 51, caput, do ECA, com redação dada pela Lei nº 13.509, de 2017, o que se deve entender por adoção internacional. Veja-se, in verbis: Art. 51. Considera-se adoção internacional aquela na qual o pretendente possui residência habitual em país-parte da Convenção de Haia, de 29 de maio de 1993, Relativa à 44 Tatyane Gondim Silva | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional, promulgada pelo Decreto n 3.087, de 21 junho de 1999, e deseja adotar criança em outro país-parte da Convenção. Outrossim, sob o ensinamento do Princípio da Prioridade da Própria Família ou Princípio da Excepcionalidade da Adoção Internacional, segundo o qual preleciona que toda criança tem o direito de ser criada e educada em sua própria família, em seu próprio país e sua própria cultura, o artigo 31 do ECA estabelece que a colocação em família substituta estrangeira é uma medida excepcional e somente admissível na modalidade de adoção. Se a adoção já é uma exceção, a adoção internacional é a exceção da exceção, uma vez que somente terá lugar quando restar comprovado que foram esgotadas todas as possibilidades de colocação da criança ou adolescente em família adotiva brasileira (art. 51, §1º, inciso II, ECA). Outro ponto importante na adoção internacional é o estágio de convivência, haja vista ser considerado indispensável para o deferimento do processo de adoção, bem como para coibir o tráfico de menores, garantindo-lhe, em sua integralidade, a integridade moral, psicológica e física. Nesse passo, os eminentes doutrinadores Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald prelecionam (2019, p. 1042): “Não se esqueça que na adoção internacional o estágio de convivência é obrigatório, não podendo ser dispensado pelo magistrado, devendo ser, integralmente, cumprido no nosso país, com prazo de duração mínimo de trinta dias.”. Ainda, faz-se mister mencionar que o artigo 50 do ECA dispõe que a autoridade judiciária deverá manter um cadastro de crianças aptas à adoção e de interessados em adotar. E, por sua vez, conforme será dito doravante, para auxiliar do processo de adoção transnacional, ficou normatizado na Convenção de Haia que cada Estado designará uma Autoridade Central encarregada de dar cumprimento às obrigações determinadas pela Convenção. 45ADOÇÃO INTERNACIONAL E TRÁFICO DE MENORES À LUZ DA OBRA “TRÁFICO DE ANJOS” DE LUIZ PUNTEL Por último, o estrangeiro interessado em adotar um menor brasileiro deverá ser representado por uma entidade estrangeira habilitada que atua no Brasil na seara das adoções, à luz do art. 52 do ECA. 6 Adoção Internacional Fraudulenta Ab initio, faz-se mister salientar que o tráfico de seres humanos é considerado como uma forma moderna de escravidão, seja econômica, seja sexual, apresentando quanto ao tráfico de crianças números preocupantes. De acordo com o Decreto n. 5.017, de 12 de março de 2004, a definição de tráfico de pessoas pode ser extraída do seu artigo 3º, letra “a”, segundo o qual: Para efeitos do presente Protocolo: a) A expressão “tráfico de pessoas” significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos; Nesse passo, estudos levados à cabo pela United Nations Office on Drugs and Crime (UNDOC), em 2003, e divulgados pelo Ministério da Justiça no Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (2008, p. 47), têm demonstrado que as principais vítimas do tráfico de seres 46 Tatyane Gondim Silva | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo humanos são mulheres, crianças e adolescentes, bem como apontam que 83% dos casos envolvem mulheres, 48% crianças ou adolescentes e apenas 4% dos casos têm homens como vítima. Se não bastasse, constata-se que, por ano, conforme dados divulgados pelo UNDOC (Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, 2008. p. 45), o lucro do tráfico de seres humanos chega a cerca de US$ 32 bilhões, tendo as novas tecnologias eletrônicas contribuído sistematicamente para a expansão nas redes sociais da comunicação entre pessoas de diferentes países. Destarte, a adoção internacional, além de motivos sucessórios, o objetivo humanitário, sentimento de altruísmo, é aparentemente o grande mobilizador dessas adoções (ROCHA, 2011, p. 45), conquanto também pode se tornar um lucrativo negócio, com corrupção, mentiras e fraudes. Por último, embora os grupos criminosos escolham o tráfico de seres humanos pelos altos lucros, pelas vulnerabilidades econômicas e socais e o suposto baixo risco inerente ao “negócio”, a adoção internacional, desde que cumpridas as disposições na legislação nacional e alienígena,apresenta-se como solução ao abandono de menores, haja vista possuir um caráter humanitário e altruísta possibilitando àqueles sua inserção no meio familiar. 7 Legislação Infraconstitucional (ECA) e os Tratados Internacionais (Convenção de HAIA e Convenção Interamericana Contra o Tráfico de Menores) Prima facie, a adoção por estrangeiro de criança brasileira tem sido enfrentada por muitos como um problema, porque pode conduzir ao tráfico de menor ou se prestar à corrupção. Nesse viés, o ECA, além de punir, nos artigos 238 e 239, com reclusão de 1 a 4 anos e multa ou 6 a 8 anos e multa, havendo violência, quem promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado a enviar menor para o exterior, sem a observância de 47ADOÇÃO INTERNACIONAL E TRÁFICO DE MENORES À LUZ DA OBRA “TRÁFICO DE ANJOS” DE LUIZ PUNTEL formalidades legais, visando ao lucro, veio impor restrições às adoções internacionais, dificultando-as ou até mesmo interrompendo-as. Além do mais, faz-se mister trazer à luz o teor dos artigos 238 e 239, ambos do ECA, que se referem aos crimes praticados em desfavor da criança e do adolescente, in verbis: Art. 238. Prometer ou efetivar a entrega de filho ou pupilo a terceiro, mediante paga ou recompensa: Pena - reclusão de um a quatro anos, e multa. Parágrafo único. Incide nas mesmas penas quem oferece ou efetiva a paga ou recompensa. Art. 239. Promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de criança ou adolescente para o exterior com inobservância das formalidades legais ou com o fito de obter lucro: Pena - reclusão de quatro a seis anos, e multa. Parágrafo único. Se há emprego de violência, grave ameaça ou fraude: (Incluído pela Lei nº 10.764, de 12.11.2003) Pena - reclusão, de 6 (seis) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência. Nesse viés, dentro da problemática da adoção internacional e do tráfico de menores, o ECA, amparado pelas Convenções de Haia e Interamericana Contra o Tráfico de Menores, buscou medidas que dificultassem a consubstanciação desse delito, disciplinando sanção para o crime. Com relação ao artigo 229 do ECA, com a criação deste dispositivo, procurou-se punir aqueles que promovem, impulsionam ou auxiliam a efetivação de ato destinado ao envio de criança ao estrangeiro sem observância das formalidades legais. Além disso, até mesmo aqueles que, mesmo respeitando as exigências e procedimentos estabelecidos no ECA, atuam com o fim de lucro e esquecem-se da proteção inerente à criança e ao adolescente. 48 Tatyane Gondim Silva | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo Nesse sentido, observe-se o seguinte julgado: PENAL E PROCESSO PENAL. ART. 239 DA LEI 8.069/90. TRÁFICO INTERNACIONAL. AUXILIAR O ENVIO DE CRIANÇA AO EXTERIOR. QUANTUM PENALÓGICO REDUZIDO. I – A norma do art. 239 da Lei n. 8.069/90, cuida do tráfico internacional de menores que ocorre por meio de duas condutas criminosas: a de promover e a de auxiliar, por meio ilícito, o envio de criança ou adolescente ao exterior. II – Crime de mera conduta que se consumou com a ação da agente que auxiliou no ato de enviar os menores aos Estados Unidos. III – O quantum penalógico revelou-se exacerbado, devendo ser reduzido para refletir a medida da reprovabilidade da conduta da acusada. IV – Apelação da ré parcialmente provida. (TRF1 – APELAÇÃO CRIMINAL: ACR 25772 MG 2003.38.00.025772-2 – Terceira Turma – Rel. Dês. Fed. Cândido Ribeiro – 27/052005, DJ, p.18) Não obstante a previsão normativa do crime de tráfico de menores, tal conduta legislativa não foi suficiente para coibir a prática do supradito crime. Assim, influenciado pelo Plano Nacional de Combate ao Tráfico de Pessoas, o ECA sofreu modificações quanto ao processo de adoção e, sobretudo, adoção internacional, devido à Lei n.º 12.010/2009 e à Lei n.º 13.509/2017. Diante disso, essas mudanças, positivadas nos artigos 51 e 52 do Estatuto, tiveram o condão de submeter o processo de adoção por estrangeiros a um extenso procedimento formal de proposição, comprovação, avaliação e julgamento. Por conseguinte, para que ocorra o deferimento de uma adoção internacional, esta deverá se submeter a uma análise cautelosa no processo de habilitação, uma maior fiscalização no estágio de convivência e, ademais, o resguardo de que, no transcorrer do período de processamento de seu pedido, o menor não poderá sair do país. 49ADOÇÃO INTERNACIONAL E TRÁFICO DE MENORES À LUZ DA OBRA “TRÁFICO DE ANJOS” DE LUIZ PUNTEL Outrossim, após essas mudanças no procedimento para adoção por estrangeiros, houve uma diminuição nos números de adoções. Confira-se nas informações trazidas abaixo: O número de crianças brasileiras adotadas por famílias estrangeiras despencou nos últimos cinco anos. Em São Paulo, a queda foi de 35%, com o número de adoções internacionais caindo de 207, em 2005, para 135, no ano passado. No mesmo período, o número de novos candidatos a pais adotivos não residentes no país ficou 20% menor, de 432 para 348. A lista de países de origem dos pretendentes também encolheu e apresenta mudanças importantes. Em 2005, 65 crianças e adolescentes foram adotados por famílias dos Estados Unidos. Em 2010, apenas 26. Só em São Paulo foram autorizadas judicialmente no ano passado 126 adoções para a Itália (93% do total), país que nos últimos anos passou a liderar, com folga, as estatísticas do cadastro internacional de adoção. Somando-se todos os estados, 318 crianças brasileiras foram adotadas em 2010 por famílias residentes na Itália, 12 a menos em comparação em 2009. França (63 adoções), Espanha (19) e Noruega (14) também aparecem como os principais destinos de meninos e meninas do Brasil, mas em escala bem menor. (PEREIRA, 2011, p. 1) Ademais, a Convenção de Haia previu que cada Estado contratante designará uma autoridade central encarregada de dar cumprimento às obrigações que lhe são impostas pela mencionada convenção, por exemplo, assegurar o retorno imediato das crianças. Nesse sentido, pode-se ler, nos Comentários realizados pelos membros do Grupo Permanente de Estudos sobre a Convenção da Haia de 1980 (STF, s/d, p. 10), que o Brasil não se valeu da prerrogativa de designar mais de uma autoridade central, ainda que seja um Estado federal. Essa circunstância decorre, sobretudo, do fato de a União 50 Tatyane Gondim Silva | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo responder, no plano internacional, pelas obrigações provenientes dos tratados e convenções internacionais. Assim, a autoridade central brasileira é a Secretaria Especial de Direitos Humanos, segundo previsto no Decreto n. 3951/2001. A corroborar o exposto acima, é o teor do art. 6º da supradita Convenção, in verbis: Artigo 6º - Cada Estado Contratante designará uma Autoridade Central encarregada de dar cumprimento às obrigações que lhe são impostas pela presente Convenção. Estados federais, Estados em que vigorem vários sistemas legais ou Estados em que existam organizações territoriais autônomas terão a liberdade de designar mais de uma Autoridade Central e de especificar a extensão territorial dos poderes de cada uma delas. O Estado que utilize esta faculdade deverá designar a Autoridade Central à qual os pedidos poderão ser dirigidos para o efeito de virem a ser transmitidos à Autoridade Central internamente competente nesse Estado. (STF, s/d, p. 10) À luz da Convenção Interamericana Contra o Tráfico de Menores, “Os Estados Partes comprometem-se a adotar, em conformidade com seu direito interno, medidas eficazes para prevenir e sancionar severamente a ocorrência de tráfico internacional de menores definido nesta Convenção”, segundo o conteúdo do artigo 7º da referida Convenção (Decreto nº 2.740, de 20 de agosto de 1998). Se não bastasse, a supracitada Convenção estabelece, in verbis, que: Artigo 8 - Os Estados Partes comprometem-se a: a) prestar, por meio de suas autoridades centrais e observados os limites da lei interna de cada Estado Parte e os tratados internacionaisaplicáveis, pronta e expedita assistência mútua 51ADOÇÃO INTERNACIONAL E TRÁFICO DE MENORES À LUZ DA OBRA “TRÁFICO DE ANJOS” DE LUIZ PUNTEL para as diligências judiciais e administrativas, obtenção de provas e demais atos processuais necessários ao cumprimento dos objetivos desta Convenção; b) estabelecer, por meio de suas autoridades centrais, mecanismos de intercâmbio de informação sobre legislação nacional, jurisprudência, práticas administrativas, estatísticas e modalidades que tenha assumido o tráfico internacional de menores em seus territórios; e c) dispor sobre as medidas necessárias para a remoção dos obstáculos capazes de afetar a aplicação desta Convenção em seus respectivos Estados. Nesse diapasão, a diminuição dos números de adoções por estrangeiros decorre da implementação da Lei n. 12.010/2009, que modificou o ECA, garantindo, assim, a redução do tráfico de menores em razão das cautelas implementadas no procedimento da adoção, buscando salvaguardar os direitos das crianças e dos adolescentes. Logo, verifica-se que, no plano nacional, a Convenção de Haia – instrumento normativo que estabeleceu normas pré-procedimentais com a finalidade de assegurar a proteção dos interesses da criança – aprovada pelo Decreto Legislativo n. 1, de 14 de janeiro de 1999, e promulgada pelo Decreto n. 3.087, de 21 de junho de 1999, bem como a Convenção Interamericana Contra o Tráfico de Menores – instrumento normativo que coíbe e penaliza o tráfico de menores, nos aspectos civis e penais, visando à proteção dos direitos fundamentais e do interesse superior do menor –, aderida pela República Federativa do Brasil mediante o Decreto n. 2.740, de 20 de agosto de 1998 – juntamente com o ECA, da Política de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – Decreto n. 5.948, de 26 de outubro de 2006 – e o Plano Nacional de Combate ao Tráfico de Pessoas – Decreto n. 6.347, de 8 de janeiro de 2008 – dificultaram a prática do tráfico de menores a fim de salvaguardar o interesse superior da criança sobretudo o de ser inserido em um lar mesmo que se submeta à adoção internacional. 52 Tatyane Gondim Silva | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo 8 Comentários jurídicos da obra “Tráfico de Anjos” de Luiz Puntel Foi em notícias de jornais que Luiz Puntel se inspirou para a criação da obra “Tráfico de Anjos.”. Autor este perturbado com a realidade do país, demonstrou em sua obra o lado sombrio de pessoas interessadas em obter lucros advindos da separação drástica de mães para com seus bebês, por meio da atuação meticulosa de uma quadrilha que raptava os recém-nascidos de suas mães ou, até mesmo, persuadindo-as até conseguir o que almejavam. Nesse viés, a obra já se inicia com a falsa enfermeira raptando uma criança da maternidade. Confira-se trecho nas palavras do autor: Junto com os funcionários, passou pela portaria uma enfermeira morena, desconhecida. Mostrava-se discreta. Enquanto as outras trocavam cumprimentos e comentários diversos, ela tratou de entrar rápido, sem ser percebida pelas funcionárias e pelo porteiro... Tomando-o os braços, colocou-o em uma sacola que trazia disfarçada junto aos seus pertences. Suspirou aliviada quando percebeu que o bebê não incomodou em ser acondicionado como um pacote. Imediatamente, a mulher saiu do berçário sem causar suspeitas. (PUNTEL, 1996, p. 6-8) Conforme se vê nesta obra, o delegado Pinheiro, ao dialogar com os irmãos Aquiles e Vitor, traz à tona como se dá o tráfico de menores: - Deixem-me explicar como o processo do tráfico de bebês funciona para saber onde precisamos chegar. – O delegado, muito didático, falou do trabalho que as quadrilhas desenvolviam junto às mães solteiras, convencendo-as a entregar seus filhos em troca de uma quantia sempre muito inferior ao que iam lucrar depois, com a venda do bebê: - Um recém-nascido vendido a estrangeiros está na faixa de oito a 53ADOÇÃO INTERNACIONAL E TRÁFICO DE MENORES À LUZ DA OBRA “TRÁFICO DE ANJOS” DE LUIZ PUNTEL dez mil dólares. É só fazer a conversão em cruzeiros para se ver que é muito dinheiro. (PUNTEL, 1996, p. 113) Prosseguindo com a leitura, depara-se com o delegado Pinheiro se referindo ao tráfico internacional de bebês, bem como a escolha destes em razão de características específicas: – Isso quando não cobram mais. Se a família exige características físicas específicas, como cor da pele, cor dos olhos, sexo, pais reconhecidamente sadios, chegam a uns quinze mil dólares. Há também o caso de mães solteiras que, no sétimo mês, de gestação, são enviadas a Israel, França ou Alemanha. Vão ter o bebê lá e voltam sem ele. Aí os traficantes faturam até vinte mil dólares. (PUNTEL, 1996, p. 113) À luz do Direito pátrio tais acontecimentos são recriminados. Prevê o artigo 149-A do Código Penal, in verbis: Art. 149-A: Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de: I – remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo; II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo; III - submetê-la a qualquer tipo de servidão; IV - adoção ilegal; ou V - exploração sexual. Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. Coadunando com tal pensamento, preceitua o ECA, nos seus artigos 238 e 239, com reclusão de 1 a 4 anos e multa ou 6 a 8 anos e multa, havendo violência, quem promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado a enviar menor para o exterior, sem a observância de formalidades legais, visando ao lucro, segundo dito alhures. 54 Tatyane Gondim Silva | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo A fim de demonstrar a forma de atuação das pessoas integrantes da “quadrilha”, nota-se, em outra passagem da obra, que uma de suas personagens, Marly, ao conversar com uma das mães, Roseli – que entregou seu bebê aos criminosos –, empenhada para desmascarar os integrantes que traficavam menores, explica: “– Isso aconteceu com você, aconteceu com outras mães, Roseli. Estamos tentando descobrir quem está por trás dessas mulheres que se aproximam de vocês nas filas de ônibus, nas filas dos hospitais, que oferecem dinheiro em troca de seus filhos (...)” (PUNTEL, 1996, p. 127) Certa ocasião, no bojo das páginas desta obra, em um diálogo entre a personagem Flávia e Wandeli, lê-se a passagem de que esta havia se envolvido com os criminosos, objetivando, ao final, entregar-lhe seu bebê: “– Eu caí na besteira de dar ouvidos a uma mulher. Ela me ofereceu dinheiro, se eu desse minha filha para ela. Agora eu não posso voltar atrás (...)” (PUNTEL, 1996, p. 131) No que se refere à adoção por estrangeiros no Brasil de maneira fraudulenta, encontra-se, em uma passagem no texto, que um casal de italianos, ao dialogar com a irmã do orfanato, manifesta interesse em levar uma criança para a Itália: – E noi non abbiamo figli. Però vogliamo adottare uno bambino. – O marido explicava a situação deles, dizendo que não tinham filhos e que queriam adotar um menino. Falando pausadamente, para que a freira o compreendesse, ele dizia chamar-se Paolo e sua mulher, Angelina. Engenheiro químico, viera há pouco da Itália, trabalhando em uma empresa italiana na região de Franca. Na volta a seu país de origem, queria dar aos pais a alegria de um neto brasileiro. (PUNTEL, 1996, p. 39-40) Se não bastasse, o casal de italianos, com o ânimo de obterem um bebê para si se prontificaram a ajudar a mãe da criança, tendo, neste momento, a irmã dito: “Se queriam colaborar mesmo, a doação 55ADOÇÃO INTERNACIONAL E TRÁFICO DE MENORES À LUZ DA OBRA “TRÁFICO DE ANJOS” DE LUIZ PUNTEL de uma casa traria segurança definitiva à mãe do guri (...)” (PUNTEL, 1996, p. 41) Diante disso, em razão da atuação do casal de italianos e dos integrantes da “quadrilha”, por exemplo, da irmã que toma conta do orfanato, há nítida violação às disposições estabelecidas no ECA e na Convenção de Haia quanto à adoção de estrangeiro levada a cabo no Brasil.9 Considerações finais Ab initio, faz-se mister trazer à baila que as adoções fraudulentas não deverão ter o condão de afastar as feitas com o verdadeiro objetivo de amparar o menor deixado ao léu. Não seria melhor prover-lhe o bem- estar afetivo, moral e material, dando-lhe uma morada digna, posto que no exterior, do que deixá-lo vagando nas ruas à mercê da própria sorte ou trancá-lo na Fundação Casa? Será possível mensurar o amor de um pai ou de uma mãe como nacional ou estrangeiro? Além disso, seria a nacionalidade, ou não, o fator determinante da caridade, bondade, do altruísmo e da maldade, de um pai ou de uma mãe? De modo a responder tais indagações, encontra-se a resposta amparo na Constituição Cidadã, à luz do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana – fundamento da República Federativa do Brasil, artigo 1º, inciso III, da CRFB/88 – que prevê o instituto da adoção internacional como direito à família e proteção do menor interpaíses, segundo se depreende do teor do artigo 227, §5º, da CRFB/88, consoante dito alhures. Logo, o instituto da adoção transnacional propicia para inúmeras crianças e adolescentes abandonados em terrea brasilis a possibilidade de integrar uma unidade familiar, indo ao encontro do disposto no texto constitucional de 1988, segundo o qual prevê amparo à infância, bem como o dever conjunto da sociedade e do Estado de assegurar à criança e ao adolescente o direito à vida, à saúde, à alimentação, à dignidade, 56 Tatyane Gondim Silva | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo ao respeito e à convivência familiar – artigo 227, caput, da CRFB/88 –, desde que cumpridos alguns requisitos, como, por exemplo, o Princípio da Prioridade da Própria Família, o estágio de convivência e um cadastro de crianças aptas à adoção e de interessados em adotar. Por conseguinte, a obra “Tráfico de Anjos”, de Luiz Puntel, torna- se imprescindível ao estudo da adoção ilegal e do tráfico de menores, trazendo a lume uma inter-relação entre Direito e Literatura, sendo a Ciência Jurídica um produto social em constante transformação, adquirindo, a partir da Literatura, uma nova visão, leitura e compreensão do fato que lhe dá origem. Posto isso, não se deve perquirir a conveniência, ou não, de ser o menor brasileiro adotado por estrangeiro não domiciliado no Brasil, não obstante, sim, permitir seu ingresso numa família substituta, sem fazer quaisquer distinções à nacionalidade dos adotantes, buscando suporte legal no Direito pátrio (ECA) e na legislação alienígena (Convenção de Haia e Convenção Interamericana Contra o Tráfico de Menores), punindo, ao final, aos que explorarem ilegalmente a adoção. 10 Referências BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 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Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm> Acesso em 12 de mar. de 2017. ________. Lei n. 12.010, de 3 de agosto de 2009. Dispõe sobre adoção e altera, entre outras, a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) e a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ Ato2007-2010/2009/Lei/L12010.htm> Acesso em 15 de dez. de 2019. ________. Lei n.º 13.509, de 22 de novembro de 2017. Dispõe sobre adoção e altera, entre outras, a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) e a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Disponível em: <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13509.htm> Acesso em 15 de dez. de 2019. _______. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Justiça. Plano nacional de enfrentamento ao tráfico de pessoas. 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É certo que o tema não se encontra amplamente pacificado na jurisprudência, gerando correntes distintas, e, a partir desta análise, compreender os motivos plausíveis do dever de indenizar, quando será cabível, bem como os pressupostos essenciais de configuração do dano. Para melhor alcançar os objetivos delineados, foram utilizados, como fontes de pesquisa, doutrina e entendimentos jurisprudenciais relativos ao tema abordado, bem como artigos científicos. Trata-se de uma pesquisa com teor bibliográfico e levantamento documental, não sendo realizadas pesquisas de campo ou entrevistas físicas. Ademais, seria um mero enriquecimento ilícito ou uma forma de reprovar tais condutas daquele que deixou de arcar com suas obrigações no âmbito do poder familiar. Noutra vertente, coube analisar as disposições normativas quanto a esta questão, bem como as implicações quanto ao não cumprimento do dever normativo. Conclui-se que a condenação 62 Larissa Stoduto da Rocha | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo em danos morais, proveniente do abandono afetivo, tem natureza de medida pedagógica e educativa, para que a sociedade entenda como conduta reprovável pelo ordenamento jurídico. Palavras-chave: Abandono Afetivo; Responsabilidade Civil; Dever de Indenizar. 