Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
- Perda de sangue I Fabiana Bilmayer SP 1 - Disfuncional Questões 1. Fisiologia da coagulação (via intrínseca e extrínseca) O nosso processo de hemostasia (o conjunto de mecanismos que o organismo emprega para coibir hemorragia) é uma balança entre os fatores trombogênicos e não trombogênicos. Hemostasia Primária A hemostasia primária se refere à interação entre as plaquetas circulantes, a parede lesada dos vasos sanguíneos e as proteínas adesivas. A interação entre estes componentes ocasiona a formação do plug inicial de plaquetas. O espaço subendotelial é ALTAMENTE trombogênico porque contém COLÁGENO, fator tecidual, fator de Von Willebrand e Laminina. Assim, um vaso sanguíneo que sofreu injúria com exposição do espaço endotelial e subendotelial é um potente iniciador da cascata da coagulação. As plaquetas NÃO aderem ao endotélio vascular intacto. MAS se aderem FORTEMENTE ao colágeno e ao fator de Von Willebrand, ambos muito abundantes no espaço subendotelial. O processo de hemostasia primária ocorre em 3 etapas: ● Adesão plaquetária Se a parede vascular está lesada, o fator de Von Willebrand (VWF) se torna exposto. Este fator funciona como uma ponte entre o colágeno endotelial e os receptores plaquetários de superfície (GPIb). A interação entre: FATOR DE VON WILLEBRAND, COLÁGENO E RECEPTOR Gplb da superfície plaquetária, resultam em adesão plaquetária. ● Secreção Plaquetária As plaquetas possuem três tipos de grânulos: densos, α e lisossomos – Os grânulos α (mais numerosos) contêm: fatores de coagulação, VWF, fibrinogênio, β-tromboglobulina, fator de crescimento derivado das plaquetas (PDGF) e outras proteínas. – Os grânulos densos contêm: ATP, ADP, cálcio e serotonina. – Os lisossomos contêm enzimas hidrolíticas Depois da adesão plaquetária, ocorre a degranulação dos grânulos plaquetários. Diferentes fatores são liberados, incluindo cálcio que é essencial para a ativação plaquetária e de outros fatores de coagulação. ● Agregação plaquetária Plaquetas ativadas, secretam tromboxano A2 (TXA2), que é o pivô do segundo mais importante ciclo de realimentação e amplificação secundária da ativação plaquetária, necessária à firmeza e estabilidade do agregado plaquetário. Quando combinado com ADP, o TXA2 leva ao aumento do plug inicial de plaquetas, selo TEMPORÁRIO da lesão vascular. Além disso, o ADP também liga a plaqueta aos receptores GpIIb/IIIa que são responsáveis pela deposição de fibrinogênio. A geração de trombina, converte fibrinogênio em fibrina levando a maior estabilidade do plug inicial de plaquetas. Este estágio é conhecido como HEMOSTASIA SECUNDÁRIA. O óxido nítrico (NO) é liberado constitucionalmente nas células endoteliais dos macrófagos e plaquetas. Possui meia-vida curta, 3-5 segundos, inibe a ativação plaquetária e promove vasodilatação. A prostaciclina, sintetizada pelas células endoteliais, também inibe a função plaquetária. - Perda de sangue I Fabiana Bilmayer Cascata da Coagulação É classicamente dividida em via INTRÍNSECA E EXTRÍNSECA, ambas convertem para a ativação do fator X. A atividade dos fatores II, VII, IX e X depende da vitamina K. A hemostasia definitiva é obtida quando a fibrina, formada pela coagulação sanguínea, é acrescentada à massa de plaquetas pela retração/compactação do coágulo induzida pelas plaquetas. RESUMO RESUMO O fator tecidual se liga ao fator VIIa para ativar o fator IX. Este complexo ativa o fator X. O fator Xa se liga ao fator II para formar a trombina. A geração de trombina nesta etapa é limitada, caso o inibidor da via do fator tecidual esteja disponível. A geração de trombina ativa os fatores V e VIII. A ativação desses dois fatores acelera a ativação do fator II pelo fator Xa e do fator Xa por meio do IXa. Isto é mantido pela ação do complexo de protrombinase. O complexo de protrombinase se acumula na superfície plaquetária. Ocorre grande formação de trombina e as plaquetas são ativadas. A fibrina gerada a partir do fibrinogênio é suficiente para formar um grande coágulo. O passo final é estabilizar o coágulo formado. A trombina ativa o fator XIII que liga polímeros de fibrina para fornecer força e estabilidade ao plug hemostático secundário. A trombina também ativa o inibidor da fibrinólise que impede a fibrinólise do coágulo recém formado. 2. Sobre Doença de Von Willebrand a. Definição A doença de Von Willebrand (DVW) é o distúrbio hemorrágico hereditário mais comum. É causada por mutações que levam a um comprometimento na síntese ou função do fator de von Willebrand (VWF). O fator de von Willebrand (VWF) é uma proteína que desempenha papéis importantes na hemostasia, como ligar-se às plaquetas e aos componentes endoteliais, formando uma ponte adesiva entre as plaquetas e as estruturas vasculares subendoteliais. Além disso, contribui para a formação do coágulo de fibrina, pois é uma proteína transportadora para o fator VIII. b. Epidemiologia É o distúrbio hemorrágico hereditário mais comum, apresentando prevalência de 1 a 3% da população. Entretanto, apenas 0,1 a 1% dos indivíduos que possuem a doença são sensivelmente sintomáticos. - Perda de sangue I Fabiana Bilmayer São distúrbios autossômicos e, por isso, afetam homens e mulheres igualmente. As mulheres costumam ser mais precocemente diagnosticadas devido a manifestação de sangramentos mais importantes durante a menstruação e durante o período pós-parto. Não há predominância entre as etnias. c. Fisiopatologia Existem três tipos de causas de doença de Von Willebrand. São elas: ● Tipo 1 – Devido a uma redução quantitativa na proteína do fator de von Willebrand. Essa redução pode ser tanto da sua concentração, quanto da atividade. É o tipo mais comum, responsável por 75% das doenças de Von Willebrand. ● Tipo 2 – Qualitativo! Ocorre devido a um fator de Von Willebrand disfuncional. ● Tipo 3 – Quantitativo! Tem como origem a ausência e extrema redução do fator de Von Willebrand. Isso culmina em níveis muito baixos de fator VIII, que tem como consequência a ocorrência de sangramentos graves. É o tipo mais raro de acometimento. d. Apresentação clínica Muitos indivíduos portadores da doença não possuem conhecimento dessa condição pois, na maioria dos casos, a sintomatologia de sangramento é leve ou até ausente. Muitas vezes o diagnóstico decorre de eventos onde há maior estresse ou exposição a sangramentos significativos, como cirurgia, trauma ou parto. Além disso, a ingestão de ácido acetilsalicílico (AAS), outros antiinflamatórios não esteróides (AINEs) ou outros medicamentos antiplaquetários podem precipitar sangramentos. É comum a história de epistaxe prolongada na infância, facilidade de desenvolvimento de hematomas e/ou sangramentos por causas diversas, como hemorragias gastrintestinais ou por extrações dentárias. As mulheres que possuem essa condição costumam relatar a ocorrência de fluxo menstrual intenso. Vale ressaltar que um indivíduo pode se tornar sintomático em qualquer idade. No tipo 1 e tipo 2 esse sangramento apresenta-se, predominantemente, como sangramento moderado a grave (sendo que no tipo 1 pode até ser assintomático), e mucocutâneo. Já no tipo 3 esse sangramento costuma ser grave, mucocutâneo e acometendo articulação, tecido mole, gastrointestinal, e com frequência apresenta-se durante a infância. Os níveis de VWF geralmente aumentam durante a gravidez. Isso é importante pois confere proteção contra sangramento antes e durante o parto. Entretanto, estes níveis tendem a cair abruptamente após o parto, aumentando o risco das mulheres com VWD manifestarem sangramento durante o período periparto. e. Abordagem diagnóstica + exames A maioria dos indivíduos com DVW apresenta hemograma e estudos de coagulação normais. Entretanto, em alguns casos, podem apresentar alterações com TTPa prolongado, plaquetopenia e anemia microcítica. Sendo assim, deve-se avaliar a possibilidade de doença de Von Willebrand em casos de aumento da história de sangramento, especialmente sangramento mucocutâneo, histórico familiar de doença de Von Willebrand, trombocitopenialeve ou prolongamento leve do tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPa) que não é explicado por outra condição, hemofilia A aparente em uma mulher. Os testes de triagem para DVW devem ser feito em plasma e incluem: - Perda de sangue I Fabiana Bilmayer ● Antígeno VWF (VWF: Ag) – Medição quantitativa do nível de fator de Von Willebrand no plasma ● Atividade de VWF (VWF: Act) – Ensaios funcionais de ligação de VWF a plaquetas ou colágeno – avaliam a capacidade do VWF de se ligar a essas estruturas, e é o teste mais sensível e específico para avaliar a VWF. ● Atividade do fator VIII – A diminuição da atividade do fator VIII pode indicar VWF reduzido ou disfuncional. Os ensaios genéticos são os testes mais específicos para diagnosticar os tipos da doença de Von Willebrand. Entretanto, são realizados em casos de dúvida nos testes laboratoriais rotineiros. f. Abordagem terapêutica (tratamento) O objetivo da terapia para DVW consiste na correção da atividade da proteína VWF a um nível superior a 50% do normal e atividade do fator VIII a níveis apropriados para situação clínica. As principais opções, nos casos leves, para aumentar os níveis do fator de von Willebrand (VWF) para tratar o sangramento e fornecer profilaxia cirúrgica são a desmopressina (DDAVP) e concentrados de VWF. Entretanto, raramente pacientes com o tipo 3 e tipos graves 1 e 2 apresentam resposta adequada a desmopressina, necessitando de concentrados de VWF. Vale reforçar que a desmopressina é eficaz apenas para uso de curto prazo, devendo ser administrada por aproximadamente 3 dias, uma vez que a taquifilaxia se desenvolve em poucos dias. Em caso de necessidade de terapia mais prolongada, devem ser utilizados concentrados de VWF. Entretanto, estes últimos não são desprovidos de efeitos adversos e podem precipitar complicações trombóticas. Outro tratamento inclui inibidores de fibrinólise, como o ácido tranexâmico, para estabilizar o coágulo e terapias tópicas que auxiliam na formação do coágulo. Podem ser utilizados isoladamente ou, principalmente, após a terapia com desmopressina. DOENÇA DE VON WILLEBRAND A doença de von Willebrand é uma doença hemorrágica, causada por defeitos hereditários na concentração, estrutura ou função do fator von Willebrand. Os pacientes com essa alteração hemostática representam um grupo heterogêneo, já que as expressões fenotípicas da doença podem variar em intensidade e oscilar com o tempo, além das mutações do fator von Willebrand poderem ter efeitos complexos. A doença de von Willebrand é considerada a mais comum das doenças hemorrágicas. Prevalência entre 1 e 3%, mas somente em 10% deles a doença é sintomática. A VWD é o distúrbio hemorrágico hereditário mais comum. Fisiopatologia O Fator von Willebrand (FVW) é uma grande glicoproteína multimérica, com várias e importantes atividades biológicas dependentes dos seus distintos domínios funcionais. Dessa maneira, defeitos no fator von Willebrand podem causar manifestações hemorrágicas com características típicas de anormalidades plaquetárias ou de hemofilia leve a moderadamente grave. A organização multimérica do fator von Willebrand fornece o potencial para múltiplos locais de contato com as plaquetas e estruturas subendoteliais, de modo que os maiores oligômeros, ou de maior peso molecular, são os mais eficazes em promover a adesão e a agregação plaquetárias. No plasma, o fator von Willebrand e o fator VIII coagulante circulam formando um complexo, mantido por ligações não covalentes, que é constituído por 99% de fator von Willebrand e 1% de fator VIII coagulante. Na célula endotelial, o fator von Willebrand sintetizado é continuamente secretado para o plasma ou para o subendotélio, fazendo parte da matriz extracelular, ou, então, é estocado nos - Perda de sangue I Fabiana Bilmayer corpúsculos de Weibel-Palade, quando será liberado por ação de estímulos fisiológicos, como trombina, histamina, fibrina e radicais de oxigênio, ou da desmopressina. Nas plaquetas, o fator von Willebrand está contido nos grânulos, sendo secretado após estimulação pela trombina, ADP, colágeno ou outro agente ativador, ligando-se ao complexo glicoproteico Ilb /IIIa das plaquetas ativadas. O fator von Willebrand presente dentro das células endoteliais e nas plaquetas apresenta peso molecular superior às formas presentes no plasma. Esses multímeros do fator von Willebrand apresentam grande eficácia na interação com as plaquetas, em vasos de pequeno calibre, e podem agregar plaquetas normais circulantes. Após sua secreção, o destino dos multímeros do FVW dependerá do seu tamanho, interações com plaquetas e outras células, e taxa de depuração da circulação. Sob situação de elevado estresse de cisalhamento, os multímeros com tamanho suficiente para se ligar às plaquetas podem ser estendidos e expor a ligação Tyr1605-Met1606, no domínio A2, que sofrerá clivagem pela metaloprotease ADAMTS-13. Através desse processo, a ADAMTS-13 produz remodelação da