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1 Júlia Morbeck – @med.morbeck Objetivos 1- Rever o processo de coagulação sanguínea; 2- Discutir sobre a epidemiologia, etiologia e fisiopatologia das hemofilias; 3- Debater sobre as manifestações clínicas das hemofilias; 4- Explicar como é feito o diagnóstico e o tratamento das hemofilias. Coagulação Sanguínea ↠ O termo hemostasia significa prevenção de perda sanguínea. (GUYTON, 13ª ed.) ↠ É uma sequência de respostas que interrompe o sangramento. (TORTORA, 14ª ed.) OBS.: Quando bem sucedida, a hemostasia evita hemorragia, que consiste na perda de grande volume de sangue dos vasos. Os mecanismos hemostáticos conseguem evitar a hemorragia de vasos sanguíneos pequenos, porém as hemorragias substanciais de vasos maiores demandam intervenção médica. (TORTORA, 14ª ed.) ↠ A hemostasia é um processo precisamente orquestrado, envolvendo as plaquetas, os fatores da coagulação e o endotélio, que ocorre no local da lesão vascular e culmina na formação do tampão fibrinoplaquetário, que serve para prevenir ou limitar a extensão do sangramento. A sequência geral dos eventos que levam à hemostasia no local da lesão vascular é: (ROBBINS & COTRAN, 9ª ed.). ➢ A vasoconstrição arteriolar ocorre imediatamente e reduz notoriamente o fluxo sanguíneo na área lesionada. Ela é mediada por mecanismos reflexos neurogênicos e incrementada pela secreção local de fatores como a endotelina, um potente vasoconstritor derivado do endotélio. O efeito é, contudo, transitório, e o sangramento poderia prosseguir se não houvesse a ativação das plaquetas e dos fatores da coagulação. ➢ Hemostasia primária: a formação do tampão plaquetário. A descontinuidade do endotélio expõe o fator de von Willebrand (vWF) e o colágeno subendoteliais, que promovem a aderência e ativação das plaquetas. A ativação das plaquetas resulta em uma alteração importante em sua forma (de pequenos discos arredondados para placas achatadas, com prolongamentos espiculados que aumentam acentuadamente sua área da superfície), assim como na liberação de grânulos secretores. Em alguns minutos o produto secretado recruta plaquetas adicionais, que são agregadas e formam um tampão hemostático primário. ➢ Hemostasia secundária: deposição de fibrina. O fator tecidual é também exposto no local da lesão. O fator tecidual é uma glicoproteína pró- coagulante ligada a membrana que é normalmente expressa pelas células subendoteliais das paredes vasculares, como as células musculares lisas e os fibroblastos. O fator tecidual se liga e ativa o fator VII (ver adiante), colocando em movimento uma cascata de reações que culmina na formação da trombina. A trombina cliva o fibrinogênio em circulação em fibrina insolúvel, criando uma malha de fibrina, e também é um potente ativador de plaquetas, promovendo a agregação adicional de plaquetas no local da lesão. Essa sequência, denominada hemostasia secundária, consolida o tampão plaquetário inicial (ou primário). CASCATA DE COAGULAÇÃO ↠ A cascata de coagulação é uma série de reações enzimáticas amplificadoras que culminam com a deposição de um coágulo de fibrina insolúvel (ROBBINS & COTRAN, 9ª ed.). APG 21 – “LAÇOS DE SANGUE” 2 Júlia Morbeck – @med.morbeck Com base nas pesquisas realizadas em laboratórios clínicos, a cascata de coagulação foi dividida tradicionalmente em vias intrínsecas e extrínsecas: (ROBBINS & COTRAN, 9ª ed.). ➢ O tempo de protrombina (TP) é um teste que avalia a função das proteínas na via extrínseca (fatores VII, X, V, II e fibrinogênio). Resumidamente, fator tecidual, fosfolipídios e cálcio são adicionados ao plasma, e o tempo para a formação