1 Introdução O presente trabalho consistirá na análise do abandono afetivo e do dever de indenizar, a fim de demonstrar que o principal objetivo de tal instituto é causar ao responsável pelo abandono a plena consciência de que sua atitude é reprovável no âmbito jurídico e social, para que ele não persista no erro. Ressalta-se que a temática do tema abordado tem como fito não banalizar ou mercantilizar, tendo efeito preventivo e educativo de alcance à sociedade, para que não incorram em tal conduta. Trata-se da responsabilidade civil quanto ao abandono afetivo no âmbito do poder familiar, verificando as postulações jurídicas e doutrinárias presentes no ordenamento jurídico brasileiro, bem como os dispositivos legais de proteção ao poder de família, à criança e ao adolescente e princípios constitucionais. Para melhor alcance dos objetivos delineados, serão utilizados, como fontes de pesquisa, doutrina e entendimentos jurisprudenciais relativos ao tema abordado, bem como artigos científicos. Tendo em vista que a escolha se deu devido à polêmica e por se tratar de instituto inovador no âmbito jurídico, para melhor compreensão, será utilizada pesquisa com teor bibliográfico e levantamento documental, demonstrando os entendimentos jurisprudenciais adotados pelos julgadores. A temática abordará questões inerentes por parte de quem detém obrigações do poder familiar com a criança e o adolescente. Assim, pretende-se demonstrar que tal omissão pode gerar o dever de 63ABANDONO AFETIVO E O DEVER DE INDENIZAR indenizar. Tendo em vista os objetivos almejados, serão abordados os institutos jurídicos do Poder Familiar e a Responsabilidade Civil, ambos necessários para compor tal análise. 2 O Poder Familiar Na consagrada Carta Magna brasileira, os artigos 226 e 227 trazem expressamente o compromisso do Estado com a família e seu bem-estar, determinando ainda que ela é a base da sociedade, razão pela qual goza de proteção especial. Ademais, outros textos legais trazem com mais clareza a importância do instituto da família na formação do indivíduo, seus valores éticos, morais e sociais. Juntamente com a previsão legal constitucional, têm-se os demais textos legais, como o Código Civil Brasileiro, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), as Leis complementares, todas no sentido de proteger a criança no seio familiar e determinar aos pais o dever de assistir, criar e educar os filhos. O poder de família a ser tratado aqui não é o de hierarquia, e sim o de responsabilidade dos pais com seus filhos menores, resguardando os direitos de proteção à criança e ao adolescente, colaborando com a educação em uma das fases de maior desenvolvimento do indivíduo, a qual requer inteira atenção. Pois bem, a família contemporânea não é tradicionalmente baseada apenas com a formação do pai, da mãe e de seus filhos. Não se pode determinar pressuposto a ser aplicado igualmente, pois a relação de conhecimento como base da família são os laços afetivos, devido à diversidade e às situações concretas de cada um, pois, como família moderna, tem-se: os casais que optam pela adoção; os casais homoafetivos; os pais divorciados e, cada vez mais, reconhecimentos diversos de família ligada unicamente pela socioafetividade, não mais imperando apenas os aspectos biológicos como a fonte principal de ligação. Antigamente, o poder de família era imposto ao pai, único provedor do lar. No entanto, com o passar dos tempos, depara-se com 64 Larissa Stoduto da Rocha | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo famílias de pais divorciados, que, mesmo morando em residências distintas, permanecem ambos com a responsabilidade na criação, que vai além do dever de prestar alimentos, sendo necessário o acompanhamento escolar, religioso, ético e moral, os quais só resultam com a convivência e atenção. (FARIAS; ROSENVALD, 2019, p. 35) Um direito legalmente reconhecido é o direito de visita de pais divorciados, para manter o contato contínuo na criação e decisões diárias de seus filhos, que, em casos de alienação parental, pode ser exigido judicialmente. Entretanto, o bom convívio entre os pais ainda é a melhor solução para a boa formação de seus filhos. Mesmo distante, o genitor que não detém a guarda do menor pode mostrar-se presente diariamente por meio de ligações, mensagens e diversas opções inovadoras que a tecnologia apresenta a cada dia, não tendo justificativa para se abster do dever de criação da prole. 3 Afeto O afeto tornou-se a base da família contemporânea, a qual independe de uma união matrimonial entre homem e mulher. Assim, tem-se que a família é vinculada por meio de laços afetivos. Entretanto, o afeto não é só um laço que envolve os indivíduos, mas sim um laço que une pessoas, ou seja, o Princípio da Afetividade é como um norteador das famílias contemporâneas. O afeto é elemento indispensável na busca pela felicidade do ser humano, compondo o aparato moral e as relações interpessoais. Não lhe conferir a tutela jurídica, é violar a dignidade humana. É importante buscar compreender o que é o afeto. Conforme o Dicionário Aurélio (2015, p. 21), “afetividade é um termo que deriva da palavra afetivo e afeto. Designa a qualidade que abrange todos os fenômenos afetivos.”. Já do ponto de vista da psicologia, o aspecto cognitivo é a principal área afetiva e pode vir a causar o impedimento da criança ou do adolescente de atingir o seu máximo potencial. (BICCA, 2015, p. 78-80) 65ABANDONO AFETIVO E O DEVER DE INDENIZAR Os autores e especialistas na área da educação – Jean Piaget, Henri Wallon e Lev Vygotsky – concederam à afetividade uma elevada relevância no processo pedagógico. Dizem que “(...) a inteligência não é o elemento mais importante do desenvolvimento humano, mas esse desenvolvimento depende de três vertentes: a motora, a afetiva e a cognitiva.”. (SALLA, 2011) A importância do afeto no Direito de Família muitas vezes prevalece sobre o vínculo biológico. No entanto, não se pode obrigar um pai a amar seu filho, mas a obrigação aqui questionada é a que envolve a responsabilidade civil, o dever de cuidar, zelar, educar e se fazer presente, a qual não é suprida apenas com a obrigação alimentar. 4 O Abandono Afetivo O dever da família consiste no cuidado da criança e do adolescente e vai além dos direitos materiais e da proteção dos direitos fundamentais destes. É atribuídoaos pais o dever de criar e educar. A criança precisa de amor, carinho, atenção e compreensão para um desenvolvimento saudável, conforme está inserido no artigo 229 da Constituição Federal, onde se afirma que “(...) os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores (...)”. No Brasil, têm-se duas correntes desse entendimento. A primeira defende que o amor não pode ser monetarizado, assim o abandono afetivo não poderia ser estipulado em valores. Segundo Farias e Rosenvald (2019, p. 136): Afeto, carinho, amor, atenção… são valores espirituais, dedicados a outrem por absoluta e exclusiva vontade pessoal, não por imposição jurídica. Reconhecer a indenizabilidade decorrente da negativa de afeto produziria uma verdadeira patrimonialização de algo que não possui tal característica 66 Larissa Stoduto da Rocha | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo econômica. Seria subverter a evolução natural da ciência jurídica, retrocedendo a um período em que o ter valia mais do que o ser. A segunda corrente aduz que não é monetarização do afeto, e sim uma penalidade daquele que viola um dever de cuidado reconhecido constitucionalmente quanto aos pais, como a educação, a criação e a formação de seus filhos menores, tendo em vista que a ausência na criação de uma criança causa sérios transtornos psicológicos, muitas vezes irreparáveis. A segunda corrente defende a penalidade em forma de uma indenização por danos morais, concernente a uma imposição legal. Assim, pode-se comparar o dever de zelar com a obrigação alimentar, ambas de extrema importância no desenvolvimento da criança e adolescente. O abandono afetivo constitui uma das mais graves violências contra a criança, e consiste na omissão de cuidado, criação, assistência moral, psíquica e social, que, de forma silenciosa e contínua, atinge tanto a vítima quanto o genitor que detém a guarda, com sentimento de angústia e impotência por não poder fazer nada. Não existe uma forma de obrigar uma pessoa a amar outra. O afeto é construído com a convivência, que nem sempre é necessária no dia a dia, porém qualquer gesto de interesse é uma construção de afeto. No entanto, a falta deste interesse causa efeitos devastadores e irreparáveis. A lei nem sempre supre todas as questões inerentes às obrigações do indivíduo. Assim, em Direito de Família, é direito da criança ter, em seu registro civil, o reconhecimento de seus genitores, bem como a obrigação alimentar, em casos de pais que não possuem o matrimônio. No entanto, a afetividade ainda é um tema abordado com inúmeras divergências, tendo em vista ser impossível mensurar os danos causados em casos de abandono. A obrigação inerente ao genitor que deixa de arcar com suas obrigações interfere no desenvolvimento da criança, que cresce com 67ABANDONO AFETIVO E O DEVER DE INDENIZAR pouca ou nenhuma referência familiar, sem contar o desempenho escolar, social e emocional, consequente de diversos danos imensuráveis. Nesse sentido, a Ministra Nancy Andrighi cita: “Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão”. (REsp 1159242/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 24/04/2012, DJe 10/05/2012). Ressalta-se que pequenos gestos e exemplos cotidianos formam um cidadão honesto, de valor e com perspectivas, o que pode parecer pouco, mas a falta de afetividade entre aqueles que compõem o poder familiar vai contra todas as referências e leis inerentes ao direito da proteção e constituição da família. É legalmente reconhecido o dever de convivência dos pais com seus filhos menores, expresso no artigo 229 da Constituição Federal de 1988 e art. 1.634, incisos I e II, do Código Civil Brasileiro. Se a violação desse dever causar dano, estarão presentes os requisitos de ato ilícito. Para melhor elucidar a temática, veja-se entendimento jurisprudencial a seguir: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. DANO IN RE IPSA. (...) 4. “A indenização do dano moral por abandono afetivo não é o preço do amor, não se trata de novação, mas de uma transformação em que a condenação para pagar quantia certa em dinheiro confirma a obrigação natural (moral) e a transforma em obrigação civil, mitigando a falta do que poderia ter sido melhor: faute de pouvoir faire mieux, fundamento da doutrina francesa sobre o dano moral. Não tendo tido o filho o melhor, que o dinheiro lhe sirva, como puder, para alguma melhoria.” (...). 5. “Dinheiro, advirta-se, seria ensejado à vítima, em casos que tais, não como simples mercê, mas, e sobretudo, como algo que correspondesse a uma satisfação 68 Larissa Stoduto da Rocha | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo com vistas ao que foi lesado moralmente. Em verdade, os valores econômicos que se ensejassem à vítima, em tais situações, teriam, antes, um caráter satisfatório que, mesmo, ressarcitório.” (...).Por tratar-se de uma obrigação natural, um Juiz não pode obrigar um pai a amar uma filha. Mas não é só de amor que se trata quando o tema é a dignidade humana dos filhos e a paternidade responsável. Há, entre o abandono e o amor, o dever de cuidado. Amar é uma possibilidade; cuidar é uma obrigação civil. (...). Recurso conhecido e desprovido. (TJ-DF 20160610153899 DF 0015096-12.2016.8.07.0006, Relator: Nídia Corrêa Lima, Data de Julgamento: 28/03/2019, 8ª Turma cível, Data de Publicação: Publicado no DJE : 04/04/2019 . Pág.: 404/405) (grifo nosso) Como demonstrado, a reparação civil é uma maneira de satisfazer a ausência daquele que tem por obrigação criar, assistir e educar. Não se compra amor, nem mesmo se repara danos e transtornos psicológicos, que em alguns casos podem ser irreversíveis. No entanto, a medida é educativa tanto para quem o fez, quanto para a sociedade. 5 Previsão Legal A Carta Magna dispõe em seus artigos que a família é a base de toda estrutura da sociedade e, por essa razão, goza de proteção especial. Tal artigo aduz que o indivíduo, no âmbito do Poder de Família, tem como principal responsabilidade ensinar valores éticos, morais e sociais. O Princípio da Dignidade Humana, previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, compreende como garantia e proteção inerentes ao cidadão de direito. Ademais, o Princípio da Solidariedade Social e Familiar, previsto no artigo 3º, inciso I, da Constituição Federal, consiste no vínculo de sentimentos, no qual impõe o dever de cooperação, ajuda, orientação, 69ABANDONO AFETIVO E O DEVER DE INDENIZAR assistência e amparo em relação a outras pessoas. Esse Princípio é pressuposto legal para o exercício do poder de família, sendo indispensável para o Direito de Família. Entretanto, na ausência desses princípios fundamentais no âmbito familiar, incorre-se em graves consequências psicológicas. O doutrinador Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do IBDFAM, citado por Tartuce (2018, p. 631), fundamenta a eventual reparabilidade pelos danos sofridos em casos tais na dignidade da pessoa humana: O Direito de Família somente estará em consonância com a dignidade da pessoa humana se determinadas relações familiares, como o vínculo entre pais e filhos, não forem permeadas de cuidado e de responsabilidade, independentemente da relação entre os pais, se forem casados, se o filho nascer de uma relação extraconjugal, ou mesmo se não houver conjugalidade entre os pais, se ele foi planejado ou não. (...). Em outras palavras, afronta o princípio da dignidade humana o pai ou a mãe que abandona seu filho, isto é, deixa voluntariamente de conviver com ele. A Magna Carta, por sua vez, garante especial proteção à criança e ao adolescente, de acordo com o Capítulo VII. Observe-se com primazia o disposto nos artigos 227 e 229: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direitoà vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 70 Larissa Stoduto da Rocha | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade. Entende-se, assim, que a assistência na criação da criança é um bem indisponível para o Direito de Família, na qual a ausência da presença e convívio com o genitor causa graves consequências, irreparáveis, e irreversíveis, previstas no artigo 1.634 do Código Civil, com redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014: Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: I - dirigir-lhes a criação e a educação; II - exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos do art. 1.584; III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para viajarem ao exterior; V - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para mudarem sua residência permanente para outro Município; VI - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; VII - representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; VIII - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; IX - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição. O Código Civil Brasileiro regula as relações civis da sociedade. O legislador destinou parte deste Código para tratar do Direito de Família. 71ABANDONO AFETIVO E O DEVER DE INDENIZAR No entanto, não poderia o legislador prever todas as hipóteses existentes de situações fáticas em um texto normativo e tal omissão acaba por gerar demais dúvidas quanto a alguns temas. A Lei 8.069/90, conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente, como sendo um dos institutos especializados na proteção à criança e ao adolescente, assegura no artigo 4º as seguintes garantias legais: Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetiva- ção dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educa- ção, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignida- de, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. In casu, tem total amparo legal o dever da obrigação dos pais com seus filhos, concernente à criação, orientação, assistência, ajuda, amparo, dentre outras necessidades. 6 Responsabilidade Civil No ordenamento jurídico brasileiro, a regra, quando se trata de responsabilidade civil, é a denominada responsabilidade subjetiva, que decorre do ato doloso ou culposo. Seus elementos são: a conduta humana, o dano, nexo causal e a culpa ou dolo. É o que preceitua o artigo 186 do Código Civil Brasileiro. A análise aqui busca demonstrar a diferença entre a reparação civil e o enriquecimento ilícito, uma vez que amor não se compra. Pois bem, a responsabilidade civil decorre de um ato ilícito ou de uma imposição legal, quando a ordem jurídica é violada, gerando, assim, a obrigação de reparar. Logo, não há ganho ilícito, e sim uma reparação pelo dano, desde que devidamente comprovado. A conduta é o principal elemento gerador da responsabilidade civil e decorre da conduta humana, em que o indivíduo tem a liberdade 72 Larissa Stoduto da Rocha | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo de escolha de agir. No entanto, incide de forma contrária ao ordenamento jurídico. Tratando-se de responsabilização civil pelo abandono afetivo, claramente se está referindo aos casos de conduta omissiva dos genitores, pois a eles incumbe exercer o poder familiar. O dano, pressuposto muito relevante da responsabilidade civil, visto que não se pode falar em indenização sem sua ocorrência, é o prejuízo. No abandono afetivo, o dano se caracteriza nos prejuízos advindos do mencionado não exercício do poder familiar, que atingem o desenvolvimento pleno da criança e do adolescente, o que pode refletir em toda a vida destes. O nexo causal é o elo entre a conduta e o dano gerado. No abandono afetivo é o que liga o dano causado ao abandono sentido. Existe, também, no ordenamento jurídico brasileiro, a denominada responsabilidade civil objetiva. Ela se encontra prevista no Código Civil Brasileiro, no parágrafo único do artigo 927: “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”. Trata-se de exceção e não se aplica ao caso de abandono afetivo. O caso em tela trata de uma reparação subjetiva, pois deriva de terceiro, com ou sem intenção de causar prejuízo a outrem. É reconhecida como uma espécie de sanção ao causador do dano, para que não mais incida no mesmo ato ilícito. Nesse sentido, conceituam os doutrinadores Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2019, p. 72): “A sanção é a consequência lógico-jurídica da prática de um ato ilícito, pelo que, em função de tudo quanto foi exposto, a natureza jurídica da responsabilidade, seja civil, seja criminal, somente pode ser sancionadora”. Tal sanção ou penalidade não se limita ao ofensor, pelo contrário, serve como remédio para casos parecidos, ou seja, incide ao cunho 73ABANDONO AFETIVO E O DEVER DE INDENIZAR socioeducativo, tornando público que tal ato não será tolerado. Com isso, almeja-se o equilíbrio social. A ideia central deste trabalho é comprovar que, de igual modo ao dever do genitor de assistir seu filho com a obrigação alimentícia, poderá este, em caso comprovado de abandono afetivo, buscar a tutela judicial em forma de indenização para reparar o dano causado, pois a imposição em educar, orientar, acompanhar, assistir não se distingue da obrigação alimentar, tornando-se, assim, obrigações similares ao dever dos pais com seus filhos. Há uma violação ética, moral e social dos princípios constitucionais que regem o Direito de Família, quais sejam: dignidade da pessoa humana, igualdade, solidariedade, pluralismo das entidades familiares, paternidade/maternidade responsáveis, dever da convivência familiar, proteção integral da criança e do adolescente e isonomia entre os filhos. O tema abordado demonstra que, da mesma forma que é imposta a obrigação alimentícia com penalidade de prisão em casos do inadimplemento, é legalmente reconhecido o direito à convivência, à atenção, à criação e a responsabilidade aos genitores para com seus filhos, podendo sofrer a reparação civil ou penal em casos de abandono. Ressalta- se que o legislador não pode exigir que o genitor ausente dê amor ao seu filho, menos ainda que seja imposto o afeto. No entanto, há uma reparação como penalidade daquele que se encontra inerte quanto ao dever de assistir, criar e educar os filhos, desde que comprovada essa inércia. 7 Prescrição De acordo com o posicionamento atual adotado nos julgados referentes ao tema abordado, está sendo seguido o prazo prescricional com fulcro no artigo 206, §3º, V, do Código Civil, prescrevendo a pretensão ao direito de indenização por abando afetivo após 3 (três) anos da maioridade do filho, de acordo com o acórdão prolatado pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 74 Larissa Stoduto da Rocha | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo 1.159.242/SP, do ano de 2012. Sendo assim, tal pretensão encerra-se quando o filho completa 21 (vinte e um) anosde idade, pois a contagem inicia-se a partir da maioridade. Conforme aduz o artigo 197, II, do Código Civil, não ocorre prescrição na constância do poder familiar relativo aos ascendentes e descendentes, o qual cessa após completar a maioridade. Entretanto, não é cessado o direito à pretensão da reparação civil, quando se trata de absolutamente incapazes, conforme Enunciado do artigo 198, I, do Código Civil. (Flávio Tartuce, 2017) Nesse sentido, veja-se in verbis julgado do Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO) deste ano de 2019: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR ABANDONO AFETIVO. PRESCRIÇÃO. RECURSO PROVIDO. 1. O abandono afetivo deve ser entendido como uma lesão extrapatrimonial a um interesse jurídico tutelado, causada por uma omissão no cumprimento do exercício do poder familiar, insculpido no artigo 1.634 do Código Civil, configurando um ilícito, que gera a obrigação indenizatória. 2. Observa-se que a ação de indenização por abandono afetivo tem o prazo prescricional de 3 (três) anos, a contar da maioridade do filho. 3. Tal posicionamento respeita o princípio da segurança jurídica, ao impedir a existência de um dano moral por abandono afetivo imprescritível, o que é vedado em nossa legislação pátria. 4. Conclui-se que o apelante demonstrou estar presente a prescrição em relação ao pedido de dano moral por abandono afetivo, motivo pelo qual o recurso deve ser provido, com a cassação da sentença, para julgar improcedentes os pedidos iniciais, negando o pedido de indenização, pela ocorrência da prescrição. APELAÇÃO CONHECIDA E PROVIDA. (TJGO - APL: 00962948220168090146, Relator: Ney Teles de Paula, Data de Julgamento: 08/08/2019, 3ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ de 08/08/2019) 75ABANDONO AFETIVO E O DEVER DE INDENIZAR Assim, é recomendável que o pedido de indenização por abandono afetivo seja interposto em prazo tempestivo, bem como sejam apresentadas provas suficientes para tal caracterização, uma vez que é notório, em análise dos julgados que abordam a temática, não ser suficiente a simples ausência, e sim que esta cause efetivamente dano. Ressalta-se que existem muitas peculiaridades diante do assunto, as quais devem ser analisadas em cada caso concreto. 8 Considerações Finais A finalidade deste artigo é demonstrar, mais especificamente, que o direito pleiteado pode ser reivindicado com as normas preexistentes. Após minuciosa análise sobre o direito de reparação civil e seus pressupostos de admissibilidade, conclui-se que o genitor omisso, diante da inércia de exercer suas obrigações, deverá indenizar o filho que arcou com a privação de seu genitor ausente e consequentes danos psicológicos. Como explicitado em corrente contrária, a indenização deste instituto em hipótese alguma será confundida com enriquecimento ilícito por parte do promovente, pois o ordenamento jurídico prevê a reparação civil, se comprovados os requisitos ensejadores de responsabilidade. O tema abordado é de grande impasse no Judiciário, devido às inúmeras divergências de posicionamento, já que não há uma lei específica que garanta o direito aqui abordado. No entanto, as garantias asseguradas à criança e aos adolescentes resguardam seus direitos de convivência com os pais, mesmo em casos de família que residem em lugares distintos. Ressalta-se, ainda, que a condenação em danos morais, proveniente do abandono afetivo, tem natureza de medida pedagógica e educativa, para que a sociedade a entenda como conduta reprovável pelo ordenamento jurídico, isso devido à gravidade e ao risco que possam causar na sociedade, visto que o índice de indivíduos que não concluem 76 Larissa Stoduto da Rocha | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo os estudos ou não agem de acordo com as normas são maiores quando a criação é de um ou nenhum dos genitores. Nesse sentido, é importante destacar que ninguém é obrigado a ter filhos e existem inúmeros meios de evitar. Entretanto, uma vez que tomada a decisão, é dever de cada um arcar com suas responsabilidades e obrigações. É necessário, para a plena formação física e mental deste novo indivíduo, o conceito de família que necessita de amparo, cuidado, orientação, amor, carinho, e, principalmente, exemplos, estes vindo da conduta dos pais. Assim, dada a importância do assunto, mesmo não sendo o foco deste trabalho, as privações do convívio familiar podem acarretar inúmeros transtornos psicológicos, que muitas vezes são irreversíveis, gerando danos catastróficos para a sociedade. Portanto, entende-se a necessidade da aplicação de medida socioeducativa no intuito de educar a sociedade, à medida que for comprovado o abandono afetivo, a fim de compensar o dano sofrido. 9 Referências AURÉLIO. Mini Dicionário. 8º ed. Curitiba: Positivo, 2015. BICCA, Charles. Abandono Afetivo: O dever de cuidado e a responsabilidade civilidades por abandono de filhos. 2º ed. Brasília: OWL, 2015. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituicaocompilado.htm> Acesso em 10 de outubro de 2019. _______. Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/l8069.htm> acesso em 14 de outubro de 2019. 77ABANDONO AFETIVO E O DEVER DE INDENIZAR _______. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Código Civil Brasileiro. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/2002/l10406compilada.htm> Acesso em 10 de outubro de 2019. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Famílias. v. 6. 11ª. ed. rev. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2019. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, volume 3: Responsabilidade Civil. 17. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2019. PESSANHA, Jackelline Fraga. A afetividade como princípio fundamental para a estruturação familiar. Publicado em 2011. Artigo do IBDFAM. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/_img/artigos/ Afetividade%2019_12_2011.pdf> Acesso em 02 de outubro de 2019. SALLA, Fernanda. O conceito de afetividade de Henri Wallon. Publicado em 2011. 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Tribunal de Justiça de Goiás. APL: 00962948220168090146. Relator Ney Teles de Paula. Data de Julgamento: 08/08/2019. 3ª Câmara Cível. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/ processos/213860590/ processo-n-20198090000 -do-tjgo> Acesso em 02 de novembro de 2019. 79 GUARDA COMPARTILHADA: UMA PREVENÇÃO JURÍDICA PARA A ALIENAÇÃO PARENTAL Laís Fernanda Almeida Adriano Cielo Dotto Resumo: O presente artigo teve como escopo analisar como a guarda compartilhada se tornou atualmente a maneira mais eficaz de prevenção contra a alienação parental, demonstrando, assim, a real importância da lei para que se possa evitar transtornos psicológicos e comportamentais no alienado. Foi realizada uma abordagem a respeito do poder familiar, uma breve análise do instituto da guarda e suas modalidades,bem como discutiu-se sobre a Alienação Parental, evidenciando, por fim, como a guarda compartilhada pode ser um meio eficaz para evitar uma possível interferência psicológica negativa na criança ou no adolescente. Com a finalidade de abarcar os pontos principais e, assim, conseguir atingir os objetivos mencionados, a pesquisa realizada teve natureza descritiva, tendo sido utilizadas como fontes de pesquisa doutrinas, artigos e legislação sobre o assunto. Chegou-se à conclusão de que a guarda compartilhada, se bem aplicada, tem grande chance de contribuir para evitar a alienação parental, já que o convívio do filho com os genitores é mais intenso e não se resume a visitações ocasionais. Palavras-Chave: Alienação Parental. Guarda Compartilhada. Prevenção Jurídica. 80 Laís Fernanda Almeida | Adriano Cielo Dotto 1 Introdução Com o principal objetivo de analisar como a guarda compartilhada se tornou o meio mais eficaz de prevenção contra a síndrome de alienação parental, incialmente foi realizada uma breve abordagem sobre o poder familiar, as modificações sofridas no decorrer do tempo e como este poder é exercido atualmente. Logo após, foi analisado o instituto da guarda, buscando verificar sua real importância para a criança e o adolescente, e delinear as principais modalidades desse instituto, iniciando pela guarda natural, depois pela guarda unilateral e, por último, pela guarda alternada, modalidade não prevista na lei brasileira. A modalidade de guarda compartilhada ganhou um espaço especial por ser este o principal tópico a ser analisado. Nascida com a Lei 11.698/08, logo sofreu alterações e passou a ser regulada pela Lei 13.058/2014, que vigora atualmente. Esta modalidade está expressa no Código Civil de 2002 para melhor atender os interesses do menor. A alienação parental foi discutida ademais. Procurou-se explicar de forma ampla seu conceito, como também sua caracterização e análise dos principais artigos da Lei nº 12.318 de 26 de agosto de 2010, que regulamentou legalmente a alienação parental no ordenamento brasileiro. Tema de grande importância, em especial para o Direito de Família, a alienação parental é assunto recorrente em artigos e palestras no Brasil, apesar de ser relativamente novo quando se trata de sua previsão legal. Por fim, com o intuito de apontar alguma maneira de prevenir e amenizar os efeitos da alienação parental, foi elaborado um tópico para demonstrar a real importância da lei para que se possa evitar transtornos psicológicos e comportamentais nos alienados. Nesse sentido, indaga-se: Com que pretexto o legislador visou introduzir a guarda compartilhada no ordenamento jurídico pátrio? Seria mesmo a guarda compartilhada um meio eficaz no combate 81GUARDA COMPARTILHADA: UMA PREVENÇÃO JURÍDICA PARA A ALIENAÇÃO PARENTAL à Alienação Parental? Serão essas as problemáticas exploradas e respondidas no decorrer deste artigo. É imprescindível mencionar que as fontes aqui utilizadas como método de pesquisa são exclusivamente teóricas, utilizando-se, como suporte, a legislação vigente, decisões jurisprudenciais e doutrinas que versem sobre tal assunto. 2 Poder familiar O poder familiar sofreu diversas modificações no decorrer do tempo. O Código Civil de 1916 utilizava a expressão “pátrio poder”, indicando que o poder familiar era exercido unilateralmente pelo pai. Com o passar do tempo e com as evoluções legislativas, a Constituição Federal de 1988 optou por dar fim às desigualdades de condições entre pai e mãe e implementou o poder familiar, que ganhou espaço no Código Civil de 2002 e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Dessa forma, esse termo substituiu a antiga denominação para a nova expressão, atualmente utilizada, chamada de “poder familiar”. Na concepção de Patrícia Ramos (2016, p. 36): “O Poder de Família é um conjunto de prerrogativas reconhecidas aos pais para a criação, orientação e proteção dos filhos menores de 18 (dezoito anos)”. Assim sendo, são os pais os responsáveis por repassar e ensinar aos filhos os valores éticos e morais, além de zelar por sua saúde, integridade física e bem-estar, até que estes atinjam a maioridade e se tornem, assim, responsáveis por si mesmos. Logo, convém reafirmar que o poder familiar trata daquele conjunto de prerrogativas, já mencionadas, que é imposto pelo Estado e destinado a ambos os pais, surgindo com o registro do filho e cessando com a maioridade ou emancipação. Acrescenta-se, ainda, que esse poder é irrenunciável, inalienável e imprescindível. Vale ressaltar que, com as modificações trazidas, quando o pai não é reconhecido no registro do filho, conforme o artigo 1.612 do Código Civil, o poder familiar é único e exclusivo da mãe. 82 Laís Fernanda Almeida | Adriano Cielo Dotto Apesar de ser concedido aos pais, esse poder ou autoridade parental pode ser suspenso, perdido ou extinto, de acordo com os termos do Código Civil. O ato de suspensão do poder familiar ocorre quando há uma restrição no exercício das funções dos pais, que é estabelecido por meio de decisão judicial e que continuará restrito até quando for necessário para manter os interesses dos filhos. O artigo 1.637 do Código Civil estipula quando ocorrerá a suspensão do poder familiar: Art. 1.637. Se o pai ou a mãe abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a ele inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até que suspendendo o poder familiar, quando convenha. A perda do poder familiar já vem expresso no artigo 1.638 do Código Civil, tratando-se de uma medida mais severa de punição de extrema gravidade, em que os genitores são proibidos definitivamente de exercer o poder familiar por terem descumprido os deveres impostos a eles. Desse modo, esses pais são definitivamente impedidos judicialmente de exercer tal dever. O artigo 1.638 traz as hipóteses de destituição do poder familiar: Artigo 1.638: Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: I - Castigar imoderadamente o filho; II - Deixar o filho em abandono; III - Praticar atos contrários a moral e aos bons costumes; IV - Incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente. Além dessas hipóteses, o ECA também regula situações da destituição do poder familiar em casos em que os pais venham a deixar 83GUARDA COMPARTILHADA: UMA PREVENÇÃO JURÍDICA PARA A ALIENAÇÃO PARENTAL de cumprir obrigações em relação aos filhos, tais como os de guarda, sustento, educação e demais deveres que são essenciais para a criação menor. A extinção do poder familiar está expressa no artigo 1.635 do Código Civil e trata-se da interrupção definitiva do poder familiar que se dá com as hipóteses dos seus incisos, conforme se pode ler a seguir: Art. 1.635. Extingue-se o poder familiar: I - pela morte dos pais ou do filho; II - pela emancipação, nos termos do art. 5º, parágrafo único; III - pela maioridade; IV - pela adoção; V - por decisão judicial, na forma do artigo 1.638. Nota-se que o legislador pretendeu, com bastante cuidado, zelar pelo bem-estar do menor, a fim de proteger seus interesses para que essa criança ou adolescente não seja desamparado e, por qualquer circunstância, seja prejudicado por irresponsabilidade dos seus genitores. 3 Guarda O instituto da guarda está previsto no Código Civil de 2002 e vem com o intuito de proteger os interesses dos filhos. A palavra “guarda” já sugere algo como uma relação de proteção e cuidados inerentes a alguém, e, nesse contexto próprio, trazido pelo Código Civil, refere-se exclusivamente aos filhos. Nas palavras de Rolf Madaleno (2016, p. 482): Os pais como titulares do poder familiar têm o direito de ter consigo os filhos menores, pois só desta forma podem orientar a formação e educação da sua prole em toda a sua extensão, e na eventualidade de dissolução da sociedadeou do vínculo conjugal pela separação ou pelo divórcio direto 84 Laís Fernanda Almeida | Adriano Cielo Dotto consensual, dissolução de união estável ou em medida provisória ordena o artigo 1.584, inciso I, do Código Civil, seja observado o acordado pelos cônjuges sobre a guarda dos filhos. Nessa mesma vertente, vale ressaltar que a guarda surge com o fim do casamento ou da dissolução da união estável, ou, até mesmo, quando os pais nunca viveram juntos. A guarda é a medida pela qual os interesses do menor são defendidos, a fim de que este não seja prejudicado de nenhuma forma. Logo, ambos os pais devem resguardá-lo de qualquer prejuízo que possa ser percebido durante seu desenvolvimento. Nesse sentido, é necessário destacar o Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente, que está expresso na Carta Magna, em seu artigo 227, e no Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 4º. Precisamente, Fábio Figueiredo e George Alexandridis (2014, p. 16) concluem que: [...] independentemente da origem da filiação e independentemente de a família estar constituída com a presença de ambos os pais, o fato é que o poder familiar deverá ser exercido – quer seja por ambos, quer por apenas um deles – para que se busque o desenvolvimento do filho menor, para que seja criado um ser humano com qualidades mínimas, sob o prisma da educação, dos preceitos morais e sociais, ou seja, da real proteção que se mostra necessária àquele que se desenvolve. A guarda se inicia com o reconhecimento dos filhos. De acordo com o artigo 1.612 do Código Civil: “O filho reconhecido, enquanto menor, ficará sob a guarda do genitor que o reconheceu e se ambos o reconhecerem e não houver acordo, sob a de quem melhor atender os interesses do menor”. Entende-se, então, que a guarda cabe aos pais e só é reconhecido o vínculo de filiação quando ocorre o reconhecimento 85GUARDA COMPARTILHADA: UMA PREVENÇÃO JURÍDICA PARA A ALIENAÇÃO PARENTAL da filiação, observando o interesse do menor. Esse tipo de guarda é denominado como guarda natural, que é iniciada logo que o filho é registrado. De acordo com Patrícia Ramos (2016, p. 48), “Ao efetuar a certidão de nascimento do filho, a mãe, o pai ou ambos garantem-lhe o direito ao nome, à nacionalidade, vínculos familiares e direitos daí decorrentes, bem como tornam-se titulares do poder familiar. A guarda natural é atributo decorrente do poder familiar”. A guarda unilateral, por sua vez, é aquela em que apenas um dos pais ou quem o substitua detém a guarda do filho, ficando aquele responsável por cuidar, educar, dar um lar onde essa criança ou adolescente possa habitar, crescer e estabelecer vínculos, colaborando todos esses fatores efetivamente para a formação psíquica, ética e moral do filho. O outro pai, por sua vez, ficará responsável apenas pela prestação de pensão alimentícia e direito de visitação. Convém a este também supervisionar as atribuições do pai ou substituto detentor da guarda. O artigo 1.583, § 1º, do Código Civil, traz expressamente em seu texto a definição de guarda unilateral, veja-se: Artigo 1.583. “A guarda será unilateral ou compartilhada” e § 1º “Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua (...)”. Dessa maneira, será apenas um dos genitores, ou seu substituto, detentor da guarda, que zelará pelos cuidados do menor como um ciclo estrutural efetivo, que trará suporte para que este chegue à maioridade capaz de se manter e cuidar de si próprio, cabendo ao outro genitor mero apoio financeiro, visitas regulares e observar se o detentor legal da guarda está agindo de forma coerente para a criação do menor. Outra modalidade é a guarda alternada, a qual não é adotada pela legislação pátria. Nessa modalidade, a criança ou adolescente não tem residência fixa, há uma alternância de lar onde este menor morará, um período de tempo na casa da mãe e outro na casa do pai. O tempo que 86 Laís Fernanda Almeida | Adriano Cielo Dotto o menor ficará com o responsável pode variar, podendo ser semanal, quinzenal, mensal ou, até mesmo, anual. Isso variará de acordo com o que foi estabelecido entre os genitores. Vale salientar que o genitor responsável pelo menor, enquanto este estiver sob seus cuidados, terá o dever de exercer de forma exclusiva os deveres e direitos relativos ao filho. Christiano Cassettari (2018, p. 551) preceitua que: [...] neste modelo tanto a guarda jurídica quanto a material são atribuídas a um e a outro dos genitores, o que implica na alternância no período que o menor mora com cada um dos pais. Desta forma, cada um dos genitores no período de tempo preestabelecido a eles, exerce de forma exclusiva a totalidade dos direitos e deveres que integram o poder parental. Essa modalidade é repudiada pela doutrina e pela jurisprudência, pois a criança perde a referência já que não terá um lar fixo. A perda da referência pela criança por não ter um lar fixo é o motivo pelo qual esse modelo não é adotado, isso porque a alternância pode atrapalhar consideravelmente na adaptação do menor e, assim, causar confusão e, até mesmo, um desequilíbrio, e no futuro poderá ocasionar prejuízos à sua formação. Quando não há entre os genitores um consenso a respeito de quem ficará responsável pela guarda do menor, o Código Civil aponta como regra a guarda compartilhada, que será explanada no próximo tópico com mais clareza. 4 Guarda compartilhada A guarda compartilhada foi trazida pela Lei 11.698/08, a qual regulou essa modalidade no direito brasileiro. Todavia, a prática ainda consagrava a guarda unilateral concedida à mãe. Logo, para que fosse realmente estabelecida e se utilizasse dessa modalidade de 87GUARDA COMPARTILHADA: UMA PREVENÇÃO JURÍDICA PARA A ALIENAÇÃO PARENTAL guarda, surgiu a Lei 13.058/2014, tornando obrigatória a aplicação da guarda compartilhada, sempre que possível. Destaca-se que houve, inicialmente, objeções de que ela só se aplicaria se houvesse acordo entre os genitores. Contudo, a Lei regula o contrário dessa objeção, sendo aplicável também quando os genitores não acordam sobre quem será o responsável detentor da guarda do menor. Primordialmente, deve-se compreender o conceito de guarda compartilhada. Na visão de Patrícia Ramos (2016, p. 53): A expressão “guarda compartilhada” de crianças refere-se à possibilidade de os filhos de pais separados serem assistidos por ambos os pais. Nela, os pais têm efetiva e equivalente autoridade legal, não só para tomar decisões importantes quanto ao bem-estar de seus filhos, como também de conviver com esses filhos em igualdade de condições. Nessa modalidade, ambos os genitores são encarregados de cuidar do menor e ter participação ativa e efetiva na vida deste, ou seja, ambos compartilham do tempo de forma equilibrada para poderem criar e educar o filho conjuntamente, apesar de não morarem juntos sob o mesmo teto. O menor mora na casa de um dos genitores, mas outro participa da vida como se morassem juntos, participando das atividades rotineiras da criança ou adolescente. Como já mencionado anteriormente, o Código Civil introduziu como regra a guarda compartilhada, prevendo, no artigo 1.583, § 1º, segunda parte do Código Civil, que: “[...] por guarda compartilhada a responsabilização conjunta do exercício de direitos e deveres do pai ou da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes o poder familiar dos filhos comuns.”. Salienta-se, também, que o tempo de convívio dos pais deve ser equilibrado, de forma que prevaleçam os interesses do filho (§ 2º do artigo 1.583, CC/02). 88 Laís Fernanda Almeida | Adriano Cielo Dotto Rolf Madaleno (2016, p. 485) faz menção ao tempo de exercício da guarda compartilhada: Na guarda compartilhada não interessa quem estará detendo a custódia física do filho, como ocorre na guarda unilateral, ou no arremedo de uma guarda alternada, porque na guarda conjunta pura não deveria contar o tempode custódia, e na qual tratam os pais de repartir suas tarefas parentais, e assumem a efetiva responsabilidade pela criação, educação e lazer dos filhos, e não só um deles, como usualmente sucede. É importante destacar que a guarda compartilhada depende do bom relacionamento entre os genitores, pois, além de auxiliar que os filhos tenham convivência com ambos os pais de forma justa e equilibrada, também oportuniza que esses pais se relacionem de forma saudável, evitando, assim, confrontos e desgastes sobre tomadas de decisões em relação a eles, contribuindo para haja um bom desenvolvimento da guarda. Nesta direção, posiciona-se Rolf Madaleno (2016, p. 485) sobre a importância da cooperação e o bom relacionamento dos pais: Importante, portanto, para o bom desenvolvimento da guarda compartilhada, será a cooperação dos pais, não existindo espaço para aquelas situações de completa dissensão dos genitores, sendo imperiosa a existência de uma relação pacificada dos pais e um desejo mútuo de contribuírem para a sadia educação e formação de seus filhos, ainda que fática e psicologicamente afetados pela separação de seus pais. A guarda compartilhada surgiu com o propósito de prevenir eventuais problemas trazidos com os outros tipos de guarda, principalmente o fenômeno da alienação parental, que será abordado a seguir, além de ser a modalidade que melhor atende ao interesse dos menores. 89GUARDA COMPARTILHADA: UMA PREVENÇÃO JURÍDICA PARA A ALIENAÇÃO PARENTAL 5 Alienação parental A alienação parental é um fenômeno ocorrido quando uma pessoa, normalmente um dos genitores do menor, por motivos diversos, entende por fazer interferências psicológicas na criança e no adolescente, prejudicando o convívio com o outro genitor. Fábio Vieira (2014, p. 39) ensina que: [...] muitas das vezes um dos genitores implanta na pessoa do filho falsas ideias e memórias com relação ao outro, gerando, assim, uma busca em afastá-lo do convívio social, como forma de puni-lo, de se vingar, ou mesmo como intuito falso de supostamente proteger o filho menor como se o mal causado ao genitor fosse se repetir ao filho. Para resguardar que ocorra tal interferência maléfica, foi criada a Lei nº 12.318, de 26 de agosto de 2010. A Lei de Alienação Parental brasileira não só é recente, datando de 2010, bem como é de pequena extensão. São apenas 11 (onze) artigos, sendo 2 (dois) vetados, 1 (um) que apresenta o assunto e 1 (um) que fala da sua vigência. Restam 7 (sete) artigos para tratar especificamente da matéria. A Lei citada, em seu artigo 2º, caracteriza o que é a alienação parental. Veja-se, in verbis: Artigo 2º. Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este. Observa-se que esse artigo faz menção a quais pessoas são consideradas puníveis de alienação parental, que não são apenas as 90 Laís Fernanda Almeida | Adriano Cielo Dotto figuras dos pais/genitores, como também os avós, ou quem tenha influência sobre o menor. Logo, para que se configure a alienação parental, deve-se ater ao relacionamento de quem tenha o menor sobre sua guarda ou que tenha convívio corriqueiro com ele. Nesses mesmos moldes, é imprescindível analisar o parágrafo único do artigo 2º da Lei de alienação parental, que elenca formas exemplificativas de alienação. Art. 2º (...) Parágrafo único. São formas exemplificativas de alienação parental, além dos atos assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia, praticados diretamente ou com auxílio de terceiros: I - realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade; II - dificultar o exercício da autoridade parental; III - dificultar contato de criança ou adolescente com genitor; IV - dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar; V - omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço; VI - apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente; VII - mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com avós. Observa-se que o ato disposto no inciso I do parágrafo único qualifica como ato de alienação parental qualquer tipo de conduta que faça com que o genitor seja afastado de sua condição de pai ou mãe. Ou seja, aquele que influencie de alguma forma a 91GUARDA COMPARTILHADA: UMA PREVENÇÃO JURÍDICA PARA A ALIENAÇÃO PARENTAL desvinculação do filho com qualquer dos pais estará praticando o ato de alienar. O inciso II enfatiza que aquele que retirar a autoridade do genitor sobre o filho também praticará a alienação, pois, mesmo que não exista mais uma estrutura familiar, é direito e dever de ambos os genitores partilhar, de forma direta, da educação dos filhos, dos cuidados, prestando auxílio ao menor. A referência do inciso III caracteriza aquele ato que afasta do menor um dos pais, dificultando assim seu convívio e diminuindo os vínculos afetivos entre os dois. O inciso IV também teve o mesmo propósito de enfatizar a forma de afastamento do convívio, pois é direito dos pais, mesmo que não vivam no mesmo lar, conviver com os filhos regularmente, mediante exercício regular da guarda ou não. O inciso V inclui neste rol a omissão de informações sobre os filhos para os genitores, visto que estes devem ser informados de atividades ou situações importantes da vida dos filhos, como, por exemplo, se a criança está bem ou se passou por um mal estar e como ela está se saindo na vida escolar. São dados típicos e importantes que fazem parte de uma relação afetiva segura, em que são reafirmados os vínculos familiares. Fazer falsas denúncias sobre um dos genitores com o fim de prejudicar a relação dele para com o filho é constituído como ato de alienação parental expressamente explícito no inciso VI. O alienador, que tem como intuito prejudicar a relação familiar entre pais e filhos, não mede esforços para que o outro seja visto com maus olhos e que o filho queira cada vez mais estreitar os laços familiares com ele – o alienador. Fazer denúncias falsas é um meio de fazer com que isso ocorra cada vez mais rápido. O inciso VII é visto como a maneira mais utilizada de alienação parental. O alienador, com o fim de dificultar a convivência do filho para com o genitor, muda-se corriqueiramente de endereço sem informar para onde está se mudando, para que, assim, consiga cessar o contato 92 Laís Fernanda Almeida | Adriano Cielo Dotto do menor com os familiares e, de modo reflexivo, utiliza desse fim para inventar meios de dizer que são os avós ou o genitor que não querem ter contato ou não se importam com o neto/filho. Dessa forma, é necessário identificar o comportamento dos pais, avós ou outros responsáveis quanto à figura do menor. Quando se verifica que há alterações no comportamento da criança ou adolescente, como ansiedade, agressividade, nervosismo e, até mesmo, depressão, podem ser sérios indicativos de que, possivelmente, esteja ocorrendo uma alienação. Conforme prevê o artigo 6º da Lei 12.318/10, que trata do tema, uma vez caracterizados atos típicos de alienação parental ou qualquer conduta que dificulte a convivência da criança ou do adolescente com o genitor, o juiz poderá, cumulativamente ou não, sem prejuízo da decorrente responsabilidade civil ou criminal e segundo a gravidade do caso, adotar as seguintes medidas: Art. 6 (...) I - declarar a ocorrência de alienação parental e advertiro alienador; II - ampliar o regime de convivência familiar em favor do genitor alienado; III - estipular multa ao alienador; IV - determinar acompanhamento psicológico e/ou biopsicossocial; V - determinar a alteração da guarda para guarda compartilhada ou sua inversão; VI - determinar a fixação cautelar do domicílio da criança ou adolescente; VII - declarar a suspensão da autoridade parental. Por outro lado, se for caracterizada a mudança abusiva de endereço, inviabilização ou obstrução à convivência familiar (visitas), o juiz também poderá determinar a alternância dos períodos de 93GUARDA COMPARTILHADA: UMA PREVENÇÃO JURÍDICA PARA A ALIENAÇÃO PARENTAL convivência familiar (parágrafo único do art. 6º da Lei 12.318/10). O objetivo consiste em preservar o direito fundamental da convivência familiar saudável, preservando-se o afeto devido nas relações entre filhos e genitores no seio do grupo familiar. É de suma importância ater-se às principais consequências da alienação parental. É muito difícil não correlacionar a alienação parental às suas consequências e sintomas, fatores geradores de desordem psíquica e até de uma inadequada formação ética e moral de quem sofre a alienação, que geralmente decorrem do fim da união familiar com o início das disputas referentes à guarda dos filhos menores. Os sintomas surgem em etapas. O primeiro sinal advém quando o alienado começa a captar a essência da alienação e ele mesmo começa a atacar o genitor como se aquele sentimento partisse dele, com motivos projetados como se reais fossem e que, na maioria das vezes, não o são, pois se trata de mentiras utilizadas com propósito de interferir, denegrir e destruir a imagem afetiva do genitor com o filho, resultando no fato de o menor acabar tomando partido e executando tais ações por vontade própria. A partir do momento que o menor toma partido e começa a ter atitudes de atacar o genitor alienado, o fluxo de condutas feito pelo alienador é diminuída, porque o trabalho para implantar o ódio já obteve êxito e este não precisará ficar estimulando o menor a denegrir o genitor. Isso se dá porque tal sentimento já será real e não palpável de culpa, não importando para o filho se o outro é bom, já que, na sua consciência, ele sempre será a pior pessoa do mundo, digna apenas repulsos. (MADALENO; MADALENO, 2017, p. 56) Daí surge o distanciamento e o medo do genitor, a sensação de se estar em perigo quando se está próximo dele, resultando na construção da figura do genitor alienador como uma espécie de porto seguro, já que este será sempre bom e nunca terá a capacidade de lhe fazer mal. Imagina-se, então, como se sentirá o genitor acusado de coisas totalmente absurdas, e como é desesperador perceber o reflexo que isso 94 Laís Fernanda Almeida | Adriano Cielo Dotto gera no filho, ao vê-lo odiando-o e com medo de tê-lo por perto. São esses e outros diversos fatores que geram as consequências da alienação parental. As consequências tendem a ser bilaterais, uma vez que não ocorrem somente no menor, sendo, também, propensas a acarretar desgastes e sintomas no genitor acusado, na medida em que, ao perceber a ruptura do vínculo afetivo com o filho, por razões e circunstâncias as quais não foram motivadas, este tenderá a sofrer de ansiedade e insegurança em relação às atitudes futuras do menor. Notoriamente, essas aflições podem desencadear algum tipo de transtorno e, diversas vezes, uma depressão. 