Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Direitos Humanos DIREITOS HUMANOS PROF. HENRY ATIQUE Guia referente à disciplina de Direitos Humanos do Centro Universitário de Rio Preto, elaborado pelo Prof. Dr. Henry Atique. SÃO JOSÉ DO RIO PRETO – SÃO PAULO – BRASIL CENTRO UNIVERSITÁRIO DE RIO PRETO - UNIRP Halim Atique Junior Reitor Manuela Kruchewsky Bastos Atique Vice-Reitora Anete Maria Lucas Veltroni Schiavinatto Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação Agdamar Affini Suffredini Pró-Reitora Acadêmica Sérgio Luís Conti Pró-Reitor Administrativo e Financeiro Ricardo Costa Pró-Reitor de Educação à Distância APRESENTAÇÃO .............................................................. 6 1. Considerações iniciais sobre os direitos humanos ... 7 2. O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana .............................................................................. 9 2.1. Definição de dignidade da pessoa humana .............. 9 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................ 17 REFERÊNCIAS .................................................................. 18 Direitos Humanos 6 APRESENTAÇÃO Bem-vindo ao guia de estudos da disciplina de Direitos Humanos! Neste guia, estudaremos a parte introdutória quanto ao tema, fundamental para seu adequado conhecimento e sua adequada compreensão. Para que este guia fosse produzido, utilizamos a mais celebrada doutrina no assunto, no sentido de encorpar o quanto exposto, mas, ao mesmo tempo, buscando trazer a questão de forma que todos – sejam ou não da área jurídica – possam refletir sobre o assunto. A partir deste estudo, poderemos ter, em linhas gerais, um panorama preliminar sobre o que trata a mencionada disciplina. Leia atentamente o guia. Esperamos que este texto o ajude em uma melhor compreensão. Bons estudos! 7 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Já é questão deveras consagrada que os direitos humanos fundamentais são parte definitivamente integrante do arcabouço de qualquer documento que se pretenda ser chamado de Constituição de um Estado. Atualmente, a grande maioria dos Estados reconhece ao menos um núcleo de direitos fundamentais no âmbito de suas Constituições ou aderiu a algum tratado internacional de direitos humanos. O papel primordial desses direitos é o de servir como instrumental, como verdadeiras armas de concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, princípio esse de difícil delimitação conceitual, como se verá. Por isso mesmo, longe se está da solução de todas as dúvidas, problemas e desafios que a matéria suscita. Ao analisar a teoria dos direitos fundamentais, é necessário adotar um enfoque dentre as muitas possibilidades que se oferecem aos que pretendem se dedicar ao enfrentamento do tema. Como ponto de partida, vale a pena apresentar a lição de José Carlos Vieira de Andrade1, que se refere a três perspectivas, a saber: a) filosófica ou jusnaturalista, a qual trata do estudo dos direitos fundamentais como direitos de todos os homens, em todos os lugares e tempos; b) estatal ou constitucional, a qual cuida dos direitos ou liberdades fundamentais como reconhecidos aos homens em geral ou a certas categorias dentre eles, em um determinado tempo e lugar; e c) perspectiva universalista ou internacionalista, segundo a qual são direitos de todos os homens (ou categorias de homens) em todos os lugares, em um certo tempo. Cumpre ressaltar que essa tríade de perspectivas não esgota as perspectivas que se podem ter como parâmetro no embate ao tema dos direitos humanos: há outras importantes e que não podem ser tratadas com menoscabo, tais como a perspectiva sociológica, histórica, ética, política, econômica, dentre outras, cada qual passível de apresentar aspectos e problemas específicos que suscitam análise. Vale dizer, conforme Ingo Wolfgang Sarlet2, “que também nesta seara, os únicos limites residem, em última análise, no alcance da criatividade e da imaginação humanas e no universo de abordagens que esta pode gerar”. 1 Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, p. 15-37. 2 A eficácia dos direitos fundamentais, p. 26. 