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Sexualidade e gênero: perspectivas históricas e sociais APRESENTAR A DEFINIÇÃO DE "SEXUALIDADE" E DISCUTIR OS ASPECTOS HISTÓRICOS E SOCIAIS ENVOLVIDOS NA CONSTRUÇÃO DA SEXUALIDADE ATRAVÉS DO TEMPO, SÃO OS OBJETIVOS DESSE TÓPICO. AUTOR(A): PROF. MARIA CLAUDIA DE OLIVEIRA LORDELLO AUTOR(A): PROF. ELVIRA MARIA VENTURA FILIPI Sexualidade Temas ligados à sexualidade são cada vez mais comuns nas escolas, nos serviços de saúde, na família, no grupo de amigos e em diversos setores da sociedade. Até mesmo nas instituições religiosas, atualmente, encontramos debates sobre tais assuntos. No entanto, definir sexualidade não é tarefa fácil, pois o seu conceito é mutável e vem se alterando ao longo do tempo, acompanhando as transformações históricas e sociais. Sexualidade compreende as nossas relações com as pessoas, nossas emoções, nossos costumes, nossos desejos. É a energia que nos motiva a ir de encontro ao contato e a intimidade com o outro, em um processo que se constrói passo a passo, desde que nascemos. Muitas vezes confundimos o conceito de sexualidade com o sexo propriamente dito. Sexualidade não é apenas o ato sexual em si, mas sim um longo e contínuo processo que vai desde a descoberta das primeiras sensações físicas na infância, até sentimentos e emoções que nos motiva a procurar o contato físico e afetivo na vida adulta. A OMS – Organização Mundial da Saúde (2002), tentando ampliar a discussão sobre o assunto, define que “a sexualidade é um aspecto central do ser humano ao longo da vida e inclui o sexo, gênero, identidade e papéis, orientação sexual, erotismo, prazer, intimidade e reprodução. A sexualidade é vivenciada e expressa através de pensamentos, fantasias, desejos, crenças, atitude, valores, comportamentos, práticas, papéis e relações. Embora a sexualidade possa incluir todas estas dimensões, nem sempre elas são todas experimentadas ou expressas. A sexualidade é influenciada pela interação de fatores biológicos, sociais, econômicos, políticos, culturais, éticos, legais, históricos, religiosos e espirituais”. A OMS (2002) define que todos os indivíduos devem gozar dos seguintes direitos sexuais: 1. Acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva. 2. Receber e compartilhar informações sobre sexualidade. 3. Receber educação sexual. 4. Respeito pela sua integridade corporal. 5. Escolher os seus parceiros. 6. Decidir ser sexualmente ativo ou não. 7. Manter relações sexuais consensuais. 8. Casamento consensual. 9. Decidir se quer ou não e quando ter filhos. 10. Alcançar uma vida sexual de satisfação, segurança e prazer. Perspectivas históricas e sociais O reconhecimento atual de que as pessoas têm direitos sexuais reflete um longo percurso de mudanças sociais transcorridas na história, principalmente no que diz respeito à noção de pecado/prazer, à sexualidade feminina e às diferentes orientações sexuais. A sexualidade, como é vivida e se manifesta nas pessoas, é fruto de uma construção social, pois relaciona-se com o contexto sociocultural vigente da época e com a história que produziu tais fenômenos. A ideia de “construção social” destaca a importância do contexto social e se contrapõe a ideia de que os fenômenos são determinados pela “natureza das coisas” (HACKING, 1999). Voltando no tempo, na história da humanidade, há a compreensão de que havia uma época em que a sexualidade era vivida de forma livre e sem constrangimentos. No entanto, com o surgimento do cristianismo a partir do século I, a sexualidade começa a ser reprimida. A sexualidade ocidental possui sua origem no conceito de moralidade cristã, que propunha uma grande restrição aos prazeres do corpo, já que estes “impediam o indivíduo de orar e de se elevar a Deus” (FLANDRIN, 1983). Dessa forma, a sexualidade foi estabelecida, naquela ocasião, somente para fins de reprodução, podendo jamais ser utilizada para a finalidade de obter prazer físico. As relações sexuais só eram consideradas apropriadas, quando havia o objetivo de reprodução. O casamento tornou-se recomendável, como forma de evitar a tentação dos prazeres da carne. As mulheres foram as maiores vítimas dessa rígida moral que condenava a sexualidade humana (FARO, 2008). Foucault (2004) menciona que inicia-se nesse momento, sobre a vida sexual das pessoas, uma “concepção jurídica de poder” que proíbe e regula o sexo por meio de leis de conduta e comportamento. De acordo com o mesmo autor, esta seria a visão repressiva dos estudos da história da sexualidade, mostrando que os prejuízos psíquicos e comportamentais dos indivíduos foram adquiridos da repressão de sexualidade. Foucault (2004), no entanto, formula outra leitura da história da sexualidade, dando-lhe o nome de “analítica do poder”, que, em oposição à concepção jurídica de poder, interroga o tipo de poder que se exerce, como e em quais espaços sociais e institucionais ele ocorre. Ele passou a