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A Reflexão do Espírito em Descartes



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LIVRO: DESCARTES - AUTOR: PIERRE GUENANCIA
TRECHOS:
Cap. 4 – A metafísica: a reflexão do espírito
O acesso à metafísica
[...] Trata-se pois de atualizar as verdades que permanecem implícitas no espírito durante o desenrolar comum da vida,e para isso não há outro caminho senão voltar o olhar do espírito para si mesmo, levá-lo a essa tomada de consciência de si, que lhe manifesta o que ele é e o que existe nele. É por isso que é preciso que a relação direta e imediata que o homem tem com o mundo seja primeiro problematizada; mas, ao invés de o mundo, tal como é percebido, ser substituído por uma comparação, uma representação ou um modelo, como na física, é a própria relação que é tomada como objeto pela consciência, que se liberta assim de sua atenção comum às coisas e se dedica a considerar a relação do espírito com as coisas nas quais ele pensa. Ora, esse desdobramento da consciência só pode se efetuar se se renuncia a procurar diretamente nas coisas as causas das ideias que estão em nós, para examinar completamente, e sem precipitação de concluir, a relação do espírito com as ideias das coisas; deve-se pois recuar um passo na posição da consciência diante do objeto, para que a consciência do objeto se torne o objeto da consciência, e permaneça assim durante todo o tempo em que a crença na existência do objeto fora da consciência não for substituída pela certeza de uma tal exterioridade. Essa atitude reflexiva do espírito, diante de um dado em que ele figura a título de consciência de objeto, é comparável ao que acontece quando, ao sonhar, percebemos que sonhamos; ora, “é realmente por um efeito de nossa imaginação que sonhamos, mas, fazer-nos perceber nossos sonhos, é uma obra que só cabe ao entendimento”. [...]
Pela imaginação e pelos sentidos, aderimos plenamente ao que se apresenta a nós, não importa de que maneira; há até uma crença implícita muito forte que acompanha as representações que formamos dos objetos e os sentimentos ou as sensações que sua presença produz em nós. A regra XIV recomendara recorrer à imaginação para que o espírito pudesse figurar as coisas ou as relações entre as coisas e evitar assim cair nas abstrações do entendimento. A imaginação, efetivamente, não opera sem uma certa materialização da ideia, sem uma imagem da coisa que, mesmo não sendo o seu exato reflexo, não deixa de restituir algumas de suas marcas e induz uma presunção de realidade ou de existência da coisa assim “re-presentada”. A imaginação e os sentidos tornam presentes os objetos por si manifestados; aplicam-se a um corpo com o qual estão em contato. [...]
Assim também, é por uma espécie de “geometria natural” que avaliamos a grandeza dos objetos segundo a situação das partes em relação ao nosso corpo, etc. Sem dúvida, acontece que duvidemos da existência das coisas que imaginamos ou sentimos, e até que simulemos coisas que sabemos serem fictícias. Mas isso não muda a quase certeza da presença das imagens ou dos sentimentos que vemos ou experimentamos. Compreende-se então que haja como que um abandono da imaginação e dos sentidos às coisas às quais eles se aplicam, abandono que se manifesta no caráter imediato de sua aplicação e na impossibilidade em que se encontram de tomar-se a si mesmos como objetos. A reflexibilidade é o próprio do entendimento, é só do entendimento. A atitude deliberada de distância diante das coisas e da relação do eu com as coisas supõe, assim, uma separação do espírito de si mesmo enquanto ele imagina ou sente, uma espécie de consciência espectadora de suas próprias operações. Ao passo que no curso comum da vida o espírito se dedica às coisas que sente e imagina, na meditação metafísica o espírito se dedica a si mesmo e se duplica, de algum modo, cada uma de suas operações do pensamento dessa operação. Eis porque Descartes nunca deixou de dizer que a principal dificuldade das suas Meditações é que elas exigem uma inversão da atitude habitual ou natural, isto é, o uso apenas do entendimento. Por mais próximas que elas sejam, na opinião de Descartes, a geometria e a metafísica se distinguem pelo fato de que a primeira parte de noções que concordam com os sentidos e recorre à imaginação, enquanto a segunda só se serve das noções concebidas apenas pelo entendimento. [...]
Mas não há imagem que não seja corporal, e nesse sentido a ideia é a forma de uma imagem corporal. [...]