1 Direitos Humanos 8 Reconhecendo a importância de todas as perspectivas, e sem olvidar a necessária interpenetração de todas elas, trabalharemos aqui com a perspectiva estatal, centrando a atenção na órbita do direito constitucional positivo; para isso, devemos delinear o sistema dos direitos fundamentais dentro de uma teoria geral constitucionalmente adequada. De outro lado, forçosa é a analise do direito comparado, pois, em nível constitucional, cada vez mais se trata de categorias de cunho universal, especialmente ao tangenciar o campo dos direitos humanos. Nesse contexto, é nítida a aproximação do sistema brasileiro de proteção a esses direitos aos modelos lusitano e espanhol, que, por seu turno, são marcados pelos influxos do direito constitucional germânico. Finalmente, é preciso avaliar o modo como a Constituição brasileira de 1988 disciplina a temática dos direitos humanos, com o considerável impacto causado pela ruptura com o regime militar autoritário instalado em 1964, demarcando o processo de redemocratização do Estado brasileiro, e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e, eventualmente, outras Cortes Constitucionais, pois a elas cabe, precipuamente (mesmo que, em alguns casos, não exclusivamente) e em última análise, a interpretação e o desenvolvimento do direito constitucional. Evidentemente, não pretendemos, e nem seria possível esgotar, tão vasto e rico assunto nessas considerações. Assim, o objetivo que aqui se propõe é de apresentar algumas questões que se julgam relevantes para situar as ideias, de modo a observer certo critério evolutivo, até se chegar ao cerne do que se deseja desenvolver. 9 2 O PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA 2.1 Definição de dignidade da pessoa humana Tradicionalmente, as Constituições brasileiras preocupavam-se, em seu título inicial, com a organização do Estado, sob rubricas como “da organização federal” ou “da organização nacional” ou ainda se referindo ao Império. Em que pese ser da natureza de uma Constituição, além de veicular os direitos fundamentais das pessoas, o papel de organizar o Estado3, o constituinte brasileiro de 1988 inovou nesse aspecto, ao iniciar a sua obra apresentando nortes diretivos para o intérprete, sob o título “dos princípios fundamentais”. Isso quer dizer que o intérprete, ao examinar a Constituição atual, encontra, de plano, quais são os valores jurídicos de sustentação do país, devendo esses princípios fundamentais funcionarem como guias no processo hermenêutico constitucional, possuindo caráter mais amplo e abstrato, quando em face das regras constitucionais, essas, por seu turno, de caráter mais específico e concreto4. Dentre esses princípios, a Constituição de 1988 elege como fundamento da República Federativa do Brasil e entrega especial destaque para a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). De início, você deve-se atentar para a complexidade da busca de uma compreensão do conteúdo de dignidade da pessoa humana e, consequentemente, de sua correspondente definição jurídica, o que se justifica no pressuposto de que a dignidade trata da condição humana da pessoa e de suas complexas, imprevisíveis e incalculáveis manifestações da personalidade. 3 Friedrich Müller. Fragmento (sobre) o poder constituinte do povo. São Paulo: RT, 2004, p. 53-60. 4 Cf. Robert Alexy. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2001, p. 82-86, bem como Walter Claudius Rothenburg. Princípios constitucionais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999, p. 11- 49. 2 Direitos Humanos 10 O acordo acerca das palavras “dignidade da pessoa humana” não afasta, consoante a lição de Antonio Junqueira de Azevedo5, a grande controvérsia em torno de seu conteúdo, o que, por si, torna razoável a posição de que uma definição ou uma definição jurídica de “dignidade” nãoé possível de ser alcançada6, mesmo não sendo essa a posição aqui adotada. Por sua vez, é cediço na esmagadora doutrina constitucionalista a posição de que a dignidade da pessoa humana é o bem constitucional maior por excelência, tratando-se de um valor supremo7, uma referência constitucional unificadora de todos os direitos humanos fundamentais8. Para compreender o conteúdo e o significado, ou melhor, os conteúdos e os significados da dignidade da pessoa humana, devemos considerar o fato de que Direito e Filosofia caminham juntos, no sentido de que é preciso tomar a Filosofia para analisar a evolução do pensamento a respeito do que significa este ser humano e da compreensão do que é ser pessoa e de quais os valores que lhe são inerentes, já que isso vai servir para determinar o modo que o Direito reconhece e define qual dignidade será objeto de tutela por parte do Estado e qual proteção o Estado pode assegurar à dignidade9. Nessa perspectiva, mas sem procurar afastar e incompatibilizar outras visões, Ingo Wolfgang Sarlet10 fala em “dimensões da dignidade da pessoa humana”, referindo-se, em um primeiro momento, “[à] complexidade da própria pessoa humana e [a]o meio no qual desenvolve sua personalidade”; além disso, para dar conta da heterogeneidade e da riqueza da vida, a noção de dignidade da pessoa humana “integra um conjunto de fundamentos e uma série de manifestações”, especialmente no campo do Direito, manifestações essas as quais, “ainda que diferenciadas entre si, guardam um elo comum, especialmente pelo fato de comporem o núcleo essencial da compreensão e, portanto, do próprio conceito de dignidade da pessoa humana”. 