do coágulo de fibrina é registrado. ➢ O tempo de tromboplastina parcial (TTP) é um teste que avalia a função das proteínas na via intrínseca (fatores XII, XI, IX, VIII, X, V, II e fibrinogênio). Nesse teste, a coagulação de plasma é iniciada por meio da adição de partículas com carga negativa (p. ex., vidro fosco), que provocam a ativação do fator XII (fator Hageman), junto com fosfolipídios e cálcio, e o tempo de formação do coágulo de fibrina é registrado. OBS.: A maioria dos fatores de coagulação é identificada por numerais romanos que indicam a ordem da sua descoberta (não necessariamente a ordem da sua participação no processo de coagulação). (TORTORA, 14ª ed.) OBS.: Para indicar a forma ativada do fator uma letra minúscula “a” é acrescentada ao algarismo romano, como o Fator VIIIa, para indicar o estado ativado do Fator VIII. (GUYTON, 13ª ed.) FATOR DA COAGULAÇÃO SINÔNIMO FIBRINOGÊNIO Fator I PROTROMBINA Fator II FATOR TECIDUAL Fator III; tromboplastina tecidual CÁLCIO Fator IV FATOR V Proacelerina; fator lábil; globulina Ac (Ac-G) FATOR VII Acelerador da conversão sérica da protrombina (ACSP); proconvertina; fator estável FATOR VIII Fator anti-hemofílico (FAH); globulina anti-hemofílica (GAH); fator anti-hemofílico A FATOR IX Componente da tromboplastina plasmática (CTP); fator Christmas; fator anti-hemofílico B FATOR X Fator Stuart; fator Stuart-Prower FATOR XI Antecedente da tromboplastina plasmática (PTA); fator anti- hemofílico C FATOR XII Fator Hageman FATOR XIII Fator estabilizador da fibrina PRÉ-CALICREÍNA Fator Fletcher CININOGÊNIO DE ALTO PESO MOLECULAR Fator de Fitzgerald, cininogênio de APM (alto peso molecular) ➢ Estabilização e reabsorção do tampão. A fibrina polimerizada e as plaquetas agregadas sofrem contração para formar um tampão permanente, sólido, que previne hemorragias ulteriores. Nessa etapa, os mecanismos contrarreguladores (p. ex., ativador do plasminogênio tecidual, t-PA) são colocados em movimento limitando a coagulação no local da lesão e levando, finalmente, à reabsorção do tampão e ao reparo do tecido. Hemofilias OBS.: Foram descritas deficiências hereditárias de cada um dos fatores de coagulação. Hemofilia A (deficiência de fator VIII), hemofilia B (doença de Christmas, deficiência de fator IX) e doença de von 3 Júlia Morbeck – @med.morbeck Willebrand (VWD) são as mais frequentes; as demais são raras (HOFFBRAND; MOSS, 2018). ↠ A hemofilia é uma doença hemorrágica hereditária ligada ao cromossomo X, caracterizada pela deficiência ou anormalidade da atividade coagulante do fator VIII (hemofilia A) ou do fator IX (hemofilia B) (BRASIL, 2015). ↠ Na hemofilia, há pequenas quantidades de fator da coagulação ou não há presença do mesmo, fazendo com que a pessoa tenha crises hemorrágicas, que podem ser ocasionadas por traumas e que podem acometer os músculos e as articulações (ALCÂNTARA, 2019). Epidemiologia ↠ A hemofilia A (deficiência do fator VIII) afeta 1 em cada 5 mil nascidos vivos do sexo masculino (PORTH, 10ª ed.). ↠ A hemofilia B (deficiência do fator IX) ocorre em aproximadamente 1 em cada 20 mil pessoas, representando 15% de todos os casos de hemofilia. É genética e clinicamente semelhante à hemofilia A. (PORTH, 10ª ed.). ↠ A prevalência estimada da hemofilia é de aproximadamente um caso em cada 5.000 a 10.000 nascimentos do sexo masculino para a hemofilia A, e de um caso em cada 30.000 a 40.000 nascimentos do sexo masculino para a hemofilia B. A hemofilia A é mais comum que a hemofilia B e representa cerca de 80% dos casos (BRASIL, 2015). Etiologia ↠ As hemofilias ocorrem a partir de fatores hereditários ou adquiridos. As mesmas