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Amália Simonetti 10 • Pacto pela Aprendizagem no Espírito Santo • PAES APRESENTAÇÃO DA PROPOSTA DIDÁTICA PARA ALFABETIZAR LETRANDO - LÍNGUA PORTUGUESA - 1º ANO Amália Simonetti (org.) Não se trata de escolher entre alfabetizar e letrar; trata-se de alfabetizar letrando. Também não se trata de pensar os dois processos como sequenciais, isto é, vindo um depois do outro, como se o letramento fosse uma espécie de preparação para a alfabetização, ou, então, como se a alfabetização fosse condição indispensável para o início do processo de letramento (BRASIL, Pró-Letramento, Fascículo 1, 2008, p.13). Esta Proposta Didática para Alfabetizar Letrando - Língua Portuguesa - 1º Ano - Ensino Fundamental nasceu no/para o contexto de formação de professores do 1º ano do Programa de Alfabetização na Idade Certa (PAIC) da Secretaria da Educação do Estado do Ceará (SEDUC). O desenho didático-pedagógico e os conteúdos da proposta têm finalidades distintas e entrelaçadas: formação de professores e a alfabetização dos alunos do 1º ano. É um material organizado para o aluno alfabetizar, na perspectiva do letramento, e para a formação do(a) professor(a) no contexto da sua prática/ensino. O respaldo teórico e curricular tem como base: as Diretrizes Curriculares para o Ensino Fundamental de nove anos do MEC; a Proposta Curricular de Língua Portuguesa do Estado do Ceará - 1º ao 5º ano (SEDUC, 2014) e o documento: Elementos Conceituais e Metodológicos para definição dos Direitos de Aprendizagem e Desenvolvimento do Ciclo de Alfabetização (1º, 2º e 3º ano do ensino fundamental) - PNAIC/MEC. Além dos centros de estudos e pesquisas já citados: Centro de Alfabetização Leitura e Escrita (CEALE); Centro de Estudos em Educação e Linguagem (CEEL); Grupo de Estudos sobre Educação, Metodologia de Pesquisa e Ação (GEEMPA). Reiteremos que esta proposta didática para alfabetizar-letrando propõe situações didáticas (projetos didáticos e sequências didáticas), para que o aprendiz descubra e se aproprie, com compreensão, do sistema de escrita da língua portuguesa e da cultura escrita da língua portuguesa, ingressando na escrita e em suas culturas, usando a escrita para apreender a escrita com sentido (ler, falar e escrever com compreensão). Ou seja, situações didáticas para o(a) professor(a) em ensino-reflexivo possibilitar, didaticamente, a criança ler e escrever com compreensão, com sentido, com sentimento, com criação, imerso na cultura das práticas socioculturais de oralidade, leitura e escrita. Consideramos que o diferencial desta Proposta Didática para Alfabetizar Letrando – Língua Portuguesa – 1º ano, para além das especificidades didáticas inovadoras PAES• 11 (criadas e referendadas no contexto das formações do PAIC no Ceará e do PACTO na Bahia), é a apropriação do sistema de escrita alfabética imersa no letramento, possibilitando a imersão/uso do aprendiz na cultura letrada, tornando-o discursivo, autor, interlocutor-dialógico do seu discurso, do discurso do outro e da cultura. Cada criança, nenhuma a menos alfabetizada, letrada, falante, leitora, autora da sua escrita, estimulada pela interação com o outro, com a cultura em contexto de ludicidade e liberdade de imaginação. No percurso da escrita e reescrita desta proposta, no contexto das interlocuções com os professores e formadores/orientadores das formações, durante esses anos, comprovamos que a criança aprende a ler e escrever com melhor qualidade em ambiente escolar que permita o aprendiz: ler com compreensão, com sentimento, com sentido e significado, com criação, tendo como mediador um(a) professor(a) que compreende as especificidades e as “facetas” da alfabetização e do letramento, ou seja, consegue alfabetizar letrando e letrando alfabetizar os seus alunos. Para melhor compreensão desta proposta didática, vamos pontuar, resumidamente, concepções teóricas e conceitualizações consideradas na construção desta proposta: I. ALFABETIZAR LETRANDO Refletindo o que nos diz Castanheira, Maciel e Martins (2008), pensamos a escola como um dos espaços-tempo significativos da constituição da alfabetização e do letramento e acreditamos no professor(a) como responsável por esse processo: É