5 Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana. In: Revista dos Tribunais, v. 797, mar. 2002, p. 12. 6 Cf. Claire Neirinck. La dignité de la personne ou le mauvais usage d´une notion philosophique. In: Philippe Pedrot (Dir). Ethique, droit et dignité de la personne. Paris: Economica, 1999, p. 50 e François Borella. Le concept de dignité de la personne humaine. In: Philippe Pedrot (dir). Ob. cit., p. 37. 7 José Afonso de Silva. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 105. 8 José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira. Constituição da República Portuguesa anotada. 3ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1984, p. 58-59. 9 Ingo Wolfgang Sarlet. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In: Ingo Wolfgang Sarlet (org.). Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 16. 10 Ibid., p. 16-17. Direitos Humanos 11 A mencionada dificuldade em se definir dignidade da pessoa humana reside da circunstância de que se trata de um conceito de contornos que não são precisos e objetivos, de um conceito caracterizado por sua ambiguidade e porosidade11, bem como por sua natureza polissêmica12. Além do mais, uma das principais dificuldades, conforme a lição de Michael Sachs13, é que a dignidade humana cuida de uma qualidade tida para a maioria da doutrina como inerente a todo ser humano, mas não de aspectos específicos da existência humana – como integridade física, intimidade, vida, propriedade, etc. –, o que acarretou que a dignidade passou a ser habitualmente definida como sendo o valor próprio que identifica o ser humano como tal; todavia essa definição não serve muito ao propósito de uma compreensão satisfatória do que efetivamente é o âmbito de proteção da dignidade em sua condição jurídico-normativa. Ainda assim, e nesse caso sem maiores dificuldades, mesmo que não se possa estabelecê-las de forma exaustiva14, pode-se valer da verificação das muitas situações de agressão e de violação à dignidade da pessoa humana, para constatar que ela é algo real e vivenciado concretamente por cada ser humano, em que pese a dificuldade em explicitar em que esta consiste15. Por sua vez, a doutrina e a jurisprudência foram, ao longo do tempo, estabelecendo alguns contornos basilares do conceito jurídico e concretizando o conteúdo da dignidade, mesmo que sem atingir tampouco uma definição genérica e abstrata consensualmente aceita. Alinhado a esse entendimento, Ingo Wolfgang Sarlet16 apresenta interessante proposição de que a dignidade pode constituir um conceito juridicamente apropriável, nos seguintes termos: 11 Cármen Lúcia Antunes Rocha. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e a Exclusão Social. In: Revista Interesse Público, n° 04, 1999, p. 24. 12 Cf. Francis Delpérée. O Direito à Dignidade Humana. In: Sérgio Resende de Barros e Fernando Aurélio Zilveti (coords.). Direito constitucional - estudos em homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho. São Paulo: Dialética, 1999, p. 153. 13 Verfassungsrecht II – Grundrechte. Berlin-Heidelberg-New York: Springer-Verlag, 2000, p. 173, apud. Ingo Wolfgang Sarlet. Ob. cit., p. 18. 14 Cf. Jesús González Pérez. La dignidad de la persona. Madrid: Civitas, 1986, p. 115. 15 Michel Renaud. A Dignidade do ser Humano como Fundamentação Ética dos Direitos do Homem. In: Brotéria – Revista de Cultura, v. 148, 1999, p. 36. 16 Ob. cit., p. 19. Direitos Humanos 12 Neste contexto, bem refutando a tese de que a dignidade não constitui um conceito juridicamente apropriável e que não caberia — como parece sustentar Habermas — em princípio, aos Juízes ingressar na esfera do conteúdo ético da dignidade, relegando tal tarefa ao debate público que se processa notadamente na esfera parlamentar, assume relevo a percuciente observação de Denninger de que — diversamente do filósofo, para quem, de certo modo, é fácil exigir uma contenção e distanciamento no trato da matéria — para a jurisdição constitucional, quando provocada a intervir na solução de determinado conflito versando sobre as diversas dimensões da dignidade, não existe a possibilidade de recusar a sua manifestação, sendo, portanto, compelida a proferir uma decisão, razão pela qual já se percebe que não há como dispensar uma compreensão (ou conceito) jurídica da dignidade da pessoa humana, já que desta — e à luz do caso examinado pelos órgãos judiciais — haverão de ser extraídas determinadas conseqüências jurídicas, muitas vezes decisivas para a proteção da dignidade das pessoas concretamente consideradas. Além dessas considerações quanto à dificuldade de