podem ser do tipo A ou B, sendo a do tipo A decorrente da escassez do fator VIII e a do tipo B, do fator IX. Quando os genes que são responsáveis por codificar os fatores VIII ou IX da coagulação sofrem alguma alteração genética, é a hemofilia obtida de forma hereditária. A adquirida é desenvolvida por auto anticorpos que associados a doenças autoimunes (ALCÂNTARA, 2019). ↠ As hemofilias sãotransmitidas quase que exclusivamente a indivíduos do sexo masculino por mães portadoras da mutação (cerca de 70% dos casos). Porém, em cerca de 30% dos casos, a doença origina-se a partir de uma mutação de novo, fenômeno que pode ocorrer na mãe ou no feto (BRASIL, 2015). ↠ Os casos decorrentes de mutações de novo são chamados de esporádicos, podendo tratar-se de pacientes isolados (um único caso presente), ou a ocorrência apenas entre irmãos, ou seja, ausente em gerações pregressas. Filhas de homem com hemofilia serão portadoras obrigatórias. Apesar de muito rara, a hemofilia pode ocorrer em mulher, em decorrência da união de homem com hemofilia e mulher portadora. Mais comumente, mulheres portadoras podem apresentar baixos níveis de fator VIII ou fator IX, evento este relacionado à inativação do cromossomo X “normal”, isto é, aquele que não carreia a mutação associada à hemofilia, processo conhecido como lionização (BRASIL, 2015). ↠ Os genes que codificam os fatores VIII e IX estão localizados no braço longo do cromossomo X (ZAGO et. al., 2013). Fisiopatologia HEMOFILIA A OBS.: O gene desse fator está situado no Xq28, onde é a banda mais distal do braço longo do cromossomo X. Possui grandes dimensões, com 186 kb de comprimento, constituindo-se de 9 kb de DNA organizado em 26 éxons. A sua estrutura consiste em 3 domínios principais: A, B e C. O fator VIII é produzido principalmente no fígado 4 Júlia Morbeck – @med.morbeck e células endoteliais dos vasos sanguíneos e, após a sua formação, é liberado para a circulação sanguínea e junto ao FvW plasmático formam um complexo (ALCÂNTARA, 2019). ↠ O gene do fator VIII está situado próximo à ponta do braço longo do cromossomo X. O gene é extremamente grande, consistindo de 26 éxons. A proteína fator VIII, codificada pelo gene, inclui uma região triplicada A1A2A3, uma região duplicada C1C2 e um domínio altamente glicosilado B, removido quando o fator VIII é ativado por trombina (HOFFBRAND; MOSS, 2018). ↠ A proteína é sintetizada nas células endoteliais. O defeito é a ausência ou um baixo nível plasmático de fator VIII. Cerca de metade dos pacientes tem mutações missence ou de mudança de moldura ou, ainda, deleções no gene do fator VIII. Em outros, observa-se uma inversão característica flip-tip, na qual o gene do fator VIII é quebrado por inversão na extremidade do cromossomo X. Essa mutação provoca uma forma clínica grave de hemofilia A (HOFFBRAND; MOSS, 2018). ↠ Os defeitos genéticos da hemofilia A compreendem deleções, inserções e mutações por todo o gene do fator VIII. Aproximadamente 40% dos casos de hemofilia A grave são causados pela inversão do íntron 22 do gene do fator VIII (ZAGO et. al., 2013). ↠ Em indivíduos do sexo masculino que não possuam o alelo normal, a deficiência manifesta-se clinicamente como hemofilia. O indivíduo afetado não irá transmitir a doença aos filhos porque o cromossomo Y é normal. Contudo, todas as suas filhas serão portadoras de um alelo alterado (mulheres portadoras de hemofilia), uma vez que herdam o cromossomo X paterno. A maioria dessas mulheres será clinicamente normal por causa da presença do alelo normal materno (ZAGO et. al., 2013). ↠ A mulher portadora poderá transmitir a doença para 50% dos seus filhos