Do método, deve-se conservar a ordem, e só a ordem, sem a medida, e, ao mesmo tempo servir-se apenas do entendimento, sem a imaginação nem os sentidos. Enquanto a combinação e a alternância da ordem e da medida permitem estabelecer proporções entre grandezas, e chegar assim à igualdade do termo conhecido e do termo desconhecido, a consideração apenas da ordem conduz o entendimento, sem o recurso aos sentidos ou à imaginação, a perceber uma série de desproporções: entre a finitude do eu pensante e a ideia de infinito, entre o caráter limitado do entendimento e a ilimitação da vontade, entre a ideia de Deus, que, só ela, implica a sua existência necessária, e as ideias das essências matemáticas, e enfim entre a alma, substância una e indivisível, e o corpo, ao mesmo tempo divisível e mutável. [...]
A ordem, único fio condutor da análise
“A ordem consiste apenas nisto: que as coisas que são propostas em primeiro lugar devem ser conhecidas sem a ajuda das seguintes, e que as seguintes devem ser depois dispostas de tal maneira que sejam demonstradas apenas pelas coisas que as precedem. E certamente, tentei tanto quanto pude seguir essa ordem nas minhas Meditações.”
“... cuja verdade aparece com tanta evidência e concorda tão bem com a minha natureza, que quando começo a descobri-las, não me parece que aprendo algo de novo, mas que lembro do que já sabia antes, isto é, que percebo coisas que já estavam no meu espírito, embora não tivesse ainda voltado o meu pensamento para elas.”
Assim aparecem os dois polos da pesquisa metafísica que se desenrola nas Meditações: 1. a dedução,segundo “a ordem do meu pensamento”, das verdades, da mais simples às mais complexas, desde aquela que é conhecida por si mesma até as outras, que o são por aquelas que as precedem; 2. a pesquisa no interior das próprias ideias, cortadas graças à dúvida metódica, de toda referência às coisas exteriores previamente aceita, de uma marca ou de um critério que mostrasse necessariamente ao meu entendimento que elas não podem ter sido produzidas por ele, ou seja, que provasse a existência e a verdadeira exterioridade de coisas “fora dele”. [...]
Descartes foi talvez o primeiro filósofo a perceber que não se devia partir das coisas exteriores se se desejava adquirir alguma certeza referente a elas, e que, ao contrário, o verdadeiro ponto de partida da ciência devia ser encontrado no interior do pensamento, isto é do eu pensante. Em outros termos, um verdadeiro início requer uma subjetividade radical. [...]
Assim, a procura da verdade ou da certeza precede a descoberta da realidade ou da existência do eu pensante, de Deus, dos corpos, e particularmente daquele com o qual o meu espírito está unido. Essa procura deve primeiro obter um critério de reconhecimento da verdade que o entendimento descubra ao mesmo tempo que a primeira verdade, a saber a sua própria existência como coisa pensante, e da qual ele faz a regra única e geral de toda verdade: “Todas as coisas que nós concebemos muito clara e distintamente são verdadeiras”. Descartes escreve: “são verdadeiras” e não são reais ou existentes, pois essas coisas podem ser verdadeiras mas simplesmente possíveis, ao passo que, se elas existem realmente sua natureza só pode ser aquela que eu conheço ser necessariamente a sua: “Segundo as leis da verdadeira lógica, não se deve nunca indagar de alguma coisa se ela é, sem que se saiba primeiramente o que ela é.”
A resolução de duvidar
[...] A dúvida, suscitada a partir de alguns julgamentos enganosos, e depois generalizada no fim da meditaçãoprimeira, não visa convencer o leitor de que o que ele sente, toca e vê não existe realmente, no que ela cessaria de ser uma dúvida e se tornaria uma afirmação dogmática, mas que tudo aquilo de que ela estava certa até agora envolvia um julgamento de conformidade entre as ideias e as coisas que elas representam que se revela ser apenas um ato de crença, e não uma experiência incontestável e imediata. [...]
A aritmética e a geometria são as únicas ciências isentas de falsidade porque “só tratam de coisas muito simples e muito gerais, sem se preocupar muito com que elas estejam na natureza ou não”. Não era preciso mais do que a intuição das naturezas simples e das noções comuns que as ligam para constituir a ordem, cuja procura era a única preocupação de Descartes nas Regulae. [...]
A suposição do sonho tropeça contra a evidência das noções matemáticas: quer eu esteja acordado ou dormindo, dois mais três são cinco e o quadrado nunca terá mais de quatro lados. Não posso contestar essa evidência, e por conseguinte, não posso me enganar na intuição de coisas tão simples. Mas, passo suplementar nessa subida progressiva aos extremos, se Aquele que me criou me engana quando efetuo operações tão simples, então a certeza que resultaria parece, também ela, esquivar-se ao meu espírito, que deve, doravante, não mais “dar sua crença” a essas evidências e suspender o seu julgamento. [...]