importante que o professor, consciente de que o acesso ao mundo da escrita é em grande parte responsabilidade da escola, conceba a alfabetização e o letramento como fenômenos complexos e perceba que são múltiplas as possibilidades de uso da leitura e da escrita na sociedade (p.15). ALFABETIZAR LETRANDO DESENHO DIDÁTICO - PDAL NOSSA LÍNGUA PORTUGUESA MATERIAIS DIDÁTICOS 12 • Pacto pela Aprendizagem no Espírito Santo • PAES As concepções de Magda Soares (CEALE) e Artur Moraes (CEEL) nos guiaram para pensarmos conceitualmente e reflexivamente a alfabetização e o letramento. Magda Soares (2003) nos diz que os processos de alfabetização e letramento são complexos, pois envolvem as “facetas” linguística, sociolinguística, psicolinguística e psicológica, condicionadas a fatores socioculturais, econômicos e políticos. Porque alfabetização e letramento são conceitos frequentemente confundidos ou sobrepostos, é importante distingui-los, ao mesmo tempo que é importante também aproximá-los: a distinção é necessária porque a introdução, no campo da educação, do conceito de letramento tem ameaçado perigosamente a especificidade do processo de alfabetização; por outro lado, a aproximação é necessária porque não só o processo de alfabetização, embora distinto e específico, altera-se e reconfigura- se no quadro do conceito de letramento, como também este é dependente daquele (SOARES, 2003, p. 90). Concordando com Magda Soares (2003), consideramos nesta proposta a alfabetização e o letramento como dois processos de ensinos e aprendizagens distintos e indissociáveis, simultâneos e inseparáveis. Acreditamos que os alunos aprendem a ler e escrever com melhor qualidade quando o professor enxerga a especificidade do processo de alfabetização e a especificidade do processo de letramento sem separá-los. Concebemos que alfabetizar na perspectiva do letramento é possibilitar que os alunos aprendam a Língua Portuguesa usufruindo e descobrindo os sentidos- significados das práticas socioculturais de oralidade, leitura e escrita; apropriando-se do sistema de escrita alfabética e ortográfica no uso das práticas socioculturais e nos procedimentos da língua-linguagem envolvidos: emissão, recepção e sentido. Vamos refletir sobre o que Magda Soares (2003c, p. 9-13) pensa sobre letramento e alfabetização: [...] letramento é a imersão das crianças na cultura escrita, participação em experiências variadas com a leitura e a escrita, conhecimento e interação com diferentes tipos de gêneros de material escrito. [...] a entrada da criança no mundo da escrita se dá simultaneamente pela aquisição do sistema convencional de escrita – a alfabetização, e pelo desenvolvimento de habilidades de uso desse sistema em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que envolvem a língua escrita – o letramento. [...] a alfabetização se desenvolve no contexto de e por meio de práticas sociais de leitura e escrita, isto é, através de atividades de letramento, e este, por sua vez, só pode desenvolver-se no contexto da e por meio da aprendizagem das relações fonema-grafema, isto é, em dependência da alfabetização. PAES• 13 Ressalta ainda que para compreender o sistema de escrita em línguas de base fonética e ortográfica, como a nossa, o aprendiz precisa compreender a relação grafema- fonema: [...] aprender a ler e escrever envolve relacionar sons com letras, fonemas com grafemas, para codificar ou para decodificar [...]. Ninguém aprende a ler e escrever se não aprender relações entre fonemas e grafemas, para codificar e decodificar. Isso é a parte específica do processo de aprender a ler e a escrever.Linguisticamente, ler e escrever é aprender a codificar e decodificar (SOARES, 2003, p.15, 17). Portanto, é indispensável o foco do(a) professor(a) nas especificidades da apropriação do sistema alfabético como: [...] consciência fonológica e fonêmica, identificação das relações fonema- grafema, habilidades de codificação e decodificação da língua escrita, conhecimento e reconhecimento dos processos de tradução da forma sonora da fala para a forma gráfica da escrita (SOARES, 2003, p. 13). A autora chama a atenção, ainda, ao fato de que aprender a ler e a escrever “envolve, também, aprender a segurar num