distribuição inicial dos multímeros secretados no sangue, tornando menores os grandes multímeros e produzindo os produtos de clivagem. O FVW é depurado do sangue com meia-vida de 12-20 horas, independentemente do tamanho do multímero. Dessa maneira, a concentração plasmática do FVW é determinada pelas taxas de secreção e depuração, com a distribuição multimérica refletindo o resultado da organização dos multímeros, depuração da circulação e proteólise pela ADAMTS-13. De acordo com mutações genéticas, esses processos serão alterados, resultando na variedade de fenótipos da doença de von Willebrand. Manifestações clínicas Os sangramentos mais frequentemente relatados pelos pacientes com DVW são epistaxe, menorragia, hemorragia pós-exodontia, equimose, sangramento após pequenos ferimentos, gengivorragia, sangramento pós-operatório, sangramento gastrintestinal e hemartrose. Essas manifestações hemorrágicas geralmente são leves ou moderadas, refletindo o predomínio da doença de von Willebrand tipo 1. As hemorragias graves podem acontecer nos pacientes com doença de von Willebrand tipo 3, em alguns pacientes com tipo 2 e raramente no tipo 1. Manifestações hemorrágicas pouco comuns, como hemartrose, são observadas geralmente nas formas graves da doença de von Willebrand. Contudo, deve-se sempre ter em consideração que as manifestações hemorrágicas podem ser modificadas pela presença de comorbidades e pelo uso de medicamentos, como aspirina, anti-inflamatórios não hormonais, contraceptivos orais e antidepressivos. Prevalência elevada de menorragia em mulheres com doença de von Willebrand. · Embora a presença de história familiar positiva para doença hemorrágica seja útil para a identificação de pessoas que provavelmente tenham doença de von Willebrand, isto nem sempre ocorre, principalmente nos pacientes com DVW leve e com familiares assintomáticos ou oligossintomáticos. Quanto ao padrão de hereditariedade da doença de von Willebrand, nos tipos 1, 2A e 2B ele é, usualmente, autossômico dominante. Nos tipos 2N e 3 é autossômico recessivo. Deve-se ainda considerar as situações de heterozigose composta, a qual, aparentemente, é mais comum do que anteriormente suposto, e a penetrância variável da doença tipo 1. A doença de von Willebrand adquirida pode ocorrer espontaneamente ou em associação com outras doenças como gamopatias monoclonais, mieloma múltiplo, doenças linfoproliferativas, doenças mieloproliferativas, doenças autoimunes, cardiopatias congênitas, valvopatias cardíacas, determinados tumores e hipotireoidismo. As manifestações hemorrágicas são semelhantes, porém com ausência de história pessoal prévia e familiar de sangramentos. Diagnóstico Avaliação laboratorial inicial Não existe teste laboratorial de triagem disponível sensível para a detecção da maioria dos tipos de doença de von Willebrand e com baixa taxa de - Perda de sangue I Fabiana Bilmayer resultados falso-positivos. Até há algum tempo, recomendava-se o emprego do Tempo de Sangramento (TS) e do Tempo de Tromboplastina Parcial Ativada (TTPA). Mas sãotestes adequados somente para o diagnóstico das formas graves (DVW tipo 3), apresentando-se normais nas formas leves e nas variantes da doença de von Willebrand. O TS é um exame inespecífico e sujeito a variações operacionais. Os resultados do PFA-100 têm sido demonstrados como anormais na maior parte dos pacientes com doença de von Willebrand, mas podem apresentar valores normais na DVW tipo 1 leve e moderada, e também em alguns pacientes com tipo 2. Quanto ao TTPA, somente estará prolongado nos casos com redução suficiente do FVIII plasmático. Nos pacientes com história evidente de sangramentos cutâneos e mucosos, devem ser realizados os testes iniciais para DVW, isto é, as quantificações do fator VIII coagulante (FVIII), do Antígeno do Fator Von Willebrand (FVWAg) e da atividade de cofator de ristocetina do Fator Von Willebrand (FVWRCo) Outros exames laboratoriais para definição e diagnóstico da doença de von Willebrand A relação FVW:RCo/FVW:Ag pode auxiliar no diagnóstico dos subtipos 2A, 2B e 2M, possibilitando diferenciá-los da DVW tipo 1. Valores inferiores a 0,5 ou 0,7 têm sido empregados como critério para a presença de FVW com função anormal, ou seja, doença de von Willebrand tipo 2. A Agregação/Aglutinação Plaquetária Induzida pela Ristocetina (RIPA) avalia a concentração da droga que induz um valor preestabelecido de agregação plaquetária (30%). A maioria dos tipos e subtipos apresenta hipoaglutinação induzida pela ristocetina, porém os pacientes com o subtipo 2B e com doença de von Willebrand tipo plaquetário são caracterizados por resposta exacerbada induzida pela ristocetina, decorrente da maior afinidade do fator von Willebrand pelo complexo G PIb/IX/V ou do complexo GPIb/IX/V pelo fator von Willebrand, respectivamente. Deve-se considerar ainda que esse teste é relativamente insensível, e que é frequente encontrá-lo normal em pacientes com doença tipo 1 e antígeno do fator von Willebrand superior a 30 U/dL. A capacidade de ligação do Fator Von Willebrand ao Colágeno (FVW:- CB) avalia a ligação do domínio A3 do FVW ao colágeno fibrilar; e, da mesma maneira que a atividade de cofator de ristocetina, é um teste dependente do tamanho do multímero do FVW, com aqueles de maior tamanho ligando-se mais do que os de tamanho menor. A quantificação da afinidade do fator von Willebrand pelo fator VIII coagulante permite fazer o diagnóstico do subtipo 2N da doença de von Willebrand, distinguindo-a da hemofilia A leve ou moderada. Na análise do padrão multimérico do fator von Willebrand os multímeros do fator von Willebrand, com tamanhos variados, são separados em gel de agarose, permitindo visualizar a presença de todos os multímeros, a redução/ausência dos multímeros de alto peso molecular e/ou de peso molecular intermediário, a ausência de todos os multímeros ou a presença de multímeros com peso molecular superior ao normal. Quase sempre é um exame realizado após a confirmação da doença de von Willebrand, pelos testes iniciais. O sequenciamento do DNA tem sido realizado para o diagnóstico molecular das variantes da doença de von Willebrand tipo 2. Na Doença de von Willebrand, os achados laboratoriais mais importantes são: · O teste PFA-100 é anormal. Esse teste substituiu o teste de tempo de sangramento. · Os níveis de fator VIII muitas vezes estão baixos. Se isso ocorrer, é necessário fazer a dosagem da ligação VIII/VWF. · O TTPA (ou K-TTP) pode estar prolongado. · Os níveis de VWF geralmente são baixos. 