e o estado de portadora para 50% de suas filhas. As mulheres quando portadoras do gene mutante são habitualmente assintomáticas. A proporção com a qual o gene anormal é suprimido pelo alelo normal nas mulheres portadoras de hemofilia varia de acordo com o fenômeno da inativação randômica dos cromossomos X (hipótese de Lyon). Isto faz com que as taxas do fator VIII apresentem grandes variações, muitas vezes sobrepondo-se aos valores normais (ZAGO et. al., 2013). OBS.: Os estudos mostram que os ensaios de atividade do fator VIII detectam 35 a 75% das portadoras. Desse modo, a demonstração de níveis plasmáticos subnormais do fator VIII, através dos métodos usuais, sugere fortemente a presença do estado de portadora. Por outro lado, a presença de valores plasmáticos normais não exclui essa condição.2 Portanto, a quantificação isolada do fator VIII coagulante plasmático não permite fazer o diagnóstico preciso da situação de portadora (ZAGO et. al., 2013). ↠ Para a ocorrência de mulheres hemofílicas, existem as seguintes possibilidades: (ZAGO et. al., 2013). ➢ a forma mais comum é a observada numa minoria de mulheres heterozigotas, onde a “lyonização” é extrema, resultando na inativação do alelo normal na maioria das células e, consequentemente, em valores extremamente baixos do fator VIII coagulante; ➢ resultado da união de um hemofílico com uma mulher portadora, o que é um evento pouco frequente; ➢ presença de um alelo mutante em uma mulher com somente um cromossomo X, como no mosaicismo para a síndrome de Turner (genótipo XX/XO); ➢ raros casos de hemofilia A transmitida como doença autossômica dominante, decorrente de uma nova mutação, devendo a hemofilia A ser diferenciada da doença de von Willebrand subtipo 2N. HEMOFILIA B ↠ O fator IX é codificado por um gene junto ao do fator VIII, próximo à ponta do braço longo do cromossomo X. A síntese é dependente de vitamina K (HOFFBRAND; MOSS, 2018). 5 Júlia Morbeck – @med.morbeck Manifestações Clínicas OBS.: A herança e os aspectos clínicos da deficiência de fator IX são idênticos aos da hemofilia A. De fato, as duas doenças somente podem ser diferenciadas pela dosagem específica dos fatores (HOFFBRAND; MOSS, 2018). ↠ Como as hemofilias apresentam manifestações hemorrágicas semelhantes, não é possível distinguir a hemofilia A da hemofilia B somente através de critérios clínicos (ZAGO et. al., 2013). ↠ As manifestações clínicas na hemofilia A e B são as mesmas: contusões, hemartroses, sangramento nos músculos, sangramentos espontâneos, sangramentos prolongados depois de cortes, depois de extração dentária ou cirurgias (ALCÂNTARA, 2019). IMPORTANTE: As manifestações clínicas na hemofilia são relacionadas de acordo com a intensidade, que são leve, moderada e grave, e são classificadas de acordo com a quantidade dos fatores VIII e IX. A forma leve encontra-se entre 5% a 30% de fator na composição sanguínea, na forma moderada apresenta 1% a 5% de fator na composição sanguínea e na forma grave corresponde a menos de 1% de presença do fator no sangue (ALCÂNTARA, 2019). ↠ A forma grave se apresenta por hemartroses, sangramentos espontâneos ou sangramentos após traumas em músculos. As articulações mais atingidas são joelho, tornozelos e cotovelos, que são as hemorragias mais frequentes, ou seja, 80% dos sangramentos. Esses sangramentos podem ocorrer também em outros locais, como pele e mucosas. Certos hematomas podem ocasionar problemas graves na língua, pescoço, antebraço, panturrilha e músculo. As manifestações nos músculos e articulações são de dor, inchaço, movimentos limitados e elevação da temperatura no local atingido (ALCÂNTARA, 