definição da dignidade da pessoa humana, ao estudar o tema, vale destacar as suas dimensões, para assim buscar compreender o seu conceito de modo suficientemente abrangente e operacional. Ressalvamos que não pretendemos aqui esgotar o assunto e que tais dimensões não se revelam incompatíveis entre si e, tampouco, excludentes. Ao assegurar a inviolabilidade do direito à vida, as Constituições, em um primeiro momento, tratam de proibir, em regra, a solução não espontânea do processo vital17. Entretanto, não estamos atento apenas à proteção do que se pode considerar sobrevivência, mas, sim, à conjugação entre vida e dignidade da pessoa humana. Por conta dessa visão, trata-se de estatuir determinados direitos e garantias exatamente para a promoção e proteção da vida com dignidade da pessoa. Nesse aspecto, podemos citar exemplos, como a proibição de penas cruéis, o direito à intimidade e à vida privada, dos quais são desdobramentos o sigilo das comunicações, a inviolabilidade do domicílio e o segredo de justiça no processo (art. 5º, LX, da CF) e ainda o direito à honra e o direito à imagem. Ao ingressar nos textos normativos constitucionais, a vida assume um importante papel diretivo para o intérprete, o que vem bem expresso na seguinte colocação de Pietro de Jesús Lora Alarcón18: 17 Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Junior. Curso de direito constitucional, p. 104. 18 Patrimônio genético humano e sua proteção na Constituição Federal de 1988, p. 181. Direitos Humanos 13 Curiosamente, a vida humana como bem jurídico constitucional e direito fundamentalassume uma importante função integradora dentro do sistema, pois impregna todo o corpo normativo de uma unidade de sentido, impedindo a progressão de enfoques que priorizam o Estado por cima do indivíduo. Na verdade, o direito à vida permeia todo o desenho constitucional, permanecendo sempre como uma sombra pronta para servir de vetor de interpretação das mais diversas situações jurídicas. O texto constitucional não leva em conta apenas o sentido biológico de vida, mas considera-a como algo dinâmico, que se transforma constantemente, um processo que se instaura com a concepção, transforma-se, progride, mantendo sua identidade, até que termina com a morte19. Por outro lado, é importante dizer que não há direito absoluto, tampouco a vida, comportando o ordenamento jurídico alguma flexibilidade, como as possibilidades legais de aborto, a legítima defesa, o estado de necessidade, o estrito cumprimento do dever legal, a pena de morte, entre outros. Todo ser dotado de vida é indivíduo, não podendo dividir-se sob pena de deixá-lo de ser. Assim, o homem é um indivíduo; no entanto, mais do que isso, é uma pessoa, já que, além dos caracteres do indivíduo biológico, ele tem os de unidade, identidade e continuidade substanciais; portanto, o objeto da proteção constitucional é a vida humana, integrada de elementos físicos, psíquicos e espirituais20; assim, decorrem desta proteção o direito à existência, à integridade física, à integridade moral, entre outros. Ao lado desse aspecto do direito à vida, caminha a ideia de dignidade do ser humano, que passa a apresentar-se como pensamento independente de suas origens nos movimentos religiosos cristãos, para ser encarada como uma qualidade essencial à vida humana. Nas palavras de Eliana Franco Neme21: Não há vida sem dignidade, e assim os dois preceitos encontram- se em situação de igualdade como princípios de direito. Vida e dignidade são valores essencialmente independentes e necessariamente correlatos, num paradoxo necessário para a manutenção do seu conteúdo, e do mais alto grau de importância como determinantes da positivação jurídica. 19 José Afonso da Silva. Curso de direito constitucional positivo, p. 196. 20 Cf. Recasén Siches. Vida humana, sociedad y derecho, p. 254. 21 Dignidade, igualdade e vagas reservadas. In: Luiz Alberto David Araujo (coord.). Defesa dos direitos das pessoas portadoras de deficiência, p. 136. Direitos Humanos 14 Destarte, podemos afirmar que os mandamentos relativos à dignidade da pessoa humana são claros; entretanto, como já se afirmou, a definição desse conceito é tarefa difícil. Não existe unanimidade nem na literatura especializada, nem alguém que tenha conseguido dar conta de fazê-lo de maneira reconhecidamente exaustiva. Muitos são os pontos de ênfase e formas de tratamento da matéria, por isso vem obtendo maior sucesso uma definição negativa, que tenha como ponto de partida a intervenção ou violação da dignidade humana, que não pode ser justificada. Diante disso, a preocupação dogmática volta-se para a verificação do momento em que se pode afirmar ter ocorrido lesão à dignidade humana, o que demanda fundamentalmente a definição de