observar onde e quando o sexo era incluído como discurso social. A partir dos séculos IX, X e XI, a confissão religiosa começou a ser difundida, sendo uma das formas em que o sexo aparecia como discurso. Todos os detalhes sexuais precisavam ser confessados, os gestos, prazeres e desejos mais profundos, para aplicação da penitência. Havia um domínio religioso do discurso do prazer e dos desejos sexuais, que se prolongou por vários séculos durante a Idade Média (FARO, 2008). Dessa forma, Foucault (1988) pôde identificar , ao invés de silêncio e repressão, uma explosão discursiva sobre sexo, que se intensificou principalmente a partir do século XVIII, mesmo que tais discursos sobre sexo viessem acompanhados de proibições e forte moralidade. Na virada do século XVIII para o XIX novos contextos entraram em cena e a igreja passa a dividir o interesse pela sexualidade com outras áreas do conhecimento como a medicina, a pedagogia, a psicologia, a justiça, entre outros. A partir desse momento, surge a ciência sexual, um imenso dispositivo social para produzir verdades sobre o sexo e tentar regulá-lo. A masturbação das crianças, os perversos sexuais, a mulher histérica e o controle da natalidade foram aspectos abordados na ciência sexual, como “dispositivos específicos de saber e poder a respeito do sexo” (FOUCAULT, 1988). No século XIX, a medicina sexual separou-se da medicina geral do corpo, elaborando grandes tratados sobre as perversões sexuais, especificando os desvios do instinto sexual, os processos patológicos, constituindo uma ideia de normalidade sexual, onde a monogamia heterossexual estabeleceu-se como norma (FARO, 2008). De acordo com Louro (2009), os últimos anos do século XIX foram marcados pela criação de categorias que diferenciavam o normal do patológico nas condutas sexuais, buscando estabelecer regras e disciplinar a sexualidade. Os perversos do final do século XIX eram considerados um perigo para a espécie, já que eram portadores de uma degeneração que poderia ser transmitida por meio da hereditariedade. A classificação das perversões incluíam diversas aberrações sexuais, como sadismo, masoquismo, zoofilia, pedofilia, necrofilia e principalmente a homossexualidade, que despertava interesse especial em seus pesquisadores. Diversos trabalhos dos séculos XVIII e XIX também consideravam a masturbação uma prática condenável, com capacidade degenerativa, podendo causar todo tipo de doença. Era considerada um comportamento desviante, uma violação das leis da natureza. As mulheres também ganharam interesse especial no século XIX quanto às perversões sexuais, estando incluídas nessa categoria as prostitutas, ninfomaníacas e masturbadoras. As mulheres loucas, não brancas, pobresou criminosas também eram vistas como perversas, entrando na classificação de hipersexuais (GIBSON, 1997). A noção de hipersexualidade feminina ameaçava os conceitos vigentes da época sobre sexualidade e gênero, pois acreditava-se que o desejo sexual intenso numa mulher era sintoma de doença ou mesmo de uma forma perigosa de loucura sexual (GRONEMAN, 2001). As primeiras décadas do século XX trouxeram mudanças significativas nas representações tradicionais relativas à sexualidade vistas até então. O ato sexual deixou de ser visto apenas como função natural de reprodução, para ser reconhecido também como necessidade humana e fonte de prazer (CHAUÍ, 1985). Na virada do século, Sigmund Freud, o pai da psicanálise, cria a teoria da sexualidade infantil, afirmando que os desejos sexuais eram a energia motivacional fundamental nos indivíduos. Freud afirmava que o homem era movido pelos seus desejos sexuais, mas ao mesmo tempo vivia atormentado pelo conflito entre seus desejos e as normas sociais da vida em sociedade. Foi muito criticado pelos meios acadêmicos, mas aos poucos conquistou respeito, deixando o legado da psicanálise até os dias atuais. A sociedade ansiava por espaço para a livre expressão de suas demandas sexuais. As mudanças nos papéis de gênero e nas relações maritais facilitaram o desenvolvimento de diversas pesquisas sobre sexualidade humana no século XX. Na década de 1920 nos EUA, após a Primeira Guerra Mundial, crescia o número de mulheres trabalhando fora de casa e também daquelas que frequentavam a faculdade. As mulheres não estavam mais confinadas à esfera privada do lar e algumas delas se colocavam contra a posição de subordinação em relação ao homem, lutando por seus direitos. Após a Segunda Guerra Mundial as taxas de divórcio aumentaram e as mulheres continuaram uma forte luta em busca de seus direitos na sociedade (IRVINE, 2005). Os estudos da sexualidade realizados no século XX têm como principais representantes Alfred Kinsey e Masters e Johnson. As pesquisas de Kinsey, publicadas em 1948, traziam a noção do sexo como um fenômeno natural, cuja base estava na biologia. Criticava a distinção entre comportamento sexual normal e anormal e buscou