2019). ↠ Quando o fator no sangue está entre 1% e 5% é de intensidade moderada, e se diferencia por ter menos sangramentos espontâneos, mas com acentuada hemorragia em traumas e cirurgias. Já a leve é definida pela variação entre 5% e 30% da concentração do fator na corrente sanguínea, nessa classificação, tem-se menos hemorragias, podendo ser mais severas quando há traumatismos graves, extrações dentárias e cirurgias (ALCÂNTARA, 2019). OBS.: Porém podem apresentar hemartroses espontâneas, especialmente em articulações onde previamente ocorreu hemorragia pós-traumática não tratada corretamente (ZAGO et. al., 2013). HEMARTROSE ↠ As hemartroses constituem as manifestações hemorrágicas mais comuns dos hemofílicos, principalmente na forma grave. As articulações mais acometidas são os joelhos, cotovelos, tornozelos,ombros, coxofemorais e punhos (ZAGO et. al., 2013). ↠ Nos pacientes com hemofilia grave, as hemartroses usualmente começam aos 2 ou 3 anos de idade. As hemartroses são, geralmente, espontâneas ou sem traumatismo evidente. Muitos pacientes irão apresentar uma articulação com sangramentos mais frequentes, por causa das alterações crônicas que resultam na artropatia hemofílica (ZAGO et. al., 2013). 6 Júlia Morbeck – @med.morbeck HEMATOMAS ↠ Os hematomas musculares constituem a segunda causa mais comum de sangramento em pacientes hemofílicos graves, podendo ocorrer espontaneamente ou após pequenos traumatismos (ZAGO et. al., 2013). ↠ Quando pequenos e superficiais, os hematomas são autolimitados e não apresentam maior significado clínico, exceto o desconforto local. Contudo, em pacientes com hemofilia grave eles podem aumentar progressivamente e dissecar em todas as direções, acarretando consequências muito sérias, devido à compressão de estruturas nobres (ZAGO et. al., 2013). OBS.: Os hematomas, quando não tratados adequadamente, podem resultar em organização fibrosa, com contratura muscular (ZAGO et. al., 2013). Hematomas de faringe e de retrofaringe podem ser secundários a faringites virais. Hematomas musculares no antebraço podem causar paralisia dos nervos mediano ou ulnar ou a contratura isquêmica da mão (Síndrome de Volkmann). Sangramentos na panturrilha podem levar à paralisia do nervo fibular, ou outros nervos, ou a deformidade fixa em equinovaro do tornozelo (ZAGO et. al., 2013). Um hematoma particularmente importante é o que ocorre no músculo íleo-psoas, o qual se delimita com a pelve, na face posterior, e com a forte fáscia muscular, na face anterior, local por onde passa o nervo femoral. Desse modo, mesmo hematomas de pequeno volume causam dor, de intensidade variável, no quadrante inferior do abdômen, acompanhada de flexão da coxa. O comprometimento do nervo femoral causa dor na face anterior da coxa e, com o aumento da pressão sobre o nervo, parestesia, hiperestesia, diminuição da força muscular do quadríceps e, eventualmente, paralisia dos músculos flexores da coxa. A pressão sobre as fibras musculares pode levar à morte celular, com presença de leucócitos polimorfonucleares, células mononucleares fagocíticas e células imaturas do tecido conectivo, terminando com a ocorrência de fibrose. Hemorragias retroperitoniais e intraperitoniais também são comuns (ZAGO et. al., 2013). IMPORTANTE: Sangramentos espontâneos ou pós-traumáticos da língua, da musculatura ou de partes moles do pescoço ou da garganta podem levar à rápida obstrução das vias aéreas superiores, o que exige tratamento rápido e adequado (ZAGO et. al., 2013). 