lápis, aprender que se escreve de cima para baixo e da esquerda para direita; enfim, envolve uma série de aspectos técnicos” (SOARES, 2003, P.15 e 17). E ressalta que é ilusão pensar que a criança, ou qualquer pessoa, aprende a ler e escrever apenas codificando e decodificando, decorando e/ou simplesmente copiando letras: Sem dúvida, a alfabetização é um processo de representação de fonemas em grafemas, e vice-versa, mas é também um processo de compreensão/expressão de significados por meio do código escrito. Não se consideraria “alfabetizada” uma pessoa que fosse apenas capaz de decodificar símbolos visuais em símbolos sonoros, ”lendo”, por exemplo, sílabas ou palavras isoladas, como também não se consideraria “alfabetizada” uma pessoa incapaz de, por exemplo, usar adequadamente o sistema ortográfico de sua língua, ao expressar-se por escrito (SOARES, 2003a, p.16). Artur Moraes nos diz que o aprendiz precisa compreender como o sistema de escrita funciona, precisa descobrir os “segredos” do sistema alfabético em reflexão metalinguística: o que a escrita representa e como a escrita representa. Vamos ler em reflexão, a sua citação: 14 • Pacto pela Aprendizagem no Espírito Santo • PAES Qualquer aprendiz de uma escrita alfabética, criança ou adulto, para aprender as convenções daquele sistema (aí incluídas as relações letra-som), precisará dar conta de uma tarefa conceitual: compreender como o sistema funciona. Isto pressupõe desvendar dois enigmas básicos: descobrir o que a escrita nota (ou representa) e descobrir como a escrita cria essas notações. Para chegar a compreender que o que a escrita alfabética nota são os sons das palavras orais e que o faz considerando segmentos sonoros menores que a sílaba, o indivíduo, necessariamente, precisará desenvolver suas habilidades de análise fonológica. Para aprender como o sistema alfabético funciona é preciso olhar para o interior destes, é preciso dissecar as palavras que os constituem. Dito de forma mais precisa, é preciso exercer uma reflexão metalinguística, em especial aquela modalidade que observa os segmentos sonoros das palavras (MORAES, 2004, p. 26). Os professores precisam entender, didaticamente, como os alunos podem desvendar esses dois enigmas para compreender como o sistema de escrita alfabética funciona: • ENIGMA I - desvendar, dissecando as palavras em reflexão metalinguística, que a escrita representa os sons da fala: as letras/grafemas sonorizam-se em fonemas. Dizendo de outra forma: as letras/grafemas são signos gráficos, mas são lidas como signos sonoros. As letras são sonorizadas como notas musicais. • ENIGMA II - desvendar, dissecando as palavras em reflexão metalinguística, como as letras/grafemas organizam-se nas palavras para representar os sons da fala/fonemas. É importante lembrar que para Artur Moraes, Ana Teberosky e Nuria Ribera (2010) o termo “metalinguístico” e a partícula “meta” significam o conhecimento do sujeito sobre seu próprio conhecimento que, neste caso, se denomina consciência metalinguística: [...] A consciência metalinguística abarca uma série de níveis, segundo as unidades linguísticas sobre as quais o sujeito opera sua reflexão: fonêmicas, fonológicas, morfológicas, sintáticas ou pragmáticas (2010, p. 53-54). Esses pesquisadores esclarecem, ainda, que a Psicolinguística emprega o termo metalinguística em dois sentidos: o restrito, que significa a capacidade da linguagem para falar da linguagem, e o sentido amplo, que significa a capacidade reflexiva de examinar a linguagem. Entendemos, então, que para a apropriação e compreensão do sistema alfabético é crucial propor para os aprendizes atividades estruturantes que provoquem reflexão metalinguística, para que o aluno possa pensar e entender o que a escrita representa e como a escrita representa. PAES• 15 ATIVIDADES ESTRUTURANTES Artur Moraes nos diz: é fundamental a criança compreender como o sistema de escrita alfabética funciona; para compreender como o sistema funciona é preciso desvendar os dois “enigmas” (o que a escrita representa e como representa). Ou seja, o professor(a) precisa propor situações didáticas que façam os alunos descobrirem esses enigmas. Situações didáticas que os levem a pensar, em reflexão metalinguística, que