sua área de proteção22. O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em prerrequisito à existência e em exercício de todos os demais, em fonte primária do todos os outros bens jurídicos. É dizer, sem o gozo da vida, não é possível ter ou usufruir de nenhuma outra prerrogativa, devendo o Estado assegurá-lo em dupla acepção: uma relacionada ao direito de continuar vivo e outra no sentido da dignidade quanto à subsistência23. Além dessas, podemos considerar outras duas acepções: uma “relativa aos direitos referentes às manifestações vitais, sem as quais a vida não passaria de mera respiração, carecendo o sujeito da condição jurídica de expressar-se espiritualmente no mundo”; outra que “pode inferir-se da proteção da vida a partir da abordagem genética e suas atuais decorrências”24. Constatamos, assim, que o direito à vida revela sua fundamentalidade no viés material, quando se fala de seu conteúdo como valor supremo para o ser humano, e, ao mesmo tempo, em sentido formal, quando se verifica a posição que recebeu do constituinte na escala normativa. Daí, por razões óbvias, temos esse direito como pedra angular, axiológica e lógica, para compreender o sistema jurídico25. Finalmente, emerge como questão a ser abordada (mesmo que de passagem e sem intenção de enfrentar profundamente o problema, tampouco apresentar qualquer solução ou fincar posicionamento) a pretendida universalidade da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais que lhe são inerentes em contraposição ao respeito da diversidade e especificidades culturais. 22 Leonardo Martins (org.). Cinqüenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão, p. 177-178. 23 Alexandre de Moraes. Direitos humanos fundamentais, p. 76; José Afonso da Silva. Ob. cit., p. 197. 24 Pietro de Jesús Lora Alarcón. Patrimônio genético humano e sua proteção na Constituição Federal de 1988, p. 191. 25 Walter Claudius Rothenburg. Direitos fundamentais e suas características. In: Revista de direito constitucional e internacional, jan.-mar. 2000, p. 146-157. Direitos Humanos 15 A partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU de 1948, podemos afirmar que modelos antigos de Estado cederam espaço a novos modelos multiculturais de Estado, mesmo que essas mudanças ainda sejam controvertidas e vulneráveis ao retrocesso. Em face disso, mesmo em se considerando o conceito de dignidade como universal, não há como evitar disparidades e até conflitos no momento de avaliar se uma determinada conduta é ou não ofensiva da dignidade26, especialmente em se verificando que qualquer sociedade civilizada tem seus próprios critérios e variáveis – conforme o local e a época – a respeito do que constitui o tratamento indigno27. Vale registrar a advertência feita por Boaventura de Souza Santos28 de que o conceito de dignidade e o conceito dos direitos humanos normalmente assentam em um conjunto de pressupostos tipicamente ocidentais, do mesmo modo que observa Otfried Höffe29 no sentido da vinculação dessas noções à tradição judaico-cristã ou à cultura europeia, quando, de fato, cada cultura possui sua concepção de dignidade humana, muito embora nem todas elas a concebam em termos de direitos humanos. Impõem-se, nessa linha, o respeito ao multiculturalismo como uma evolução natural e lógica das normas de direitos humanos universais, especialmente no que diz respeito à liberdade individual e à igualdade, deslegitimando hierarquias étnicas e raciais tradicionais, segundo as quais alguns povos seriam superiores a outros e, por conseguinte, teriam o direito de lhes impor regras. Essa situação, que se costuma chamar de revolução dos direitos humanos, criou o espaço político para que grupos étnico-culturais contestassem hierarquias herdadas; porém, por outro lado, exigiu que esses grupos proponham as próprias reivindicações na linguagem específica dos direitos humanos, do liberalismo dos direitos civis e do constitucionalismo democrático30. 26 Cf. Miguel Angel Alegre Martínez. La dignidad de la persona como fundamento del ordenamiento constitucional español. León: Universidad de León, 1996, p. 26. 27 Ronald Dworkin. El dominio de la vida: una discusión acerca del aborto, la eutanasia y la liberdad individual. Barcelona: Ariel, 1998, p. 305. 28 Por uma concepção multicultural de direitos humanos. In: Revista crítica de ciências sociais, n. 48, 1997, p. 11-32. 29 Medizin ohne ethik? Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2002, p. 49, apud. Ingo Wolfgang Sarlet. Ob. cit., p. 38. 