6 Guarda compartilhada como prevenção para a alienação parental A guarda compartilhada veio para resguardar a criança de eventual dano trazido pela guarda unilateral, tal como o convívio com apenas um dos genitores. A guarda compartilhada se tornou de preferência obrigatória, visto que, na ausência de acordo entre os genitores, será aplicada pelo juiz sempre que possível, assim como determina o § 2º do artigo 1.584 do Código Civil. Nessa essência, Fábio Figueiredo e Georgios Alexandridis (2014, p. 97-98) mencionam a eficácia da guarda compartilhada como meio de prevenção da alienação parental: O instituto da guarda compartilhada, pois é um meio eficaz de evitar a concentração do poder familiar em um só genitor, cujo terreno é altamente propício para gerar a alienação parental, caracterizada com a programação, ou seja, com a alteração de consciência do menor, cuja síndrome aparece como definição de uma série de atos de abuso emocional, observada há anos no Poder Judiciário, mas jamais compreendida, identificada, vale dizer, nunca antes denunciada como hoje em dia ela se mostra tão clara, 95GUARDA COMPARTILHADA: UMA PREVENÇÃO JURÍDICA PARA A ALIENAÇÃO PARENTAL e perversamente presente, como permitiram enxergar os profundos conhecimentos das áreas da psicologia e da psiquiatria, comprovando, ademais, os efeitos nocivos desses pais alienadores na criação de seus filhos. Cumpre ressaltar que as disputas entre os genitores sobre a posse dos filhos são prejudiciais para a saúde psíquica destes e, por esse motivo, a alienação parental deveria ser tratada como questão de saúde pública, uma vez que a guerra travada entre os pais é refletida nos filhos negativamente, gerando problemas em sua formação. Por serem conjuntamente estabelecidos os direitos e os deveres da guarda compartilhada, os pais, em seus devidos papéis, efetivamente cuidam do filho de maneira que este não se sinta menosprezado por nenhum dos dois. O carinho e os laços afetivos podem ser diariamente reafirmados, até pelo simples fato que ambos se farão presentes na vida do menor. Observa-se que, se os pais cuidam juntos do filho, os dois concorrem para o desenvolvimento dele de forma saudável, as brigas serão menos frequentes e o sentimento do filho por qualquer um dos dois não será diminuído. Dessa maneira, a guarda compartilhada tem como missão acabar com essa estrutura de poder de que filho é só do pai ou da mãe. O filho é de ambos os pais e, por conseguinte, os dois têm como responsabilidade, de forma conjunta, auxiliarem-no em tudo o que for necessário para que se sinta feliz e realizado no ambiente familiar. Mesmo que os pais não estejam mais juntos, devem atender ao Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente. A jurisprudência já é pacífica a esse respeito e, quando necessário, sempre será aplicada a guarda compartilhada com o fim de prevenir a alienação parental e evitar seus efeitos, como demonstrado a seguir: DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. RELAÇÃO DE CONFLITUOSIDADE ENTRE OS GENITORES. ALIENAÇÃO PARENTAL PRATICADO PELA 96 Laís Fernanda Almeida | Adriano Cielo Dotto GENITORA. MANUTENÇÃO DO LAR DE REFERÊNCIA MATERNO. JUÍZO DE PROPORCIONALIDADE. PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. AMPLIAÇÃO GRADATIVA DO REGIME DE VISITAS. GUARDA COMPARTILHADA. 1. A prática da alienação parental perpetrada pela mãe pode acarretar para o menor prejuízos em seu desenvolvimento psicológico. Ademais, a prática dessa reprogramação da criança fere o seu direito fundamental à convivência familiar saudável, prejudica a realização de afeto nas relações com o genitor e constitui abuso moral contra a criança. Tal prática é fortemente repelida por nosso ordenamento jurídico, devendo o alienante estar atento quanto ao bem estar físico e psicológico da criança, sob pena de arcar com as consequências de atos por ele praticados e que possam prejudicar o menor, seja de forma direta ou indireta. 2. Na espécie, a despeito da comprovada alienação parental praticada pela mãe e das sanções que o ato enseja, é importante realizar um juízo de proporcionalidade entre as disposições legais e o princípio do melhor interesse da criança. Determinar a mudança para o lar paterno, apesar de ser cabível legalmente, pode ser traumático para a criança, pois durante o curso do processo restou demonstrado que o filho sempre residiu com a mãe e já passou meses sem ter contato com o pai. Neste momento, ampliar o regime de visitas do pai e construirpaulatinamente uma relação mais amorosa com o filho pode amenizar os efeitos deletérios da alienação no estado psicológico da criança e, aos poucos, resgatar relação entre eles. 3. No processo de ponderação entre as sanções legais e o princípio constitucional do melhor interesse da criança, da proteção integral e preservação da sua dignidade, vislumbra-se que a manutenção do lar de referência materno atende melhor às necessidades do infante, ressalvando que se a mãe permanecer recalcitrante em seu intento de destruir a figura paterna, bem como 97GUARDA COMPARTILHADA: UMA PREVENÇÃO JURÍDICA PARA A ALIENAÇÃO PARENTAL inviabilizar a reaproximação dos laços afetivos entre eles, a situação poderá ser alterada, inclusive com a cominação da sanção de suspensão do poder familiar. 4. Ao realizar o juízo de ponderação entre as sanções previstas na lei e o princípio do melhor interesse do menor, este deve preponderar. A análise deve ser feita por meio de método comparativo entre os custos e benefícios da medida examinada, realizada não apenas por uma perspectiva estritamente legalista, mas tendo como pauta o sistema constitucional de valores. 5. “Em atenção ao melhor interesse do menor, mesmo na ausência de consenso dos pais, a guarda compartilhada deve ser aplicada, cabendo ao Judiciário a imposição das atribuições de cada um. Contudo, essa regra cede quando os desentendimentos dos pais ultrapassarem o mero dissenso, podendo resvalar, em razão da imaturidade de ambos e da atenção aos próprios interesses antes dos do menor, em prejuízo de sua formação e saudável desenvolvimento (art. 1.586 do CC/2002)”. (REsp 1417868/MG, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/05/2016, DJe 10/06/2016). 6. Apelo conhecido e parcialmente provido. Apelo adesivo conhecido e desprovido. (TJ-DF 20130111698702 - Segredo de Justiça 0044829- 95.2013.8.07.0016, Relator: CARLOS RODRIGUES, Data de Julgamento: 14/12/2016, 6ª TURMA CÍVEL, Data de Publicação: Publicado no DJE : 24/01/2017 . Pág.: 736/791). (STJ, 2016, on-line). Com o fim de diminuir os efeitos da alienação parental e evitar que desencadeie a síndrome da alienação parental, a guarda compartilhada é a melhor escolha. Ela promoverá um equilíbrio entre os genitores, diminuindo, consideravelmente, a possibilidade de um denegrir o outro. Portanto, o filho, convivendo constantemente com ambos os pais, poderá ele mesmo ter suas próprias conclusões sobre a figura do pai e da mãe, sem que seja influenciado por qualquer um dos dois. Além 98 Laís Fernanda Almeida | Adriano Cielo Dotto do mais, terá uma convivência familiar saudável, estabelecendo laços afetivos com ambos os genitores. 7 Considerações finais O presente artigo teve como finalidade abordar um assunto de grande relevância social, ademais constatar como a guarda compartilhada se tornou o meio eficaz de prevenção contra a alienação parental. Para isso, não se mediram esforços para deixar essa tese evidente. A questão da guarda é muito importante, pois trata do futuro do filho, de como este será educado, como seus cuidados serão exercidos e, se os genitores não colaborarem entre si, pode vir o filho a ser muito prejudicado durante toda sua fase de desenvolvimento. O principal designo foi de esclarecer a real intenção da implementação da guarda compartilhada, além de discorrer sobre um tema tão importante que é a alienação parental e que vem ganhando espaço cada vez maior nos tribunais. A guarda compartilhada surgiu com a finalidade de evitar a síndrome da alienação parental, pelo simples fato desses efeitos não serem tratados. Apesar de muito comuns, não existe a finalidade saúde, ou seja, por mais que causem danos de desordem psiquíca nos alienados, não há tramento justificado para esses males. É muito importante observar que, quando os pais não vivem mais juntos, seja pelo término do casamento, seja da união estável, ou, até mesmo, quando o filho foi fruto de uma relação na qual os pais nunca mais tiveram contato, tende haver disputa sobre os filhos, por entenderem que o filho é de posse de um ou outro ou por vigança pelo fim do relacionamento. Por motivos diversos, buscam uma maneira de atingir um ao outro por meio do filho, o que resulta na alienação parental. Na guarda unilateral ocorre muito isso, porque o filho mora com um dos genitores e o outro apenas o visita. Na prática, o filho fica um 99GUARDA COMPARTILHADA: UMA PREVENÇÃO JURÍDICA PARA A ALIENAÇÃO PARENTAL fim de semana com o genitor não detentor da guarda. Nessa modaliade, o vínculo entre pai e filho é muito escasso, o que dá dimensão e abertura para que surja a alienação parental. Quando é constatada juridicamente a existência dessa alienação, busca-se, por meio da alteração da modalidade de guarda unilateral para guarda compartilhada, evitar que surjam os efeitos decorrentes da síndrome da alienação parental. Na guarda compartilhada, os pais, de modo conjunto, devem cuidar e educar o filho e conviver com este filho períodos de tempo iguais, ou seja, de forma equilibrida. Isso tem grande chance de aumentar o vínculo entre pais e filho e, consequentemente, melhorar o convívio entre os genitores, diminuindo, assim, as disputas, além de aumentar os laços afetivos e propiciar um ambiente familiar saúdavel para a criança ou adolescente. Dessa forma, conclui-se que a guarda compartilhada vem sendo um meio mais eficaz de prevenção contra a alienação parental. 8 Referências CASSETTARI, Christiano. Elementos do direito civil. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. CNJ. Conselho Nacional de Justiça. Agência CNJ de Notícias. CNJ serviço: entenda o que é suspensão, extinção e perda do poder familiar. Publicado em: 26/10/2015. Disponível em: <http://www.cnj. jus.br/noticias/cnj/80757-cnj-servico-entenda-o-que-e-suspensao- extincao-e-perda-do-poder-familiar>. Acessado em 10 de abril de 2019. FIGUEIREDO, Fábio Vieira; ALEXANDRIDIS, Georgios. Alienação Parental. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014. GRISARD FILHO, Waldir, Guarda Alternada: saiba por que não é aceita pelos tribunais brasileiros. Publicado em: 2015. Disponível em: 100 Laís Fernanda Almeida | Adriano Cielo Dotto https://contiekruchinski.jusbrasil.com.br/artigos/187855767/guarda- alternada>. Acessado em 16 de maio de 2019. MADALENO, Ana Carolina Carpes; MADALENO, Rolf. 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Desse modo, o presente trabalho incumbiu-se em abordar o Princípio da Igualdade entre cônjuges e companheiros no atual contexto histórico do país, analisando as principais consequências da decisão que equiparou os direitos sucessórios do companheiro aos do cônjuge, verificando a extensão dessa decisão, principalmente, no que concerne à inclusão ou não do companheiro no rol dos herdeiros necessários, previsto no art. 1.845 do CC/2002, bem como o direito real de habitação previsto no artigo 1.831 do CC/2002. Para alcançar os objetivos delineados neste artigo, foram utilizados como fontes, para sua elaboração, artigos 102 Ana Caroline Pereira Sampaio | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo científicos que tratam do tema, bem como material doutrinário e jurisprudencial relativos ao tema em foco. Portanto, concluiu-se que, por mais que se trate de institutos diferentes quanto às suas formalidades, sua essência possui o mesmo significado, que é constituir família. Por essa razão, não existe hierarquização de institutos familiares, ou seja, a família constituída pelo casamento não é mais importante do que a família que se formou por meio de uma união estável. Assim, não pode haver divergências quanto à sucessão do cônjuge e do companheiro. Palavras-chave: Direito de Família. Casamento. União Estável. Sucessão. 1 Introdução O presente artigo visa realizar o estudo sistemático envolvendo os direitos sucessórios do companheiro, após o reconhecimento da inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, que buscou equiparar os direitos do companheiro aos do cônjuge. Nesse sentido, após se realizar uma visão panorâmica sobre os institutos do casamento e da união estável, bem como a análise do reconhecimento da união estável como entidade familiar pela Constituição Federal de 1988, e das leis que regulamentavam o instituto, foi possível se observar o grande retrocesso trazido pelo Código Civil de 2002 em estabelecer o tratamento diferenciado atribuído ao companheiro em relação ao cônjuge por meio do artigo 1.790 do Código Civil, na sucessão. Sob essa vertente, a discriminação conferida ao companheiro, pelo atual Código Civil, no dispositivo que versava sobre os direitos sucessórios, era descabida de razoabilidade, uma vez que a figura do convivente recebia tratamento bem diverso da do cônjuge, gerando diversos questionamentos sobre a inconstitucionalidade do dispositivo. Desse modo, restou indispensável a manifestação do Supremo Tribunal Federal (STF), tido como o guardião da Constituição, para 103OS REFLEXOS DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL QUE DECLAROU A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL, EQUIPARANDO OS DIREITOS SUCESSÓRIOS DO COMPANHEIRO AOS DO CÔNJUGE resolver a questão suscitada envolvendo a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do CC/02. Portanto, o presente trabalho tem como objetivo geral analisar os reflexos da decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, equiparando os direitos sucessórios do companheiro aos do cônjuge. São objetivos específicos os seguintes: compreender os aspectos jurídicos dos institutos da união estável e do casamento; analisar a distinção entre os direitos sucessórios do companheiro e do cônjuge pelo Código Civil de 2002; verificar a extensão da decisão do STF no que concerne a inclusão ou não inclusão do companheiro no rol dos herdeiros necessários, previsto no art. 1.845, e ao direito real de habilitação conferido ao companheiro, segundo o artigo 1.831 do Código Civil. No presente Trabalho de Curso, far-se-á necessária a utilização de doutrinas e jurisprudências que abordem o tema de forma clara e responsável, fornecendo respaldo teórico-metodológico a fim de consubstanciar o teor da presente pesquisa, contribuindo, sobretudo, para com sua riqueza acadêmica, em busca dos melhores resultados. 2 Os Aspectos Jurídicos do Casamento e da União Estável De acordo com o Código Civil de 2002, em seu artigo 1.511, o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges (BRASIL, 2002). Conforme Carvalho (2012), o texto do artigo 1.511 do Código Civil destaca a responsabilização do casal frente à família, de forma conjunta, destacando-se os princípios da afetividade e da convivência familiar. Em se tratando de família, é bom esclarecer o que se deve entender por casamento. O casamento é um ato jurídico negocial solene, público e complexo, mediante o qual um homem e uma mulher constituem família, pela livre manifestação de vontade e pelo reconhecimento do Estado. 104 Ana Caroline Pereira Sampaio | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo A Constituição Federal brasileira de 1988 trata da família no seu CapítuloVII, dispondo nos parágrafos do artigo 226 sobre as entidades familiares, reconhecendo, expressamente, o casamento, a união estável e a família monoparental. Assim, a proteção estatal atribuída à família, no texto constitucional (caput do art. 226), deve ser concedida a todos os tipos de famílias, sejam elas constituídas por união estável, sejam por casamento. A respeito da união estável, o Código Civil de 2002 estabelece, em seu artigo 1.723, que “é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. Nesse sentido, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho (2019, p. 430) entendem que se trata de um instituto com “(...) uma relação afetiva de convivência pública ou duradora, entre duas pessoas, do mesmo sexo ou não, com o objetivo imediato de constituição de família.”. Entendem citados juristas que não há hierarquia entre os tipos de família. Esse é inclusive o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 4277 e da ADPF 132, nas quais reconheceu a “inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico” (ADI 4277 e ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, j. 05.05.2011). Portanto, da mesma forma como ocorre no casamento, os companheiros devem observar os direitos e os deveres recíprocos em suas relações pessoais, tais como o dever de lealdade, respeito, assistência, guarda, sustento e educação dos filhos, de acordo com o artigo 1.724 do Código Civil. Por essa razão, o ordenamento jurídico brasileiro estabelece inúmeras prerrogativas comuns ao cônjuge e ao companheiro, por se tratarem de institutos similares. Não obstante as semelhanças, existem diversas questões referentes ao casamento que não cabem aplicá-las à união estável. Todavia, o casamento e a união estável são institutos que apresentam características diferentes. Conforme apontam Rafael Mercadante Júnior e Leticia Nascimbem Colovati (2017, p. 37): 105OS REFLEXOS DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL QUE DECLAROU A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL, EQUIPARANDO OS DIREITOS SUCESSÓRIOS DO COMPANHEIRO AOS DO CÔNJUGE Ao passo em que o casamento advém de atos solenes, formais, jurídicos e possui prova tangível de comprovação, a união estável não se atém a tais formalidades, bastando a convivência pública, contínua e duradoura e com o ânimo de constituir família, a qual deverá ser comprovada mediante análise de sua casuística. É possível abstrair dessas informações que o casamento está consubstanciado em uma série de solenidades, formalidades e atos jurídicos, sendo que todos esses requisitos são exigidos por lei, enquanto a união estável não se prende a essas normas. Por meio disso, é possível tecer as principais diferenças legais entre tais institutos, as quais podem ser encontradas no Código Civil de 2002. A primeira diferença entre o casamento e a união estável, a ser apontada neste estudo, refere-se à constituição de cadaum desses institutos. O casamento é um ato solene, que necessita de um processo de habilitação para que possa ocorrer (art. 1.512, parágrafo único, CC). Atendidos os requisitos exigidos nessa etapa, o casamento somente se realizará no momento em que o homem e a mulher manifestarem, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal e o juiz os declarar casados (art. 1.514, CC). Por outro lado, para que a união estável seja reconhecida como entidade familiar, é necessário o preenchimento dos requisitos exigidos no artigo 1.723 do Código Civil, quais sejam: que a união estável seja configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. Não há exigência de ato formal, tal como um contrato de convivência. Portanto, a principal diferença desses institutos são as formalidades exigidas por lei quanto aos seus reconhecimentos. Podem-se identificar, ainda, outras diferenças quanto ao casamento e à união estável no que tange ao regime de bens. O Código Civil de 2002 estabelece quatro regimes de bens: o regime de comunhão parcial de bens, o regime de comunhão universal 106 Ana Caroline Pereira Sampaio | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo de bens, o regime de separação total de bens e o regime de participação final nos aquestos, que estão disciplinados nos artigos 1.639 a 1.688 da Lei Civil. Acontece que, ao ler esses artigos, nota-se que não fazem menção ao “companheiro”, mas apenas ao cônjuge (MERCADANTE JÚNIOR; COLOVATI, 2017). Assim, existe um debate doutrinário e divergências jurisprudenciais acerca de se as regras de separação obrigatória de bens para o casamento incidiriam também na união estável. Outro aspecto importante é quanto aos impedimentos e às causas suspensivas do casamento. De acordo com o §1º do art. 1.723, os impedimentos se aplicam à união estável, com exceção do inciso VI, no caso de a pessoa casada estar separada de fato ou judicialmente. Quando às causas suspensivas, prevê o §2º do art. 1.723 que elas não impedirão a caracterização da união estável. Diante dessas particularidades existentes entre os dois institutos, e de diversas outras previstas no Código Civil de 2002, depreende-se que tratam de institutos bastante diferentes. Entretanto, as diferenças existentes entre o cônjuge e o companheiro não podem chegar ao ponto de dirimir direitos dos companheiros em detrimento dos cônjuges, ou vice-versa (MERCADANTE JÚNIOR; COLOVATI, 2017). Por essa razão, é preciso analisar atentamente o artigo 1.790 do Código Civil, assunto do próximo tópico. 3 Distinção entre os direitos sucessórios do companheiro e do cônjuge pelo Código Civil de 2002 A Constituição Federal de 1988 reconheceu a união estável como entidade familiar, em seu artigo 226, § 3º, nos seguintes termos: “Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento”, direcionando ao entendimento de que a união estável não seria igual ao casamento, tendo em vista que institutos 107OS REFLEXOS DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL QUE DECLAROU A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL, EQUIPARANDO OS DIREITOS SUCESSÓRIOS DO COMPANHEIRO AOS DO CÔNJUGE iguais não se convertem um no outro. Por essa razão, é que havia um tratamento diferenciado do companheiro em relação aos direitos sucessórios do cônjuge, estabelecido no Código Civil de 2002. Esse tratamento diferenciado apareceu na legislação jurídica civil, que, ao disciplinar sobre o tema da sucessão, reservou em seu Livro V (Do Direito Das Sucessões), Título I, no artigo 1.790, a possibilidade do direito de sucessão pelo companheiro, desde que haja a comprovação de que a aquisição dos bens resultou de forma onerosa durante a vigência da união. Confira-se a seguir: Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão um do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas seguintes condições: I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho; II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança; IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito a totalidade da herança. Nota-se que, com a simples leitura do dispositivo, é possível observar a divergência conferida pelo legislador às relações sucessórias do casamento e da união estável. Assim, enquanto o sistema sucessório do casamento está baseado em normas (principiológicas e regulatórias), as normas que norteiam a sucessão na união estável aplicáveis ao companheiro sobrevivente são notoriamente menos favoráveis, demonstrando a clara opção do legislador em prestigiar o sistema sucessório do casamento, de acordo com Farias e Rosenvald (2019, p. 286). Noutro giro, o artigo 1.829 do CC/02 reconhece o direito sucessório do cônjuge supérstite nos seguintes termos: 108 Ana Caroline Pereira Sampaio | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens; ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge; III – ao cônjuge sobrevivente; IV – aos colaterais. Em relação ao artigo 1.829 do CC, Farias e Rosenvald (2019) asseveram que: Ignorou toda a evolução histórica da união estável e, ao mesmo tempo, atentou frontalmente contra a ideologia constitucional de proteção especial do Estado dedicada a quem vive em companheirismo. Trata-se de visível e indiscutível retrocesso. E, relembrando a sede constitucional da proteção da união estável, é de se pontuar a proibição de retrocesso social, também denominado proibição de evolução reacionária, que advém da mais avançada doutrina constitucional. No mesmo sentido contrário às disposições do CC quanto à sucessão do companheiro, estabelecida pelo artigo 1.829, Maria Berenice Dias (2011, p. 161) faz o seguinte comentário: As diferenças são absurdas. O tratamento diferenciado não é somente perverso, escancaradamente inconstitucional, afrontando de forma direta os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, sem falar na desequiparação preconizada entre duas células familiares: união estável e casamento. No mesmo dispositivo em que assegura especial proteção à família, a Constituição reconhece a união estável 109OS REFLEXOS DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL QUE DECLAROU A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL, EQUIPARANDO OS DIREITOS SUCESSÓRIOS DO COMPANHEIRO AOS DO CÔNJUGE como entidade familiar, não manifestando preferência por qualquer de suas formas. O retrocesso da lei se afasta da razoabilidade. Embora parte da doutrina ainda propague a tese de compatibilidade do texto legal com a Constituição, sob a justificativa de que o próprio constituinte almejava priorizar o casamento em detrimento da união estável, a grande maioria dos doutrinadores se posiciona em sentindo oposto, identificando que a solidariedade, o respeito e a dignidade das pessoas que estão no casamento e na união estável são os mesmos, ao passo que o próprio Texto Constitucional determinou que toda e qualquer família merece especial proteção do Estado, defendendo, assim, a inconstitucionalidade do sistema de sucessão do companheiro. Nesse sentido, Tartuce (2019, p. 334) acentua que o tratamento deve ser o mesmo no caso de cônjuge ou companheiro homoafetivo, diante da evolução doutrinária e jurisprudencial que culminou com o pleno reconhecimento das famílias homoafetivas no Brasil, apesar da falta de regulamentaçãolegal até o presente momento jurídico nacional. 