7 Júlia Morbeck – @med.morbeck HEMATÚRIA ↠ A hematúria é uma manifestação comum, ocorrendo em 2/3 dos hemofílicos, em geral após os 12 anos de idade. Sua intensidade é variável, desde leve alteração da coloração urinária à hematúria franca, com eliminação de coágulos. Em geral, a hematúria não se associa a alterações do sistema geniturinário, mas, se é persistente e, principalmente, pós-traumática, deve ser investigada (ZAGO et. al., 2013). ↠ Usualmente a hematúria é autolimitada, podendo persistir por dias a semanas, independentemente do tratamento de substituição com concentrado de fator. Aparentemente, a presença de hematúria de repetição não leva à alteração significante da função renal, a longo prazo (ZAGO et. al., 2013). SANGRAMENTO GASTROINTESTINAL ↠ A presença de sangramento gastrintestinal, na forma de hematêmese e/ou melena, não é incomum. Na maioria dos casos em que o sangramento é persistente, ou recorrente, existe uma lesão anatômica, mais comumente gastrite ou úlcera péptica, que é dez vezes mais frequente na população hemofílica, porém, em razão das hepatites crônicas secundárias ao vírus C, a presença de varizes de esôfago deve ser investigada (ZAGO et. al., 2013). Sangramento em sistema nervoso central ↠ O sangramento intracraniano é o evento hemorrágico mais perigoso para o paciente hemofílico, ocorrendo após traumatismos ou espontaneamente. Pode ocorrer em qualquer faixa etária, no entanto a prevalência do sangramento intracraniano apresenta dois picos, na infância, sobretudo em recém-nascidos, e após os 50 anos de idade (ZAGO et. al., 2013). Os sintomas comumente surgem logo após o evento traumático, mas às vezes podem aparecer depois de dias ou semanas, principalmente nos hematomas subdurais. Todo hemofílico com cefaleia não habitual, especialmente se intensa ou com duração superior a 4 horas, deve ser investigado quanto à presença de sangramento intracraniano e, na sua suspeita, deve ser imediatamente tratado com reposição de fator seguido de avaliação com tomografia computadorizada. A punção lombar somente pode ser realizada após reposição de fator para 50% (0,5 UI/mL) (ZAGO et. al., 2013). Outros sangramentos ↠ Ferimentos superficiais, geralmente, não apresentam sangramento anormal. Os ferimentos mais extensos e profundos podem, inicialmente, não sangrar, visto que a hemostasia primária é normal. Porém, tendem a apresentar sangramento tardio, se não há tratamento de reposição adequado (ZAGO et. al., 2013). ↠ As punções venosas, feitas cuidadosamente, não apresentam perigo; quando traumáticas, podem-se evitar complicações posteriores exercendo-se pressão no local 8 Júlia Morbeck – @med.morbeck puncionado. Injeções subcutâneas, intracutâneas e intramusculares, desde que de pequenos volumes, raramente produzem hematomas se a pressão digital é mantida por 5 minutos. Devem ser evitadas as injeções intramusculares de grandes volumes (ZAGO et. al., 2013). Diagnóstico ↠ O diagnóstico confirmatório da hemofilia A e B baseia- se na quantificação da atividade coagulante dos fatores VIII e IX, respectivamente. A suspeita diagnóstica baseia-se na história clínica hemorrágica e/ou antecedente familiar (ZAGO et. al., 2013). EXAMES LABORATORIAIS ↠ Como os fatores VIII e IX fazem parte do mecanismo intrínseco da coagulação, os testes que avaliam essa via estarão anormais, havendo normalidade da contagem plaquetária, do tempo de sangramento e do Tempo de Protrombina (TP). Contudo, a intensidade do prolongamento do Tempo de Tromboplastina Parcial ativado (TTPa) irá depender da gravidade da hemofilia e do reagente utilizado (ZAGO et. al., 2013). OBS.: Nos pacientes com mais de 20% do fator VIII, o TTPa está discretamente prolongado ou no limite superior da normalidade. O prolongamento do TTPa é normalizado