a escrita representa os sons da fala e as letras se organizam para representar os sons da fala. Mas, como desenhar/elaborar essas situações didáticas para o aluno? Após muitas reflexões teóricas, denominei de atividades estruturantes as situações didáticas que, em reflexão metalinguística das unidades linguísticas, possibilitam ao aprendiz compreender como o sistema de escrita alfabética é/foi organizado. Classifiquei as atividades estruturantes em dois grupos: atividades de análise fonológica e atividades de análise estrutural. Atividades estruturantes de análise fonológica para que o aprendiz compreenda que a escrita representa os “sons abstratos” das palavras. Relembrando o que diz Moraes (2004): Para chegar a compreender que o que a escrita alfabética nota são os sons das palavras orais e que o faz considerando segmentos sonoros menores que a sílaba, o indivíduo, necessariamente, precisará desenvolver suas habilidades de análise fonológica (p. 26). Atividades estruturantes de análise estrutural para que o aprendiz compreenda como a escrita é/foi organizada (a estrutura lógica da escrita alfabética). Relembrando o que diz Moraes (2004): Para aprender como o sistema alfabético funciona é preciso olhar para o interior destes, é preciso dissecar as palavras que os constituem. Dito de forma mais precisa, é preciso exercer uma reflexão metalinguística, em especial aquela modalidade que observa os segmentos sonoros das palavras (p. 26). Como estratégia didática, as atividades estruturantes impulsionam o pensamento/ compreensão da estrutura lógica do SEA. Entendendo que a estrutura de correspondência, classe e ordem é a estrutura-lógica-base da organização das palavras no sistema de escrita alfabética (SEA) da Língua Portuguesa. Acredito que identificando linguisticamente; correspondendo linguisticamente; classificando linguisticamente; ordenando linguisticamente; contando linguisticamente; compondo e decompondo linguisticamente; acrescentando e retirando linguisticamente, as atividades estruturantes - de análise fonológica e análise estrutural - impulsionam o aluno, em reflexão metalinguística das unidades linguísticas, compreender o sistema de escrita alfabética: o que a escrita representa e como representa. 16 • Pacto pela Aprendizagem no Espírito Santo • PAES Ou seja, compreender que as letras/grafemas correspondem, de forma abstrata, aos sons da fala, letras/fonemas. E que as letras>grafemas>fonemas precisam ser organizadas em um conjunto/classe em determinada ordem. Eis o segredo dos dois enigmas: dissecando as letras/sílabas, as sílabas/letras das palavras, em reflexão metalinguística, o aluno descobre que a escrita representa os sons da fala; dissecando as letras/sílabas, as sílabas/letras das palavras, em reflexão metalinguística, descobre como as letras/grafemas organizam-se nas palavras para representar os sons da fala/ fonemas. Concluindo: as atividades estruturantes potencializam a especificidade da alfabetização ao provocar a construção/desconstruçãoconceitual do aluno sobre os detalhes da lógica do sistema de escrita alfabética. Mas é preciso lembrar que as atividades estruturantes provocam a compreensão do sistema de escrita alfabética (especificidade da alfabetização), mas são as atividades de letramento, como atividades alimentadoras, que dão o suporte para essa compreensão-aprendizagem. ATIVIDADES ALIMENTADORAS [...] a alfabetização se desenvolve no contexto de e por meio de práticas sociais de leitura e escrita, isto é, através de atividades de letramento [...] (SOARES, 2003c, p. 9-13). Concebendo alfabetização-e-letramento de modo indissociável, penso o letramento como atividade alimentadora, isto é, como situações didáticas que “alimentam” as atividades estruturantes: as atividades estruturantes só podem impulsionar a aprendizagem dos alunos com a inserção e uso do aprendiz na cultura letrada. Magda Soares (2003c, p. 9-13) lembra que o letramento: “só pode desenvolver-se no contexto da e por meio da aprendizagem das relações fonema-grafema, isto é, em dependência da alfabetização”. E explica a interdependênciada da alfabetização com o letramento e vice-versa: [...] “porque não só o processo de alfabetização, embora distinto e