4 Principais consequências jurídicas no direito sucessório após a decisão que o reconheceu a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil O Supremo Tribunal Federal (STF), em maio de 2017, decidiu, por maioria dos votos, que deve haver uma equiparação sucessória entre o casamento e a união estável, reconhecendo a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil (STF, Recurso Extraordinário 878.694/ MG, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. 10.05.2017). Nos termos do voto do relator, “não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada pela união estável. A hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição” (julgamento com repercussão 110 Ana Caroline Pereira Sampaio | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo geral). A tese fixada, nesse histórico julgamento, foi a seguinte: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002” (publicado no Informativo n. 864 da Corte). De acordo com o Ministro Luís Roberto Barroso – redator do acórdão do Recurso Extraordinário nº 646.721/RS – é inconstitucional a diferenciação estabelecida pelo Código Civil no artigo 1.790 e, em virtude disso, fundamenta o seu ponto de vista: Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988. Assim sendo, o art. 1790 do Código Civil, ao revogar as Leis nº 8.971/1994 e nº 9.278/1996 e discriminar a companheira (ou o companheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente e da vedação do retrocesso. (STF. Recurso Extraordinário nº 646.721/RS. Rel. Min MARCO AURÉLIO. Brasília, 10 de maio de 2017). A decisão que culminou no reconhecimento da inconstitucionalidade do artigo 1.790 do CC/02 deixou de fazer qualquer menção acerca da inserção ou não inserção do companheiro no rol dos herdeiros necessários, estabelecido no artigo 1.845 do CC/02, bem como sobre o direito real de habitação, previsto no artigo 1.831 do CC/02, rendendo incontáveis discussões acerca das questões controvertidas envolvendo o tema do direito da sucessão, que será mais bem trabalhado a seguir. 111OS REFLEXOS DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL QUE DECLAROU A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL, EQUIPARANDO OS DIREITOS SUCESSÓRIOS DO COMPANHEIRO AOS DO CÔNJUGE 4.1 Quanto à extensão dos direitos sucessórios 4.1.1 Herdeiros necessários O herdeiro necessário é aquele compreendido dentre os elencados no artigo 1.845 do CC/02 e possui direito a uma fração da herança deixada pelo falecido, compondo-se essa fração da metade do acervo hereditário, constituindo a chamada legítima. Após a decisão do STF, que reconheceu a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do CC/02, contundentes têm sido as discussões doutrinárias no que tange à inclusão ou não do companheiro no rol dos herdeiros necessários previsto no artigo 1.845 do Código Civil, levando em consideração principalmente a posição que o companheiro passou a ocupar para efeitos do artigo 1.829 do Código Civil. Salienta-se que o companheiro supérstite não foi abrangido por nenhum dos citados dispositivos como sendo herdeiro necessário, restando, assim, dúvidas acerca de qual seria a real intenção do legislador sobre a posição a ser ocupada pelo companheiro. A dúvida insurge quando questionada a posição ocupada pelo companheiro sobrevivente, se seria a de herdeiro necessário ao lado do cônjuge ou de herdeiro facultativo. Tal questionamento tem dividido o entendimento da doutrina, que ora manifesta-se pelo reconhecimento do convivente como herdeiro necessário, ora entende que sua posição se limita a de herdeiro facultativo. Na visão da maior parte da doutrina, o companheiro deve ser considerado herdeiro necessário em respeito às normas constitucionais que tutelam a proteção plena da pessoa humana, devendo a família ser um espaço de enaltecimento pessoal, em que há o cumprimento dos direitos fundamentais mais básicos, com a valorização de todos os membros. Corroborando com esse entendimento, o autor Luiz Paulo Vieira de Carvalho defende que não se poderia aplicar analogicamente o art. 1.850 do CC/2002, que apresenta os herdeiros facultativos, ao 112 Ana Caroline Pereira Sampaio | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo companheiro sobrevivente. Isso porque a interpretação analógica não deve ser utilizada para restringir direitos aos sujeitos, e sim para favorecê-los, manifestando pela aplicação analógica do art. 1.845 do CC/2002 à sucessão dos conviventes, conforme citação de Bárbara Valério Machado (2017, p. 55-57) Parte da doutrina coloca-se a favor da inclusão do companheiro na condição de herdeiro necessário, entendendo tratar-se de uma norma de proteção patrimonial, que visa garantir ao companheiro o mínimo existencial, evitando que esse permaneça em condição de vulnerabilidade, principalmente no que diz respeito aos bens comuns constituídos na constância da união estável, defendendo a posição de que o companheiro deve ser incluído no rol dos herdeiros necessários do artigo 1.845 do Código Civil. Diante das acerbadas controvérsias envolvendo o assunto, o Instituto Brasileiro de Família (IBDFAM) opôs Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário Nº 878.694, questionando a aplicabilidade, às uniões estáveis, do art. 1.845 e de outros dispositivos do Código Civil que conformam o regime sucessório dos cônjuges, como explica o professor Mário Luiz Delgado (2018). No julgamento, o STF se manifestou sustentando a tese de que inexiste omissão no acórdão embargado a ser sanada, uma vez que o objeto da repercussão geral reconhecida não abrangeu o dispositivo do artigo 1.845, bem como qualquer outro dispositivo do Código Civil, limitando-se apenas à aplicação do art. 1.829 do Código Civil às uniões estáveis. Nessa esteira, o IBDFAM pactua com o entendimento de que a decisão do STF se mostrou adequada e lógica com os atuais ditames da sociedade, eis que, ao se restringir a liberdade testamentária do autor da herança, no caso da união estável, demonstrar-se-ia um absoluto descompasso com a realidade social, marcada pela interinidade dos vínculos conjugais. Seguindo essa linha, têm-se que as leis gozam de presunção de legitimidade e de constitucionalidade, logo a não manifestação do 113OS REFLEXOS DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL QUE DECLAROU A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL, EQUIPARANDO OS DIREITOS SUCESSÓRIOS DO COMPANHEIRO AOS DO CÔNJUGE STF, com relação ao art. 1.845, que exclui o companheiro supérstite do rol de herdeiros necessários, presume-se a sua constitucionalidade. Consequentemente, não se pode, em absoluto, pressupor a sua inconstitucionalidade a fim de afastar a sua vigência, a menos que o STF volte a se manifestar sobre o tema 4.1.2 Direito real de habitação O direito real de habitação está disposto no artigo 1.831 do Código Civil, é reconhecido ao cônjuge sobrevivente, independentemente do regime de bens do casamento, recaindo o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar. Partindo desse pressuposto, o grande questionamento que se faz é se “o direito real de habitação do cônjuge, previsto no artigo 1.831 do Código Civil, deverá ser estendido ao companheiro, após a decretação de inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, ainda que seja uma norma de cunhopatrimonial e não existencial. Como ficará a situação de pessoas que optam por conviver em união estável, justamente com o objeto de não gerar contra o seu patrimônio os mesmos efeitos do casamento? Nessa esteira, segundo os ensinamentos do professor Flávio Tartuce (2019, p. 420), existem, no atual cenário, duas correntes doutrinárias que versam sobre o tema. Uma, retirada da obra doutrinária do Professor Francisco Cahali, entende que o companheiro não teria o citado direito real de habitação, em razão de ter agido o legislador de modo silente, não pretendendo assim tratar desse direito, pois não quis incluí-lo; na visão da segunda corrente, entende-se ser possível sustentar a aplicação analógica do art. 1.831 à união estável, estendendo, ao companheiro, em idênticas condições, o mesmo direito real de habitação assegurado ao cônjuge sobrevivente. Desse modo, o real direito de habitação, previsto no artigo 1.831 do CC/02, trata de norma de proteção de cunho patrimonial, dispondo 114 Ana Caroline Pereira Sampaio | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo ao cônjuge sobrevivente que, independentemente do regime de bens escolhido pelo casal, o direito de moradia estará assegurado, sem a necessidade de pagamento de qualquer quantia aos demais herdeiros. No tocante à união estável, a concessão do direito real de habitação encontrava respaldo legal no bojo do art. 7º, parágrafo único, da Lei 9.278/1996, o qual determinava que, após a dissolução da união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente teria direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família. Não obstante, com a ulterior edição do Código Civil, o legislador, ao disciplinar os direitos relativos a sucessão do companheiro, em seu art. 1.790, foi silente, não fazendo qualquer menção ao direito real de habitação do companheiro. Nesse contexto, surgiram duas correntes doutrinárias. A primeira, sustentando a permanência do direito real de habitação, devido à ausência de revogação expressa do art. 7º, parágrafo único, da Lei 9.278/96, contrapondo-se à segunda corrente, que defendia que a referida norma havia sido tacitamente revogada pelo Código Civil de 2002. Assim, segundo o julgado abaixo, citado por Bárbara Valério Machado (2017, p. 64), demonstra-se que o próprio Superior Tribunal de Justiça já havia se posicionado nesse sentido, concedendo o direito real de habitação ao companheiro, fundamentando-se na Constituição Federal de 1988, com a consequente aplicação analógica do art. 1.831 do CC/2002 ao companheiro sobrevivente. Veja-se: ART. 1.831 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. 1. O novo Código Civil regulou inteiramente a sucessão do companheiro, ab-rogando as leis da união estável, nos termos do art. 2º, § 1º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB. 2. É bem verdade que o art. 1.790 do Código Civil de 2002, norma que inovou o regime sucessório dos conviventes em união estável, não previu o direito real de habitação aos 115OS REFLEXOS DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL QUE DECLAROU A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL, EQUIPARANDO OS DIREITOS SUCESSÓRIOS DO COMPANHEIRO AOS DO CÔNJUGE companheiros. Tampouco a redação do art. 1.831 do Código Civil traz previsão expressa de direito real de habitação à companheira. Ocorre que a interpretação literal das normas conduziria à conclusão de que o cônjuge estaria em situação privilegiada em relação ao companheiro, o que deve ser rechaçado pelo ordenamento jurídico. 3. A parte final do § 3º do art. 226 da Constituição Federal consiste, em verdade, tão somente em uma fórmula de facilitação da conversão da união estável em casamento. Aquela não rende ensejo a um estado civil de passagem, como um degrau inferior que, em menos ou mais tempo, cederá vez a este. 4. No caso concreto, o fato de haver outros bens residenciais no espólio, um utilizado pela esposa como domicílio, outro pela companheira, não resulta automática exclusão do direito real de habitação desta, relativo ao imóvel da Av. Borges de Medeiros, Porto Alegre-RS, que lá residia desde 1990 juntamente com o companheiro Jorge Augusto Leveridge Patterson, hoje falecido. 5. O direito real de habitação concede ao consorte supérstite a utilização do imóvel que servia de residência ao casal com o fim de moradia, independentemente de filhos exclusivos do de cujus, como é o caso. 6. Recurso especial não provido. (REsp 1329993/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 17/12/2003, DJe 18/03/2014). Ao declarar a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela aplicação do art. 1.829 da referida legislação, que trata da sucessão do cônjuge, também para os companheiros. Todavia, no que tange à concessão do direito real de habitação aos companheiros, de acordo com o entendimento acima mencionado, compreende-se que haveria a aplicação do art. 1.831 do CC/2002 em favor do companheiro sobrevivente. 116 Ana Caroline Pereira Sampaio | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo 5 Considerações Finais Este artigo pretendeu analisar os reflexos da decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, equiparando os direitos sucessórios do companheiro aos do cônjuge. Diante das particularidades de cada instituto analisado (o casamento e a união estável), verifica-se que se trata de institutos diferentes. No entanto, são totalmente semelhantes no que diz respeito a constituírem núcleos familiares, ou seja, ambos os institutos constituem família e, por essa razão, as diferenças existentes entre o cônjuge e o companheiro não podem chegar ao ponto de retirar direitos dos companheiros em detrimento dos cônjuges, ou vice-versa. Entretanto, o Código Civil de 2002 estabeleceu um tratamento diferenciado do companheiro em relação aos direitos sucessórios do cônjuge. Diante desse tratamento diferenciado entre o cônjuge e o companheiro, o qual prejudica este, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a inconstitucionalidade da norma do artigo 1.970 do Código Civil, de modo que o tratamento sucessório do cônjuge e do companheiro foi equiparado por meio do julgamento da ADI 4277 e da ADPF 132. No que concerne ao companheiro na condição de herdeiro necessário, verificou-se que o ordenamento jurídico brasileiro, tanto na jurisprudência quanto na doutrina, coloca-se a favor da inclusão do companheiro na condição de herdeiro necessário, entendendo tratar-se de uma norma de proteção patrimonial, que visa garantir ao companheiro o mínimo existencial, evitando que este permaneça em condição de vulnerabilidade, principalmente no que diz respeito aos bens comuns constituídos na constância da união estável, defendendo a posição de que o companheiro deve ser incluído no rol dos herdeiros necessários do artigo 1.845 do Código Civil. Todavia, no que tange à concessão do direito real de habitação aos companheiros, de acordo com o entendimento acima mencionado, 117OS REFLEXOS DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL QUE DECLAROU A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL, EQUIPARANDO OS DIREITOS SUCESSÓRIOS DO COMPANHEIRO AOS DO CÔNJUGE compreende-se que haveria a aplicação do art. 1.831 do CC/2002 em favor do companheiro sobrevivente. Por mais que se trate de institutos diferentes quanto às suas formalidades, sua essência possui o mesmo significado, que é constituir família. Por essa razão, não existe hierarquização de institutos familiares, ou seja, a família constituída pelo casamento não é mais importante do que a família que se formou por meio de uma união estável. Assim, não pode haver divergências quanto à sucessão do cônjuge e do companheiro. 6 Referências Bibliográficas BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 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Acesso em: nov. 2019. 118 Ana Caroline Pereira Sampaio | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. 2.ed. São Paulo: RT, 2011. FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVAL, Nelson. Curso de Direito Civil. Sucessões. v. 7. 5ª. ed. São Paulo: JusPodivm, 2019. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, RODOLFO. Novo curso de direito civil - direito de família: as famílias em perspectiva constitucional. Vol. 6. 9ª. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2019. LÔBO, Paulo. Direito Civil. Famílias. 4ª Ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. MACHADO, Bárbara Valério. União estável e casamento no âmbito familiar e sucessório: o julgamento do recurso extraordinário nº 878.694 pelo Supremo Tribunal Federal e suas possíveis repercussões na matéria. Trabalho de Conclusão de Curso. Universidade Federal de Santa Cataria. Florianópolis. 2017. Disponível em: <https://repositorio. ufsc.br/xmlui/handle/123456789/177373>. Acesso em: nov. 2019. 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Disponível 119OS REFLEXOS DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL QUE DECLAROU A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL, EQUIPARANDO OS DIREITOS SUCESSÓRIOS DO COMPANHEIRO AOS DO CÔNJUGE em: <https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/457565825/recurso- especial-resp-1617532-df-2016-0200966-8>. Acesso em: nov. 2019. STF. Supremo Tribunal Federal. ADI 4277 DF. Relator: Min. Ayres Brito. Data do julgamento: 05/05/2011. Tribunal Pleno. Data de Publicação: 13/10/2011. Disponível em: <https://stf.jusbrasil.com.br/ jurisprudencia/20627236/acao-direta-de-inconstitucionalidade-adi- 4277-df-stf>. Acesso em: nov. 2019. ________. Recurso Extraordinário 878.694 MG. Relator Min. Roberto Barroso. Data do Julgamento 16/04/2015. Data de Publicação:19/05/2015. Disponível em: <https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/311628824/ repercussao-geral-no-recurso-extraordinario-rg-re-878694-mg-minas- gerais-1037481-7220098130439/inteiro-teor-311628833?ref=juris- tabs>. 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Os objetivos específicos foram: verificar a possibilidade de ocorrer a responsabilidade civil em face da infidelidade virtual; discorrer sobre a aplicação dos princípios constitucionais na relação conjugal; diferenciar relacionamentos virtuais e relacionamentos reais; abordar o dano moral na infidelidade virtual. A metodologia utilizada foi na perspectiva qualitativa e teve caráter bibliográfico e documental, que se entendeu ser suficiente para o alcance dos objetivos propostos. Por conseguinte, foram utilizados materiais doutrinários, entendimentos jurisprudenciais, materiais eletrônicos extraídos de diversos sites, bem como a legislação pertinente ao conteúdo abordado. A infidelidade virtual é uma conduta recente, que tem ganhado dimensão cada vez maior, e vem invadindo o seio familiar, sendo uma das principais causas de rupturas dos relacionamentos, uma vez que as pessoas, na maioria das vezes, não estão sabendo lidar com os meios de comunicação disponíveis, sem desrespeitar quem escolheu para ser seu cônjuge/companheiro. 122 Amanda Cristina Lima | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo Palavras-chave: Infidelidade virtual. Relacionamentos Virtuais. Princípios. Dano Moral. 1 Introdução O presente trabalho tem como propósito abordar a aplicação do dano moral à infidelidade, especificamente, em sua modalidade virtual. O avanço dos meios de comunicação gera cada vez mais um grande impacto nas relações entre pessoas e, principalmente, tem afetado diretamente os relacionamentos conjugais. Com o fácil acesso e a excessiva exposição das pessoas comprometidas, vem à tona este assunto delicado: a infidelidade virtual. Trata-se de um tema recente, que vem tomando repercussão cada vez maior, uma vez que o ordenamento jurídico brasileiro não contempla norma específica para responsabilizar quem comete o ato de infidelidade virtual. Cumpre registrar que a tendência é que ocorra uma massificação dessa conduta, haja vista a grande facilidade que as pessoas têm de se relacionarem virtualmente. É de se pensar que não se trata de aplicação automática da responsabilidade civil no âmbito da infidelidade virtual. Sendo assim, de acordo com entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, para a aplicação do dano moral à infidelidade, será necessária a análise do caso concreto, bem como do conteúdo probatório, para aplicação desse instituto; logo, o dano moral, nessa modalidade de traição, não é presumido. O presente artigo tem como objetivo central analisar os reflexos da infidelidade virtual e sua repercussão jurídica, bem como as penalidades aplicadas a quem tem o dever de lealdade e fidelidade, em face da relação conjugal. Os objetivos específicos são os seguintes: verificar a possibilidade de ocorrer a responsabilidade civil em face da infidelidade virtual; 123A POSSIBILIDADE DE INDENIZAR EM FACE DA INFIDELIDADE VIRTUAL discorrer sobre a aplicação dos princípios constitucionais na relação conjugal; diferenciar relacionamentos virtuais e relacionamentos reais; abordar o dano moral na infidelidade virtual. O trabalho foi realizado na perspectiva qualitativa. A pesquisa tem caráter bibliográfico e documental, que se entende ser suficiente para o alcance dos objetivos propostos. Por conseguinte, serão utilizados materiais doutrinários, entendimentos jurisprudenciais, materiais eletrônicos extraídos de diversos sites, assim como legislação pertinente ao conteúdo abordado. 2 Direitos e deveres inerentes à relação conjugal Para que os objetivos do presente trabalho sejam alcançados, primeiramente cumpre destacar as formas de relação conjugal, bem como identificar em que momento o instituto da infidelidade virtual seráaplicado a fim de responsabilizar o consorte que descumprir os deveres legais da relação conjugal. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) reconhece, no art. 226, as formas de relação conjugal – o casamento e a união estável –, ambas com a proteção do Estado, como se pode verificar: Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º O casamento é civil, e gratuita a celebração. § 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento[...]. Em que pese a CRFB/88 estabelecer que é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher, com a evolução no ordenamento jurídico brasileiro, nota-se que a relação conjugal não é imutável, uma 124 Amanda Cristina Lima | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo vez que se tem admitido a união entre pessoas do mesmo sexo (união homoafetiva). Importante destacar que a relação conjugal nada mais é que a união entre duas pessoas com a finalidade de convivência em comum, ou seja, tal relação se consuma quando duas pessoas, de forma livre, manifestam o interesse de estabelecer um vínculo conjugal, seja por meio do casamento, seja pela união estável. Quanto ao casamento, Gagliano e Pamplona Filho (2019, p. 126- 127), o conceituam como sendo “(...) um contrato especial de Direito de Família, por meio do qual os cônjuges formam uma comunidade de afeto e existência, mediante a instituição de direitos e deveres, recíprocos e em face dos filhos, permitindo, assim, a realização dos seus projetos de vida.”. Em relação à união estável, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2019, 430) a conceituam como “(...) uma relação afetiva de convivência pública e duradoura entre duas pessoas, do mesmo sexo ou não, com o objetivo imediato de constituição de família.”. O Código Civil Brasileiro de 2002 estabelece as disposições gerais do casamento. De acordo com o artigo 1.511, “O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges.”. Nesse sentido, a CRFB/88 também é clara ao determinar que, em seu artigo 226, § 5º, “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.”. No mesmo sentido, os ilustres autores Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2019) entendem que na relação conjugal ocorre a incidência do princípio constitucional da isonomia em relação aos direitos e deveres dos cônjuges, que devem ser analisados de modo igualitário. No que diz respeito à relação conjugal, vale a pena ressaltar que o Código Civil Brasileiro de 2002 estabelece os deveres resultantes da união entre duas pessoas. É o que determina a inteligente redação do art. 1.566, in verbis: 125A POSSIBILIDADE DE INDENIZAR EM FACE DA INFIDELIDADE VIRTUAL Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges: I - fidelidade recíproca; II - vida em comum, no domicílio conjugal; III - mútua assistência; IV - sustento, guarda e educação dos filhos; V - respeito e consideração mútuos. O dever de fidelidade recíproca está ligado à noção de lealdade, ainda que não se confundam. A lealdade pode ser compreendida como uma qualidade de caráter da pessoa, que está atrelada não apenas a um comprometimento físico, mas também moral e espiritual entre os parceiros, com o objetivo de preservar a verdade intersubjetiva; de outro lado, a fidelidade possui dimensão restrita à exclusividade da relação afetiva e sexual. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2019). Dessa forma, compreende-se que a violação desse dever, independentemente de o adultério não ser considerado mais como crime, poderá acarretar consequências jurídicas e, sobretudo, indenizatórias, com objetivo de reparar aquele que de forma direta sofreu danos em decorrência da falta de fidelidade de um dos consortes, ainda que o dever de fidelidade não seja mais utilizado como requisito para separação judicial. Para Sílvio de Salvo Venosa (2017, p. 158), “A transgressão dos deveres conjugais pode gerar danos indenizáveis ao cônjuge inocente.”