modificar o caráter patológico das práticas sexuais que não visavam a procriação, como a masturbação e as relações homossexuais (ROBINSON, 1977). Masters e Johnson realizaram uma grande pesquisa sobre o funcionamento sexual humano, buscando compreender e mensurar os aspectos fisiológicos do corpo durante a atividade sexual. O resultado foi a elaboração do ciclo de resposta sexual humana, que se tornaria a grande referência nos estudos científicos da sexualidade (FARO, 2008). Nos anos 1960 e 1970, a sexualidade foi vinculada à política por meio dos movimentos feminista e gay, que exigiam a legitimização dos direitos das mulheres e reforçavam a crítica à heterossexualidade como padrão de normalidade. Na mesma época, o movimento gay passou a exigir a retirada do diagnóstico de homossexualidade do DSM – Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais. Em 1973, o diagnóstico foi parcialmente retirado, mas ainda permaneceu a categoria homossexualidade ego-distônica, referindo-se àqueles indivíduos que estariam insatisfeitos com sua condição homossexual. Somente em 1987, todas as referências à homossexualidade deixaram de constar no manual. Também foi na década de 1960 que a criação da pílula anticoncepcional trouxe a desvinculação completa entre sexo e reprodução, deixando as mulheres mais livres no exercício de sua sexualidade, ocasionando grandes transformações na forma de encarar a sexualidade feminina, antes vista de forma tão misteriosa. Agora as mulheres poderiam ter prazer com o sexo. O final do século XX e início do século XXI então, é marcado por uma importante modificação nos papéis de gênero e diferentes orientações sexuais. Dessa forma, observa-se que a sexualidade é um fenômeno social e histórico, moldada pelas interações sociais e que só pode ser compreendida no contexto de uma determinada época (WEEKS, 2003). Legenda: HETEROSSEXUALIDADE: úNICA FORMA DE SEXUALIDADE? ATIVIDADE FINAL Leia as afirmações abaixo e assinale a alternativa correta. I. Definir sexualidade não é tarefa fácil, pois o seu conceito é mutável e vem se alterando ao longo do tempo, acompanhando as transformações históricas e sociais. II. O conceito de sexualidade é o mesmo que o de sexo, pois compreende todas as práticas sexuais. III. O final do século XX e início do século XXI então, é marcado por uma importante modificação nos papéis de gêneros e diferentes orientações sexuais. A. Alternativas I, II e III estão corretas. B. Alternativa I está correta. C. Alternativas I e II estão corretas. D. Alternativas I e III estão corretas.? Na virada do século XVIII para o XIX novos contextos entraram em cena e a igreja passa a dividir o interesse pela sexualidade com outras áreas do conhecimento como a medicina, a pedagogia, a psicologia, a justiça, entre outros. O que ocorre a partir de então?? A. A partir desse momento, surge a ciência sexual, um imenso dispositivo social para produzir verdades sobre o sexo e tentar regulá-lo.? B. A partir de então, a sexualidade torna-se mais livre e sua vivência mais espontânea.? C. A partir desse momento, a sexualidade desvincula-se da política, já que eram aspectos que não se relacionavam entre si.? D. A partir desse momento, houve a unificação do comportamento sexual normal e anormal em uma única categoria.? REFERÊNCIA CHAUÍ, M. Repressão sexual: Essa nossa (des)conhecida. São Paulo: Brasiliense, 1985. FARO, L. F. T. As disfunções sexuais femininas no periódico Archives of Sexual Behavior. Dissertação de Mestrado em Ciências Humanas e Saúde. Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro 2008. FLANDRIN, J. L. A vida sexual dos casais na antiga sociedade: da doutrina da Igreja à realidade dos comportamentos. In: ÁRIES, P; FOUCAULT, M. (Orgs) – Sexualidades Ocidentais. Lisboa: Contexto, 1983. FOUCAULT, M. A história da sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988. __________. Ditos e Escritos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. 5v. V.5: Ética, Sexualidade e Política. GIBSON, M. Clitoral corruption: body metaphors and American doctor¿s constructions of female homosexuality, 1870-1900. In: ROSARIO, V. (Org). Science and homosexuality. Nova York: Rutledge, 1997. GRONEMAN. C. Ninfomania: história. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001. HACKING, I. The social construction of what? Cambridge: Harvard University Press, 1999. IRVINE, J. Disorders of desire: sexuality and gender in modern sexology. Philadelphia: Temple University Press, 2005. LOURO, G. L. Heteronormatividade e Homofobia. In: JUNQUEIRA, R. D. (Org.) Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escola. Brasília: UNESCO, 2009. O.M.S. Growing in Confidence: Programming for Adolescent health and Development – Lessons from eight countries. Department of Child and Adolescent Health and Development, 2002. WEEKS, J. Sexuality. Nova Iorque: Routledge, 2003
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