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RESENHA CRÍTICA DO LIVRO: “A PAIXÃO SEGUNDO GH”, de Clarice Lispector. 
 
Dá para perceber que o tom do livro é existencial, não se trata de uma narrativa cronológica 
sobre fatos objetivos, mas de uma subjetividade reflexiva intensa. Será necessário se envolver 
com a obra para provar de seu horror e alegria enquanto a autora luta para dar sentido e dar 
voz à "verdade" que ela acabou de revelar. Mas trata-se de uma viagem interior que pode ser 
inesquecível. 
Logo no prefácio, Clarice Lispector já alerta os leitores sobre a disposição que deve haver em 
seus espíritos, é preciso uma abertura da mente para percorrer um romance que poderíamos 
cunhar de filosófico: 
“Este é um livro como qualquer outro livro. Mas eu ficaria feliz se fosse lido apenas por pessoas 
cujas almas já estão formadas. Quem sabe que a aproximação, seja ela qual for, se dá de 
maneira gradativa e penosa - passando mesmo pelo contrário do que se aproxima. Aqueles que, 
somente eles, aos poucos compreenderão que este livro não leva nada de ninguém. ” 
A narradora, uma mulher conhecida apenas pelas iniciais gravadas em suas malas, é incerta, 
frágil e desorientada. É apenas contando os acontecimentos do dia anterior, dando-lhes forma 
e moldando-os, que ela pode dar sentido à transformação radical que parece ter 
experimentado. Não é uma narrativa ordinária. 
Um dia antes, ela acordou tarde com a intenção de limpar e arrumar o quarto onde sua ex-
empregada tinha morado, uma tarefa que ela imaginou ser difícil, mas gratificante. Supondo 
que o quarto estivesse sujo, úmido e desordenado, ela exercitaria seu talento, ou melhor, sua 
vocação para "arranjar". G. H. é uma escultora rica que mora no Rio de Janeiro e faz um retrato 
de si mesma como uma mulher independente, livre, sem marido ou filho; ela admite um certo 
grau de vaidade, mas confessa que sua existência foi um tanto referencial, que em essência a 
deixou madura para os eventos que seguiriam: 
G. H vai à beira da loucura quando ela entra no quarto da empregada e descobre um ambiente 
austero, quase vazio. O mais inquietante é a visão de três figuras de carvão gravadas na parede 
caiada: um homem, uma mulher e um cachorro. Mas a inesperada calma e ordem de toda a sala 
pega a narradora completamente desprevenida. 
A cama foi arrancada, as cortinas da janela sumiram, três malas com monogramas estão 
empilhadas numa parede e o guarda-roupa estreito, está rachado e desbotado pelo sol forte. 
Ela descreve a sala como "o retrato de um estômago vazio". E ao se aventurar na sala, ela se 
sente como se tivesse entrado em um nada, um espaço sem forma que não pode contê-la. Para 
retomar o controle, ela decide lavar o guarda-roupa, e é aí que seu pesadelo começa. 
Abrindo o guarda-roupa, ela enfrenta uma barata, surgindo pela porta. A visão da barata 
provoca uma reação primordial, ligada às memórias da pobreza infantil, junto com um medo 
muito mais profundo por G. H. - a barata é uma criatura pré-histórica, que representa um 
mistério sem forma. Sua decisão de matar a barata provoca o que se transformará em uma crise 
existencial. 
Por meio da angústia, do nojo, e do êxtase da jornada de autodescoberta de sua protagonista, 
acompanhamos sua alegria, dor, e a estranheza nascente de tudo isso. Sua consciência se 
hipersensibiliza. Por exemplo, em seu ato de violência contra a barata, ela imediatamente 
percebe que violou algo em si mesma: 
“Porque durante aqueles segundos, de olhos fechados, fui tomando consciência de mim mesma 
à medida que se percebia um gosto: tudo em mim tinha gosto de aço e azinhagem. Eu era todo 
ácido como metal na língua, como uma planta verde esmagada, todo o meu gosto subiu à minha 
boca. O que eu fiz comigo mesmo? Com meu coração batendo forte, minhas têmporas pulsando, 
isso é o que eu tinha feito a mim mesma: eu tinha matado. Eu tinha matado! Mas por que tanto 
prazer e, além disso, uma aceitação vital desse deleite? Por quanto tempo, então, eu estive 
prestes a matar?” 
Reconhecer-se diante da barata é reconhecer a potencial aniquilação de si mesmo. “—Segure 
minha mão” ela implora a seu ouvinte invisível, “porque eu sinto que estou indo. Estou indo 
mais uma vez para a vida primária mais divina, estou indo para um inferno de vida crua. " 
G. H. lutará com questões de céu, inferno, moralidade, humanidade e, mais criticamente, as 
reações perturbadoras que esses problemas existenciais provocam nela. Gradualmente, 
lentamente, ela começará a renascer enquanto ser humano, subjetividade, para se aproximar 
de sua própria salvação, para abraçar a vida de outro modo 
O romance é impulsionado para a frente com uma intensidade implacável que aumenta à 
medida que a narrativa prossegue. A frase final de cada capítulo nos leva ao próximo, como se 
a cada capítulo a narradora estivesse revelando mais uma camada de consciência, juntando seus 
recursos para seguir em frente com sua história. Mais e mais revelações acontecem, de forma à 
medida que seu questionamento se torna cada vez mais obcecado com a natureza do ser. 
Aprendi com Clarice Lispector que a linguagem - as palavras - são essenciais para articular, não 
apenas a jornada emocional que percorremos (e percorri com GH), mas também as verdades da 
existência humana. 
Escritores como Clarice nos revelam o real poder das LETRAS o de ampliar a nossa percepção, 
através da autorreflexão e da ressignificação das experiências pela narrativa, pelas palavras.

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