. No entanto, o ordenamento jurídico brasileiro não estabelece de forma positivada a aplicação do instituto do dano moral de forma presumida nos casos de infidelidade conjugal. Todavia, a incidência desse instituto tem sido reconhecida e aplicada no caso concreto, conforme abaixo será apresentado. Cumpre destacar que o referido doutrinador acima se posiciona no sentido de que o descumprimento de um dos deveres conjugais, por si só, não deve configurar dano moral, devendo analisar-se o caso concreto. Da mesma forma, não será todo e qualquer tipo de infidelidade 126 Amanda Cristina Lima | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo passível de indenização, posicionamento esse contrário aos interesses do presente trabalho, a saber: buscar demonstrar que o dano moral deve ser presumido em situações de infidelidade. Conforme informação colhida no site da Câmara dos Deputados (2016), o deputado Rômulo Gouveia (PSD/PB) tentou, por meio do projeto de Lei. 5.716/16, incluir o art. 927-A no Código Civil Brasileiro, com a finalidade de transformar em norma o que vem sendo objeto de discussões pelos magistrados, no campo do Direito de Família, cuja redação é a seguinte: “Art. 927-A. O cônjuge que pratica conduta em evidente descumprimento do dever de fidelidade recíproca no casamento responde pelo dano moral provocado ao outro cônjuge.”. Ao analisar o texto do artigo proposto pelo deputado acima mencionado, observa-se que o objetivo do referido dispositivo era determinar que a simples comprovação da infidelidade seria suficiente para aplicar o dano moral, que, neste contexto, independe de comprovação do efetivo dano experimentado pelo cônjuge. O projeto de lei encontra-se arquivado, haja vista as divergências nos entendimentos dos tribunais. Contudo, mesmo diante de vários entendimentos jurisprudenciais divergentes, bem como dos diversos entendimentos doutrinários, nota-se que o Direito das Famílias, além da aplicação dos princípios constitucionais, vem integrando os princípios da responsabilidade civil, com o escopo de responsabilizar aquele que infringir o dever de fidelidade previsto no CCB, ainda que de forma limitada. 3 Aplicação dos princípios constitucionais à relação conjugal Os princípios, fontes secundárias do Direito, são importantes mecanismos e de grande relevância na aplicação do Direito. O ordenamento jurídico brasileiro comporta inúmeros princípios. Alguns estão explícitos na CRFB/88, como também nas normas infraconstitucionais, e outros estão implícitos. 127A POSSIBILIDADE DE INDENIZAR EM FACE DA INFIDELIDADE VIRTUAL No presente trabalho, não serão esgotados todos os princípios aplicáveis ao Direito das Famílias, mas apenas aqueles que estão intimamente ligados à relação conjugal, quais sejam: o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e o da Igualdade. 3.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é fundamento republicano previsto no art. 1º da CRFB/88, o qual determina que: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana; A CRFB/88 estabelece também em seu art. 226, §6º, que o planejamento familiar é fundado no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Ressalte-se que esse Princípio pode ser compreendido como “um atributo da pessoa humana pelo simples fato de alguém ser humano, se tornando automaticamente merecedor de respeito e proteção, não importando sua origem, raça, sexo, idade, estado civil ou condição sócio-econômica” (MOTTA, 2018, p. 1). Conforme preleciona Rolf Madaleno (2017, p. 105): [...] a grande reviravolta surgida no Direito de Família com o advento daConstituição Federal foi a defesa intransigente dos componentes que formulam a inata estrutura humana, passando a prevalecer o respeito à personalização do homem e de sua família, preocupado o Estado Democrático de Direito com a defesa de cada um dos cidadãos. E a família passou a servir como espaço e instrumento de proteção à dignidade 128 Amanda Cristina Lima | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo da pessoa, de tal sorte que todas as esparsas disposições pertinentes ao Direito de Família devem ser focadas sob a luz do Direito Constitucional. [...] Nesse sentido, pode-se afirmar que a Constituição Federal estabelece, em seu corpo textual, a observância do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, o que foi um verdadeiro avanço para que seja respeitada a personalidade do homem e de sua família e, sobretudo, as demais normas devem ser pautadas respeitando este Princípio, que é inerente a cada ser humano. Cabe dizer que tal Princípio compreende exclusivamente à proteção humana, passando o ser humano a ter tratamento primordial. Para os ilustres doutrinadores Cristiano Chaves de Faria, Nelson Rosenvald e Felipe Peixoto Braga Netto (2019, p. 38): A dignidade da pessoa humana seria um juízo analítico revelado a priori pelo conhecimento. O predicado (dignidade) que atribuo ao sujeito (pessoa humana) integra a natureza deste e um processo de análise o extrai do próprio sujeito. Sendo a pessoa um fim em si – jamais um meio para se alcançar outros desideratos –, devemos ser conduzidos pelo valor supremo da dignidade. Nesse sentido, verifica-se que o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é inerente a cada ser. Logo, como fundamento republicano, deve ser observado na relação conjugal (que tem por finalidade a constituição de família), com o objetivo de evitar que os excessos cometidos por um dos cônjuges/companheiros causem prejuízos irreparáveis ao seu consorte. Assim, os deveres da relação conjugal devem ser pautados na Dignidade da Pessoa Humana. Logo, aquele que praticar atos de infidelidade estará atacando à dignidade da pessoa humana. 129A POSSIBILIDADE DE INDENIZAR EM FACE DA INFIDELIDADE VIRTUAL 3.2 Princípio da Igualdade na Relação Conjugal O Princípio da Igualdade, que é aplicado na relação conjugal, tem o escopo de garantir um tratamento igualitário entre homens e mulheres, com o objetivo de alcançar à justiça. Portanto, na atualidade, o homem não mais se sobrepõe à mulher. Ambos são sujeitos de direitos e deveres em igualdade de condições, respeitadas às situações de desigualdades. De acordo com Sílvia Patrícia Mota Mar (2017, p. 21), em relação à igualdade, a Constituição Federal identifica duas vertentes, quais sejam: [...] a igualdade material, tipo de igualdade em que todos os seres humanos recebem um tratamento igual ou desigual, de acordo com a situação. Quando as situações são iguais, deve ser dado um tratamento igual, porém quando as situações se tornam adversas é importante que exista um tratamento diferenciado. E igualdade formal, consistindo em conceder a homens e mulheres e todos os cidadãos brasileiros tratamento idêntico, de acordo com o art.5º, da CRFB. Ou seja, significa dizer que, de forma geral, todos os cidadãos devem ser tratados de forma igualitária. Todavia, cumpre registrar que devem os iguais ser tratados de acordo com suas igualdades, e os desiguais de acordo com suas desigualdades, de maneira a evitar injustiças. A CRFB/88 é precisa em seu art. 5º, I, ao determinar que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, os quais se estendem à relação conjugal, de forma a garantir o cumprimento dos deveres desta. Não menos importante, o Código Civil Brasileiro, ao tratar do Direito das Famílias, consagra o Princípio da Igualdade em seu texto normativo, que se apoia no Princípio da Igualdade de Direitos e Deveres dos Cônjuges, prescrito no art. 1.511. O art. 1.567 destaca a mútua colaboração na condução da relação conjugal e o art. 1.566 estabelece os 130 Amanda Cristina Lima | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo deveres recíprocos, que devem ser exercidos pelos consortes de forma igual na relação conjugal. Assim, nota-se que tanto o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana quanto o Princípio da Igualdade são importantes fontes que devem ser observadas na relação conjugal, com o objetivo de reparar os excessos cometidos por um dos companheiros que, de forma direta ou indireta, causar prejuízos, ainda que exclusivamente moral. 4 Os relacionamentos virtuais A constante evolução dos meios de comunicação fez surgir um novo meio de se relacionar amorosamente, na medida em que criou formas que possibilitam até mesmo a visualização em tempo real dos comunicantes, por meio de celulares, tablets, notebooks, dentre outros, por meio de redes sociais, aplicativos e diversos sites de relacionamento, o que vem invadindo cada dia mais o domicílio familiar. De acordo com Maria Berenice Dias (2016, p. 298): A rede mundial de computadores fez surgir o espaço virtual que gerou a queda de todas as fronteiras e invadiu todos os lares, permitindo, com incrível agilidade, a comunicação em momento real. Assim, a internet, em pouco tempo, transformou-se no mais veloz, eficiente, prático e econômico meio para as pessoas se corresponderem. A comunicação virtual tornou-se um convite a uma nova forma de socialização. Por outro lado, a possibilidade de limitar o acesso às caixas de correspondência por meio de senhas, garante segurança e privacidade, tornando a troca de mensagens, músicas, fotos etc., um meio relativamente seguro para manter contatos reservados. Extrai-se que a internet criou um novo modelo de socialização, o que vem facilitando a interação entre os interlocutores, que a utilizam 131A POSSIBILIDADE DE INDENIZAR EM FACE DA INFIDELIDADE VIRTUAL para diversas finalidades, como trabalhos, pesquisas, entretenimento, diversão (jogos) e, especialmente, para estabelecer vínculos amorosos, os quais, em determinados momentos, acabam envolvendo pessoas que já possuem um vínculo conjugal. Os relacionamentos virtuais permitem a criação de fantasias entre os interlocutores, mesmo que não haja contato físico entre ambos, bastando apenas ter em mão um celular, um computador ou qualquer outro aparelho de comunicação, para que seja estabelecido um diálogo virtual. Compreende-se que o interlocutor tem a discricionariedade para escolher qual ferramenta será utilizada, o que pode ser feito por meio de uma ligação direta, por mensagens de texto, vídeo-chamada ou troca de imagens. Nesse contexto, identifica- se que o contato pessoal passou a ser substituído pelo mundo imaginário que os diversos programas interativos proporcionam para os seus usuários. Conforme destaca Maria Berenice Dias (2016, p. 299): A correspondência virtual se presta, como nenhum outro meio, à fuga da realidade frustrante. Abriram-se, assim, as portas para encontros, confidências e intimidades, tudo protegido pelo anonimato. No campo dos relacionamentos afetivos, o uso do computador possibilitou a utilização do véu virtual, rompendo com a necessidade antes inafastável do contato físico. Mas como não há “crime” perfeito, de modo bastante frequente acabam os parceiros descobrindo que seus cônjuges, companheiros ou namorados mantêm vínculos afetivos bastante intensos, íntimos e até tórridos no interior do próprio lar. Muitas vezes, na presença desatenta do par. Um dos fatores que aceleram a quantidade de relacionamentos virtuais é justamente a facilidade com que a internet os permite, uma vez que a pessoa não precisa nem sair de sua residência para estabelecer 132 Amanda Cristina Lima | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo diálogos e suprir suas carências, podendo, até mesmo, sem qualquer contato físico (conjunção carnal) com a pessoa envolvida, satisfazer seus desejos sexuais (sexo virtual). 4.1 A infidelidade virtual Com o avanço tecnológico dos meios de comunicação, surgiu uma nova modalidadede infidelidade, qual seja, a virtual. Isso se dá devido à facilidade que, atualmente, as pessoas encontram em se relacionar com outras pessoas por meio das diversas ferramentas que os meios informatizados permitem, como, por exemplo, Whatsapp, Facebook e Instagram. Cumpre registrar que grande parcela dos consortes que iniciam uma conversa, via meios de comunicações disponíveis, têm em mente que, em tal conduta, não há problema algum, por não haver contato físico entre os interlocutores; logo, tratam a questão como não sendo uma espécie de infidelidade, o que é manifestamente paradoxal, uma vez que, quando o cônjuge/companheiro traído virtualmente descobre tal conduta, sente-se ofendido, desonrado e, especialmente, desrespeitado, o que pode causar vários transtornos. Segundo o ilustre doutrinador Rolf Madaleno (2017, p. 291): A infidelidade também surge na sua versão virtual, quando um relacionamento erótico-afetivo é entretido através da Internet e suas inúmeras redes sociais, e, se a comunicação permitir, pode gerar encontros ortodoxos que terminem em intercurso sexual, consumando-se o adultério. Ou seja, percebe-se que a infidelidade é reconhecida em sua esfera virtual, e que a comunicação via meios eletrônicos pode sair dessa esfera, podendo, assim, estabelecer um contato físico entre os comunicantes, passando de uma fantasia virtual para um contato físico. 133A POSSIBILIDADE DE INDENIZAR EM FACE DA INFIDELIDADE VIRTUAL Nesse sentido, tem se posicionado Rof Madaleno (2017, p. 291-292), ao prescrever que: A linha divisória entre a infidelidade material e moral, sendo que nessa última se encontra a infidelidade virtual, é que os laços eróticos e afetivos são mantidos diante da tela de um telefone celular, de um tablet ou de um computador, sendo alimentados rotineiramente, através de uma fantasia que pode sair do espaço virtual e levar ao contato físico e às relações sexuais de adultério. São variáveis as causas motivadoras dos relacionamentos virtuais, alguns porque se aventuram na prática de conhecer outras pessoas, enquanto outros buscam vencer o tédio e a solidão, e existem aqueles que buscam uma maior gratificação em seus relacionamentos pessoais, mas sempre representando uma inegável infidelidade. A evolução dos meios de comunicação permitiram muitos benefícios, porém, como nem tudo são flores, aqueles, quando não utilizados de forma correta, podem causar prejuízos a outrem. É o que acontece com a pessoa que é vítima de uma infidelidade virtual e tem sua honra abalada de forma vexatória, quando um dos consortes não cumpre com o dever de fidelidade, colocando em jogo a dignidade da pessoa que com ele estabeleceu um vínculo conjugal. Para Luana Lisenfeld (2017, p. 22), “(...) a infidelidade virtual é uma realidade que invade domicílios familiares, com confirmados efeitos na vida matrimonial. Essa infidelidade consiste em ligações amorosas com pessoas diferentes daquelas com quem se mantêm um relacionamento conjugal.”. Em outras palavras, significa dizer que a infidelidade virtual é o estabelecimento de um vínculo extraconjugal, por meios eletrônicos (celulares, notebooks, etc.), que permitem a interação de um dos consortes com pessoa(s) diferente daquela com quem se estabeleceu o dever de fidelidade, surgindo, assim, uma vez demonstrado o constrangimento suportado pelo consorte (traído), o dever de indenizar. 134 Amanda Cristina Lima | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo De acordo com o que estabelece Maria Berenice Dias (2016, p. 156): O princípio da boa-fé objetiva vem se infiltrando no direito das famílias. Ainda que tenha origem negocial, direciona-se à superação de sua última fronteira: a das relações existenciais. O dever de lealdade que se consubstancia na proibição de comportamento contraditório lastreia-se no princípio da confiança, que tem por fundamento o afeto. Uma das grandes discussões é se os relacionamentos virtuais podem se enquadrar como infração ao dever de fidelidade, visto que surgem argumentos no sentido de questionar se esse dever alcança o plano virtual, em virtude de alguns entenderem inexistir sexo no plano virtual. Nesse sentido, é o posicionamento de Valéria Silva Galdino Cardim (2012, p. 91): Ressalte-se que a infidelidade virtual não caracteriza adultério, pois este consiste no encontro entre duas pessoas de sexos diversos para manter conjunção carnal, enquanto aquela viola o disposto no inciso V do art. 1566, ou seja, o respeito e a consideração mútua se for praticada de forma reiterada por um dos cônjuges, o que torna insuportável a vida em comum, justificando o ajuizamento do divórcio. Observa-se que, para a autora acima citada, a infidelidade virtual está ligada ao dever de respeito e consideração mútuos entre os cônjuges, e não ao dever de fidelidade recíproca. Já os ilustres doutrinadores Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2019, p. 296) compreendem que: A ruptura do dever de fidelidade poderá se dar de diversas maneiras, desde que se constate a convergência de um 135A POSSIBILIDADE DE INDENIZAR EM FACE DA INFIDELIDADE VIRTUAL terceiro elemento não autorizado na esfera do casal, em espúria relação afetiva ou sexual com um dos cônjuges. Com isso, temos que não se rompe a fidelidade apenas mediante a conjunção carnal com amante. De maneira alguma. Carícias, afagos, conversas íntimas, enfim, todo comportamento que, de fato, demonstre invasão à esfera de exclusividade de afeto dos consortes, poderá caracterizar a infidelidade. Por conseguinte, destacam que: [...] é inteiramente improcedente o argumento daqueles que, unidos pelo matrimônio, imaginam estar fazendo “algo inocente”, quando mantêm íntimos diálogos com o seu amante, por meio da internet. Embora, tecnicamente, adultério não seja, dada a ausência de contato físico, a infidelidade moral, grave da mesma maneira, é de clareza meridiana! (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2019, p. 302) Dessa forma, observa-se que vários são os entendimentos em relação à infidelidade virtual. Alguns a reconhecem como dever de fidelidade; outros, não. Entretanto, o dever de fidelidade não deve ser compreendido apenas com o contato físico (adultério). Ele vai além da mera conjunção carnal, na medida em que a traição, ainda que no campo virtual, é conduta desonrosa e desleal que coloca o consorte traído em posição de fragilidade. Portanto, merece, sim, ser responsabilizado aquele que praticar um ato de infidelidade contra seu parceiro. 4.2 Aplicação do dano moral à infidelidade virtual O anonimato nos relacionamentos virtuais possibilitou a incidência da infidelidade virtual, que, para aplicação do dano moral, segundo entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, deve ser 136 Amanda Cristina Lima | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo devidamente comprovada, respeitando-se alguns requisitos exigidos em lei, não sendo aplicado de forma ilimitada. O Código Civil de 2002 estabelece o dever de fidelidade como uma obrigação. Por conseguinte, sua violação pode ser compreendida como ato ilícito. Nesse sentido, vale mencionar que a conduta de infidelidade virtual pode ser enquadrada no que dispõe o art. 927 (“Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.”), o art. 186 (“Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”) e o art. 187 (“Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes, ambos do referido diploma legal.”), todos do Código Civil. Segundo ensinamentos de Maria Berenice Dias (2016, p. 159): Para a configuração do dever de indenizar não é suficiente que o ofendido demonstre seu sofrimento. Somente ocorre a responsabilidade civil se presentes todos os seus elementos essenciais: dano, ilicitude e nexo causal.Não cabe indenizar alguém pelo fim de uma relação conjugal. Pode-se afirmar que a dor e a frustração, se não são queridas, são ao menos previsíveis, lícitas e, portanto, não indenizáveis. Assim, compreende-se que o dano moral decorre da prática de um ato ilícito, que cause dano a outrem, comprovada a prática dolosa ou culposa do ato, observando-se a existência destes pressupostos: a prática de ato ilícito, ofensa à honra ou à dignidade da pessoa e o nexo causal. Logo, percebe-se que o dano moral na infidelidade, em qualquer das modalidades (real ou virtual), não é aplicado in re ipsa, ou seja, o dano moral não é presumido. Nesse sentido, tem se posicionado o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO). Veja-se: 137A POSSIBILIDADE DE INDENIZAR EM FACE DA INFIDELIDADE VIRTUAL Apelação Cível. Ação de divórcio consensual c/c indenização por danos pelo abandono afetivo. I - Abandono afetivo e infidelidade. Não comprovação do ato ilícito. Inexistência do dever de reparar o dano moral. É cediço que a infidelidade conjugal, por si só, embora constitua violação dos deveres do casamento, não gera o dever de indenizar, sendo necessária a prova de atos lesivos à honra da vítima. Afigura-se natural que o fim de um relacionamento conjugal, com a desestruturação da família, cause tristezas, desestabilização emocional e, muitas vezes, abalos psíquicos. Mas, por mais indesejados e desastrosos estes acontecimentos, sua ocorrência, por si só, não enseja a indenização por dano moral ao cônjuge traído. II - Usufruto do bem adquirido na constância do casamento. Regime de comunhão parcial de bens. A aquisição do único bem objeto da partilha pelo casal se deu na constância do casamento, impondo-se, pois, a manutenção da sentença que decidiu pelas sua partilha sem direito ao usufruto pela apelante, pois trata-se do único do bem adquirido pelo casal, sendo ambos os cônjuges idosos e recebem proventos de aposentadoria, de maneira que os dois necessitam do bem para refazerem suas vidas agora separadamente, devendo ser desprovido o apelo neste ponto. III - Litigância de má- fé formulada nas contrarrazões do apelo. Inadmissibilidade. Não se conhece do requerimento de condenação à litigância de má-fé formulado em sede de contrarrazões, que deverá ser formulado em via própria e adequada. (Súmula nº 27 do TJGO). Apelação Cível conhecida e desprovida. (TJGO, Apelação (CPC) 5282030-88.2018.8.09.0091, Rel. CARLOS ALBERTO FRANÇA, 2ª Câmara Cível, julgado em 09/10/2019, DJe de 09/10/2019) (grifo nosso) Nessa mesma linha de raciocínio é o entendimento do Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais-MG, veja-se: 138 Amanda Cristina Lima | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo EMENTA: APELAÇÃO ADESIVA - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL - PUBLICAÇÃO OFENSIVA EM REDE SOCIAL - DANO MORAL CONFIGURADO - FIXAÇÃO DO VALOR DA INDENIZAÇÃO - PRUDÊNCIA. A fixação do quantum do dano moral deve se ater: (1) à capacidade/possibilidade daquele que vai indenizar, já que não pode ser levado à ruína; (2) suficiência àquele que é indenizado, pela satisfação da compensação pelos danos sofridos. V.V. (RELATOR) 1. Não existe um conceito objetivo do que vem a configurar o ato de infidelidade, uma vez que se trata de viciosidade materializada a principio apenas no campo psicológico do adúltero, e que pode se manifestar no mundo fenomênico sob diversas formas e graus de intensidade do contato com o(s) terceiro(s). 2. Assim, não se pode afirmar com toda a precisão se ele (o ato de infidelidade) se consuma tão somente na conjunção carnal do adúltero com terceiro, ou mesmo se está configurado apenas pela projeção ou prospecção hipotética, imaginária e/ou virtual do cônjuge infiel. 3. A despeito da dubiedade acerca da forma ou momento no qual se consuma a violação do dever de fidelidade, com relação à questão controvertida, incide a responsabilidade na sua modalidade subjetiva, assentada nos artigos 186 e 927, caput, do Código Civil, devendo a respectiva a pretensão de indenização por dano moral ser interpretada à luz do elemento culpa (em seu sentido amplo), o que impõe a análise da intenção de um cônjuge em ridicularizar ou expor/lesar o outro. 4. Hipótese em que, a despeito de o teor da transcrição das mensagens virtuais de conteúdo/ conotação nitidamente sexual(is) envolvendo o cônjuge e o terceiro, não se infere das demais circunstâncias o elemento volitivo que demonstre sua intenção de ridicularizar ou expor dolosamente o marido. 5. Por outro lado, a jurisprudência 139A POSSIBILIDADE DE INDENIZAR EM FACE DA INFIDELIDADE VIRTUAL é no sentido de que veiculação de conteúdo ofensivo ou pejorativo em redes sociais (ou outro instrumento de mídia), com o escopo de expor o cônjuge ou parceiro é suscetível de responsabilização civil por dano moral. 6. Pertinente à quantificação do dano, o artigo 944 do Código Civil nos informa que, como regra, a indenização mede-se pela extensão do prejuízo causado. Sabe-se que, quanto ao dano moral, inexistem critérios objetivos nesse mister, tendo a praxe jurisdicional e doutrinária se balizado em elementos como a condição econômica da vítima e do ofensor, buscando ainda uma finalidade pedagógica na medida, capaz de evitar a reiteração da conduta socialmente lesiva. (TJMG- Apelação Cível 1.0572.13.000343-5/001, Relator(a): Des.