30 Will Kymlicka. Multiculturalismo liberal e direitos humanos. In: Daniel Sarmento, Daniela Ikawa e Flávia Piovesan (coords.). Igualdade, diferença e direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 218-221. Direitos Humanos 16Em conclusão, não podemos olvidar que “a dignidade da pessoa humana exprime a abertura da República à ideia de comunidade constitucional inclusiva pautada pelo multiculturalismo mundividencial, religioso ou filosófico”; portanto, contrária a qualquer tipo de “fixismo” nesta seara e incompatível com uma compreensão reducionista da dignidade31. Devemos buscar a superação de qualquer visão unilateral e reducionista, para, assim, promover e proteger a dignidade de todas as pessoas em todos os lugares. Na sequência, para uma melhor compreensão de seu conteúdo como princípio jurídico fundamental que dá ensejo a um leque de direitos e deveres fundamentais, importa destacar quais as principais dimensões da dignidade da pessoa humana, em face da já apresentada dificuldade de uma compreensão jurídico-constitucional a seu respeito. 31 José Joaquim Gomes Canotilho. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7ª ed.. Coimbra: Almedina, 2004, p. 225-226. Direitos Humanos 17 CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesse guia, estudamos a questão da consagração dos direitos humanos, desde o seu surgimento, passando pelas perspectivas possíveis, até a sua efetivação. Também analisamos a estreita relação desses direitos com o princípio basilar da dignidade da pessoa humana, em relação ao qual buscamos, por meio de possíveis enfoques, encontrar um conceito passível de concretização desse valor máximo. Em um próximo estudo, faremos uma abordagem mais especificamente relacionada ao surgimento, ao reconhecimento e à evolução histórica dos direitos humanos, em busco de continuar a desenvolver a temática da presente disciplina. Direitos Humanos 18 REFERÊNCIAS ALARCÓN, Pietro de Jesús Lora. Patrimônio genético humano: e sua proteção na Constituição Federal de 1988. São Paulo: Método, 2004. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2001. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 2004. ARAUJO, Luiz Alberto David e NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2003. ARAUJO, Luiz Alberto David. Defesa dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana. In: Revista dos Tribunais, v. 797, mar. 2002, p. 12. CANOTILHO, José Joaquim Gomes e MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa anotada. 3ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1984. CANOTILHO. José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7ª ed.. Coimbra: Almedina, 2004. DELPÉRÉE, Francis. O Direito à Dignidade Humana. In: Sérgio Resende de Barros e Fernando Aurélio Zilveti (coords.). Direito constitucional - estudos em homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho. São Paulo: Dialética, 1999. DWORKIN, Ronald. El dominio de la vida: una discusión acerca del aborto, la eutanasia y la liberdad individual. Barcelona: Ariel, 1998. KYMLICKA, Will. Multiculturalismo liberal e direitos humanos. In: Daniel Sarmento, Daniela Ikawa e Flávia Piovesan (coords.). Igualdade, diferença e direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. MARTÍNEZ, Miguel Angel Alegre. La dignidad de la persona como fundamento del ordenamiento constitucional español. León: Universidad de León, 1996. Direitos Humanos 19 MARTINS, Leonardo (org.). Cinqüenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão. Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2005. MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 6ª. Ed. São Paulo: Atlas, 2005. MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o poder constituinte do povo. São Paulo: RT, 2004. PEDROT, Philippe (Dir). Ethique, droit et dignité de la personne. Paris: Economica, 1999. PÉREZ, Jesús González. La dignidad de la persona. Madrid: Civitas, 1986. RENAUD, Michel. A Dignidade do ser Humano como Fundamentação Ética dos Direitos do Homem. In: Brotéria – Revista de Cultura, v. 148, 1999, p. 36. ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e a Exclusão Social. In: Revista Interesse Público, n° 04, 1999, p. 24. ROTHENBURG, Walter Claudius. Direitos fundamentais e suas características. In: Revista de direito constitucional e internacional, jan.-mar. 2000, p. 146-157. ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999. SANTOS, Boaventura de Souza. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. In: Revista crítica de ciências sociais, n. 48, 1997, p. 11-32. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4ª ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. SARLET, Ingo Wolfgang. Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do Direito e direito constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. SICHES, Recasén. Vida humana, sociedad y derecho. Mexico: Fondo de Cultura Economica, 1945. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2004.
Compartilhar