A regra da evidência
A dualidade tipicamente empirista entre o concreto sempre particular e individual, e como tal impensável, e o conhecimento geral, mas abstrato, é inteiramente rejeitada por Descartes, que afirma ao mesmo tempo que a percepção do universal é primeira, e que ela só se manifesta e só se encarna nas coisas particulares. [...]
Aos partidários do empirismo, como Hobbes e Gassendi, Descartes, que aliás não parece compreender o que eles lhe objetam, opõe como duas evidências inseparáveis, por um lado a referência do pensamento ou da linguagem às coisas significadas, isto é, o caráter objetivo ou representativo de seu conteúdo, e, por outro lado, a presença no espírito, de maneira inata, da “ideia verdadeira” das coisas imperfeitamente significadas pelos sentidos. Em outras palavras, há uma concepção da essência das coisas que sustém e torna possível a percepção singular de cada uma delas, que, por si mesma, seria incapaz de ensinar ao espírito a sua verdadeira natureza. Em suma, na percepção de uma coisa, é o entendimento que concebe a sua essência ou a sua natureza, sem nenhum processo de generalização ou abstração, e, consequentemente, sem aprendizagem, por uma intuição intelectual, cuja característica própria é perceber na coisa singular a essência universal que, só ela, a torna cognoscível. [...]
Tal é sem dúvida o significado verdadeiramente cartesiano da verdade; apreensão ou constatação de uma presença, de uma “coisa” indubitável, pelo fato de que ela é percebida pelo espírito. [...]
“É impossível que possamos pensar em alguma coisa, sem que tenhamos ao mesmo tempo a ideia de nossa alma como de uma coisa capaz de pensar em tudo o que pensamos. É verdade que uma coisa dessa natureza não se poderia imaginar, isto é, não se poderia representar por uma imagem corporal. Mas não devemos nos surpreender: pois nossa imaginação só é própria para representar coisas que caem sob os sentidos; e porque nossa alma não tem cor, nem odor nem sabor nem nada de tudo o que pertence ao corpo, não é possível imaginá-la ou formar a imagem dela. Mas nem por isso ela é menos concebível*: ao contrário, como é por ela que nós concebemos todas as coisas, só ela é também mais concebível que todas as outras coisas juntas.”
*conceber: formar no espírito; compreender.
A existência do eu como coisa pensante
A “noção ou conhecimento de mim mesmo” não depende, por isso, de nenhuma coisa cuja existência me é, até o momento, desconhecida, seria necessário dizer de nenhuma dessas imagens pelas quais tenho o hábito de representar meu ser para mim mesmo, e assim, a consciência ou conhecimento do meu eu é uma consciência sem imagem, uma consciência pura ou estritamente intelectual. [...]
“Tudo o que é real pode existir separadamente de qualquer outro sujeito; ora, o que pode assim existir separadamente é uma substância.” Ora, tudo o que mostram as duas primeiras Meditações, é que pelo pensamento o eu pode se separar de “todas as coisas” e não obstante permanecer “alguma coisa”. [...]
Acredito conhecer a cera porque eu a sinto, a toco e a imagino: a experiência sensível me liga à coisa e me relaciona inteiro com ela. Mas quando descubro que, apesar das mudanças visíveis e das alterações desse pedaço de cera, julgo que é sempre a mesma cera, e que julgarei ainda assim, qualquer que seja a forma que puder tomar, é preciso convir que é o entendimento apenas que a concebe. [...]
“Quando percebemos que somos coisas que pensam, é uma primeira noção que não é tirada de nenhum silogismo*; e quando alguém diz: Penso, logo eu sou, ou eu existo, não conclui sua existência do seu pensamento como pela força de algum silogismo, mas como uma coisa conhecida por si; ele a vê por uma simples inspeção do espírito.”
*silogismo: raciocínio formado de três proposições: a primeira, chamada premissa maior; a segunda, chamada premissa menor, e a terceira, conclusão.
O método cartesiano, definitivamente, consiste em pouca coisa. A reflexão da alma sobre si mesma não tem outra finalidade senão descobrir [...] os dados imediatos da consciência. É preciso pois partir de fatos não dos que a experiência comum transmite misturados com preconceitos, mas de fatos que nós mesmos constatamos em nós mesmos. [...]
O conhecimento intuitivo e natural se apresenta como uma ilustração do espírito. São estes os conhecimentos ou os fatos que é preciso procurar em si, e dos quais se deve partir para deduzir outros. A intuição intelectual é pois a constatação de um fato. Assim, o entendimento, que se concentra na intuição, descobre e constata o que se encontra nele, e não o constitui em nenhum caso. O esforço principal de Descartes nas Meditações é este: encontrar, por uma inspeção do espírito, algo que o espírito não possa fingir ter construído ou forjado. [...]