(a) Otávio Portes , 16ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 08/11/2017, publicação da súmula em 22/11/2017) (grifo nosso) Vale a pena destacar que o projeto de lei apresentado na Câmara dos Deputados pelo Deputado Rômulo Gouveia, com a inserção do art. 927-A no Código Civil, tinha, como propósito, permitir que a responsabilização do cônjuge traidor fosse presumida. Logo, o procedimento para fazer com que o consorte que cometeu ato de infidelidade indenizasse a pessoa traída não seria tão dificultoso, porquanto, conforme se verifica do entendimento dos tribunais, não basta o sofrimento que a pessoa sente em seu íntimo para que seja aplicado o instituto do dano moral em casos de infidelidade. Ballone (2011, p. 1) destacou que: Entre as vivências capazes de desencadear reações depressivas o conhecimento da traição é uma das mais fortes. Geralmente a pessoa traída ou deixada pela outra se mobiliza fortemente pela frustração da perda, pela constatação da mentira, pela deslealdade e, não menos importante, pelo vexame e constrangimento social e familiar. O sentimento mais imediato que a infidelidade provoca, no entanto, é uma 140 Amanda Cristina Lima | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo mistura de mágoa, contrariedade, ira, arrependimento, ânsia de vingança ou revanche. A descoberta da infidelidade pode ser uma das mais sofríveis e devastadoras vivências. Entretanto, quando se fala em infidelidade, deve se compreender que aquele que foi traído não sofre apenas pela quebra das regras inerentes ao matrimônio, mas pela perda da confiança, da reciprocidade, da lealdade da pessoa que escolheu para dividir a vida. Tal conduta, além de prejuízos à honra e a dignidade da pessoa, pode também acarretar prejuízos psicológicos, de forma subjetiva, na medida em que apenas quem passa por tal situação consegue mensurar a dor e o sofrimento ocasionado pela infidelidade de seu cônjuge/companheiro. É o que revela o Dr. Cristiano Nabuco (2015) ao informar que: Estudo publicado no Sexual Addiction & Compulsivity re- velou que cônjuges que possuem um alto padrão de infide- lidade, quando confrontados aos eventos de deslealdade de seus parceiros, experimentam sintomas de estresse seme- lhantes aos vividos pelos indivíduos com o transtorno de es- tresse pós-traumático – aquele presente em pessoas que so- freram com eventos como sequestros, guerras ou cataclismas naturais – um verdadeiro trauma. Não é a toa que pessoas que passaram por essa experiência descrevem a descoberta como se “uma faca tivesse atingido seu coração”. Assim, o dano emocional causado pela infidelidade pode ser de difícil superação,mesmo com a ajuda especializada. Para Maria Berenice Dias (2016, p. 156): A busca de indenização por dano moral transformou-se na panaceia para todos os males. Há uma acentuada tendência de ampliar o instituto da responsabilização civil. O eixo desloca-se do elemento do fato ilícito para, cada vez mais, 141A POSSIBILIDADE DE INDENIZAR EM FACE DA INFIDELIDADE VIRTUAL preocupar-se com a reparação do dano injusto. De outro lado, o desdobramento dos direitos de personalidade faz aumentar as hipóteses de ofensa a tais direitos, ampliando as oportunidades para o reconhecimento da existência de danos. Visualiza-se abalo moral diante de qualquer fato que possa gerar algum desconforto, aflição, apreensão ou dissabor. Esta tendência acabou se alastrando às relações familiares, na tentativa de migrar a responsabilidade decorrente da manifestação de vontade para o âmbito dos vínculos afetivos. Nota-se que houve uma ampliação do instituto da responsabilidade civil, de maneira a tentar evitar que injustiças cometidas no seio familiar fiquem isentas de uma possível indenização. Porém, diante do exposto, identifica-se que muitos casos de infidelidade passam sem qualquer penalidade para o traidor, tendo em vista que, em diversas situações, a pessoa, vítima da infidelidade, não consegue comprovar o dano da maneira que o judiciário exige, não bastando o sofrimento íntimo frente ao problema enfrentado. Conforme aborda Sílvia Patrícia Mota Mar (2017, p. 43-44): [...] a dificuldade em demonstrar as provas do dano sofrido nem sempre se dá de maneira fácil ou lícita, uma vez que para provar tal ilicitude é necessário comprovar a conduta de infidelidade virtual do outro consorte. De qualquer modo, a hipótese tem de respeitar a vedação ao uso de prova ilícita, garantida constitucionalmente (art. 5°, LVI da CRFB). Sendo assim, não se admite a prova que, obtida ilicitamente, demonstre a existência das relações extraconjugais. A descoberta da infidelidade virtual pelo cônjuge traído se dá, normalmente, na medida em que o mesmo acessa algum tipo de serviço de comunicação por internet utilizado pelo outro mediante tentativa de colocação de senha ou via softwares que auxiliam ao acesso (não permitido) a determinada informação, ou seja, o cônjuge traído invade o sítio virtual 142 Amanda Cristina Lima | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo do traidor para angariar informações a respeito da traição e, neste aspecto, para o direito civil, a prova seria ilícita[...] Dessa forma, percebe-se que não é tarefa fácil comprovar a infidelidade virtual, tendo em vista a vedação que o ordenamento jurídico faz em relação ao uso da prova ilícita, ainda que seja verdadeira. Portanto, caberá ao julgador apreciar ou não a prova colhida pela vítima do ato de infidelidade. Assim, é notório que o ordenamento jurídico brasileiro precisa normatizar essa conduta que tende a se intensificar com o passar dos anos. A tendência é que o judiciário seja alvo de inúmeras ações questionando a responsabilização do cônjuge infiel. Em que pese o reconhecimento dos tribunais quanto à responsabilidade em face da infidelidade, esse é um tema que ainda deve ser alvo de muitas discussões, de modo a garantir melhor a responsabilidade de quem comete o ato de infidelidade. 5 Considerações finais Em decorrência da acelerada evolução dos meios de comunicação, aumenta-se cada dia mais a possibilidade de se relacionar com uma ou mais pessoas por meio de celulares, notebooks, tablets ou qualquer outro aparelho eletrônico, surgindo, assim, os chamados relacionamentos virtuais. Nesse novo meio de se relacionar, a princípio, não há contato físico entre os interlocutores, ficando apenas no campo da imaginação (fantasias). Muitos casos ultrapassam, entretanto, a esfera virtual, permitindo o contato físico dos envolvidos; por outro lado, em outros jamais se consuma o contato real. O grande problema é que nem todas as pessoas que se relacionam virtualmente estão livres para tal, uma vez que grande parte dos envolvidos, senão a maioria, possuem um vínculo conjugal, e praticam esse ato sem o conhecimento de seu cônjuge/companheiro, agindo de forma desleal, desrespeitosa e desonrosa, colocando em jogo a honra e a dignidade de quem com ele estabeleceu o compromisso de fidelidade. 143A POSSIBILIDADE DE INDENIZAR EM FACE DA INFIDELIDADE VIRTUAL Não há, no ordenamento jurídico brasileiro, norma específica para ser aplicada quando violado o dever de fidelidade. Todavia, o Direito das Famílias vem integralizando a responsabilidade civil no seio familiar, especialmente o dano moral, quando houver séria lesão ao íntimo da pessoa. Quando se fala em infidelidade, virtual ou não, deve se compreender que aquele que foi traído não sofre apenas pela quebra das regras inerentes ao matrimônio, mas pela perda da confiança, da reciprocidade, da lealdade da pessoa que escolheu para dividir a vida. Tal conduta, além de prejuízos à honra e a dignidade da pessoa, pode também acarretar prejuízos psicológicos. Constatou-se que há entendimentos dos tribunais brasileiros no sentido de que a violação do dever de fidelidade não constitui, por si só, ofensa à honra ou à dignidade do traído, a ensejar o dever de indenizar, isso porque se entende que o fracasso de um relacionamento conjugal é algo que qualquer um pode vivenciar. Assim, compreende-se que essa modalidade de traição viola não só o dever de fidelidade, como pode atingir o direito de personalidade da pessoa vítima da traição. Como o dano moral é uma forma de punir o ofensor, tendo uma pessoa sua personalidade afetada pela infidelidade, a indenização é a medida que deve ser aplicada. 6 Referências BALLONE, GJ. Depressão Pós-Traição. Publicado em 2011. Disponível em: <http://psiqweb.net/index.php/depressao-pos-traicao/>. Acesso em: 19 de set. de 2019. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituicao.htm>. Acesso em: 28 de set. de 2019. 144 Amanda Cristina Lima | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo _______. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/ L10406.htm>. Acesso em: 28 de set. de 2019. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei 5716/2016. Dep. Rômulo Gouveia. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/ fichadetramitacao?idProposicao=2090162>. Acesso em: 28 de set. de 2019. CARDIN, Valéria Silva Galdino. Dano moral no direito de família. São Paulo: Saraiva, 2012. DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Peixoto Braga. Curso de direito civil: responsabilidade civil. 6ª. ed. rev. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2019. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito civil. Direito de Família. v. 6. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019. LIESENFELD, Luana. Infidelidade virtual e indenização por danos morais. Disponível em: <file:///C:/Users/User/Desktop/ TCC%20Amanda/LIESENFELD-L.-INFIDELIDADE-VIRTUAL-E- INDENIZAÇÃO-POR-DANOS-MORAIS-1.pdf>. Acesso em: 25 de out. de 2019. MADALENO, Rolf. Direito de Família. 7ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Saraiva, 2017. 145A POSSIBILIDADE DE INDENIZAR EM FACE DA INFIDELIDADE VIRTUAL MAR, Sílvia Patrícia Mota. Infidelidade Virtual e a Possibilidade de Indenização por Dano Moral. Disponível em: <file:///C:/Users/ User/Desktop/TCC%20Amanda/2017.Monografia_Silvia%20Patricia_ INFIDELIDADE%20VIRTUAL%20E%20A%20POSSIBILIDADE%20 APLICACAO%20DO%20INSTITUDO%20DO%20DANO%20 MORAL.pdf>. Acesso em: 22 de out. de 2019. MOTTA, Artur Francisco Mori Rodrigues. A dignidade da pessoa humana e sua definição. Disponível em: http://www.ambito-juridico. com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=14054. Acesso em: 10 out. 2019. NABUCO, Cristiano. O dano emocional da infidelidade.Disponível em: <https://cristianonabuco.blogosfera.uol.com.br/2015/02/11/o- dano-emocional-da-infidelidade/>. Acesso em: 18 de nov. de 2019. TJGO. Tribunal de Justiça de Goiás. Apelação Cível nº 0124042- 29.2013.8.09.0006. 1ª Câmara Cível. Relator: Des. Orloff Neves Rocha. Data de Julgamento: 31/07/2018. Disponível em: <https://www.tjgo. jus.br/jurisprudencia/juris.php?acao=next#>. Acesso em: 03 de nov. de 2019. _______. Apelação (CPC) 5282030-88.2018.8.09.0091. Rel. Carlos Alberto França. 2ª Câmara Cível. Julgado em 09/10/2019. Disponível em: <https://projudi.tjgo.jus.br/BuscaArquivoPublico ?PaginaAtual=6&Id_ MovimentacaoArquivo=107353149&hash= 1503336958355171169869 10524893785217929 &CodigoVerificacao=true>. Acesso em: 18 de dez. de 2019. TJMG. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível nº 1.0572.13.000343-5/001. 16ª Câmara Cível. Relator: Des. Otávio Portes. Data de Julgamento: 22/11/2017. Disponível em: <https:// 146 Amanda Cristina Lima | Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia /pesquisaPalavrasEspelhoAcordao. d o ? & n u m e r o R e g i s t r o = 1 & t o t a l L i n h a s = 2&paginaNumero=1&linhasPorPagina=1&palavras=indeniza%E7ao %20por%20dano%20moral%20infidelidade%20 virtual&pesquisarPor =ementa&pesquisaTesauro =true&orderByData=1&pesquisaPalavras= Pesquisar&>. Acesso em: 06 de nov. de 2019. VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: família; 17ª. ed. São Paulo: Atlas, 2017. 147 CONTRIBUIÇÕES DO KARATÊ PARA O DESENVOLVIMENTO PSICOSSOCIAL DO INDIVÍDUO Karla Tereza de Castro Adriano Cielo Dotto Resumo: As teorias do desenvolvimento estudam a identidade, a moral, o desenvolvimento sensório-motor, o processamento emocional, a socialização, entre outros conceitos pertinentes para o estudo da complexa temática do desenvolvimento humano. Nesse contexto, as artes marciais, como o Karatê, podem ser um excelente suporte na formação biopsicossocial dos indivíduos, com pesquisas apresentando resultados notáveis de mudança de comportamento. Para povos orientais, a prática de atividades físicas está diretamente ligada com a forma de pensar, propiciando o fortalecimento do corpo e da mente, pois, nesta perspectiva, o controle do corpo significa o controle da mente. O praticante de Karatê deve internalizar as regras da arte marcial e utilizá-la em todos os âmbitos de sua vida. O Karatê apresenta, de maneira inquestionável, meios para a educação, que irão transformar comportamentos e fazer com que seus praticantes levem uma boa vida. Contudo, a figura do sensei é importante, sendo este a pessoa que passou pelo que as crianças e os adolescentes estão passando, podendo, desse modo, instruí-las. A prática do Karatê, quando iniciada desde criança, traz uma internalização mais rápida do significado dessa arte marcial, já 148 Karla Tereza de Castro | Adriano Cielo Dotto que a criança está em processo de formação de identidade, autoestima e ainda não enraizou seus valores. Os ensinamentos pautados nas regras do Karatê se tornarão a base de seus comportamentos, fortalecerão o superego e farão com que a criança cresça sabendo como resolver seus conflitos e a agir com respeito e humildade. Palavras-chave: Desenvolvimento Psicossocial. Comportamento. Karatê. 1 Introdução Vive-se em uma sociedade muito marcada pela presença do esporte, como atividade física para manutenção da saúde, estética ou como carreira profissional. A cultura do esporte está sendo cada vez mais incentivada por diversos meios, como ações das instâncias de governo, legislações de incentivo ao esporte e profissionais da área da saúde incentivando a prática constante de algum tipo de atividade física. A prática de atividade física, de forma geral, está também relacionada à imagem corporal, à sensação de se viver uma vida ativa e, em indivíduos mais próximos à velhice, está ligada à própria questão da autonomia. O esporte, por si só, já é um agente de prevenção de doenças, socialização, antiestresse, além de ajudar na construção da confiança e melhora da estima. Esportes que envolvem competições trabalham a tolerância, a perda e o lidar com frustrações. Todo esse conjunto auxilia no desenvolvimento emocional, psicológico e social do indivíduo. Dentro da vasta gama de modalidades esportivas, será destacado neste artigo o Karatê, espécie de arte marcial. A prática de uma arte marcial traz algo além dos benefícios do esporte, uma vez que o caminho marcial é constituído de conhecimento e ideologia voltados ao desenvolvimento mental e espiritual de seu praticante. Muito além dos benefícios físicos de qualquer esporte, são ínsitos às artes marciais o atuar com honra, com respeito e com integridade. 149CONTRIBUIÇÕES DO KARATÊ PARA O DESENVOLVIMENTO PSICOSSOCIAL DO INDIVÍDUO Sabe-se que o desenvolvimento humano possui várias teorias, sendo amplamente discutidas aquelas que veem o ser humano de maneira biopsicossocial e enfatizam a relação mútua entre ambiente, processos físicos, químicos e elétricos e a cognição, a qual se manifesta pelo comportamento e gera impactos no ambiente. Levando-se em conta que teorias do desenvolvimento estudam identidade, moral, desenvolvimento sensório-motor, processamento emocional, socialização, entre outros conceitos, uma arte marcial como o Karatê é um ótimo exemplo para mostrar todos esses conceitos na prática e revelar resultados notáveis de modelagem do caráter, acréscimo de valores, estratégias de enfrentamento, raciocínio, moldando características na personalidade de seus praticantes, principalmente crianças e adolescentes. O objetivo deste artigo é realizar um levantamento bibliográfico sobre o Karatê, alinhado a pesquisas de desenvolvimento humano, estabelecendo relação entre a ideologia marcial do Karatê e a relação entre as lições morais do esporte no desenvolvimento, a fim de verificar cientificamente como o Karatê influencia diretamente na vida de crianças e adolescentes. Foi realizada pesquisa de caráter qualitativo, a partir do levantamento bibliográfico em livros e artigos sobre as teorias do desenvolvimento humano, a doutrina do Karatê e a relação entre Karatê e desenvolvimento e Karatê e valores morais. Foram utilizados três livros sobre desenvolvimento humano, dos quais foram retirados os conceitos de desenvolvimento humano e abordagens teóricas psicodinâmica de Freud, teoria da aprendizagem de Vygotsky e Teoria bioecológica de Bronfenbrenner. Os livros sobre Karatê foram retirados de acervo pessoal, sendo utilizados os livros de Gichin Funakoshi, mestre que consolidou o Karatê no mundo, e, para apresentar as bases filosóficas dessa arte marcial, utilizou-se o Niju-Kun, o qual deve ser compreendido por todo Karateca, também escrito por Funakoshi. 150 Karla Tereza de Castro | Adriano Cielo Dotto A busca de artigos relacionados ao tema foi realizada no site Google Acadêmico, utilizando as palavras-chave: Karatê e Desenvolvimento, Karatê e Caráter e Karatê e Valores Morais. Inicialmente, foi realizado o levantamento dos artigos com o objetivo de analisar os resultados já publicados sobre o assunto e maior clareza sobre o tema. Em 13 páginas desse buscador, foram encontrados 122 artigos; apenas 15 artigos, porém, foram considerados com relevância para este trabalho. A seleção dos artigos se baseou nos seguintes critérios de inclusão: relevância para este trabalho e utilização das obras de Gichin Funakoshi e trabalhos que englobassem a ciência do desenvolvimento humano. Foram considerados ainda os seguintes critérios de exclusão: referencial teórico utilizado pelos autores diferentes do tema pesquisa, assunto divergente do tratado neste artigo, sendo selecionados 7 (sete) artigos. 2 O Karatê A origem das artes marciais é tão antiga que perpassa pela China em meados de 2.700 a.C.. Sensei Funakoshi (1998) relata o processo de desenvolvimento de técnicas de luta, sendo que a China era um país constantemente assolado pela guerra e, para defesa,era preciso criar novas formas de lutar. Nesse período, destacam-se três nomes: Ta- Shang Lao-ch’un, Ta-yi Chen-jen e Yuan Shih-t’ien, fundadores de três escolas primitivas de técnicas marciais, passadas para gerações futuras e aperfeiçoadas até obter-se as técnicas modernas. O Karatê surgiu em uma ilha, que se tornou parte do território japonês, chamada Okinawa. Segundo a autobiografia de Gichin Funakoshi, pai do Karatê moderno, “A origem do Karatê permanece impenetravelmente oculta pelas névoas da lenda, mas pelo menos conhecemos este fato: ele se encaixou e é amplamente praticado em toda a Ásia.” (FUNAKOSHI, 1994, p. 3). Vale ressaltar que, para os povos orientais, a prática de atividades físicas está diretamente ligada com a forma de pensar, em que fortalecer 151CONTRIBUIÇÕES DO KARATÊ PARA O DESENVOLVIMENTO PSICOSSOCIAL DO INDIVÍDUO o corpo é fortalecer a mente e controlar o corpo significa controlar a mente. Atualmente, com o avanço da ciência, identificou-se que é uma questão fisiológica, movimentar o corpo e aprender novas habilidades motoras faz o cérebro criar novas conexões, diz Martorell (2014). O karatê trabalha todos os músculos do corpo, desde os músculos externos à musculatura mais profunda, e transforma partes consideradas ineficientes para dar golpes em armas, como o uso da ponta dos dedos para atacar o osso esterno, garganta e costelas. Ajuda no desenvolvimento de coordenação motora, equilíbrio e agilidade, melhora o condicionamento cardiovascular, respiração e, por fim, com tantos benefícios à saúde, o sistema imunológico torna-se mais forte, elucida Funakoshi (1994). O controle do corpo e dos movimentos salienta o quanto é importante o sistema nervoso. Assim, pode-se dizer que o karatê desenvolve o sistema nervoso central e periférico, aguçando as habilidades motoras. A partir de 3 (três) anos, os avanços motores começam e primeiro se desenvolve as habilidades motoras grossas: O desenvolvimento das áreas sensoriais e motoras do córtex cerebral permite uma melhor coordenação entre aquilo que a criança quer fazer e aquilo que pode fazer. Uma vez que seus ossos e músculos estão mais fortes e sua capacidade pulmonar é maior, ela e capaz de correr, pular, escalar mais longe e mais rápido. (PAPALIA, 2013, p. 251). Desenvolver uma nova habilidade motora significa somar as habilidades adquiridas com as novas e, assim, criar capacidades mais complexas. As habilidades motoras finas se desenvolvem posteriormente e estão no controle de grupos musculares pequenos. Outro impacto do crescimento físico com a vida mental é evidenciado pela díade crescimento cerebral x desenvolvimento emocional, pois este é um processo bidirecional em que não apenas as experiências emocionais 152 Karla Tereza de Castro | Adriano Cielo Dotto são afetadas pelo desenvolvimento do cérebro, mas também podem causar efeitos duradouros na estrutura cerebral, revela Papalia (2013). Já em relação às questões morais, religiões e filosofias, como budismo e taoísmo, têm forte ligação com o Karatê e, mesmo assim, ele é praticado por pessoas com crenças no islamismo, hinduísmo e até no ocidente, onde se encontram marcantemente religiões cristãs, como descrito por Funakoshi (1994). No entanto, cabe ressalvar que, para os japoneses, os valores morais e éticos são aprendidos por meio da religião, não sendo o Karatê especificamente dono de uma filosofia. O que ocorre é que o mestre Funakoshi e seus sensei e os sensei que vieram antes deles praticavam a religião xintoísta, budista e taoísta. Para os ocidentais, tais religiões são estranhas. Assim, os ensinamentos e as regras do Karatê parecem vir puramente como filosofia. A exemplo, tem-se a vivência de Funakoshi (1994), quando ia à uma casa de banho pública, a atendente sempre o cumprimentava. Devido a essa gentileza, Funakoshi decidiu que os Karatecas devem sempre cumprimentar, demonstrando gentileza, agradecimento, humildade e respeito. Mas, para que essa prática fosse difundida por todo o mundo, de acordo com Santos (2016), foi necessário que Gichin Funakoshi, em 1902, fizesse uma apresentação de Karatê ao inspetor escolar na escola em que lecionava japonês. Desse modo, o Karatê se tornou parte do currículo escolar no Japão e posteriormente Funakoshi estruturou regras, como o uso do dogi1 e o sistema de graduação por faixas, tornando oficialmente o karatê um esporte. Até então, a prática dessa arte marcial era feita a portas fechadas e à noite, de maneira secreta, apenas para um seleto grupo de pessoas. No Brasil, com a imigração do Sensei Akamine, o Karatê começou a ser ensinado e, em 1956, o Sensei Mitsuki Harada abriu o primeiro dojo2 em São Paulo. No entanto, somente com Sadamo Uriu o Karatê ganhou popularidade. Gichin Funakoshi fez inúmeras contribuições literárias e desenvolveu o karatê a outro nível. Dentre suas obras, destaca-se o 1 Vestimenta usada para o treinamento do Karatê. 2 Local de treinamento. 153CONTRIBUIÇÕES DO KARATÊ PARA O DESENVOLVIMENTO PSICOSSOCIAL DO INDIVÍDUO Niju-Kun, os vinte mandamentos de um karateca, os quais, apesar de serem frases curtas, têm seus significados profundos. Devido à sua importância, eles serão o assunto do próximo tópico. 3 O Niju-Kun Sensei Funakoshi criou o Niju-Kun a partir dos ensinamentos de seus dois Sensei, Asato e Itosu. Após o treinamento físico, era ensinada a doutrina do To De3. Um karateca deve levar o código de ética para dentro e fora do tatame e entender o que significa o caminho das mãos vazias, caso contrário não será um lutador eficaz, um cidadão consciente e ativo e uma pessoa fiel a si mesma. Sem a ética e a moral do karatê, a pessoa será apenas alguém que sabe bater, inconsciente do que faz. A atenção despendida nos escritos de Funakoshi aos bons modos, com ênfase na prudência e humildade, parece ser coerente com o que julgava mais urgente destacar, naquele momento aos praticantes de caratê, conforme podemos observar quando cita alunos que pensam de maneira diferente. A recorrência a esses valores não deve, porém, ser confundida com passividade e conformismo. Há observações claras acerca da obrigação da luta pelo que é justo. (BARREIRA; MASSIMI, 2002, p 7). Quando a criança ou o adolescente está no dojo, ela entra em contato com o Sensei, o karatê e seus colegas. Assim, aprende qual o papel do Sensei, qual a função do karatê como luta e método de vida, bem como o papel de seus colegas de treino e o seu próprio, criando repertórios comportamentais duradouros, sendo incentivados a utilizá-los fora do dojo. Seria uma utopia acreditar que todos os praticantes de karatê seguem os valores morais e éticos ensinados pela arte marcial. Além 3 Antes de ser chamado de Karatê – “mãos vazias” –, essa arte marcial era conhecida como To-De - “mãos chinesas”. 154 Karla Tereza de Castro | Adriano Cielo Dotto do mais, a sociedade atual é diferente da sociedade em que Funakoshi e seus sensei viveram, mas, se se deseja aprender com esta arte marcial, deve-se esforçar para introduzi-la fora do dojo. Aquele praticante que se recusa a fazê-lo, começará a achar o treino cansativo, repetitivo, chato e, consequentemente, irá desvincular-se da pratica do karatê, elucida Funakoshi (1994). O Niju-Kun4 compreende as seguintes regras: 1 Não se esqueça de que o karatê deve iniciar com saudação e terminar com saudação; 2 No karatê não existe atitude ofensiva; 3 O karatê é um apoio à justiça; 4 Conheça a si próprio antes de julgar os outros; 5 O espírito é mais importante que a técnica; 6 Evitar o descontrole do equilíbrio mental; 7 Os infortúnios são causados pela negligência; 8 O karatê não se limita apenas à academia; 9 O aprendizado do karatê deve ser perseguido durante toda a vida; 10 O karatê dará frutos quando associado à vida cotidiana; 11 O karatê é como água quente. Se não receber calor constantemente, esfria; 12 Não pense em vencer, pense em não ser vencido; 13 Mude de atitude conformeo adversário; 14 A luta depende de como se usam os pontos fracos e fortes; 15 Imagine que os membros de seus adversários são como espadas; 16 Para cada homem que sai do seu portão, existem milhões de adversários; 17 No início os movimentos são artificiais, mas com a evolução tornam-se naturais; 18 O treino das técnicas deve ser de acordo com o movimento correto, mas na aplicação tornam-se diferentes; 4 A língua japonesa não utiliza o plural com a letra “s”. 