específico, altera-se e reconfigura-se no quadro do conceito de letramento, como também este é dependente daquele” (SOARES, 2003, p. 90). Confirmando mais uma vez que o desenho didático desta proposta propõe alfabetizar na indissociabilidade do letramento: o letramento como mergulho das crianças na cultura escrita, nas práticas socioculturais de oralidade, leitura e escrita. Com essa intenção, asseguramos, na rotina didática desta proposta as práticas de oralidade, leitura e escrita. Angela Kleiman (1995) nos aponta o letramento como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita enquanto sistemas simbólicos e enquanto tecnologia em contextos específicos e Magda Soares como “condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva e exerce as práticas sociais que usam a escrita” (SOARES, 1998, p. 47). PAES• 17 II. NOSSA LÍNGUA PORTUGUESA A língua é um sistema que tem como centro a interação verbal, que se faz através de textos ou discursos, falados ou escritos. Isso significa que esse sistema depende da interlocução (inter+ locução = ação linguística) entre sujeitos (PRÓ-LETRAMENTO, 2008, p. 9) Em seu livro “Aprender a escrita, aprender com a escrita”, Cecília Goulart e Victoria Wilson (2013) mostraram, a partir de uma pesquisa, que as crianças na escola, no processo de aprender a escrever, arregimentam os conhecimentos que possuem, de variadas naturezas semióticas, para dar conta das demandas da escrita de palavras, frases e textos. Que relações podemos estabelecer entre a concepção de linguagem e os processos de alfabetização? Que tipo de reflexão as crianças realizam no processo de aprender a modalidade escrita da linguagem verbal? Consideramos simplista a ideia que as crianças aprendem a escrever seguindo os caminhos que levaram a criação do princípio alfabético da escrita, a relação entre fonemas e letra e a explicitação de conhecimentos como a distinção entre vogais e consoantes, de unidades linguísticas como a sílaba e seus diferentes padrões, e a formação de palavras, sem que com isso neguemos a importância de tais conteúdos para a aprendizagem da leitura e escrita (Goulart e Wilson, 2013, p. 22). João Wanderley Geraldi, em seu livro “Portos de passagem” (1993), mostra esse paradoxo da nossa língua: Partindo da concepção da língua escrita como sistema formal (de regras, convenções e normas de funcionamento) que se legitima pela possibilidade de uso efetivo nas mais diversas situações e para diferentes fins, somos levados a admitir o paradoxo inerente à própria língua: por um lado, uma estrutura suficientemente fechada que não admite transgressões sob pena de perder a dupla condição de inteligibilidade e comunicação; por outro, um recurso suficientemente aberto que permite dizer tudo, isto é, um sistema permanentemente disponível ao poder humano de criação (GERALDI, 1993). Acreditamos que para alfabetizar e letrar, temos, necessariamente, de recorrer aos estudos da Linguística como a ciência da língua. Pensando na complexidade e abrangência da Linguística em sua dimensão: fonética, fonológica, morfológica, sintaxe, semântica, análise do discurso, pragmática, sociolinguística e/ou psicolinguística, elegemos, para nos guiar teoricamente nesta proposta, a dimensão dialógica da linguagem de Mikhail Bakhtin (sociolinguística) e a psicogênese da língua escrita de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky (psicolinguística) por nos esclarecerem pontos que consideramos fundamentais na apropriação do sistema de escrita alfabética na perspectiva do letramento. 18 • Pacto pela Aprendizagem no Espírito Santo • PAES DIMENSÃO DIALÓGICA DA LINGUAGEM: A LINGUAGEM COMO PRÁTICA DIALÓGICA DE LINGUAGENS HUMANAS Bakhtin (2010) afirma que a estrutura formal da língua, por si só, não dá conta da linguagem como prática social de linguagens humanas. Reconhece que as regras da língua existem e que as relações lógicas da língua são presentes e necessárias, mas seu domínio é limitado, pois os aspectos linguísticos dos enunciados não se restringem apenas às relações lógicas da língua. Concebendo a Linguística como fenômeno social, Bakhtin destaca a ação da linguagem sobre os sujeitos e a ação destes sobre a linguagem e defende a língua como interação