5 A agregação de plaquetas pelo plasma do paciente na presença de ristocetina (VWF: Rco) é defeituosa. A agregação com outros agentes (difosfato de adenosina [ADP], trombina e adrenalina) geralmente é normal. · A função de ligação ao colágeno (VWF:CB) geralmente está reduzida (mas raramente é medida). · A análise dos multímeros é útil para o diagnóstico dos diferentes subtipos. · A contagem de plaquetas é normal, exceto na doença tipo 2B (na qual é baixa). Classificação Fenotipicamente, a doença de von Willebrand é dividida em dois - Perda de sangue I Fabiana Bilmayer grandes grupos: os defeitos quantitativos e os defeitos qualitativos do fator von Willebrand. Doença de von Willebrand tipo 1 A doença de von Willebrand tipo 1 corresponde às deficiências parciais do fator von Willebrand, sendo as manifestações hemorrágicas decorrentes das menores concentrações plasmáticas do fator von Willebrand. Laboratorialmente, caracteriza-se pela proporcionalidade entre as atividades funcionais e as concentrações plasmáticas do Fator Von Willebrand (FVWRCo/FVWAg). O estudo do padrão multimérico do fator von Willebrand não mostra redução significativa dos multímeros de alto peso molecular e, quando são empregados métodos mais sensíveis, podem ser observadas discretas alterações na estrutura ou distribuição multimérica. A DVW tipo 1 pode ser causada pela redução da secreção de fator von Willebrand funcionalmente normal, com distribuição multimérica praticamente normal, ou por depuração aumentada do fator von Willebrand. A maior susceptibilidade do fator von Willebrand à clivagem proteolítica também pode ser fator modulador da gravidade da DVW tipo l. A DVW tipo 1 é a forma mais comum, compreendendo 70 a 80% dos casos e, usualmente, apresenta padrão de transmissão autossômico dominante, com penetrância incompleta (60%). Doença de von Willebrand tipo 2 A doença de von Willebrand tipo 2 caracteriza-se por apresentar alterações da molécula do FVW, sem alterar sua atividade antigênica, de modo que não há paralelismo entre os valores da atividade de cofator de ristocetina e do antígeno do fator von Willebrand. O tipo 2 é subdividido nos seguintes subtipos: · Subtipo 2A: corresponde a variantes qualitativas com redução da adesão plaquetária dependente do fator von Willebrand e deficiência seletiva dos multímeros de elevado peso molecular. A redução dos multímeros de alto peso molecular está associada à redução desproporcional da interação do FVW com as plaquetas (FVW:RCo) ou com o tecido conetivo (FVW:CB) em relação à concentração plasmática do fator von Willebrand. A DVW tipo 2A usualmente parece ser transmitida como característica autossômica dominante, embora em alguns casos seja recessiva. A redução dos multímeros de alto peso molecular pode ser resultante de anormalidades na formação dos multímeros ou de aumento da sensibilidade intrínseca à clivagem pela ADAMTS-13. · Subtipo 2B: inclui as variantes qualitativas que apresentam maior afinidade pela glicoproteína Ib das plaquetas e se expressa laboratorialmente por aumento da agregação plaquetária induzida por baixas concentrações de ristocetina. Os pacientes com esse subtipo da DVW frequentemente apresentam trombocitopenia variável, que pode ser exacerbada pelo estresse ou pela administração de desmopressina. O padrão multimérico do FVW mostra diminuição dos multímeros de alto peso molecular associada à marcada proteólise das subunidades do fator von Willebrand. · Subtipo 2M: corresponde às variantes com redução da adesão plaquetária dependente do fator von Willebrand sem associação com deficiência seletiva dos multímeros de alto peso molecular. A formação e a secreção dos grandes multímeros são aproximadamente normais, mas ocorrem mutações que tornam anormal a ligação do fator von Willebrand às plaquetas ou ao subendotélio. Na maioria dos casos observa-se relação desproporcionalmente baixa entre a atividade de cofator de ristocetina e a concentração do fator von Willebrand plasmático. · Subtipo 2N: inclui as variantes com mutações homozigóticas ou heterozigóticas que reduzem a capacidade de ligação do fator von Willebrand ao fator VIII. A concentração plasmática do FVIII encontra-se desproporcionalmente reduzida em relação ao fator von Willebrand e o diagnóstico é realizado através da quantificação da ligação do Fator von Willebrand ao fator VTII (FVW:FVIIIB). A DVW subtipo 2N pode ser confundida com hemofilia A leve, especialmente em pacientes do gênero masculino que não apresentam evidências de hereditariedade ligadas ao cromossomo X. Doença de vonWillebrand tipo 3 A doença de von Willebrand grave ou tipo 3 é decorrente de uma intensa redução da síntese do fator von - Perda de sangue I Fabiana Bilmayer Willebrand, resultando em níveis plasmáticos muito baixos do fator von Willebrand (< 5 UI/dL), da atividade de cofator de ristocetina (< 5 UI/dL), da capacidade de ligação ao colágeno (< 5 UI/dL) e de fator VIII coagulante (10 UI/dL). Consequentemente, os pacientes apresentam manifestações hemorrágicas graves, com sangramentos cutâneos e mucosos, além de hemorragias musculares e intra-articulares. Sua transmissão é autossômica recessiva, sendo os pais, heterozigotos, oligossintomáticos ou assintomáticos. A doença de von Willebrand tipo 1 inclui as deficiências quantitativas parciais do fator von Willebrand; a deficiência virtualmente completa corresponde à doença de von Willebrand tipo 3. A doença de von Willebrand tipo 2 engloba os defeitos qualitativos do fator von Willebrand, sendo subdividida de acordo com defeitos funcionais e estruturais específicos que prejudicam a adesão plaquetária ou a ligação ao fator VIII. Adquirida DVW adquirida é um distúrbio raro encontrado mais comumente nos pacientes com distúrbios linfoproliferativos subjacentes, inclusive gamopatias monoclonais de significado indeterminado (MGUS, de monoclonal gammopathy of undetermined significance), mieloma múltiplo e macroglobulinemia de Waldenström. Essa doença é encontrada mais comumente nos pacientes com MGUS e deve ser considerada nos pacientes com início recente de sintomas de sangramento grave das mucosas, principalmente se forem idosos. São encontradas evidências laboratoriais de DVW adquirida em alguns pacientes com doença da valva da aorta. A síndrome de Heyde (estenose aórtica com sangramento gastrintestinal) é atribuída à presença de angiodisplasia do trato gastrintestinal dos pacientes com estenose aórtica. Contudo, o estresse de cisalhamento gerado pelo sangue que