ao se adicionar igual volume de plasma normal. Na presença de inibidor para fator VIII, ou mais raramente para fator IX, a mistura do plasma normal ao plasma teste pode não normalizar o TTPa, embora a incubação da mistura por 2 horas a 37 o C possa ser necessária para detectar esse prolongamento, no caso do inibidor para o fator VIII (ZAGO et. al., 2013). DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL As hemofilias A e B exigem diferenciação específica entre elas para o tratamento adequado. A diferenciação com a hemofilia B é feita através das dosagens dos fatores VIII e IX (ZAGO et. al., 2013). O diagnóstico diferencial entre a hemofilia A e a doença de von Willebrand é feito através do estudo da atividade antigênica e funcional do fator von Willebrand (ZAGO et. al., 2013). As hemofilias A e B devem ser diferenciadas das outras deficiências da via intrínseca, que causam prolongamento do TTPa. A deficiência do fator XI acomete homens e mulheres, apresentando diátese hemorrágica mais leve do que as hemofilias (ZAGO et. al., 2013). As deficiências dos fatores XII, precalicreína e cininogênio de alto peso molecular, embora apresentem prolongamento do TTPa, não cursam com manifestações hemorrágicas (ZAGO et. al., 2013). No caso da deficiência combinada dos fatores V eVIII, além do prolongamento do TTPa há prolongamento do TP e redução dos níveis dos fatores VIII e V (ao redor de 15- 20%), não associados à doença hepática (ZAGO et. al., 2013). A hemofilia B é diferenciada da deficiência de vitamina K através da normalidade das concentrações plasmáticas dos fatores II, VII e X (ZAGO et. al., 2013). Tratamento ↠ O tratamento é habitualmente realizado em centros de tratamento com equipe multiprofissional capacitada e com treinamento no manejo desses pacientes. A abordagem é complexa e inclui o uso de terapia de reposição de concentrado do fator deficiente, tratamento adjuvante, preventivo e o tratamento das complicações associadas à hemofilia (ZAGO et. al., 2013). OBS.: A terapia de substituição envolve a educação e treinamento de técnicas de autoinfusão de concentrado de fator ao paciente e à sua família, o pilar do tratamento domiciliar (ZAGO et. al., 2013). ↠ O maior objetivo do tratamento da hemofilia é a prevenção das hemartroses, uma vez que a artropatia hemofílica é a maior causa de morbidade nesses pacientes. A reposição com concentrados de fator da coagulação é o componente mais importante da terapia. O tratamento pode ser feito sob demanda ou de maneira profilática (ZAGO et. al., 2013). 9 Júlia Morbeck – @med.morbeck ↠ O tratamento sob demanda deve ser instituído na presença das primeiras evidências de uma hemorragia, enquanto a profilaxia é feita visando evitar um quadro hemorrágico. Dessa maneira, a profilaxia pode ser feita antes de um procedimento, que pode resultar em hemorragia; como uma medida temporária, de curta duração, para reduzir uma tendência hemorrágica aumentada, ou, por período prolongado, permanente, a fim de serem evitadas as hemartroses e o desenvolvimento das artropatias (ZAGO et. al., 2013). ↠ Dentre os tratamentos disponíveis com os produtos encontra-se: ➢ Concentrado do fator, que é o tratamento de escolha para hemofilia. O mesmo é liofilizado e diluído e pode ser feito a partir do sangue humano (chamado produtos derivados de plasma). Sua produção ocorre em instalações de fabricação sofisticadas e, além disso, toda a comercialização do concentrado do fator é tratado para remover ou inativar vírus transmitidos por sangue (ALCÂNTARA, 2019). ➢ O Crioprecipitado, é derivado do sangue e é obtido a partir do plasma por meio de processos