verbal dos atos de fala, cujo fundamento é o caráter dialógico. Para ele, todo enunciado é dialógico, e toda relação dialógica é uma relação de sentidos, assim fazendo-se necessários o código e o sentido. Em seu livro “A estética da criação verbal” Bakhtin (2010) nos diz: [...] “Os sentidos e as formas da linguagem se constroem nos espaços da fala, da enunciação” [...] “A linguagem é um fenômeno social e dialógico”. [...] “Onde não há palavra não há linguagem e não pode haver relações dialógicas” [...] “A palavra, em geral qualquer signo, é interindividual” [...] “A palavra não pode ser entregue apenas ao falante” [...] “A relação com o sentido do texto é sempre dialógica”. [...] “A própria compreensão do texto é sempre dialógica” [...] “As relações dialógicas são bem mais amplas que o discurso no sentido restrito” [...] “Tudo o que é dito, o que é expresso se encontra fora da “alma” do falante, não pertence apenas a ele” [...] “A compreensão responsiva do conjunto discursivo é sempre de índole dialógica” [...] “A palavra migrando de emissor para emissor, justapondo-se às suas palavras, fundindo-se num só enunciado em uma multiplicidade de vozes no grande arranjo polifônico” [...] “O enunciado como um conjunto de sentidos” [...] “O enunciado pleno já não é uma unidade da língua, nem uma unidade do fluxo da língua ou cadeia de fala. Mas uma unidade da comunicação discursiva, que não tem significado, mas sentido. Isto é, um sentido pleno, relacionado com o valor e requer uma compreensão responsiva que inclui em si o juízo de valor”. Solange Jobim Souza (1994) ilustra o que Bakhtin quer dizer, utilizando diálogos de Lewis Carrol em Alice no País das Maravilhas: [...] — Quando uso uma palavra, ela significa exatamente o que quero que ela signifique..., disse Humpty Dummpty. PAES• 19 [...] — A questão, disse Alice, é que você pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes... [...] — A questão, disse Humpty Dummpty, é saber qual o significado mais importante, isto é, tudo... o sentido é tudo. [...] — Eu sempre digo o que penso... Ou, pelo menos, penso o que digo... É a mesma coisa, vocês sabem..., disse Alice. [...] —Não é a mesma coisa, de modo nenhum! Se fosse assim “gosto de tudo que tenho” seria a mesma coisa de “tenho tudo de que gosto”; e o Rato concluiu — “respiro quando durmo” seria a mesma coisa de “durmo quando respiro” (CARROL, 1975, p. 274). Fica evidente que a apropriação da estrutura formalda língua, por si só, não é suficiente, precisamos compreender a linguagem integrada à semiologia, ao tratamento simbólico e ideológico. Bakhtin confirma-nos que alfabetizar não é apenas se apropriar do sistema de escrita alfabética, codificar e decodificar. Alfabetizar letrando como prática social de linguagens humanas, para nós, faz toda a diferença, faz todo o sentido. PSICOGÊNESE DA LÍNGUA ESCRITA A psicogênese da língua escrita, como pressuposto teórico, explica o caminho que as pessoas percorrem na apropriação da língua escrita. As pesquisas de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky sobre psicogênese da língua escrita foram amplamente divulgadas no livro “Psicogênese da língua escrita” (1986). Esses estudos mostraram que o aprendiz, até apropriar-se do sistema alfabético, formula várias hipóteses sobre a escrita. Ferreiro (2002, p. 36) concluiu que a criança procura ativamente compreender as peculiaridades da linguagem oral e escrita e, tentando compreendê-la, reflete e formula hipóteses/suposições. Assim, “reinventa” o sistema alfabético ao elaborar conhecimentos sobre leitura e escrita. Minha função como investigadora tem sido mostrar e demonstrar que as crianças pensam a propósito da escrita, e que seu pensamento tem interesse, coerência, validez e extraordinário potencial educativo. Temos de escutá-las. Temos de ser capazes de escutá-las desde os primeiros balbucios escritos, contemporâneos de seus primeiros desenhos. As pesquisas de Ferreiro e Teberosky continuam importantes para o(a) professor(a) compreender e interpretar o quê e como as crianças pensam sobre a escrita. A psicogênese da escrita oferece pistas para a ação didática do professor ao mostrar teoricamente que alfabetizar é um processo de construção conceitual que se desenvolve, simultaneamente, dentro e fora da sala de aula e que o aprendizado do sistema de escrita não se reduz à codificação e à decodificação da relação grafema- fonema. 