passa pela valva da aorta estenótica parece produzir uma alteração do FVW, tornando-o suscetível às proteases séricas. Por essa razão, os multímeros maiores são perdidos, e isso resulta na DVW tipo 2 adquirida, que regride quando a valva da aorta é substituída. Tratamento O tratamento dos pacientes com doença de von Willebrand se baseia em três estratégias: a) aumentar as concentrações plasmáticas de fator von Willebrand através da secreção de estoques endógenos por estimulação das células endoteliais pela vasopressina; b) reposição do fator von Willebrand através da infusão de concentrados de fator von Willebrand; e c) uso de agentes que promovem a hemostasia e a cicatrização tecidual, sem alterar substancialmente as concentrações plasmáticas do fator von Willebrand. Essas alternativas serão utilizadas de acordo com o tipo e gravidade da doença de von Willebrand, gravidade da manifestação hemorrágica e a natureza do sangramento atual ou em potencial. Contudo, de acordo com a situação, mais de uma dessas opções terapêuticas poderá ser usada em conjunto. Desmopressina A desmopressina (DDAVP) é um análogo sintético da vasopressina que causa o aumento das concentrações plasmáticas do fator VIII coagulante e do FVW, quando administrado em voluntários normais ou em pacientes com hemofilia A leve e doença de von Willebrand. Embora tenha importante ação antidiurética, relacionada com a estimulação de receptores V2 de vasopressina, o DDAVP apresenta pequena ou nenhuma ação sobre os receptores VI de vasopressina, presente nos músculos lisos. Aparentemente, o DDAVP atua ao promover a liberação do fator von Willebrand, especialmente os multímeros de alto peso molecular, dos corpúsculos de Weibel-Palade do endotélio vascular, através de mecanismo mediado pela adenosina-monofosfato cíclica (AMPc), além da liberação do fator VIII coagulante das células dos sinusóides hepáticos, e ao melhorar a interação entre as plaquetas e o subendotélio mediada pelos monócitos e por outro agente agregante, independente do fator von Willebrand. As melhores respostas ao uso do DDAVP ocorrem nos pacientes com doença de von Willebrand tipo l. O uso da desmopressina mostra eficácia somente para uma minoria dos pacientes com subtipos 2A e 2M, o que exige monitorização do FVW:RCo. Embora, classicamente, no subtipo 2B o DDAVP seja contraindicado, por causa do - Perda de sangue I Fabiana Bilmayer risco de acentuação da plaquetopenia, em alguns relatos da literatura o DDAVP tem apresentado utilidade clínica. No subtipo 2N o DDAVP promove elevação das concentrações do fator V III, o qual apresentará meia-vida mais curta em razão da ausência do fator von Willebrand. Tratamento de substituição para elevação das concentrações do FVW A terapia de substituição é indicada para os pacientes que não respondem ao DDAVP ou que apresentam alguma contraindicação para seu uso dessa medicação. · Por causa do risco, embora reduzido, da transmissão de infecções virais pelo crioprecipitado, os concentrados comerciais, submetidos à inativação viral, originalmente desenvolvidos para o tratamento da hemofilia A, passaram a ser empregados nos pacientes com doença de von Willebrand não responsiva à desmopressina. Observa-se que o aumento do fator VIII é maior do que o calculado pelas doses infundidas, por causa da estabilização do fator VIII endógeno, que é produzido normalmente, pelo fator von Willebrand administrado de maneira exógena. Por motivos semelhantes, é inadequado o emprego de concentrados comerciais que apresentam alta atividade específica do fator VIII coagulante, com pequena quantidade do fator von Willebrand. As elevadas concentrações plasmáticas de fator VIII após várias infusões de concentrado de fator VlII-fator von Willebrand podem aumentar o risco de tromboembolismo venoso, como sugerido em estudos epidemiológicos. Drogas antifibrinolíticas São drogas que ligam-se, reversivelmente, ao plasminogênio, bloqueando a sua ligação à fibrina, sua ativação e transformação à plasmina. Como essas drogas penetram no espaço extravascular e acumulam-se nos tecidos, admite-se que a sua eficácia decorra da inibição da fibrinólise tecidual e consequente estabilização do coágulo. Existem dois derivados sintéticos com atividade antifibrinolítica, o ácido aminocaproico e o ácido tranexâmico, que é dez vezes mais potente do que o ácido aminocaproico. Não há evidências de que o uso do ácido tranexâmico possa causar eventos trombóticos ou reações colaterais irreversíveis, e por isso pode ser utilizado cronicamente. Existe uma única contraindicação para o seu emprego, que é a presença de hematúria originada das vias urinárias altas, devido ao risco de formação de coágulos no ureter e consequente hidronefrose. O melhor efeito do ácido tranexâmico é obtido quando ele é empregado para hemorragias de mucosas, sendo muito utilizado para o tratamento de menorragias, quando é usado desde o início do fluxo menstrual até ocorrer redução significante do sangramento, ou então na dose de 4 gramas, numa única administração diária, por 3 a 5 dias. Os antifibrinolíticos também podem ser utilizados localmente ou topicamente em lesões hemorrágicas. Estrógenos Os estrógenos aumentam as concentrações plasmáticas do FVW, aparentemente, por estimulação direta da célula endotelial, porém de modo variável e sem possibilidade de prever. O uso continuado de anticoncepcionais orais contendo estrogênios poderá ser eficaz contra a menorragia em situações em que os antifibrinolíticos foram ineficientes, mesmo em mulheres com doença do tipo 3, em que essa modalidade terapêutica não afeta as concentrações plasmáticas do fator VIII e do fator von Willebrand. Prednisona Na hematúria, tanto os antifibrinolíticos como os concentrados de fator aumentam o risco da formação de coágulos com consequente cólica renal. Nos pacientes com doença do tipo 3, em que o DDAVP é ineficaz, a prednisona pode ser útil no tratamento da hematúria de intensidade moderada. Aparentemente, atua nos capilares renais e não propicia a formação de coágulos maiores. Hemostasia local O uso local de selantes de fibrinaé indicado nas exodontias e nas postectomias, sempre associado à aplicação local e sistêmica de droga antifibrinolítica. A aplicação de Gelfoam, embebido com antifibrinolítico, é eficaz no tratamento de epistaxe. As opções de tratamento são as seguintes: · Medidas locais e agentes antifibrinolíticos (ex: ácido tranexâmico para sangramento leve). · Infusão de DDAVP para pacientes com VWD tipo 1. Isso faz liberar VWF de células endoteliais 30 - Perda de sangue I Fabiana Bilmayer minutos após a infusão. · Concentrados de FVW de alta pureza para pacientes com níveis muito baixos de VWF. São usados concentrados de fator VIII/VWF derivados de plasma. VWF recombinante já está em estudos clínicos. 