155CONTRIBUIÇÕES DO KARATÊ PARA O DESENVOLVIMENTO PSICOSSOCIAL DO INDIVÍDUO 19 Não se esqueça de aplicar corretamente: alta e baixa intensidade de força, expansão e contração corporal, técnicas lentas e rápidas; 20 Estudar, praticar e aperfeiçoar-se sempre. Utilizar normas como o Niju-Kun para ensinar o karatê às crianças e aos adolescentes pode funcionar, conforme abordado pela Psicanálise. Segundo Papalia (2013), a criança nasce somente com o Id - o princípio do prazer, buscando apenas satisfação de seus desejos, chamados de pulsões. Por volta de seu primeiro ano de vida, passa a desenvolver o Ego, o princípio da realidade, e este tenta equilibrar as pulsões entre o que é aceitável e inaceitável. Por volta dos cinco anos, o Superego começa a se desenvolver: valores morais, o certo e o errado. Uma criança que inicia o karatê por volta dessa idade terá benefícios na construção de seu Superego, desenvolvendo valores e ética propícios para uma boa convivência social e equilíbrio mental. Para Funakoshi (1998), o karatê traz princípios de educação para o praticante, e isso será uma base para se viver em sociedade, de forma que poderá contribuir para se ter um futuro melhor. Sendo assim, em um de seus próprios livros, Funakoshi (2012) explica os vinte Niju-Kun. Princípios como o primeiro, o oitavo, o nono, o décimo e o décimo primeiro Niju-Kun fazem referência ao respeito para com o outro e seu meio social e ambiental, humildade e gentileza, que devem se estender para fora da área de treino, ou seja, a vida. O segundo e o terceiro Niju- Kun fazem alusão à não violência, pois o karatê não é uma forma de causar problemas, e sim de solucioná-los da forma mais pacífica possível, sendo o confronto físico o último recurso. Contudo, a pessoa não deve ser passiva, e sim ter uma postura ativa. O sexto Niju-Kun estabelece o equilíbrio emocional, relacionado à inteligência emocional, ao saber lidar com as emoções e entendê-las. O sétimo Niju-Kun ensina a aprender que as dificuldades da vida muitas vezes são impostas por si mesmo e, também, por que se age de 156 Karla Tereza de Castro | Adriano Cielo Dotto forma passiva diante da vida. O karatê mostra como ser ativo na sua história. Já o quarto Niju-Kun mostra que, antes de se julgar alguém, o julgamento deve ser interno. Deve-se conhecer os limites, conhecer as capacidades, conhecer de verdade a própria essência e saber quem se é realmente. A quinta, a décima sétima, a décima oitava, a décima nona e a vigésima máximas são voltadas ao treino. No entanto, dependem da mente estar afiada no entendimento do karatê, ressaltando que o treino é para a vida toda. Por fim, o décimo segundo, o décimo terceiro, o décimo quarto, o décimo quinto e o décimo sexto Niju-Kun não falam somente sobre a luta física, mas também sobre as adversidades da vida. Os inimigos que serão enfrentados nunca podem ser subestimados, porém nunca se deve estar desprevenido ou se esquecer dos próprios pontos fracos e fortes, assim como o adversário. O karatê ensina a usá- los na intensidade de força e no momento corretos. A luta nunca é somente física, mas também psicológica. 4 O karatê e o desenvolvimento psicossocial do indivíduo Para Martorell (2014), características do ser humano, como o temperamento, são perspectivas da genética. No entanto, o ambiente atua na genética transformando suas qualidades. Uma criança de temperamento difícil, que se irrita facilmente, sente e expressa emoções de maneira intensa, é considerada complicada de lidar. Já as crianças de temperamento fácil se mostram mais alegres, espontâneas, pois abraçam novas experiências e, até mesmo, seu funcionamento biológico é regular. O terceiro tipo de temperamento são as crianças de aquecimento lento, resultando em uma mistura dos outros dois temperamentos, pois a criança é intensa, reage de maneira negativa, mas, depois pode mudar de ideia, é lenta na adaptação. Outra teoria que abarca o porquê do karatê proporcionar a aprendizagem e o desenvolvimento é a explicação de como o sensei funciona como um mediador, conforme apresentado na teoria de Lev Vygotsky, exposta 157CONTRIBUIÇÕES DO KARATÊ PARA O DESENVOLVIMENTO PSICOSSOCIAL DO INDIVÍDUO por Martorell (2014). O adulto ou a pessoa que detém o conhecimento tem o dever de guiar o desenvolvimento da criança até que esta aprenda e passe a ter competência suficiente para fazer sozinha o que foi ensinado. Tanto no desenvolvimento físico do karatê quanto no moral, pode-se observar nitidamente como a teoria de Vygotsky funciona: a criança não consegue socar e chutar sozinha no começo. Então, o sensei passa a ensiná-la e a corrigi-la. Quando ela domina o conhecimento do soco e do chute, cabe a ela mesma melhorá-los. Além disso, o sensei ensina não somente técnicas de soco e de chute, mas também os significados por trás do que o praticante treina diariamente. O aluno que teve esse conhecimento enraizado em seu âmago se tornará um karateca completo, uma pessoa de caráter forte, emocionalmente equilibrada e socialmente ativa, respeitando todas as coisas ao seu redor. Dessa forma, cabe ao Sensei ampliar o horizonte desses jovens e ressaltar caminhos corretos, nos quais haverá desafio, demonstrando que, com persistência e luta, a vitória poderá ser uma possibilidade, exatamente como foi mostrado por Gichin Funakoshi (1994) e por Bronfenbrenner (1979): O desenvolvimento representa uma transformação que atinge a pessoa, que não é de caráter passageiro ou pertinente apenas a situação ou a um dado contexto. Trata-se de uma reorganização que procede de maneira continuada dentro da unidade tempo-espaço. Esta modificação se realiza em diferentes níveis: das ações, das percepções da pessoa, das atividades e das interações com o seu mundo. O desenvolvimento humano é estimulado ou inibido pelo grau de interação com as pessoas, que ocupam uma variedade de papéis, e pela participação e engajamento em diferentes ambientes. (DESSEN, 2008, p 73). Algumas crianças e adolescentes projetam na figura do sensei uma visão paterna/materna, devido a ele/ela se mostrar como uma pessoa 158 Karla Tereza de Castro | Adriano Cielo Dotto idônea, detentora de conhecimento e que está ali para auxiliar o aluno em diversas questões de sua vida. Segundo Bronfenbrenner (1979), a aprendizagem e o desenvolvimento precisam de uma relação complexa e mútua, pautada em um afeto que não se rompera, pois ultrapassou o superficial, gerando, assim, um relacionamento com equilíbrio de poder que tende a pender para aquele que irá se desenvolver. Isso não significa que o aluno terá mais poder que o sensei, mas sim que adquiriu o comportamento desejado e em desenvolvimento. Outro conceito é a identidade. As crianças começam a ter sentido de uma identidade própria, diferente da mãe, a partir de um ano, pois nessa idade começam a criar consciência de si mesmas, a partir do autoconceito, definido por Papalia (2013) como a imagem total que se tem de si mesmo. Aos cinco anos, a criança começa a se definir usando diversas características, o que é uma evolução do autoconceito. Junto com a capacidade de se descrever, surge a autoestima, como se julga seu valor pessoal. Autoestima alta significa motivação para a criança, pois ela sente que, se não conseguiu atingir seu objetivo, é porque deve se esforçar mais. No karatê quer dizer que a criança irá treinar até conseguir realizar o movimento, não se deixando abalar ao ponto de querer desistir quando o senseia repreender. Uma das palavras de ordem no karatê é a disciplina, começando desde o momento que se entra no dojo. Sem disciplina, não há evolução física, das técnicas nem crescimento pessoal. Para a ciência do desenvolvimento, a disciplina refere-se aos métodos de se moldar o caráter e ensinar o autocontrole e o comportamento aceitável. Em Martorell (2014, p. 210), “as formas de se disciplinar uma criança são o reforço e punição, raciocínio indutivo, afirmação do poder e retirada do amor”. Existem 5 (cinco) preceitos (kun), que são usualmente falados ao final dos treinos por todos os caratecas. São denominados como Dojo kun e citados por Funakoshi (1994): 159CONTRIBUIÇÕES DO KARATÊ PARA O DESENVOLVIMENTO PSICOSSOCIAL DO INDIVÍDUO a) Hitotsu jinkaku kansei ni tsutomuru koto (Esforçar-se para a formação do caráter); b) Hitotsu makoto no michi o mamoru koto (Fidelidade para com o verdadeiro caminho da razão); c) Hitotsu do ryoku no seishin o yashinau koto (Cultivar o intuito do esforço); d) Hitotsu reigi o omonzuru koto (Respeito acima de tudo); e e) Hitotsu keki no yu o imashimeru koto (Conter o espírito de agressão). Repetir esses Dojo kun a cada treino possibilita interiorizar suas verdades. Os sensei usam muito reforço, punição e raciocínio indutivo. Tendem a punir o aluno com exercícios físicos que ele – aluno – detesta quando faz algo errado dentro do dojo ou quando desrespeita o sensei e seus colegas. Usam o reforço na forma de elogios ao que o aluno faz bem ou simplesmente demonstram uma feição de aprovação. Tais momentos são raros dentro de um dojo que se considere tradicional e marcam muito mais o aluno do que a punição. Já o raciocínio indutivo acontece quando o sensei elucida questões ligadas aos ensinamentos filosóficos do karatê, explicando ou trazendo situações em que o aluno deve pensar em como reagir e analisar as consequências de seus atos. Outro fundamento essencial do karatê a ser explorado é o esforço. Sem o devido empenho, não se alcançará evolução: Através dele que podemos garantir que crianças e jovens cresçam com um futuro brilhante [...] e assim usem a arte para auxiliar, a conseguir aquilo que mais se almeja, princípios que norteiam para se ter uma vida digna moral e ética dentro do contexto social. Esses aspectos podem ser iniciados desde cedo em crianças, para que jamais nada conduza o praticante a usar o karatê de forma a induzir a violência (MUSASHI, 1984, apud SANTOS, 2016, p. 21). 160 Karla Tereza de Castro | Adriano Cielo Dotto Os alunos vêm de lares com estruturas diversas, tanto famílias bem estruturadas quanto famílias mal estruturadas. Este é o ambiente primário do indivíduo, a família. Posteriormente, inicia-se a vida escolar, em que se prima pelo conhecimento técnico e metodológico em detrimento de uma educação que irá considerar o indivíduo e suas capacidades. Nesse contexto, a prática do karatê estimula o enfrentamento de situações adversas, dedicação, persistência, além de inteligência emocional, de acordo com Sasaki (1993) apud Zucchi (2014). Todo esse movimento se dá por meio do esforço que o aluno coloca em seu treino. Outra característica do karatê, junto com o esforço e a disciplina, é o equilíbrio, tanto emocional quanto mental, visto que, desde pequena, a criança pode aprender a controlar suas emoções. Papalia (2013) articula que o desenvolvimento emocional se inicia desde a primeira infância de maneira fisiológica. O bebê começa a ter noção das emoções básicas com o crescimento do córtex cerebral. Em seguida, os lobos frontais começam a se conectar com o sistema límbico e, posteriormente, as crianças começam a experienciar as emoções autoconscientes, tornando-se mais capacitadas em equilibrar suas emoções. Por fim, as mudanças hormonais acontecem junto com o surgimento de emoções avaliadoras. Saber falar dos sentimentos e diferenciar emoções é o começo para o equilíbrio e, posteriormente, a compreensão levará ao controle emocional, que significa saber como expressar os sentimentos, de acordo com Papalia (2013). O sensei não pode deixar uma criança que não sabe lidar com a raiva, por exemplo, aprender técnicas que irão machucar outras pessoas. Primeiro, essa criança deve compreender de onde vem sua raiva, entendê-la e controlar como se expressa. O equilíbrio emocional impacta diretamente na vida social, pois expressar as emoções move relacionamentos e gera comportamentos. É interessante mencionar a pesquisa conduzida por Palermo et al. (2006) com crianças que exibiam comportamentos fora do padrão tido 161CONTRIBUIÇÕES DO KARATÊ PARA O DESENVOLVIMENTO PSICOSSOCIAL DO INDIVÍDUO como ideal, tais como: desobediência, déficit de atenção e hiperatividade. Essa pesquisa visou averiguar se o karatê teria eficácia como intervenção no ajuste desses comportamentos e teve como resultado que sim, a arte marcial bem ensinada tem esse potencial. Informaram que crianças praticantes do karatê, quando comparadas com as não praticantes, exibiram melhoras em casa e na escola. Outros impactos positivos do karatê nas crianças relatados por esses pesquisadores foram incrementos na autoconfiança, no autocontrole, na concentração, na atenção dirigida e na administração de habilidades, bem como melhoras nas habilidades sociais e no respeito mútuo. Uma forma de se colher os benefícios do karatê está ligada ao impacto no desenvolvimento social. Isso acontece para além dos tradicionais dojo, uma vez que existem várias iniciativas de projetos sociais que utilizam o karatê como forma de resgate de crianças e adolescentes. São nesses espaços que o karatê age como esporte, trazendo todos os benefícios já citados e mostra sua força em suas regras e modo de vida, inclusive cumpre esse papel como ferramenta de melhoramento do indivíduo, uma vez que consegue dar sentido à vida, proporcionar autocontrole, disciplina e respeito (SANTOS, 2016). O karatê funciona como método preventivo à delinquência: O comportamento antissocial parece ser influenciado por fatores de múltiplos níveis inter atuantes que variam de influências do microssistema como práticas de educação dos filhos e desvio comportamental de amigos a influências do microssistema como estrutura comunitária e apoio social da vizinhança [...] essa rede de influências começa a ser tecida cedo na infância. (BRONFENBRENNER, 1979, apud PAPALIA, 2013, p. 250). Um comportamento antissocial, como acima dito, inclusive com impulsos agressivos, pode ser moldado de forma a se controlá- los. Quando o sensei analisa os karatecas que estão ao seu ensino, há 162 Karla Tereza de Castro | Adriano Cielo Dotto abertura para orientar e corrigir falhas comportamentais, colaborando para a construção do caráter de seus alunos. O karatê é uma ferramenta de suporte para auxiliar na disciplina e no desenvolvimento comportamental. Inserir um dojo no meio de comunidades carentes pode ajudar no resgate de muitos jovens. Será um processo lento ensinar e educar esses jovens, mas o sensei pode mostrar outro caminho: A sociedade vive um momento turbulento de desonestidade, violência, corrupção, onde as pessoas que deveriam dar o exemplo e trabalhar em prol da população, têm feito o oposto. Portanto, procurar desenvolver valores morais nas crianças pode ser a saída para um dia termos uma sociedade mais justa, honesta, solidária. O ambiente da academia de artes marciais favorece isso devido à preocupação com a conscientização do papel da pessoa na sociedade. (ARANHA, 2006, p 36). Quanto aos adolescentes, eles se diferem das crianças no karatê, ao passo que os jovens já têm a mente mais desenvolvida e com opiniões formadas. Quando estes já estão no karatê desde crianças, os problemas da adolescência são amenizados; mas, quando eles entram no karatê estando na adolescência, o trabalho se torna mais difícil. Papalia (2013) explica que a chamada puberdade se inicia aos 11 (onze) anos. É o que caracteriza o fim da infância, começandoas mudanças corporais, cognitivas, psicológicas e sociais. Tais mudanças acontecem a nível fisiológico e afetam o cérebro do adolescente, o qual sofre mudanças acentuadas em estruturas responsáveis pelas emoções, julgamento, comportamento e autocontrole. Somente quando a reestruturação cerebral se encerra, as conexões neurais que permaneceram são fortalecidas. O crescimento corporal também faz parte da puberdade, afeta a estatura, o peso, os ossos e os músculos. As alterações do surto do crescimento irão afetar o treino do karatê, pois o jovem será 163CONTRIBUIÇÕES DO KARATÊ PARA O DESENVOLVIMENTO PSICOSSOCIAL DO INDIVÍDUO “desengonçado”, sem controle de seu corpo. A prática da atividade física poderá ajudar na consciência corporal de seu novo corpo e diminuir a preocupação com a aparência, já que esportes modelam o corpo (Papalia, 2013). No nível psicológico, os adolescentes têm uma busca constante por identidade. O autoconceito e a autoestima são revisados porque essa fase exige a obtenção de novas habilidades. O karatê pode ser essa nova habilidade, ajudando o adolescente a passar pelo processo da crise de identidade e se encontrar na arte marcial, confiando na figura do sensei como alguém que ajudará a resolver os conflitos e os problemas. Novamente, os conceitos aplicados ao desenvolvimento da criança podem ser replicados ao adolescente, e a dificuldade será transpassar a teimosia e rebeldia. Para isso, o sensei deve criar um vínculo de respeito mútuo, mostrar que entende o que ele está passando, mas nunca deixar de exigir esforço e disciplina. Como dito por Funakoshi (1998), aqueles que têm uma relação fraca e superficial com o karatê deixarão de praticá- lo. Essa relação fraca se caracteriza pela não compreensão da essência do caminho do karatê. Mais uma característica dos adolescentes é a luta por independência. Pais que criam seus filhos mostrando respeito à sua identidade, ouvindo-os, utilizando do raciocínio indutivo como forma de educar e que punem seus filhos quando apresentam mau comportamento tendem a ter mais sucesso. O sensei funciona da mesma forma nessa situação. Ele transmite seu conhecimento para agregar no caráter e na personalidade. Conversa com seus alunos, explica situações, pune e chama a atenção quando percebe comportamentos desrespeitosos ou violentos. Se desafiado, mostra que não está ensinando algo inventado por ele, afinal seu conhecimento tem bases profundas. Pais que desaprovam o filho o tempo todo são autoritários. Se ficam se punindo sem saber o lado do filho, tendem a ter menos sucesso. O sensei, aqui, entra como a figura que irá educar de forma assertiva. Ele será o modelo que o adolescente irá usar para se guiar. 164 Karla Tereza de Castro | Adriano Cielo Dotto Pais que não ligam para o que os filhos fazem não impõem limites e regras, não demonstram preocupação, causando danos no desenvolvimento tanto da criança quanto do adolescente. Na adolescência, ter-se-á um jovem que não irá obedecer ou respeitar e não adotará a imposição de normas facilmente. O sensei deve lidar com esse tipo de personalidade da mesma maneira que lida com crianças de temperamento difícil (Funakoshi, 1998). Em um experimento realizado por Silva Filho (2014) com 43 crianças no projeto de extensão das escolas do Departamento de Educação Física (DEF), pôde-se comprovar resultados da influência do karatê na prática, descritos pelo autor: no início, não gostavam de regras, mas, com o passar das aulas, houve mudança de valores relacionados aos inúmeros princípios já citados neste trabalho, diminuição da agressividade, bem como melhora na convivência familiar. As crianças buscaram aprimorar- se pautadas nos ensinamentos que o karatê proporciona. Nessa pesquisa, é notória a influência do Niju-Kun. Mesmo que o autor não tenha deixado explícito que as crianças foram ensinadas com esse conhecimento teórico, seus resultados mostram a importância do papel do sensei na transmissão do conhecimento. Pode-se afirmar que tudo o que Funakoshi deixou é de extrema relevância até os dias atuais. 5 Considerações finais O karatê apresenta várias evidências que demonstram sua eficácia como meio para educação, os quais irão transformar comportamentos e fazer com que seus praticantes levem uma boa vida. A figura do sensei é importante nesse processo, sendo a pessoa que vivenciou o que as crianças e os adolescentes estão passando, podendo instruí-las de forma mais eficaz. Sua postura no dojo também é importante. Em vez de ignorar os alunos tidos como difíceis, deve adotar novas metodologias, fazer o aluno se interessar e, finalmente, conseguir atingir seu âmago, provocando mudanças. 165CONTRIBUIÇÕES DO KARATÊ PARA O DESENVOLVIMENTO PSICOSSOCIAL DO INDIVÍDUO Cada aluno tem um temperamento. A arte marcial irá lapidá-lo com o intuito de extrair o melhor de cada indivíduo e ensinar novas formas de encarar o mundo, gerando formas positivas de agir na sociedade, encarar situações com inteligência e controle emocional e ter uma vida física e mental saudável. A prática do karatê, quando iniciada desde criança, traz uma internalização mais rápida do significado dessa arte marcial, já que a criança está em processo de formação de identidade, autoestima e ainda não enraizou seus valores. Os ensinamentos pautados nas regras do karatê se tornarão a base de seus comportamentos, fortalecerão o superego e farão com que a criança cresça sabendo como resolver seus conflitos e a agir com respeito e humildade. A maior facilidade de se provocar o desenvolvimento adequado em crianças não exclui a possibilidade de o sensei ser um mediador quando se trata de adolescentes. Neste caso, o karatê irá se tornar uma alternativa que o jovem poderá escolher seguir e, caso o faça, isso acarretará uma reestruturação de seus valores, possibilitando novos comportamentos com inúmeros benefícios. Na sociedade atual, o individualismo é tido como única forma de se alcançar os objetivos de vida. Numerosas injustiças acontecem. Aprender a agir de maneira assertiva contribuirá com a formação de um indivíduo resiliente, confiante, não tolerante às injustiças. Os praticantes devem entender que não se aprende karatê para lutar, e sim que se deve esforçar para aprendê-lo também por meio da luta. Para que o karatê dê resultados, ele não pode ser tratado apenas como esporte. O karatê deve ser utilizado como caminho, assim como os sensei ensinam. 166 Karla Tereza de Castro | Adriano Cielo Dotto 6 Referências ARANHA, F.P. Karatê e o desenvolvimento de crianças de 7 à 12 anos. PUC/Faefi. Campinas – SP. p. 1-78. 2006. 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Acesso em: 30 ago. 2019. 169 SOBRE OS AUTORES Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo • Professora no Curso de Direito da Una Catalão; • Diretora-presidente do Núcleo Catalão (GO) do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM); • Mestra em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (UFG); • Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Viçosa (UFV). Adriano Cielo Dotto • Professor no Curso de Direito da Una Catalão; • Vice-Diretor do Núcleo Catalão (GO) do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM); • Mestre em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUCGO); • Licenciado em Letras pelo Claretiano Centro Universitário; • Especialista em Direito Educacional Processo Ensino-Aprendizagem pela União das Faculdades Claretianas de São Paulo (UNICLAR); • Bacharel em Direito pelo Centro de Ensino Superior de Catalão (CESUC). • Faixa preta 2º Dan de Karatê Shotokan. 170 Anna Caroline da Silva Resende • Licenciada em Letras pela Universidade Federal de Goiás (UFG); • Servidora pública estadual no Ministério Público de Goiás, Comarca de Cumari; • Bacharelanda em Direito pela Una Catalão. Tatyane Gondim Silva • Bacharela em Direito pelo Centro de Ensino Superior de Catalão (CESUC); • Pós-graduada em Processo Penal pelo Complexo de Ensino Damásio; • Pós-graduanda em Direito Constitucional pelo Complexo de Ensino Damásio; • Pós-graduanda em Processo Civil pelo Complexo de Ensino Damásio; • Pós-graduanda em Ciências Criminais e Segurança Pública pelo Centro de Ensino superior de São Gotardo; • Advogada OAB/GO. Larissa Stoduto da Rocha • Conciliadora e Mediadora pela Escola Judicial do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (EJUG); • Bacharelanda em Direito pela Una Catalão; • Graduada em Gastronomia pelo Instituto de Educação Superior de Brasília – IESB (com ênfase em administração de empresas); • Membro do Núcleo Catalão (GO) do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Laís Fernanda Almeida • Bacharelanda em Direito pela Una Catalão. 171 Ana Caroline Pereira Sampaio • Bacharelanda em Direito pela Una Catalão. • Membro do Núcleo Catalão (GO) do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Amanda Cristina Lima • Bacharelanda em Direito pela Una Catalão. Karla Tereza de Castro • Bacharelanda em Psicologia pela Una Catalão. • Faixa preta 1º Dan de Karatê Shotokan. ABORDAGENS COMPORTAMENTAL E JURÍDICA NAS RELAÇÕES FAMILIARES ISBN 978-65-5081-055-9 Essa obra coletiva traz variados temas da seara do Direito das Famílias que estão em profícuo debate entre conceituados juristas, bem como nos tribunais pátrios. No primeiro capítulo, foram trazidas discussões que envolveram a novidade jurídica do divórcio impositivo ou unilateral. No segundo, abordou-se a adoção internacional pela ótica constitucional, enfrentando a questão problemática do tráfico de menores, na qual se fez uma correlação da afronta da dignidade humana com a obra “Tráfico de Anjos”, de Luiz Puntel. No terceiro, os temas abarcados foram o abandono afetivo, o dever de indenizar e a consequente aplicação da responsabilidade civil no Direito das Famílias. Já no quarto, analisou-se a guarda compartilhada como um meio eficaz de prevenção contra a alienação parental. No quinto, realizou-se um estudo sistemático envolvendo os direitos sucessórios do companheiro, após o reconhecimento da inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, que buscou equiparar os direitos do companheiro aos do cônjuge. No sexto, abordou-se a aplicação do dano moral à infidelidade, especificamente, em sua modalidade virtual. Por fim, no último capítulo, encerrou-se com uma contribuição ao estudo menorista, verificando cientificamente como o Karatê pode influenciar diretamente na vida de crianças e adolescentes. Dentre os temas trabalhados, encontram-se tendências para 2020 relacionadas ao estudo do Direito das Famílias e das Sucessões, constituindo grande atualidade à presente obra. A B O R D A G E N S C O M P O R TA M E N TA L E JU R ÍD IC A N A S R E L A Ç Õ E S FA M IL IA R E S ORGANIZADORES Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo Adriano Cielo Dotto AUTORES Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo Adriano Cielo Dotto Amanda Cristina Lima Ana Caroline Pereira Sampaio Anna Caroline da Silva Resende Karla Tereza de Castro Laís Fernanda Almeida Larissa Stoduto da Rocha Tatyane Gondim Silva O R G A N IZ A D O R E S Patrícia Fortes Lopes D onzele C ielo A driano C ielo D otto