20 • Pacto pela Aprendizagem no Espírito Santo • PAES III. DESENHO DIDÁTICO DA PROPOSTA DIDÁTICA PARA ALFABETIZAR LETRANDO - PDAL O desenho didático desta Proposta Didática para Alfabetizar Letrando – PDAL expõe, de forma explícita e implícita, como o (a) professor (a) pode alfabetizar- letrando na complexa relação teoria-em-prática. Ou seja, uma didática-práxis, com situações-sequências-projetos-didáticos para o(a) professor(a), em contexto de formação, aprender-refletindo e alfabetizar-letrando seus alunos. Uma proposta didática interativa, conectada, interligada (professor-situações didáticas-aprendiz). O esquema didático aponta a base teórica e prática da nossa proposta: alfabetização na indissociabilidade do letramento. ROTINA DIDÁTICA Tendo como base esse esquema didático, mapeamos uma rotina didática como contexto de ensino, possibilitando ao professor refletir na sua prática a teoria-em- prática-de-ensino. Ressaltamos que a organização dessa rotina não é para condicionar os professores e/ou desrespeitar a sua autonomia. O objetivo desta rotina é a organização das situações didáticas em três tempos básicos: - tempo de ler para gostar de ler, tempo de leitura e oralidade e tempo de apropriação da escrita - para assegurar a alfabetização na indissociabilidade do letramento, ou seja, alfabetizar nas práticas socioculturais de oralidade, leitura e escrita. E também controlar os objetivos de aprendizagens. PAES• 21 TEMPO DE LER PARA GOSTAR DE LER Esse momento da rotina, como o próprio nome expressa, é para a criança ler e gostar de ler. O principal objetivo desse momento é ler com/por prazer. Acreditamos que a finalidade do letramento, na escola, é possibilitar aos aprendizes práticas de leitura com sentido, significado, ludicidade e muita imaginação, respeitando o devir criança, o devir infância. A inserção das crianças, como leitoras, na cultura escrita exige a mediação e a intencionalidade didática do(a) professor(a), como, por exemplo, proporcionar a interação constante e significativa dos alunos com os diferentes suportes e gêneros textuais nas práticas de leitura. Para tanto, é preciso que o(a) professor(a), como mediador(a) e responsável por esse momento, de modo intencional, insira a criança na cultura letrada, o que não significa apenas disponibilizar livros e revistas na sala, não é apenas ter o “cantinho da leitura” ou o “baú dos livros”. O tempo de ler para gostar de ler é para proporcionar a leitura para as crianças como prática social no cotidiano da sala de aula: leituras significativas dos livros de literatura infantil, jornais, revistas, revistas em quadrinhos (HQ) e outros suportes de textos. Sugerimos que nesse momento sejam usados os livros da biblioteca da escola, os livros de literatura do Prosa e Poesia, livros de literatura do PNAIC e outros programas do MEC, além de outros acervos de literatura que chegam para a escola. É importante ficar claro que esse não é o momento para avaliar como o aluno está lendo. Respeitando a liberdade deste tempo, ele não está presente nas atividades didáticas da Revista Vamos Passear na Escrita. Mas, é importante que o(a) professor(a) planeje e organize esse tempo de forma autônoma e criativa. TEMPO DE LEITURA E ORALIDADE O principal objetivo desse momento didático é a oralidade e a aquisição da leitura, ambos com compreensão: a compreensão do que se lê e do que se fala; a produção oral de textos; a relação do texto escrito com a oralidade; o desenvolvimento da consciência fonológica; a pronúncia das palavras; a reflexão do vocabulário; a apropriação e o reconhecimento de diferentes gêneros textuais. É o momento do diálogo, da “roda de conversa”, do discurso oral. Esse tempo está contemplado nas situações didáticas da Revista Vamos Passear na Escrita com proposta de atividades estruturantes e alimentadoras. Os objetivos de aprendizagem das situações didáticas propostas no tempo de leitura e oralidade tem como respaldo curricular: os direitos de aprendizagens do PNAIC/MEC e a Proposta Curricular de Língua Portuguesa do Estado do Ceará - 1o ao 5o ano (SEDUC, 2014). 