3. Sobre hemofilia A, B e C a. Definição ● Hemofilia A - fator 8 (VIII) ● Hemofilia B - fator 9 (IX) *O problema está na via intrínseca!* A hemofilia é uma doença hemorrágica congênita, que resulta em uma deficiência no processo de coagulação sanguínea. É caracterizada pela deficiência ou ausência de um dos 12 fatores de coagulação (Rodrigues, 2005). Na hemofilia A ocorre a deficiência do fator VIII (FVIII), e na hemofilia B, do fator IX (FIX). Em ambos os tipos de hemofilia, as características de hereditariedade, o quadro clínico e a classificação são semelhantes. Ambas as doenças são de transmissão genética, ligadas ao cromossomo X, portanto, têm manifestações clínicas, na maioria das vezes, nos indivíduos do sexo masculino. MANIFESTAÇÕES GENÉTICAS A hemofilia é uma doença hemorrágica genético-hereditária de caráter recessivo condicionada por um gene localizado no braço longo do cromossomo sexual X. A hemofilia A está ligada à presença de um gene anormal localizada na posição Xq28, no cromossomo X. As mutações no enorme gene do fator VIII na ponta do braço longo do cromossomo X, incluem inversões gênicas, deleções, mutações de ponto e inserções. O gene que controla a produção do fator IX também se localiza no cromossomo X, mas na posição Xq27. As características recessivas ligadas ao X têm um padrão distinto de herança. Primeiro, estas características aparecem mais frequentemente nos homens, pois estes devem herdar apenas uma única cópia do alelo para apresentar a característica, enquanto as mulheres devem herdar duas cópias do alelo, uma de cada genitor, para serem afetadas. Uma mutação recessiva ligada ao X é expressa fenotipicamente em todos os homens que a recebem, mas apenas nas mulheres que são homozigóticas para a mutação. Quando um homem hemofílico se casa com uma mulher normal, seus filhos serão sempre normais, pois o cromossomo Y não transmite a doença. Porém, suas filhas serão todas portadoras. A doença nem sempre se manifesta na geração imediatamente seguinte à de um paciente hemofílico, podendo pular até algumas gerações. A mutação sofrida pelo gene responsável pela síntese do fator VIII ou IX costuma ocorrer em muitas gerações anteriores à do paciente. As mulheres, chamadas de portadoras da doença, têm a mesma chance de gerar meninos hemofílicos ou não, ou meninas portadoras ou não. FISIOPATOLOGIA Embora sejam doenças de transmissão recessiva ligada ao cromossomo X, em 30 a 40% dos casos de hemofilia A não há história familiar, enquanto na hemofilia B a maioria dos pacientes relata história familiar de diátese hemorrágica. O gene que codifica o fator VIII é um dos maiores conhecidos. Os defeitos genéticos da hemofilia A compreendem deleções, inserções e mutações por todo o gene do fator VIII. Aproximadamente 40% da hemofilia A grave é causada pela inversão do íntron 22. Como o gene do fator IX tem aproximadamente um terço do tamanho do fator VIII, suas mutações genéticas são mais facilmente identificáveis, em geral, causadas por pequenas alterações. Mais de 300 mutações foram relatadas, predominantemente com substituição de um único par de base. b. Apresentação clínica - característica clínica do doente Como as hemofilias apresentam manifestações hemorrágicas semelhantes, não é possível distinguir a hemofilia A da hemofilia B somente através de critérios clínicos. - Perda de sangue I Fabiana Bilmayer As hemofilias caracterizam-se clinicamente pelo aparecimento de sangramentos, que ocorrem após traumatismos de intensidade mínima. Contudo, muitas manifestações hemorrágicas peculiares às hemofilias, como as hemartroses e os sangramentos musculares, muitas vezes acontecem sem associação com traumas evidentes. Uma vez que a função plaquetária é normal, não há sangramentos após pequenos ferimentos cortantes. Os pacientes com deficiências graves apresentam manifestações hemorrágicas de repetição e hemartroses graves, as quais, quando não tratadas adequadamente, evoluem para artropatias crônicas e incapacitantes. Esses pacientes estão sujeitos a hemorragias graves, que podem comprometer órgãos vitais. Na hemofilia moderada, os hematomas e hemartroses nem sempre estão associados a traumatismos evidentes. Embora essas últimas manifestações não sejam tão intensas quanto na hemofilia grave, se não tratadas adequadamente poderão evoluir com instabilidade articular, resultando em sangramentos importantes e frequentes, fazendo com que a doença se expresse de maneira mais grave do que poderia indicar o nível plasmático do fator deficiente. Nas formas leves de hemofilia, os sangramentos somente ocorrem após traumas ou cirurgias, porém podem apresentar hemartroses espontâneas, especialmente em articulações onde previamente ocorreu hemorragia pós-traumática não tratada corretamente. Muitas vezes, essa forma de hemofilia é diagnosticada somente na idade adulta. Quando o nível plasmático do fator deficiente é superior a 40% não há manifestações hemorrágicas. No período neonatal somente surgem sangramentos se o recém-nascido é submetido a traumatismos ou cirurgias (por exemplo, postectomia). As manifestações hemorrágicas surgem quando começam a engatinhar. Nessa ocasião os sangramentos orais são frequentes, principalmente os originados da mordedura da língua e dos lábios, tendendo a ser intermitentes e podendo persistir por semanas. Quando a criança começa a andar, surgem as hemorragias articulares e musculares, além das equimoses pós-traumáticas. A expressão clínica do defeito genético da hemofilia A varia de família para família, porém, numa mesma família, a gravidade das manifestações clínicas e das alterações laboratoriais são relativamente constantes. O aparecimento de manifestações clínicas mais graves, dentro da mesma família, faz pensar no desenvolvimento de inibidor ou de lesão anatômica que predispõem a sangramentos frequentes ou graves. Hemartroses As hemartroses constituem as manifestações hemorrágicas mais comuns dos hemofílicos, principalmente na forma grave. As articulações mais acometidas são: - Joelhos - Cotovelo - Tornozelos - Ombros - Coxofemorais - Punhos. Hematomas Os hematomas musculares constituem a segunda causa mais comum de sangramento em pacientes hemofílicos graves, podendo ocorrer espontaneamente