físico-químicos. O mesmo contém os fatores XIII, VIII, fator de von Willebrand e fibrinogênio. O Crioprecipitado pode ser feito em instalações locais de coleta de sangue, e é derivado do Plasma Fresco Congelado (PFC). O Crioprecipitado é efetivo para sangramentos nas articulações e músculos, mas menos seguro de contaminação viral do que concentrados, além disso, é mais difícil de armazenar e administrar (ALCÂNTARA, 2019). INIBIDORES O tratamento atual e mais clássico da hemofilia A envolve a reposição do fator VIII com concentrados de fator VIII purificados do plasma de doadores (pdFVIII) ou o uso de produtos recombinantes (rFVIII). Entretanto, uma das dificuldades enfrentadas em relação a reposição do fator é a sua meia-vida que é baixa, cerca de 10 a 12 horas. Dessa maneira, para que as hemorragias sejam evitadas, é necessário que a reposição do fator VIII seja feita a cada 2 a 3 dias, mantendo assim os níveis adequados do mesmo (ALCÂNTARA, 2019). ↠ Outra dificuldade enfrentada devido ao tratamento, são os inibidores, com isso ocorre o desenvolvimento de anticorpos capazes de neutralizar a função coagulante do FVIII exógeno administrado. Com a presença desses inibidores, os episódios hemorrágicos são difíceis de serem controlados, pois há o prejuízo da indução da hemostasia terapêutica a partir da reposição do concentrado de FVIII (ALCÂNTARA, 2019). ↠ Os pacientes com Hemofilia A desenvolvem inibidores que são aloanticorpos e que anulam a atividade coagulante do fator VIII. A presença dos inibidores ocorrem em 10 a 15% dos portadores da forma leve ou moderada da doença e de 20 a 30% dos portadores da forma grave. Em relação ao desenvolvimento dos inibidores de FVIII pouco se sabe, apesar disso, duas causas são relacionadas ao paciente: a competência da resposta imune e a mutação no gene do FVIII (ALCÂNTARA, 2019). ↠ Aqueles que possuem maiores alterações no gene, como inversões, deleções, mutações sem sentido, são os que possuem maior risco de produzir anticorpos anti-FVIII, isso é explicado pela falta de FVIII circulante e a falta de aquisição da tolerância imunológica. A seleção das células T auto-reativas no timo, que é iniciada no final do primeiro trimestre do desenvolvimento embrionário, é impedida pela ausência do FVIII, dessa forma, o FVIII exógeno usado no tratamento da hemofilia A é visto como proteína estranha, provocando uma resposta imune (ALCÂNTARA, 2019). COMPLICAÇÕES: Entre as complicações observadas na hemofilia, estão as decorrentes dos sangramentos, como a artropatia hemofílica, e decorrentes do tratamento, como as doenças transmissíveis por transfusões sanguíneas (ex. hepatites B e C e HIV) e o desenvolvimento de aloanticorpos (inibidores) contra o fator deficiente (ZAGO et. al., 2013). 10 Júlia Morbeck – @med.morbeck Referências TORTORA, Gerard J. Princípios de anatomia e fisiologia / Gerard J. Tortora, Bryan Derrickson; tradução Ana Cavalcanti C. Botelho... [et al.]. – 14. ed. – Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2016. GUYTON & HALL. Tratado de Fisiologia Médica, 13ª ed. Editora Elsevier Ltda., 2017 KUMAR, Vinay; ABBAS, Abul; ASTER, Jon. Robbins & Cotran Patologia - Bases Patológicas das Doenças. Grupo GEN, 2016. HOFFBRAND, A V.; MOSS, P. A H. Fundamentos em hematologia de Hoffbrand. Grupo A, 2018. ZAGO et. al. Tratado de Hematologia, 1ª ed. Editora Atheneu, 2013. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Manual de hemofilia, 2ª ed. Brasília: Ministério da Educação, 2015. ALCÂNTARA, A. L. M. Hemofilia: fisiopatologia e tratamentos. Trabalho de conclusão de curso, Brasília, 2019.
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