22 • Pacto pela Aprendizagem no Espírito Santo • PAES Objetivos de Aprendizagens – Leitura • Ler e compreender textos não verbais. • Ler e compreender textos verbais de diferentes gêneros e em diferentes suportes. • Compreender textos lidos por outras pessoas com diferentes propósitos. • Antecipar sentidos e ativar conhecimentos prévios relativos aos textos de diferentes gêneros, lidos pelo professor ou outro leitor experiente. • Reconhecer a finalidade de textos lidos pelo professor ou outro leitor experiente. • Localizar informações explícitas em textos de diferentes gêneros e temáticas, lidos com autonomia. • Realizar inferências em textos de diferentes gêneros e temáticas, lidos com autonomia. • Apreender assuntos/temas de textos. • Interpretar frases e expressões em textos de diferentes gêneros. • Estabelecer relações de intertextualidade entre textos. • Estabelecer relações entre textos verbais e não verbais, construindo sentidos. • Estabelecer relações lógicas entre partes de textos. • Pesquisar no dicionário os significados de palavras e a acepção mais adequada ao contexto em uso. Objetivos de Aprendizagens - Oralidade • Participar de interações orais em sala de aula, questionando, sugerindo, argumentando e respeitando os turnos de fala. • Reconhecer a diversidade linguística, valorizando as diferenças culturais entre variantes regionais, sociais, de faixa etária, de gênero dentre outas. • Participar da produção oral dos colegas de forma atenta e respeitosa. • Planejar e produzir texto oral adequado à situação de comunicação. • Valorizar textos de tradição oral, reconhecendo-os como manifestações culturais. • Usar adequadamente recursos corporais para potencializar a comunicação. • Relacionar fala e escrita, tendo em vista a apropriação do sistemade escrita, as variantes linguísticas e os diferentes gêneros textuais. III. TEMPO DE ESCRITA O principal objetivo desse momento didático é a apropriação da linguagem escrita e do escrito: produção de escritas, textos escritos; compreensão do que se escreve; relação do texto escrito com a leitura; a reflexão do escrito e reescrita; escrita PAES• 23 de diferentes gêneros textuais. Esse tempo está contemplado nas situações didáticas da Revista Vamos Passear na Escrita com proposta de atividades estruturantes e alimentadoras. Os objetivos de aprendizagem das situações didáticas propostas no tempo de escrita tem como respaldo curricular: os direitos de aprendizagens do PNAIC/MEC e a Proposta Curricular de Língua Portuguesa do Estado do Ceará - 1o ao 5o ano (SEDUC, 2014). Objetivos de Aprendizagens - Produção Textual • Planejar a escrita de textos considerando as condições de produção: organizar roteiros, planos gerais para atender as diferentes finalidades, com a ajuda de um escriba. • Produzir textos de diferentes gêneros, atendendo a diferentes finalidades, por meio de um escriba. • Produzir textos de diferentes gêneros, atendendo a diferentes finalidades, com autonomia. • Gerar e organizar o conteúdo textual, estruturando os períodos e utilizando elementos coesivos para articular fatos e ideias. • Organizar o texto, dividindo-o em tópicos e parágrafos. • Pontuar os textos, favorecendo a compreensão. • Revisar coletivamente os textos durante o processo de escrita em que o professor é escriba. • Revisar autonomamente os textos durante o processo de escrita. • Reescrever textos. Objetivos de Aprendizagens - Análise Linguística: Discursividade, Textualidade e Normatividade • Adequar o texto ao contexto (interlocutor, formalidade do contexto). • Usar diferentes suportes textuais. • Reconhecer diferentes gêneros textuais. • Conhecer e usar palavras e expressões que estabelecem a coesão (progressão de tempo, marcação de espaço e relações de causalidades). • Conhecer e usar palavras ou expressões que retomem coesivamente o que já foi escrito (pronomes pessoais, sinônimos). • Conhecer e usar adequadamente concordância verbal e nominal. • Conhecer e fazer uso das grafias de palavras regulares diretas entre grafemas e fonemas (P, B, T, D, F, V). • Conhecer e fazer uso das grafias de palavras com correspondências regulares
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