ou após pequenos traumatismos. Os hematomas, quando não tratados adequadamente, podem resultar em organização fibrosa, com contratura muscular. Hematúria Sua intensidade é variável, desde leve alteração da coloração urinária à hematúria franca, com eliminação de coágulos. Em geral, a hematúria não se associa a alterações do sistema geniturinário, mas, se é persistente e, principalmente, pós-traumática, deve ser investigada. Usualmente a hematúria é autolimitada, podendo persistir por dias a semanas, independentemente do tratamento de substituição com concentrado de fator. Aparentemente, a presença de hematúria de repetição não leva à alteração significante da função renal, a longo prazo - Perda de sangue I Fabiana Bilmayer Sangramento gastrintestinal A presença de sangramento gastrintestinal, na forma de hematêmese e/ou melena, não é incomum. Na maioria dos casos em que o sangramento é persistente, ou recorrente, existe uma lesão anatômica, mais comumente gastrite ou úlcera péptica, que é dez vezes mais frequente na população hemofílica, porém, em razão das hepatites crônicassecundárias ao vírus C, a presença de varizes de esôfago deve ser investigada. Sangramento em SNC O sangramento intracraniano é o evento hemorrágico mais perigoso para o paciente hemofílico, ocorrendo após traumatismos ou espontaneamente. Pode ocorrer em qualquer faixa etária, no entanto a prevalência do sangramento intracraniano apresenta dois picos, na infância, sobretudo em recém-nascidos, e após os 50 anos de idade. Os sintomas comumente surgem logo após o evento traumático, mas às vezes podem aparecer depois de dias ou semanas, principalmente nos hematomas subdurais. Todo hemofílico com cefaléia não habitual, especialmente se intensa ou com duração superior a 4 horas, deve ser investigado quanto à presença de sangramento intracraniano e, na sua suspeita, deve ser imediatamente tratado com reposição de fator seguido de avaliação com tomografia computadorizada. A punção lombar somente pode ser realizada após reposição de fator para 50% (0,5 UI/mL). Outros sangramentos Ferimentos superficiais, geralmente, não apresentam sangramento anormal. Os ferimentos mais extensos e profundos podem, inicialmente, não sangrar, visto que a hemostasia primária é normal. Porém, tendem a apresentar sangramento tardio, se não há tratamento de reposição adequado. As punções venosas, feitas cuidadosamente, não apresentam perigo; quando traumáticas, podem-se evitar complicações posteriores exercendo-se pressão no local puncionado. Injeções subcutâneas, intracutâneas e intramusculares, desde que de pequenos volumes, raramente produzem hematomas se a pressão digital é mantida por 5 minutos. Devem ser evitadas as injeções intramusculares de grandes volumes. CLASSIFICAÇÃO DA GRAVIDADE A frequência e a gravidade do quadro hemorrágico estão, geralmente, relacionadas com as concentrações plasmáticas do fator deficiente, de modo que a gravidade da doença é diretamente proporcional ao grau de deficiência do fator. De modo geral, as hemofilias A e B são classificadas em graves, moderadas e leves, correspondendo a níveis plasmáticos do fator VIII ou IX inferiores a 1%, entre 1 e 5% e > 5 até 40%, respectivamente. O paciente hemofílico grave terá história de hemorragias desde a infância, com o aparecimento posterior de sangramentos intra-articulares, hematomas musculares pós-traumáticos e mesmo espontâneos. A presença de sangramentos pós-exodontias e procedimentos cirúrgicos, principalmente amidalectomia, é outro sintoma característico. As formas leves de hemofilia podem trazer problemas diagnósticos, especialmente se o paciente nunca foi submetido a cirurgia. A história de manifestações hemorrágicas nos indivíduos do sexo masculino da família materna é importante para a orientação diagnóstica e para a avaliação da gravidade da doença. c. Abordagem diagnóstica + exames Nas hemofilias, os seguintes exames são anormais: ● Tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPa). ● Dosagem coagulométrica do fator. ● A contagem plaquetária, o tempo de sangramento e o Tempo de Protrombina (TP) são normais. Como os fatores VIII e IX fazem parte do mecanismo intrínseco da coagulação, os testes que avaliam essa via estarão anormais, havendo normalidade da contagem plaquetária, do tempo de sangramento e do - Perda de sangue I Fabiana Bilmayer Tempo de Protrombina (TP). Contudo, a intensidade do prolongamento do Tempo de Tromboplastina Parcial ativado (TTPa) irá depender da gravidade da hemofilia e do reagente utilizado. Nos pacientes com mais de 20% do fator VIII, o TTPa está discretamente prolongado ou no limite superior da normalidade. O prolongamento do TTPa é normalizado ao se adicionar igual volume de plasma normal. Na presença de inibidor para fator VIII, ou mais raramente para fator IX, a mistura do plasma normal ao plasma teste pode não normalizar o TTPa, embora a incubação da mistura por 2 horas a 37 o C possa ser necessária para detectar esse prolongamento, no caso do inibidor para o fator VIII. As hemofilias A e B exigem diferenciação específica entre elas para o tratamento adequado. A diferenciação com a hemofilia B é feita através das dosagens dos fatores VIII e IX. O diagnóstico diferencial entre a hemofilia A e a doença de von Willebrand é feito através do estudo da atividade antigênica e funcional do fator von Willebrand. As hemofilia A e B devem ser diferenciadas das outras deficiências da via intrínseca, que causam prolongamento do TTPa. A deficiência do fator XI acomete homens e mulheres, apresentando diátese hemorrágica mais leve do que as hemofilias. As deficiências dos fatores XII, pré calicreína e cininogênio de alto peso molecular, embora apresentem prolongamento do TTPa, não cursam com manifestações hemorrágicas. No caso da deficiência combinada dos fatores V e VIII, além do prolongamento do TTPa há prolongamento do TP e redução dos níveis dos fatores VIII e V (ao redor de 15- 20%), não associados à doença hepática. A hemofilia B é diferenciada da deficiência de vitamina K através da normalidade das concentrações plasmáticas dos fatores II, VII e X. d. Abordagem terapêutica (tratamento) - como controlar os hematomas, equimoses O tratamento é habitualmente realizado em centros de tratamento com equipe multiprofissional capacitada e com treinamento no manejo desses pacientes. A abordagem é complexa e inclui o uso de terapia de reposição de concentrado do fator deficiente, tratamento adjuvante, preventivo e o tratamento das complicações associadas à hemofilia. O uso difuso de concentrados de fatores da coagulação permite que os hemofílicos sejam tratados prontamente, inclusive em casa, permitindo uma vida praticamente normal. A terapia de substituição envolve a educação e treinamento de técnicas de auto infusão de concentrado de fator ao paciente e à sua família, o pilar do tratamento domiciliar. O maior objetivo do tratamento da hemofilia é a prevenção das hemartroses, uma vez que a artropatia hemofílica/artropatia crônica é a maior causa de morbidade nesses pacientes. A reposição com concentrados de fator da coagulação é o componente mais importante da terapia. O tratamento pode ser feito sob demanda ou de maneira profilática. O tratamento sob demanda deve ser instituído na presença das primeiras evidências de uma hemorragia, enquanto a profilaxia é feita visando evitar um quadro hemorrágico. Dessa maneira, a profilaxia pode ser feita antes de um procedimento, que pode resultar em hemorragia; como uma medida temporária, de curta duração, para reduzir uma tendência hemorrágica aumentada, ou, por período prolongado, permanente, a fim de serem evitadas as hemartroses e o desenvolvimento das artropatias. A profilaxia primária consiste na reposição contínua, regular e prolongada de fator, em crianças com menos de dois anos de idade, - Perda de sangue I Fabiana Bilmayer iniciada depois da primeira hemartrose ou mesmo antes de qualquer sangramento articular clinicamente evidente. Algumas vezes a profilaxia pode ser iniciada após um sangramento grave. As maiores dificuldades para a implementação dessa modalidade terapêutica são a dificuldade de acesso venoso e o alto custo. Os benefícios dessa modalidade terapêutica foram evidenciados recentemente em um estudo prospectivo, randomizado, onde foi observada redução de 83% na ocorrência de sangramentos. Terapia de substituição: As manifestações hemorrágicas dos pacientes hemofílicos devem ser tratadas com a infusão do fator deficiente. Diferentes concentrados liofilizados comerciais de fator VIII ou IX são disponíveis na atualidade, obtidos a partir de plasma humano, os quais são submetidos a processos para inativação viral, ou obtido por tecnologia recombinante. Ao se planejar o tratamento de um paciente hemofílico A ou B com concentrado de fator VIII e IX, respectivamente, deve-se considerar que o nível hemostático do fator a ser alcançado varia com o tipo e a localização do sangramento ou como o procedimento a ser realizado. Devido a características moleculares, a infusão de 1 U fator VIII/kg de peso corpóreo resulta em incremento plasmático de 2 U/dLou 2%, e a meia-vida do fator VIII é de aproximadamente 8 a 12 horas. A infusão de 1 U fator IX/kg de peso resulta num incremento plasmático de 1 U/ dL ou 1% e a meia-vida do fator IX é de 18 a 24 horas. A reposição dos concentrados de fatores pode ser realizada através da infusão intermitente (em bolus) ou através da infusão contínua. A desvantagem da reposição intermitente, para qualquer modalidade terapêutica, inclui a grande variação no nível plasmático da droga, dificuldade em se medir o valor que represente um estado estável, além do inconveniente para a enfermagem. Enquanto a infusão intermitente requer picos elevados de fator a fim de manter um nível mínimo, abaixo do qual existe risco iminente de sangramento, a infusão contínua se caracteriza por mantê-lo constante, ligeiramente acima desse valor mínimo. A infusão contínua é utilizada sobretudo em situações em que há necessidade de internação (por exemplo, em pós-operatórios e grandes hemorragias. Outras: A desmopressina (DDAVP) pode ser utilizada como modalidade terapêutica nos pacientes com hemofilia A leve e moderada, na mesma dose utilizada para doença de von Willebrand. O grau de resposta individual deve ser determinado antes de sua utilização nos episódios hemorrágicos. As drogas antifibrinolíticas têm sido usadas como terapia adjuvante nos sangramentos de mucosas, sendo muito úteis nos procedimentos odontológicos. A dose usual do ácido tranexâmico é de 10 mg/kg/dose, por via intravenosa, e 20 mg/kg/dose, por via oral, três vezes ao dia. O ácido épsilon amicocaproico é usado na dose inicial de 50 a 60 mg/kg, cada 4 horas por via intravenosa, seguida da mesma dosagem por via oral. As drogas antifibrinolíticas estão formalmente contraindicadas na presença de hematúria. Medicamentos contendo ácido acetilsalicílico devem ser evitados por causa da ação antiplaquetária. Como analgésico, pode ser empregado o paracetamol, em algumas ocasiões, associado à codeína. Para os adultos, com dor mais intensa, o dextropropoxifeno pode ser utilizado. Anti-inflamatórios, como o ibuprofeno e o naproxeno, podem ser úteis em algumas situações. Os inibidores da COX-2, por não interferirem com a função plaquetária, representam outra opção terapêutica. COMPLICAÇÕES Artropatia hemofílica crônica A artropatia hemofílica crônica é a sequela mais frequente e incapacitante em pacientes hemofílicos, e acomete principalmente os joelhos, tornozelos, cotovelos e coxofemorais. - Perda de sangue I Fabiana Bilmayer As hemartroses recorrentes causam danos articulares que ocorrem na membrana sinovial (hiperplasia e hiperemia) e causam instabilidade articular, resultante da hipo/atrofia da musculatura periarticular. Admite-se que o sangramento intra-articular tenha origem nos vasos sinoviais, espontaneamente ou após traumatismos não evidentes ou triviais, com a hemorragia dirigindo-se para a cavidade articular ou dentro da diáfise ou epífise óssea. A presença do sangue na região intra-articular, associada ao espasmo muscular, faz com que ocorra aumento da pressão no espaço sinovial. Após um primeiro episódio de hemartrose, a articulação pode retornar ao estado funcional normal, porém, mais comumente, não há absorção completa do sangue, o qual induz alterações inflamatórias crônicas e proliferativas da membrana sinovial, fazendo com que a articulação permaneça edemaciada e dolorosa por período prolongado, mesmo na ausência de novas hemorragias (sinovite). Com a recorrência dos sangramentos, a membrana sinovial torna-se progressivamente mais espessa e mais vascularizada, formando-se dobras e vilosidades, as quais predispõem a novas hemorragias secundárias aos mínimos traumatismos. As vilosidades mostram-se maiores do que o normal, com hiperplasia das células superficiais, infiltração de linfócitos e plasmócitos, e aumento de tecido fibroso. Esse ciclo vicioso de ressangramentos estabelece uma articulação-alvo.
Compartilhar